RESUMO
Objetivo Identificar a frequência de afasia em usuários internados em um hospital público municipal de referência e caracterizar o perfil sociodemográfico e clínico da amostra estudada.
Métodos Foi realizado um estudo transversal, descritivo, baseado em análise de prontuários e avaliação fonoaudiológica breve, à beira do leito. Foram incluídos no estudo adultos ou idosos, de ambos os sexos, falantes nativos do português brasileiro, com AVC, em fase aguda ou subaguda.
Resultados Em três meses, 13 usuários se enquadraram nos critérios de inclusão, nove consentiram em participar e sete foram avaliados. Dentre os participantes avaliados, três apresentaram quadro afásico, com proporção de 42,8% de casos. Quanto ao perfil, a maioria dos nove participantes era de mulheres, idosas e com escolaridade média. No subgrupo com diagnóstico inicial de afasia, os três usuários apresentaram quadros afásicos de grau moderado à grave, decorrente de lesões córtico-subcorticais.
Conclusão Considerando a proporção de casos de afasia encontrados em usuários internados em fase aguda e subaguda do primeiro AVC e as características desse grupo, é indispensável a atenção à saúde dessa população, bem como o mapeamento de casos em outras regiões do estado e do país.
Palavras-chave: Afasia; Avaliação; Epidemiologia; Indicadores básicos de saúde; Fonoaudiologia
ABSTRACT
Purpose To identify the rate of aphasia in users admitted to a public referral hospital and to characterize the sociodemographic and clinical profile of the sample studied.
Methods A descriptive cross-sectional study was carried out based on analysis of medical records and a brief bedside speech-language assessment. The study included younger or older adults, of both sexes, native speakers of Brazilian Portuguese, with stroke in the acute or subacute phase.
Results In a 3-month period, 13 users met the inclusion criteria, of whom 9 agreed to participate and 7 were evaluated. Three participants had aphasia, representing 42.8% of cases. Regarding the profile of the 9 participants, the majority were women, elderly and had medium educational level. The three users in the subgroup with initial diagnosis of aphasia had moderate-to-severe aphasia secondary to cortical-subcortical lesions.
Conclusion Given the rate of aphasia cases found among users hospitalized for primary acute and subacute strokes and the characteristics of this group, efforts toward providing health care for this population and mapping cases in other regions of the state and country are fundamental.
Keywords: Aphasia; Evaluation; Epidemiology; Health status indicators; Speech, Language and Hearing Sciences
INTRODUÇÃO
Estima-se que as doenças encefálicas tenham uma prevalência total de cinco a oito casos por 1.000 habitantes, em indivíduos acima de 25 anos de idade. Encontradas com mais frequência em adultos de meia idade e idosos, apenas 10% a 20% dos casos ocorrem em indivíduos com menos de 45 anos(1). Dentre as doenças encefálicas, destaca-se o acidente vascular cerebral (AVC), segunda maior causa de morte no mundo em 2013, acometendo cerca de 110 a cada 100.000 habitantes por ano(2). No Brasil, tal condição é considerada uma das principais causas de morte na população adulta.
O AVC está associado a diversos fatores de risco, tais como: sexo, idade, diabetes mellitus, tabagismo, etilismo, sedentarismo, hipertensão arterial, cardiopatias, obesidade e estresse(3,4). Alguns desses fatores são evitáveis e, portanto, passíveis de medidas preventivas que visem à redução de sua incidência e prevalência(3,4). Contudo, quando instalado o quadro, diferentes medidas de cuidado são preconizadas pelo Ministério da Saúde, em nível de atendimento de urgência e emergência e de reabilitação, visando à redução de danos à saúde.
O avanço do tratamento na fase aguda do AVC tem reduzido significativamente a mortalidade e a morbidade, minimizando o número e/ou a gravidade de sequelas(2,4,5). Apesar dos avanços obtidos nessa direção, o grande número de pessoas com deficiências de longo prazo, adquiridas pós-AVC, ainda é um desafio ao sistema de saúde em nosso país(1,2).
Dentre as sequelas decorrentes do AVC, são comuns as alterações das habilidades comunicativas, como as afasias(6). Considerado um distúrbio de linguagem, a afasia gera limitações na habilidade do indivíduo comunicar-se efetivamente, seja para se expressar, ou para compreender o que lhe é dito, ou aquilo que lê, em diferentes graus(6,7).
