Open-access Disfagia orofaríngea na malformação de Chiari tipo I: série de casos clínicos

RESUMO

A malformação de Chiari tipo I é uma condição geralmente congênita de herniação das tonsilas cerebelares abaixo do forame magno, que pode levar à compressão das estruturas próximas da fossa craniana posterior ou à obstrução do fluxo do líquido cefalorraquidiano ventril. O tipo I, apesar de raro, é o mais comumente encontrado na população. Este estudo teve como objetivo relatar os achados da videoendoscopia da deglutição, avaliação fonoaudiológica, nível de ingestão oral, risco nutricional e o planejamento terapêutico em três casos de malformação de Chiari tipo I na fase adulta. Foram coletados dados com relação à avaliação fonoaudiológica de mobilidade e força de língua, Tempo Máximo de Fonação, eficiência da tosse e o Índice de Eichner. Foram analisados o nível de ingestão oral e os sinais faríngeos de disfagia em quatro consistências alimentares, de acordo com a classificação da International Dysphagia Diet Standartisation Initiative), por meio da videoendoscopia da deglutição. Para análise e classificação dos resíduos faríngeos, foi utilizado o Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale, enquanto que, para rastrear o risco nutricional, foi utilizado o Malnutrition Screening Tool. Observou-se redução mobilidade e força de língua e no Tempo Máximo de Fonação, enquanto que os sinais faríngeos variaram entre os casos, com presença de fechamento glótico incompleto, escape oral posterior, deglutições múltiplas, resíduos faríngeos e penetração laríngea.

Palavras-chave:  Malformação de Arnold-Chiari; Transtornos de deglutição; Deglutição; Faringe; Relatos de casos

ABSTRACT

Type I Chiari malformation (MCI) is a generally congenital condition of herniation of the cerebellar tonsils below the foramen magnum, which can lead to compression of structures close to the posterior cranial fossa or obstruction of the flow of ventral cerebrospinal fluid. Type I, although rare, is the most commonly found in the population. This study aimed to report the findings of video endoscopy of swallowing, speech assessment, level of oral intake, nutritional risk and therapeutic planning in three cases of Type I Chiari malformation. Data were collected regarding the assessment of mobility and strength of tongue, Maximum Phonation Time (MPT), cough efficiency and the Eichner Index. The level of oral intake and pharyngeal signs of dysphagia were analyzed in four food consistencies, according to the International Dysphagia Diet Standardization Initiative (IDDSI) classification, using swallowing video endoscopy. For analysis and classification of pharyngeal residues, the Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale (YPRSRS) was used, while the Malnutrition Screening Tool (MST) was used to track nutritional risk. Reduced tongue mobility and strength and reduced MPT were observed, while pharyngeal signs varied between cases, with the presence of incomplete glottic closure, posterior oral escape, multiple swallows, pharyngeal residues and laryngeal penetration.

Keywords:  Arnold-Chiari malformation; Deglutition disorders; Deglutition; Pharynx; Case reports

INTRODUÇÃO

As malformações de Arnold-Chiari pertencem a um grupo de anomalias que envolvem as estruturas da junção entre o crânio, cerebelo e a medula, com etiologia, fisiopatologia e manifestações clínicas diferentes, classificados em tipo I, II, III e, posteriormente, IV(1). A malformação de Chiari tipo I (MCI) é uma condição geralmente congênita de herniação das tonsilas cerebelares, com excedente entre 3 mm e 5 mm abaixo do forame magno, que pode levar à compressão das estruturas próximas da fossa craniana posterior ou à obstrução do fluxo do líquido cefalorraquidiano ventril(2). O tipo I, apesar de raro, é o mais comumente encontrado na população(2).

A prevalência da MCI foi estimada em 0,8% a 1% na população adulta(2), o que torna suas evidências predominantemente concentradas em estudos retrospectivos e de relatos de casos. Suas manifestações clínicas iniciam-se de forma insidiosa, tardia e progressiva na adolescência ou na fase adulta, mesmo que haja possibilidade de detecção ainda na infância por ressonância magnética, e são acompanhadas de sintomas clássicos de cefaleia após esforço, dores cervicais, fraqueza nos membros superiores, instabilidade em membros inferiores com ataxia de marcha, disfagia orofaríngea e sintomas menos comuns, como o zumbido e a rouquidão(3,4).

