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Sonhar de sonhar o sonho

RESENHAS

Sonhar de sonhar o sonho * * Publicado na revista La Quinzaine Littéraire, n. 848, 16-28 de fevereiro de 2003. Traduzido do francês por Leneide Duarte- Plon.

Michel Plon

Psicanalista, diretor de pesquisa do CNRS, membro do Centro de Pesquisa Universitária Psicanálise e Práticas Sociais da Saúde, CNRS / