Open-access África: um continente crioulo?

GREEN. Toby. . The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300-1589. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. 333

Quem for em busca de um passado genuinamente africano na historiografia de língua inglesa atual vai se surpreender. Há alguns anos, com o avanço dos estudos sobre o mundo atlântico, historiadores americanos e britânicos têm visto o passado africano sob um novo prisma: as relações interculturais. Essa abordagem propõe que as relações entre africanos e europeus durante o período do tráfico transatlântico de escravos transformaram profundamente a África subsaariana, levando ao desenvolvimento de uma nova cultura, que nem era propriamente africana, nem europeia, mas mista ou "crioula." A ideia surgiu inicialmente com a publicação, em 1998, de Many Thousands Gone por Ira Berlin, historiador da escravidão nos Estados Unidos, que cunhou o termo "crioulos atlânticos" para descrever os primeiros escravos trazidos para a América do Norte no século XVII. Segundo Berlin, esses escravos tinham vindo originalmente de sociedades que estavam em contato com europeus por quase duzentos anos antes do início do tráfico para as colônias britânicas.1 Historiadores da África logo adotaram o conceito de "crioulos atlânticos" e passaram a utilizá-lo para examinar a natureza das relações euro-africanas na formação do mundo atlântico.2

O livro de Toby Green, The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300-1589, faz parte dessa nova corrente que busca ver o passado africano a partir de relações interculturais. Ele argumenta que a Senegâmbia e a Alta Guiné, região que compreende hoje o Senegal, a Guiné, a Guiné-Bissau, Gâmbia e partes da Costa do Marfim, Mali, Serra Leoa e Libéria, exerceram um papel fundamental na formação do mundo atlântico por terem sido o berço da cultura crioula, que eventualmente se espalhou nas duas margens do oceano (pp.10-14). Segundo Green, a influência dos povos mandingas na África ocidental e o comércio transaariano serviram de base para o desenvolvimento da cultura crioula (capítulo 1). Quando os portugueses chegaram a essa região, ali encontraram sociedades com que se relacionavam havia muito tempo por vários intermediários, especialmente comerciantes berberes e árabes. Portanto, os primeiros contatos entre europeus e africanos em meados do século XV não foram exatamente entre povos totalmente desconhecidos, mas entre sociedades que estavam longamente conectadas pelo Saara e pelo mar Mediterrâneo (capítulo 2). "De fato", escreve Green, "elementos de continuidade facilitaram os primeiros passos em direção à criação de uma sociedade mista a ser desenvolvida na costa ocidental africana" (p.70).

Na década de 1460, a situação mudou de figura. A colonização de Cabo Verde originou novas oportunidades para as sociedades que viviam próximas à costa e possibilitou a criação de redes comerciais ligando o continente ao arquipélago (capítulo 3). Em seguida, cristãos novos, em fuga da perseguição religiosa na Europa, estabeleceram-se nas ilhas, trazendo capital e experiência comercial com que expandiram essas redes (capítulo 4). Das transações entre europeus e africanos, uma nova língua, o crioulo, começou a se desenvolver, mas uma cultura mista surgiu apenas em meados do século XVI, quando cristãos novos migraram para o continente e forjaram uma aliança com banhuns e cassangas mandinguizados da região de Casamansa e São Domingos (capítulo 5). A partir desse momento, o tráfico de escravos, que já havia se iniciado há quase um século, entrou em nova fase de expansão (capítulo 6). Milhares de africanos foram enviados diretamente para as Américas, principalmente ao Caribe, sendo a maioria transportada por contrabando. Dessa forma, a circulação de pessoas, ideias e mercadorias aumentou significativamente, acelerando o processo de crioulização na África ocidental (capítulo 7). Violência fazia parte, obviamente, desse processo, envolvendo a região em um ciclo de guerras estimulado pelo comércio de escravos e outras mercadorias (capítulo 8). Em todo caso, os interesses da sociedade crioula emergente prevaleceram, trazendo uma nova ordem ao mundo que se formava nas duas margens do Atlântico (capítulo 9).

Sem dúvida, o livro de Toby Green representa uma contribuição valiosa para a compreensão da história da África e do mundo atlântico. Apesar de Green se concentrar no desenvolvimento da cultura crioula na África ocidental, ele não deixa de notar que os habitantes daquela região já sofriam influências externas, sobretudo dos povos mandingas, muito antes de os portugueses dobrarem o cabo Bojador. Quando os europeus finalmente navegaram ao sul do Saara, Green chama atenção, sua principal área de atuação se localizava na África ocidental, especificamente na Senegâmbia e Alta Guiné, e não na África centro-ocidental, sobretudo na Angola atual, como alguns historiadores vêm recentemente argumentando.3 Além disso, Green observa que, ao contrário da Coroa portuguesa ou dos seus contratadores - que no início da expansão marítima estavam mais interessados em descobrir a rota para as Índias ou minas de pedras e metais preciosos -, os homens que executaram essa façanha sabiam exatamente o valor de um escravo e o que poderiam fazer com ele. "Embora o ouro possa ter sido a motivação política da expansão portuguesa," escreve Green, "não era assim que essa expansão era percebida na Senegâmbia" (p.78).