Dentre todos os sintomas, a disfagia orofaríngea é a condição clínica mais importante devido ao risco de óbito e por impactar negativamente a qualidade de vida desses indivíduos(5). A prevalência de disfagia foi estimada entre 36% e 47% dos casos, a depender do método de avaliação utilizado(5). Alguns relatos descreveram casos em que a disfagia foi o único sintoma manifestado da MCI na fase adulta e foi possível tratá-la após intervenção cirúrgica de descompressão da fossa craniana posterior, mas que, em outros casos, isso não foi possível em razão dos danos por tempo prolongado aos nervos cranianos(6). Quando detectado na infância, há manifestações de atraso no desenvolvimento, desnutrição e pneumonia aspirativa recorrente, em decorrência de disfunção orofaríngea, com fraqueza de palato e atrofia de língua(6,7).

A aspiração laringotraqueal do alimento após a deglutição é a manifestação clínica mais grave na segurança da deglutição e pode resultar em pneumonia aspirativa, desnutrição, desidratação, internações prolongadas e morte(4). Os mecanismos fisiopatológicos da disfagia nesses indivíduos são relativos e alguns estudos sugerem gravidades das manifestações disfágicas diferentes para cada paciente com o diagnóstico, devido ao ângulo de compressão e ao tempo para iniciar o tratamento(5). Assim, a disfagia orofaríngea torna-se um sintoma emergente em alguma fase da doença e persistente após a intervenção cirúrgica(5,8). Portanto, o objetivo deste estudo foi relatar os achados da avaliação da videoendoscopia da deglutição, avaliação fonoaudiológica, nível de ingestão oral, risco nutricional e o planejamento terapêutico em três casos de malformação de Chiari tipo I na fase adulta.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de casos clínicos, de carácter retrospectivo, com coleta de dados dos prontuários entre os anos de 2021 e 2023. A pesquisa foi realizada no Ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Onofre Lopes – Natal (RN), Brasil. Cumpriram-se os princípios éticos e todos os indivíduos, ou responsáveis legais, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), padrão disponibilizado pelo serviço antes dos procedimentos do exame. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – CEP/UFRN, sob parecer de n° 6.169.294. Foram incluídos três pacientes adultos com diagnóstico de MCI de forma tardia, atendidos no serviço e encaminhados por outros setores do hospital por apresentarem queixas clínicas de deglutição. O critério de exclusão adotado foi a incapacidade de realizar os comandos desejados. Nenhum indivíduo apresentou histórico de intubação orotraqueal, traqueostomia, neoplasia de cabeça e pescoço e outros diagnósticos neurológicos. Foram coletados dados com relação ao histórico pregresso, avaliação fonoaudiológica prévia, achados da videoendoscopia da deglutição (VED), nível de ingestão oral e triagem nutricional após o exame.

PROCEDIMENTOS REALIZADOS

Todos os participantes apresentavam queixas de dificuldades para se alimentar e estavam em processo de investigação de disfagia orofaríngea. A idade dos indivíduos variou entre 46 e 66 anos: caso 1 com 46 anos; caso 2 com 50 anos e caso 3 com 66 anos. A avaliação fonoaudiológica foi realizada previamente ao exame instrumental, no momento em que o paciente foi admitido no ambulatório. Nessa avaliação foi utilizado um protocolo próprio do serviço, em que foram analisados aspectos miofuncionais orofaciais envolvidos na deglutição, como mobilidade e força de língua, estado oral, fonação e eficiência na tosse.

O estado oral envolveu a inspeção intraoral de estase salivar e a avaliação da distribuição do suporte oclusal na região de molares, de acordo com o Índice de Eichner (IE)(9). O IE foi determinado pelos componentes de contato vertical existentes entre os molares bilaterais e categorizados em três tipos: classe A, contato entre quatro zonas de suporte oclusal; classe B, contato entre uma e três zonas de suporte oclusal, e classe C, sem contato oclusal entre molares. Considerou-se para o IE o suporte oclusal habitual para a mastigação, ou seja, com a utilização de reabilitação oral protética, quando existente.