As pesquisas sobre a incidência ou prevalência populacional dos distúrbios da comunicação de origem neurológica são escassas. Dados internacionais sobre a incidência de afasia após o primeiro AVC indicam taxas que variam de 7,1 a 43,0 por 100.000 habitantes(7,8). Estudos nacionais que revelem o número de novos casos de afasia em uma determinada população, e em dado intervalo de tempo, são escassos(9). Assim, há autores que tentam inferir esse dado a partir da ocorrência de novos casos de AVC(6).
Para a identificação precoce dos quadros afásicos e de sua incidência e prevalência no Brasil, observa-se que os instrumentos de avaliação da linguagem e da comunicação à beira de leito, em falantes do português brasileiro (PB), são também escassos. Alguns testes já adaptados para o PB, como The Language Screening Test – LAST, versões A e B(10) e o Bedside Evaluation Screening Test, 2ª versão - BEST-2(11), ainda não estão disponíveis para utilização na prática clínica.
O protocolo de avaliação breve da linguagem Montreal – Toulouse Exame de Afasia, Módulo Standard Inicial, versão Alpha (M1-Alpha)(12) é uma alternativa, visto que alguns estudos nacionais já foram realizados com esse instrumento(13,14). O instrumento tem como objetivo detectar a possibilidade de presença de um quadro afásico, bem como analisar o perfil das manifestações linguísticas e como se apresentam.
Considerando o cenário apresentado, o presente estudo propôs-se a contribuir com investigações sobre indicadores de saúde referentes ao quadro afásico na população neurológica adulta e idosa no Brasil, a fim de subsidiar o planejamento e a gestão adequada dos serviços de saúde destinados ao cuidado dessa população. Estudos adicionais podem contribuir para o desenvolvimento de protocolos de identificação precoce dos quadros afásicos e seu gerenciamento nas fases aguda e subaguda, favorecendo o melhor prognóstico dos casos.
Os objetivos desta pesquisa foram identificar a frequência de afasia após primeiro AVC, em fase aguda ou subaguda, em usuários internados em um hospital público municipal de referência microrregional do estado do Rio de Janeiro, e caracterizar o perfil sociodemográfico e clínico do grupo estudado.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo com delineamento transversal, descritivo, com realização de análise documental em fonte limitada de coleta de informações (prontuários) e avaliação clínica fonoaudiológica breve, à beira do leito. A pesquisa recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde de Nova Friburgo da Universidade Federal Fluminense, sob parecer número 2.636.560. Todos os participantes consentiram ou assentiram com a pesquisa, na medida de sua compreensão, e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), ou o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE). Nesse último caso, o responsável legal pelo usuário também assinou um TCLE.
Participantes
Foram convidados a participar do estudo usuários de um hospital público municipal de uma das regiões do estado do Rio de Janeiro, internados na enfermaria de Neurologia, no período de junho a setembro do ano de 2018. O hospital é referência microrregional em média e alta complexidade para dez municípios e, desde 2017, integra a Rede de Atenção às Urgências e Emergências da região (RUE), como centro de atendimento de urgência tipo I. Em 2018, a unidade dispunha de 195 leitos de internação, sendo sete leitos destinados à enfermaria neurológica.
Os critérios de inclusão estabelecidos foram: participantes adultos ou idosos, de ambos os sexos, falantes nativos do PB, que sofreram AVC isquêmico (AVCi) ou hemorrágico (AVCh) e que se encontravam em fase aguda ou subaguda(6), no momento da coleta, isto é, que sofreram o AVC há, no máximo, três meses. A confirmação do diagnóstico clínico de AVC na unidade hospitalar estudada é realizada por meio de tomografia computadorizada de crânio (TC), de urgência, uma vez que o hospital segue o protocolo clínico e as diretrizes terapêuticas do Ministério da Saúde para trombólise no AVCi agudo. Após a primeira TC, novos exames são solicitados, de acordo com o tratamento adotado. Para fins desta pesquisa, foram coletados dados do último exame de imagem do usuário, realizado antes da avaliação fonoaudiológica.
Foram excluídos do estudo os usuários não responsivos a estímulos verbais, pois não seria possível realizar uma avaliação formal da linguagem, ainda que breve. Além disso, os usuários com histórico de AVC ou outras doenças neurológicas prévias que acometem o sistema nervoso central (SNC) também foram excluídos, considerando os objetivos desta pesquisa.
Material
Para a obtenção dos dados sociodemográficos e clínicos, foi elaborada a Ficha de Coleta de Dados, contemplando os seguintes aspectos:
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Dados sociodemográficos: idade, sexo, escolaridade, profissão/ocupação e local de residência;
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Dados neurológicos: tipo de AVC, tipo de exame de imagem, localização da lesão e fatores de risco para AVC;
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Avaliação e conduta: resultado da avaliação breve e conduta fonoaudiológica.
A avaliação breve à beira do leito ocorreu mediante aplicação do teste M1-Alpha(12). Diante da inexistência de testes específicos de avaliação breve da linguagem de adultos e idosos à beira do leito, em nosso país, optou-se pelo M1-Alpha, em função dos estudos já realizados com esse teste na população brasileira(13,14). O instrumento, que investiga a compreensão e a emissão oral e escrita da linguagem, é composto por oito subtestes: entrevista semidirigida, compreensão oral de palavras e frases, compreensão escrita de palavras e frases, cópia, ditado, leitura em voz alta, repetição e denominação(14).
Procedimentos
Para efetuar a coleta de dados, a equipe da pesquisa realizou visitas ao hospital, uma ou duas vezes por semana, no período da tarde, uma vez que não há profissional fonoaudiólogo lotado na unidade. Os usuários foram abordados na companhia de seu responsável legal e ambos foram esclarecidos quanto aos objetivos, procedimentos e garantias éticas da pesquisa. Após consentimento ou assentimento do participante e de seu responsável legal, foram realizados o preenchimento da Ficha de Coleta de Dados, a partir dos prontuários, e a avaliação breve da linguagem. A avaliação teve duração máxima de 20 minutos e os participantes foram informados sobre as tarefas que deveriam desempenhar no Teste M1-Alpha.
Os resultados foram registrados em prontuário e os familiares e usuários foram orientados sobre a necessidade, ou não, de acompanhamento fonoaudiológico. Todos os participantes da pesquisa com diagnóstico inicial de afasia, ou indício de outro distúrbio fonoaudiológico, bem como aqueles que não puderam participar, mas possuíam queixas fonoaudiológicas, foram encaminhados para investigação e acompanhamento no serviço fonoaudiológico público de referência da instituição proponente.
Quando o usuário era elegível para participar da pesquisa, mas estava impossibilitado de emitir respostas consistentes, fosse por alteração do nível de alerta, por alteração de comportamento, ou por ausência de seus responsáveis legais no momento, para assinatura do TCLE, foi realizado encaminhamento para o serviço fonoaudiológico da instituição proponente. Nesses casos de avaliação após a alta hospitalar, a avaliação também foi feita pela equipe da pesquisa, considerando a duração do quadro (fase aguda ou subaguda), para inclusão no estudo.
Neste estudo, foi realizado tratamento estatístico descritivo dos dados. Foi calculado o indicador de saúde proporção, que se refere à frequência relativa observada de determinado evento(15), neste caso, a ocorrência de afasia. Foram analisadas variáveis categóricas, como sexo, ocupação e residência, e numéricas, como idade e escolaridade. As variáveis foram descritas por medidas de tendência central (média e mediana) e de dispersão (desvio padrão, mínimo e máximo), frequências absolutas e relativas. Os dados foram analisados por meio de planilha do programa Microsoft Office Excel 2016.
RESULTADOS
Frequência de afasia
No período de realização da pesquisa, foram identificados 35 usuários nos leitos da enfermaria de Neurologia da unidade hospitalar. Desses, apenas 13 (37,1%) se enquadraram nos critérios de inclusão. Os principais motivos de exclusão foram: outros acometimentos do SNC, histórico de AVC prévio em fase crônica, diagnóstico clínico de AVC não confirmado por exame de imagem e/ou paciente não responsivo. Foram encaminhados ao serviço fonoaudiológico de referência da instituição proponente para seguimento 15 usuários que apresentaram queixas fonoaudiológicas (42,8%).
Dentre os 13 usuários elegíveis, 9 consentiram em participar. Desses 9, 1 recusou-se a responder e 1 não conseguiu responder no momento da abordagem e não procurou o serviço de Fonoaudiologia indicado, após a alta hospitalar. Portanto, apenas 7 participantes foram avaliados. Constatou-se indício de afasia em 3 participantes avaliados, com proporção de 42,8% de casos no período investigado.