Outro fator importante para o qual Green chama atenção é a origem do preconceito racial no mundo ibérico. Por causa da sua história com a segregação racial, americanos e britânicos geralmente prestam mais atenção a questões de raça do que historiadores brasileiros, ainda muito mistificados pelo discurso da democracia racial. Entretanto, Green demonstra que a discriminação contra cristãos novos baseada na ideologia da "limpeza de sangue," principalmente na Espanha mas também em Portugal, contribuiu significativamente para o surgimento de "ideias transnacionais de identidade predicadas em categorias de casta" (p.210). A sociedade cabo-verdiana importou essas ideias e, diante de um mundo inseguro promovido pela violência do tráfico, sua elite miscigenada utilizou-as para se proteger e se distanciar da escravidão. "Cabo Verde," enfatiza Green, "foi o primeiro lugar no Atlântico onde a escravidão adotou uma característica exclusivamente racial, com todos os escravos sendo da África subsaariana" (p.227). Esse tipo de escravidão foi posteriormente transplantado para a margem ocidental do oceano, marcando profundamente as sociedades do Novo Mundo, inclusive o Brasil.

Apesar dessas contribuições, não faltam problemas ao livro de Green. A tese de que uma cultura crioula espalhou-se pela África ocidental e veio depois a dominar o mundo atlântico parece um tanto exagerada, especialmente em vista de pesquisas recentes. Em 2010, por exemplo, Walter Hawthorne demonstrou que os etnônimos pelos quais os africanos da Senegâmbia e da Alta Guiné eram conhecidos continuaram em voga tanto na África como nas Américas durante os séculos XVIII e XIX.4 Além disso, ele observou uma alta incidência de uniões entre escravos da África ocidental nas fazendas do Pará e do Maranhão, que foram um destino importante para africanos daquela região. Embora os escravos não casassem normalmente com indivíduos da mesma etnia, eles geralmente se uniam com cônjuges da mesma região cultural mais ampla.5 Hawthorne interpreta esse comportamento como a formação de uma identidade regional influenciada pelo cativeiro e pela cultura desses africanos, especialmente a natureza integracionista da sua religião, que era altamente influenciada por peregrinos mandingas.6 Teria, portanto, o processo de mandinguização prevalecido sobre o de crioulização na África ocidental durante o período do tráfico? Finalmente, o crioulo é hoje uma língua falada por uma população ínfima tanto na África como nas Américas.7

A estimativa de Green do volume do tráfico de escravos da África ocidental no século XVI também parece um bocado exagerada. Ele argumenta que o tráfico foi bem maior do que outros pesquisadores sugerem. Segundo Green, os números atuais, especialmente os do "Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database", baseiam-se exclusivamente em registros oficiais que ficam muito aquém das observações feitas ao tráfico por autores contemporâneos, como André Álvares d'Almada, Duarte Pacheco ou Bartolomé de las Casas. Essa disparidade leva Green a atribuir um peso maior ao contrabando de cativos do que outros historiadores (pp.7-8, 216). Ocorre que os números que ele cita da base de dados não são meramente dados colhidos de fontes oficiais, mas estimativas calculadas com base nessas e em outras fontes para levar em conta problemas como a falta de informação e o próprio contrabando. A base de dados em si, por exemplo, possui informação para apenas 26.020 escravos transportados da Senegâmbia e da Alta Guiné entre 1550 e 1600, enquanto as estimativas do "Voyages" são de 93.104 escravos.8 Erroneamente, Green toma o último número como sendo oriundo exclusivamente de fontes primárias oficiais e acaba superestimando o tráfico, combinando-o com as opiniões de autores coevos cuja reputação, ele mesmo admite, era a de "inflacionar números" (pp.194-95, 215).

Apesar desses problemas, o livro de Green é uma contribuição importante para a história da África e do mundo atlântico. Poucos historiadores buscaram remontar o surgimento da cultura crioula no mundo Atlântico à África ocidental, uma região até hoje linguística e culturalmente diversa. Muito menos tentaram conciliar, em apenas uma narrativa, temas tão complexos, como o início do tráfico transatlântico de escravos, a colonização de Cabo Verde, a diáspora dos cristãos novos na África ocidental e a origem do preconceito racial no mundo ibérico. De fato, o livro de Toby Green oferece vários caminhos para a compreensão da história da África e do mundo atlântico. Para nós brasileiros, que só recentemente temos nos dedicado ao estudo desse grande continente, ele também nos oferece uma oportunidade para refletirmos sobre o que queremos com o seu passado e como desejamos ver a sua história.

  • 1
    Ira Berlin, Many Thousands Gone: The First Two Centuries of Slavery in North America, Cambridge: Belknap Press, 1998, pp. 17-28.
  • 2
    George E. Brooks, Eurafricans in Western Africa: Commerce, Social Status, Gender, and Religious Observance from the Sixteenth to the Eighteenth Century, Athens: Ohio University Press, 2003; Linda M. Heywood e John K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660, Nova York: Cambridge University Press, 2007; Peter Mark e José da Silva Horta, The Forgotten Diaspora: Jewish Communities in West Africa and the Making of the Atlantic World, Nova York: Cambridge University Press, 2011.
  • 3
    Heywood e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles; James H. Sweet, Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003.
  • 4
    Walter Hawthorne, From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830, Nova York: Cambridge University Press, 2010, pp.8-12 e 90-6.
  • 5
    Hawthorne, From Africa to Brazil, pp.175-91.
  • 6
    Hawthorne, From Africa to Brazil, pp.221-5.
  • 7
    M. Paul Lewis, Gary F. Simons, e Charles D. Fennig (orgs.), Ethnologue: Languages of the World, 2013, <http://www.ethnologue.com/>.
  • 8
    David Eltis et al., "Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database," 2008, <www.slavevoyages.org/>. Detalhes sobre como foram calculadas as estimativas do "Voyages" estão disponíveis em David Eltis e David Richardson, "A New Assessment of the Transatlantic Slave Trade," in David Eltis e David Richardson (orgs.), Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database (New Haven: Yale University Press, 2008), p.13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
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