A mobilidade e força de língua foram aspectos subjetivos avaliados pelo fonoaudiólogo. Foi solicitado aos pacientes que executassem os movimentos de protrusão e lateralização com a língua e protrusão de língua contra a resistência do dedo enluvado. Foram adotados como critérios de normalidade a capacidade de executar corretamente os comandos desejados e manter a força isométrica sobre a resistência do dedo. O avaliador ainda foi responsável por solicitar aos pacientes que emitissem o som da vogal “a” pelo Tempo Máximo de Fonação (TMF), após demonstração de modelo, adotando-se como critérios de normalidade o tempo cronometrado de 14 s para mulheres e 20 s para homens. Nesse momento, foi possível realizar a análise perceptivoauditiva da voz e anotar a presença/ausência de rugosidade durante a emissão da vogal. Solicitou-se, também, a emissão de uma tosse espontânea forte para avaliar a eficiência subjetiva na produção da tosse sob comando (eficiente/fraca) para uma eventual limpeza faríngea. Todas as alterações foram descritas e anotadas para dar prosseguimento a avaliação instrumental da deglutição.

O exame da videoendoscopia da deglutição (VED) foi realizado pelo médico residente, acompanhado por médico otorrinolaringologista responsável e por fonoaudiólogo com experiência em disfagia orofaríngea, em consonância com o protocolo da instituição. Foi utilizado um nasofibroscópio flexível, marca Olympus® de 3,2 mm de diâmetro, modelo LF-P, com microcâmera e fonte de luz acoplada, introduzida na cavidade nasal até a região de hipofaringe. Os pacientes foram orientados a permanecer na posição sentada e ereta, não sendo utilizado anestésico tópico durante a introdução do instrumento na cavidade nasal até a região de hipofaringe.

Após análises padrão das estruturas e da sensibilidade faríngea, realizadas pelos médicos, o fonoaudiólogo foi responsável por ofertar os alimentos corados artificialmente com anilina azul em diferentes consistências alimentares na seguinte ordem: nível 2 (líquido levemente espessado); nível 4 (líquido extremamente espessado); nível 0 (líquido ralo) e uma oferta de nível 7 (sólido regular), de acordo com a classificação International Dysphagia Diet Standartisation Initiative (IDDSI)(10), com três ofertas em uma colher metálica de 5 mL para os líquidos e uma porção para o sólido. Os líquidos foram preparados em forma de suco dietético saborizado artificialmente e encorpados por um espessante alimentar instantâneo de amido de milho, enquanto que o alimento sólido foi constituído por uma única porção de biscoito salgado de 8 g por demanda livre.

Os três profissionais anteriormente citados, com experiência na realização do exame, foram responsáveis por interpretar, avaliar simultaneamente, por consenso, e concluíram se havia sinais faríngeos de disfagia, tais como deglutições múltiplas, escape oral posterior, resíduos faríngeos em região de valéculas e/ou seios piriformes, de acordo com a escala Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale (YPRSRS)(11): (1 - nenhum; 2 - vestígio faríngeo; 3 - resíduo leve; 4 - resíduo moderado; 5 - resíduo grave), além da presença de penetração laríngea e aspiração laringotraqueal. Foram considerados para a análise, a partir da primeira oferta, os seguintes parâmetros: deglutições múltiplas, a partir de mais de duas tentativas de deglutir a mesma oferta(12); escape oral posterior, pela presença do escape prematuro do alimento em região de hipofaringe antes de desencadear a reação de deglutição(12); resíduo faríngeo, por meio da identificação de presença residual de alimento corado em região de valéculas e/ou seios piriformes, após a deglutição da primeira oferta em diante(12); penetração laríngea, via observação de presença residual de alimento corado em região de pregas vocais(12) e aspiração laringotraqueal, quando houvesse resíduo de alimento corado abaixo das pregas vocais(12). Toda a análise aconteceu em tempo real e as imagens foram armazenadas em um computador do próprio ambulatório, para serem revisadas quantas vezes os profissionais julgassem necessárias após a realização do exame.

Após o exame, o nível de ingestão oral foi avaliado pelos profissionais utilizando-se a escala Functional Oral Intake Scale (FOIS)(13) e baseado na análise do exame, existência e necessidade de espessamento de líquidos. O risco nutricional foi avaliado por uma nutricionista, utilizando-se o instrumento Malnutrition Screening Tool (MST)(14), em que valores iguais ou superiores a 2 representam risco nutricional e necessidade de avaliação nutricional mais detalhada.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