Caracterização dos dados sociodemográficos
Em relação ao sexo dos participantes (n=9), 6 (66,6%) eram mulheres e 3 (33,3%), homens. A faixa etária variou de 55 a 94 anos, com média de 68,2 anos e desvio padrão (DP) de 12,1. Quanto à escolaridade, os participantes tinham entre 3 e 14 anos de ensino formal, com média de 7,5 anos (DP= 3,9). O grau de escolaridade de 3 dos participantes não estava disponível.
Na Tabela 1, foram distribuídos os participantes nos subgrupos: afásicos, não afásicos e não avaliados, para a caracterização das variáveis sexo, idade e escolaridade.
Dados sociodemográficos dos subgrupos de participantes (afásico X não afásico X não avaliado)
Em relação à ocupação do grupo estudado, foram identificadas atividades diversificadas, com predomínio de “outras formas de trabalho” - afazeres domésticos (45%), seguido da ocupação costureira (22,2%). As ocupações identificadas entre os afásicos (n=3) foram: “outras formas de trabalho” - afazeres domésticos, costureira e pedreiro.
O hospital de realização da pesquisa, único hospital público da cidade e referência da microrregião, localiza-se na região central da cidade (1º distrito). Na Figura 1, é possível identificar a distância entre a unidade hospitalar e o bairro de residência dos participantes do estudo.
Caracterização dos dados clínicos
Quanto ao diagnóstico neurológico da amostra estudada (n= 9), todos os participantes sofreram AVCi, confirmado por TC (100%). Os participantes tiveram lesões neurológicas com diferentes topodiagnósticos (Quadro 1). A duração do AVC no grupo foi de 10 dias, em média (DP= 12,8). Dados sobre a duração do quadro de cada participante são apresentados no Quadro 1.
Distribuição das variáveis clínicas, tempo de internação hospitalar por AVC e localização da lesão dos subgrupos de participantes
Os fatores de risco para ocorrência de AVC, identificados nos participantes, foram: hipertensão arterial sistêmica (HAS), tabagismo, sedentarismo, diabetes mellitus, doença cardíaca, estresse e obesidade. A HAS foi o fator mais encontrado, como exposto na Figura 2.
Dentre os afásicos, os fatores de risco para o AVC mais comuns foram a HAS e o tabagismo, presentes nos 3 casos identificados.
Quanto ao tipo de afasia, foram encontrados 2 quadros de afasia global classificados como mistos, que comprometem tanto a emissão, quanto a compreensão da linguagem, e 1 quadro de afasia classificado como receptivo (afasia transcortical sensorial), que cursa com maior comprometimento da compreensão da linguagem.
Quanto à ocorrência de comorbidades, dentre os afásicos não foram identificadas outras queixas fonoaudiológicas associadas. Entretanto, nos outros subgrupos de participantes (não afásicos e não avaliados), todos manifestaram queixas sugestivas de outros tipos de distúrbios neurológicos adquiridos da comunicação ou da deglutição, a saber: dislexias e/ou agrafias adquiridas (2 participantes), disartria (1 participante) e disfagia (2 participantes). Um dos participantes apresentou queixa de linguagem, mas não pôde ser avaliado.
DISCUSSÃO
A frequência de afasia encontrada no presente estudo foi de 42,8%. Pesquisa com recorte metodológico similar foi realizada por Lima(16), em Minas Gerais, na qual foi identificada proporção inferior de casos (17,5%). No referido estudo, dois hospitais foram contemplados e a amostra obtida foi de 40 usuários, o que pode explicar a diferença encontrada, em comparação com a presente pesquisa. Outros estudos envolvendo a mesma investigação, em serviços hospitalares, foram publicados no país(17,18), mas não analisaram a frequência de casos novos de afasia(17), ou não distinguiram o tipo de distúrbio de comunicação identificado(17,18).
Não foram encontrados estudos nacionais populacionais com indicadores de morbidade, referentes à afasia pós-AVC, como taxas de incidência ou de prevalência. Dados de estudos internacionais apontaram taxas de incidência populacional de 7,1 por 100.000 habitantes, no Chile(7), e 46 por 100.000 habitantes, na Suiça(8), não sendo possível a comparação com o presente estudo, uma vez que são estudos com metodologia distinta.
Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), em 2018, a rede pública do município onde a pesquisa foi realizada era composta por 41 estabelecimentos de saúde públicos. Em 27 estabelecimentos que compõem a Rede de Atenção à Saúde (RAS) do município, é possível acolher as demandas da população vítima de AVC (19 Unidades de Saúde da Família-USF, uma Unidade de Pronto Atendimento-UPA, duas Unidades Básicas de Saúde-UBS, duas Policlínicas, um Hospital Municipal, um Posto de Saúde e um Ambulatório da Secretaria Municipal de Saúde). Dentre esses serviços, há oferta de atendimento fonoaudiológico apenas nas duas UBS, nas duas Policlínicas e no Posto de Saúde(19). Portanto, é importante destacar que nos locais onde ocorre a entrada de pacientes em fase aguda do AVC, ou seja, nos serviços que compõem a RUE da microrregião do município, não há profissionais fonoaudiólogos. Tal fato pode ser considerado uma fragilidade da RAS locorregional, que limita a integralidade do cuidado prestado a esses usuários. A atuação do profissional fonoaudiólogo no componente hospitalar da rede seria essencial para o acolhimento das demandas, a orientação adequada a familiares e/ou usuários e a definição de condutas específicas quanto à comunicação desses indivíduos.
Foram encaminhados ao serviço de Fonoaudiologia de referência da instituição proponente todos os usuários com queixa fonoaudiológica, perfazendo 42,8% do total de usuários internados, identificados pela equipe de pesquisa, no período de realização do estudo. Dentre os usuários encaminhados, estavam todos os nove participantes do estudo e seis não participantes. O número elevado de usuários com demandas fonoaudiológicas pós-AVC condiz com os achados de um estudo realizado em São Paulo, em que os diagnósticos fonoaudiológicos após lesão cerebral foram decorrentes de AVC em 69,4% dos casos(9). As demais queixas fonoaudiológicas observadas estavam relacionadas à disfagia, dislexias ou agrafias adquiridas, ou disartria. Há estudos que confirmam a ocorrência desses quadros nas fases aguda ou subaguda do AVC(9,20). Em tais estudos, contudo, a afasia foi a condição mais frequente, o que reforça os achados desta pesquisa.
Em relação ao perfil sociodemográfico, a maioria dos participantes era de mulheres, inclusive entre os afásicos, dado que difere do que é descrito na literatura(9,20) e pode ser justificado pela configuração populacional local. A pirâmide etária observada na população da cidade, em 2010, constituiu-se de 61.973 homens adultos e idosos e 70.554 mulheres adultas e idosas(15), revelando maior número de mulheres nessa população.
Foi possível observar que o subgrupo de participantes não afásicos se caracterizou como mais jovem que o subgrupo afásico, considerando a mediana (Quadro 1). Notou-se que a maioria dos participantes era de idosos, o que confirma os achados de estudo que referiu maior incidência de AVC em idosos, especialmente em países em desenvolvimento(2).
Quanto à escolaridade, os pacientes afásicos apresentaram menor grau de escolaridade (5,6 anos), em comparação ao subgrupo não afásico (11,5 anos). Sabe-se que o desempenho linguístico em indivíduos saudáveis varia em função da escolaridade(21) e esse fator também influencia as demandas terapêuticas (especialmente, em relação à modalidade escrita) e as estratégias de intervenção propostas no tratamento de pessoas com afasia. Além disso, um estudo realizado em São Paulo(22) apontou que idosos menos escolarizados apresentam menor nível de informação, o que resulta em dificuldades de acesso precoce aos serviços. A associação entre os fatores envelhecimento, menor escolaridade e letramento funcional em saúde reduzido também foi identificada em estudo recente(23). Portanto, tal população é mais suscetível a apresentar dificuldades para compreender informações recebidas em serviços de saúde e, consequentemente, menor adesão ao tratamento indicado.
Considerando a ocupação dos participantes, não foram observados padrões de distribuição distintos entre os subgrupos afásicos e não afásicos. Resultado semelhante foi observado em um estudo norte-americano com pessoas com distúrbios da comunicação progressivos adquiridos, no qual apenas a ocupação professor revelou associação com a procura por atendimento em casos de afasia ou apraxia de fala progressiva primária(24).
Quanto ao bairro de residência dos participantes, foi possível observar que a maior parte da amostra residia próximo à unidade hospitalar (até 8,0 km de distância) (Figura 1) e todos os participantes residiam em distritos vizinhos da sede, onde se localiza o serviço, exceto um deles. Tais dados levantam a questão do acesso da população dos distritos mais distantes a esse serviço.