Caso 1

Paciente do gênero feminino, 46 anos e 10 meses, em ar ambiente e FOIS 7. Chegou ao hospital para investigação de crises de cefaleia e dores cervicais persistentes. Inicialmente, recebeu o diagnóstico de subluxação atlantoaxial recidivante, com mielopatia. Em prosseguimento, dois anos depois, foi acompanhada pela equipe de neurocirurgia para operação de fixação e descompressão occipitocervical, o que resultou no diagnóstico da malformação de Chiari tipo I de forma tardia. O seu pós-operatório foi acompanhado por fraquezas nos membros superiores e queixas de engasgo ao se alimentar, sucedendo-se o encaminhamento para reabilitação fisioterapêutica e ao ambulatório de disfagia orofaríngea. Foi atendida no ambulatório após dois anos do diagnóstico. Na avaliação fonoaudiológica, apresentou classe B do IE, com ausências dentárias e sem uso de reabilitação oral, mobilidade e força de língua preservadas, ausência de estase salivar, tosse espontânea ineficiente, TMF reduzido, com ausência de rugosidade. No exame da VED, observou-se sensibilidade faríngea ao toque preservada, presença de resíduos faríngeos de grau moderado (YPRSRS - 4) em valéculas e seios piriformes e presença de penetração laríngea, ambos em nível 4 (líquido extremamente espessado). Após o exame, recebeu FOIS 5 (via oral total com múltiplas consistências, porém, com necessidade de preparo especial ou compensações) e apresentou escore do MST igual a 2, o que sugere risco nutricional e necessidade de avaliação nutricional detalhada. O planejamento terapêutico no momento da admissão teve como alvo a segurança da deglutição, utilizando-se estratégias de manobras de reajuste voluntário da biomecânica da deglutição com treino funcional de líquidos. A paciente foi desligada da terapia fonoaudiológica por faltas consecutivas e permaneceu posteriormente com queixas de disfagia e fraquezas na mão.

Caso 2

Paciente do gênero masculino, 50 anos e 3 meses, em ar ambiente e FOIS 7. Recebeu o diagnóstico de malformação de Chiari tipo I de forma tardia e realizou, no mesmo ano, a neurocirurgia de descompressão occipitocervical, em que prosseguiu com queixas de “entalo” durante a alimentação e piora da rouquidão no pós-operatório imediato. Foi encaminhado pela equipe de neurologia após três anos do procedimento cirúrgico, em razão de queixas permanentes na deglutição e fonação. Foi atendido no ambulatório após cinco anos do diagnóstico. Na avaliação fonoaudiológica, apresentou classe B do IE, com ausências dentárias e sem uso de reabilitação oral, mobilidade e força de língua reduzidas, ausência de estase salivar, tosse espontânea eficiente, TMF reduzido, com presença de rugosidade e soprosidade. No exame da VED, observou-se sensibilidade laríngea preservada, resíduo oral após a deglutição em todas as consistências avaliadas, presença de vestígios faríngeos (YPRSRS - 2) em valéculas e deglutições múltiplas, ambos no nível 4 (líquido extremamente espessado). Após o exame, recebeu FOIS 5 (via oral total com múltiplas consistências, porém, com necessidade de preparo especial ou compensações) e apresentou escore do MST igual a 0, sem risco nutricional. O planejamento terapêutico teve como alvos o treino miofuncional orofacial e a segurança da deglutição, com estratégias de exercícios isométricos e isotônicos em língua, lábios e bochechas, e estratégias posturais de cabeça com treino funcional de líquidos. Permaneceu na terapia fonoaudiológica por três meses, com estabilidade clínica, sem queixas de tosse e engasgo, até ser desligado por faltas consecutivas. Posteriormente, permaneceu no acompanhamento da equipe de fisioterapia.

Caso 3

Paciente do gênero femino, 66 anos e 5 meses, em ar ambiente e FOIS 7. Recebeu o diagnóstico de malformação de Chiari tipo I de forma tardia e realizou a neurocirurgia ainda no mesmo ano, com estabilidade clínica e bom prognóstico. Retornou ao hospital após cinco anos, com progressão de disfonia e fraqueza nos membros inferiores, o que resultou em quedas no domicílio, por desequilíbrio. Nesse período, a paciente realizou sessões de fisioterapia e não procurou acompanhamento fonoaudiológico. Após o período sem acompanhamento fonoaudiológico, retornou com tremores em membros superiores, associados a queixas de “engasgo” com líquidos. Foi atendida no ambulatório após quinze anos do diagnóstico. Na avaliação fonoaudiológica, apresentou classe A do IE, com uso de prótese dentária parcial superior e inferior, mobilidade e força de língua reduzidas, presença de tremor de língua em repouso, dificuldade em estalar língua, ausência de estase salivar, tosse espontânea eficiente, TMF reduzido, com presença de rugosidade e soprosidade, e dificuldade em deglutir saliva. No exame da VED, observou-se sensibilidade faríngea preservada, presença de escape oral posterior nos níveis 0 (líquido ralo), 2 (líquido levemente espessado) e 4 (líquido extremamente espessado). Após o exame, recebeu FOIS 5 (via oral total com múltiplas consistências, porém, com necessidade de preparo especial ou compensações) e apresentou escore do MST igual a 0, sem risco nutricional. O planejamento terapêutico teve como alvos o treino miofuncional orofacial e o gerenciamento da deglutição, com estratégias de exercícios isométricos e isotônicos em língua, lábios e bochechas, além de intervenções compensatórias nas consistências alimentares para aumentar a segurança da deglutição. Posteriormente, foi desligada por faltas consecutivas e permaneceu no acompanhamento do ambulatório dos distúrbios do movimento.

Descrição comparativa dos resultados da avaliação e planejamento terapêutico

Na avaliação fonoaudiológica, 2 casos apresentaram mobilidade e força de língua reduzidas, sendo 1 com presença de tremores de língua em repouso. Em relação ao estado oral, 2 casos apresentaram classe B do IE, com presença de ausências dentárias significativas em região de molares, enquanto 1 utilizava prótese dentária total bem fixa. Todos os casos apresentaram TMF reduzido e 1 com tosse espontânea fraca para limpeza eventual da laringe. Com relação aos achados da VED, 2 casos apresentaram fechamento glótico incompleto e verificou-se também que houve presença de sinais faríngeos de disfagia nas consistências de líquido e líquidos espessados, com predomínio da consistência de nível 4 (líquido extremamente espessado) para todos os casos. Todavia, no caso em que houve presença de tremor em língua, constataram-se sinais de escape oral posterior nas demais consistências de líquidos (nível 0, 2 e 4). Não se observou presença de sinais de disfagia na consistência sólida (nível 7) em nenhum dos casos. O nível de ingestão oral para todos os indivíduos foi FOIS 5 e 1 deles apresentou risco nutricional devido à perda de peso relevante. A Tabela 1 apresenta os dados com relação à avaliação fonoaudiológica e os achados da VED.

Tabela 1
Descrição das características, achados da avaliação fonoaudiológica e videoendoscópicos entre os casos

Em relação ao planejamento terapêutico no momento da admissão dos casos no ambulatório de disfagia orofaríngea, os alvos se concentraram na fase oral e faríngea da deglutição, de acordo com os achados na avaliação, com fortalecimento da mobilidade e força de língua, medidas compensatórias, estratégias com manobras posturais de cabeça e reajustes voluntários da deglutição. Para melhorar a biomecânica da deglutição, foram utilizados objetivos da terapia convencional da deglutição, como fortalecimento da musculatura de língua, aumento do movimento de excursão hiolaríngea e diminuição dos resíduos faríngeos em recessos (Quadro 1).

Quadro 1
Descrição do planejamento terapêutico com alvos, objetivos e estratégias no momento da admissão dos casos no ambulatório de disfagia orofaríngea

DISCUSSÃO

O processo de desencadeamento das manifestações clínicas da disfagia nos indivíduos com essa malformação ainda não é claro, pois as dificuldades de deglutição afetam de formas diferentes os portadores da malformação(15). Entretanto, observa-se que a paralisia do nervo craniano inferior, em decorrência da compressão, poderia estar associada à tração e a pequenos seccionamentos nervosos inerentes à doença(3). Por isso, o presente estudo propôs relatar os achados da videoendoscopia da deglutição, avaliação fonoaudiológica, nível de ingestão oral, risco nutricional e o planejamento terapêutico de três casos de malformação de Chiari tipo I em fase adulta.

A causa da disfagia orofaríngea nessa população ainda é investigada, porém, há fortes evidências que o ângulo espinhal craniano maior está associado à gravidade das manifestações disfágicas no adulto de forma tardia(2). Isso ocorre devido à compressão do tronco encefálico e cerebelo abaixo do forame magno causar aumento de tensão em posição inferior das estruturas, o que resulta em pequenos danos e paralisia dos nervos cranianos, evidenciados em imagens de ressonância magnética(5). O ângulo maior compreende o rebaixamento angular do tronco encefálico com relação à linha de extensão da vertente occipital e à linha de extensão do assoalho do quarto ventrículo(5).