Algo similar pode ser previsto em relação à reabilitação das sequelas comunicativas pós-AVC, após alta hospitalar, uma vez que os locais onde há profissionais fonoaudiólogos (UBS, Policlínicas e Posto de Saúde) localizam-se na região central da cidade. Nas USF, em maior quantidade na RAS municipal e localizadas em regiões mais perimétricas, ou seja, dispostas em distritos mais afastados da região central, não há possibilidade de acompanhamento fonoaudiológico aos pacientes afásicos, pois não há esse profissional no serviço, segundo dados do CNES(19). O acesso à intervenção fonoaudiológica pós-alta hospitalar é essencial para o processo de reabilitação desses pacientes.
Quanto ao perfil clínico do grupo estudado, o AVCi foi o mais frequente, o que é compatível com os dados descritos na literatura(25-28), que apontaram a ocorrência desse subtipo de AVC, variando de 70% a 80% dos casos. Dados tomográficos sobre o topodiagnóstico das lesões cerebrais revelaram um padrão diverso em todo o grupo, envolvendo lesões corticais e/ou subcorticais em lobos dos hemisférios esquerdo ou direito (Quadro 1).
O fator de risco para o AVC mais frequentemente encontrado foi a HAS, condizente com dados da literatura(20,28) sobre a alta prevalência dessa condição. Apesar de evidência indicando o declínio contínuo do tabagismo no país(29), na população estudada foi encontrado considerável número de fumantes (55,5%). Sendo assim, o tabagismo apresenta-se como um fator de risco que também parece contribuir para a determinação de casos novos de AVC nessa população.
Em relação ao subgrupo afásico, os quadros identificados demonstraram manifestações características de afasias receptivas (compreensão) e mistas (emissão e compreensão), de grau moderado a grave. Os achados deste estudo apontaram que, no período agudo do AVC (fase em que os três casos foram avaliados), predominaram quadros afásicos mais graves, conforme também apontou um estudo dinamarquês(30). Deve-se considerar, portanto, que o impacto sobre a comunicação é ainda maior, dada a gravidade desses quadros, o que demandaria intervenção fonoaudiológica já no âmbito hospitalar, como destacado anteriormente, para melhor gerenciamento, inclusive, dos cuidados de saúde geral do usuário nos primeiros momentos após a lesão neurológica.
Todos os pacientes foram avaliados no período agudo do AVC, exceto um, avaliado em fase subaguda. Considerando a fase de recuperação espontânea esperada em casos de lesão cerebral, é provável que a frequência dos quadros afásicos e das demais comorbidades fonoaudiológicas, no período crônico do AVC, seja inferior à proporção de casos identificada neste estudo (42,8%).
É importante considerar que a frequência de diagnóstico inicial de afasia foi calculada a partir de uma amostragem limitada da população que acessava o serviço. A ausência de serviço fonoaudiológico na unidade hospitalar estudada, associada à frequência e à duração de coleta de dados pela equipe de pesquisa, limitaram a obtenção de dados, acarretando a perda de possíveis casos não identificados.
CONCLUSÃO
Foi encontrada proporção de 42,8% casos de afasia em usuários em fase aguda ou subaguda de AVC, internados em unidade hospitalar de referência para a região estudada. Quanto ao perfil sociodemográfico dos participantes, houve predomínio de mulheres, com escolaridade baixa, principalmente no subgrupo afásico, indicando um possível subgrupo de maior risco. No aspecto clínico, todos apresentaram AVC isquêmico e os fatores de risco mais frequentes foram hipertensão arterial sistêmica e tabagismo, apontando para a necessidade de reforçar políticas voltadas para a identificação e o tratamento dessas condições de saúde na população local. Em relação ao subgrupo afásico, foram encontradas afasias com manifestações moderadas a graves, destacando a importância do gerenciamento das demandas comunicativas desses usuários, ainda no âmbito hospitalar.
Considerando o período de realização do estudo e os prejuízos que a afasia pode causar para o indivíduo, é indispensável a atenção à saúde desse grupo e a adoção de medidas para rastreio, conscientização e intervenção precoce para essa condição, bem como o mapeamento em outras regiões do estado e do país. A sistematização desses dados nacionais é fundamental para o planejamento em saúde em nível locorregional e para a adoção de políticas públicas voltadas a pessoas vítimas de AVC, no Brasil.
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Trabalho realizado no Departamento de Formação Específica em Fonoaudiologia, Instituto de Saúde de Nova Friburgo, Universidade Federal Fluminense – UFF – Nova Friburgo (RJ), Brasil.
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Financiamento: Nada a declarar.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Dez 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
16 Jan 2020 -
Aceito
06 Ago 2020