A intervenção cirúrgica de descompressão occipitocervical (ou descompressão da fossa craniana posterior) é comum entre os indivíduos com a patologia e é realizada pela equipe de neurocirurgia após a confirmação do diagnóstico(3). Nos casos relatados no presente estudo, por terem sido diagnosticados de forma tardia na fase adulta, a intervenção de descompressão foi realizada em um momento de ápice de tensão e manifestações clínicas agudas intermitentes durante o processo de investigação médica, resultando em um longo período de tração e pequenos danos aos nervos cranianos adjuntos(6). Ademais, o processo cirúrgico somente aliviou a tensão constante na região posterior, caracterizada pelos sintomas de cefaleia e tensão cervical debilitantes no cotidiano, porém, como descrito nos relatos, não resolveu o quadro disfágico em que dois casos relataram piora da deglutição e rouquidão no pós-operatório imediato.

Com relação à avaliação fonoaudiológica, os dois indivíduos com maior tempo de diagnóstico apresentaram redução na mobilidade e força de língua nas provas solicitadas, o que sugere alterações na fase oral da deglutição. Sabe-se que a língua possui papel significativo na deglutição, participando do controle, transporte e retropropulsão do bolo alimentar da cavidade oral para a faringe(2). A redução da mobilidade e força podem ocasionar alterações na eficiência da deglutição, verificadas pelo exame instrumental como os resíduos orais observados após a oferta de todas as consistências alimentares no caso 2 e na incoordenação do bolo alimentar na transferência para fase conseguinte, com escape prematuro, observado nas ofertas de líquido no caso 3. Esses achados são compatíveis com estudos que verificaram que o tempo de diagnóstico está relacionado com alterações orofaríngeas importantes, como atrofia da língua e hipofunção do esfíncter velofaríngeo, em decorrência de um decaimento do par motor hipoglosso (XII), com origem na porção média do bulbo(5).

A função de fonação e tosse foram aspectos importantes durante a avaliação, em que os casos apresentaram TMF reduzido, com fechamento glótico incompleto e presença de rugosidade e soprosidade na emissão vocal. Esses dados demonstram que os indivíduos com MCI possuem baixa resistência na coaptação de pregas vocais, o que repercute negativamente na proteção de vias aéreas inferiores para eventuais aspirações. O caso 1 foi o único que apresentou tosse fraca, na mesma medida em que houve TMF reduzido e presença de penetração laríngea no exame instrumental. Assim, esses dados atestam a compreensão de uma deglutição insegura, com pouco reflexo de proteção laríngea e baixa capacidade de ejeção do material penetrado em pregas vocais(2,6,7). Esses achados ajudam a compreender a fisiopatologia envolvida nesses indivíduos, visto que não há dados publicados sobre a função de fonação e eficiência da tosse na MCI, parâmetros importantes para o planejamento terapêutico fonoaudiológico.

Os sinais faríngeos de disfagia foram avaliados por meio da VED, com ofertas de quatro consistências alimentares distintas, em que os três casos apresentaram alterações na fase faríngea da deglutição. Os casos 1 e 2 apresentaram resíduos faríngeos de graus diferentes após a deglutição na mesma consistência alimentar, enquanto o caso 2 precisou de deglutições múltiplas para ingerir e limpar todo o volume ofertado. O caso 1 apresentou penetração laríngea pela gravidade do acúmulo remanescente de material em recessos após a deglutição, o que demonstra diminuição no componente motor de elevação e anteriorização hiolaríngea para a correta abertura do esfíncter esofágico superior. Esses achados foram utilizados como base para o planejamento terapêutico, com objetivo de diminuir os resíduos faríngeos e aumentar a elevação hiolingual. Foram utilizadas estratégias posturais de cabeça e manobras de ajuste voluntário da deglutição para aumentar a segurança e limpeza faríngea.

As dificuldades na ingestão de líquidos em todos os participantes da pesquisa assemelharam-se às dificuldades típicas das disfagias neurogênicas, como padrões observados em indivíduos com esclerose lateral amiotrófica e na miastenia grave(2,5,12), com risco eventual de aspiração laringotraqueal e risco nutricional por baixa ingestão de nutrientes por via oral, constatado no caso 1.

O treino miofuncional orofacial foi empregado no planejamento terapêutico nos casos 2 e 3, em que se constatou mobilidade e força de língua reduzidas. Os exercícios isométricos e isotônicos de língua são utilizados para ampliar e fortalecer os movimentos de língua necessários para conter e propulsar o alimento na cavidade oral(6). As alterações na funcionalidade de língua são frequentemente relatadas nos casos clínicos de MCI; alguns sinais são mais brandos e outros, associados a espasmos, atrofia e tremor. Em nenhum relato constou diminuição na sensibilidade intraoral(3). A fraqueza e diminuição dos movimentos motores finos são constantes nessa população e devem ser considerados no momento de reabilitação fonoaudiológica(14,15). Os movimentos de elevação de ponta de língua, estalo, arrastar ponta de língua no palato e resistência isométrica devem ser priorizados na terapia fonoaudiológica.

No presente estudo, todos os casos apresentaram o diagnóstico tardio na fase adulta, o que pode ter interferido na variação das manifestações clínicas da disfagia orofaríngea, pois houve evidências de diferenças na manifestação clínicas entre as faixas etárias(5). O diagnóstico tardio pode levar a maior risco de hospitalização devido à baixa proteção de vias aéreas inferiores, verificado na ineficiência da tosse no caso 1, o que aumenta as chances de aspirações silenciosas, uma condição mais crítica no quadro disfágico(5,13,14). Dessa forma, torna-se importante o diagnóstico precoce e o acompanhamento fonoaudiológico durante a pré e a pós-intervenção cirúrgica para iniciar uma ação efetiva e garantir estado nutricional adequado, com uma deglutição funcional.

As limitações deste estudo incluem o reduzido número de participantes da amostra, por ser uma patologia menos frequente na clínica onde foi realizado, e a falta de resultados comparativos após a intervenção fonoaudiológica, devido à descontinuação dos próprios pacientes no processo de reabilitação. Os pontos fortes da pesquisa incluem a avaliação fonoaudiológica, avaliação instrumental da deglutição e a triagem nutricional entre os sujeitos da pesquisa, além da descrição do planejamento terapêutico utilizado e, provavelmente, ser o primeiro estudo a descrever o TMF e a eficiência da tosse.

COMENTÁRIOS FINAIS

Os casos apresentaram redução na mobilidade e força de língua e no Tempo Máximo de Fonação. Os sinais faríngeos da deglutição variaram entre os casos, com presença de fechamento glótico incompleto, escape oral posterior, deglutições múltiplas, resíduos faríngeos e penetração laríngea. A disfagia diminuiu o nível de ingestão por via oral em todos os casos. O planejamento terapêutico foi pautado em medidas compensatórias, exercícios miofuncionais orofaciais, ajustes voluntários de condicionamento muscular e manobras posturais de cabeça.

  • Trabalho realizado no Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – Natal (RN), Brasil.
  • Financiamento: Nada a declarar.

REFERÊNCIAS

  • 1 Milhorat TH, Chou MW, Trinidad EM, Kula RW, Mandell M, Wolpert C, et al. Chiari I malformation redefined: clinical and radiographic findings for 364 symptomatic patients. Neurosurgery. 1999 Maio;44(5):1005-17. http://doi.org/10.1097/00006123-199905000-00042 PMid:10232534.
    » http://doi.org/10.1097/00006123-199905000-00042
  • 2 Almotairi FS, Andersson M, Andersson O, Skoglund T, Tisell M. Swallowing dysfunction in adult patients with Chiari I malformation. J Neurol Surg B Skull Base. 2018 Maio 25;79(6):606-13. http://doi.org/10.1055/s-0038-1655758 PMid:30456032.
    » http://doi.org/10.1055/s-0038-1655758
  • 3 Passias PG, Naessig S, Kapadia BH, Para A, Ahmad W, Pierce KE, et al. Timing to surgery of Chiari malformation type 1 affects complication types: an analysis of 13,812 patients. J Craniovertebr Junction Spine. 2020;11(3):232-6. http://doi.org/10.4103/jcvjs.JCVJS_67_20 PMid:33100774.
    » http://doi.org/10.4103/jcvjs.JCVJS_67_20
  • 4 Campisi R, Ciancio N, Bivona L, Di Maria A, Maria GD. Type I Arnold-Chiari malformation with bronchiectasis, respiratory failure, and sleep disordered breathing: a case report. Multidiscip Respir Med. 2013 Fev 22;8(1):15. http://doi.org/10.1186/2049-6958-8-15 PMid:23433005.
    » http://doi.org/10.1186/2049-6958-8-15
  • 5 Lu F, Chen Z, Wu H, Jian FZ. Magnetic resonance imaging of chiari malformation type i in adult patients with dysphagia. BioMed Res Int. 2019 Maio 14;2019:7485010. http://doi.org/10.1155/2019/7485010 PMid:31218227.
    » http://doi.org/10.1155/2019/7485010
  • 6 Graham K, Black A, Brain P. Resolution of life-threatening dysphagia caused by caudal occipital malformation syndrome following foramen magnum decompressive surgery. Aust Vet J. 2012 Jul 24;90(8):297-300. http://doi.org/10.1111/j.1751-0813.2012.00952.x PMid:22827623.
    » http://doi.org/10.1111/j.1751-0813.2012.00952.x
  • 7 Albert GW. Chiari malformation in children. Pediatr Clin North Am. 2021 Ago;68(4):783-92. http://doi.org/10.1016/j.pcl.2021.04.015 PMid:34247709.
    » http://doi.org/10.1016/j.pcl.2021.04.015
  • 8 Doval Rodríguez A, Serramito García R, Menéndez Cortezón B, Prieto González A. Chiari type I malformation discovered through a glossopharyngeal neuralgia. Neurocirugia. 2022;33(6):398-401. http://doi.org/10.1016/j.neucie.2022.02.008 PMid:35256327.
    » http://doi.org/10.1016/j.neucie.2022.02.008
  • 9 Eichner K. Renewed examination of the group classification of partially edentulous arches by Eichner and application advices for studies on morbidity statistics. Stomatol DDR. 1990;40(8):321-5. PMid:2270610.
  • 10 Cichero JAY, Lam P, Steele CM, Hanson B, Chen J, Dantas RO, et al. Development of international terminology and definitions for texture-modified foods and thickened fluids used in dysphagia management: the IDDSI framework. Dysphagia. 2017 Dez 2;32(2):293-314. http://doi.org/10.1007/s00455-016-9758-y PMid:27913916.
    » http://doi.org/10.1007/s00455-016-9758-y
  • 11 Neubauer PD, Rademaker AW, Leder SB. The Yale pharyngeal residue severity rating scale: an anatomically defined and image-based tool. Dysphagia. 2015 Jun 7;30(5):521-8. http://doi.org/10.1007/s00455-015-9631-4 PMid:26050238.
    » http://doi.org/10.1007/s00455-015-9631-4
  • 12 Daggett A, Logemann J, Rademaker A, Pauloski B. Laryngeal penetration during deglutition in normal subjects of various ages. Dysphagia. 2006 Jan 10;21(4):270-4. http://doi.org/10.1007/s00455-006-9051-6 PMid:17216388.
    » http://doi.org/10.1007/s00455-006-9051-6
  • 13 Crary MA, Mann GD, Groher ME. Initial psychometric assessment of a functional oral intake scale for dysphagia in stroke patients. Arch Phys Med Rehabil. 2005 Ago;86(8):1516-20. http://doi.org/10.1016/j.apmr.2004.11.049 PMid:16084801.
    » http://doi.org/10.1016/j.apmr.2004.11.049
  • 14 Ferguson M, Capra S, Bauer J, Banks M. Development of a valid and reliable malnutrition screening tool for adult acute hospital patients. Nutrition. 1999;15(6):458-64. http://doi.org/10.1016/S0899-9007(99)00084-2 PMid:10378201.
    » http://doi.org/10.1016/S0899-9007(99)00084-2
  • 15 Urbizu A, Ferré Á, Poca MA, Rovira A, Sahuquillo J, Martin BA, et al. Cephalometric oropharynx and oral cavity analysis in Chiari malformation type I: a retrospective case-control study. J Neurosurg. 2017 Fev 1;126(2):626-33. http://doi.org/10.3171/2016.1.JNS151590 PMid:27153161.
    » http://doi.org/10.3171/2016.1.JNS151590

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2024
  • Aceito
    19 Mar 2024
location_on
Academia Brasileira de Audiologia Rua Itapeva, 202, conjunto 61, CEP 01332-000, Tel.: (11) 3253-8711 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@audiologiabrasil.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro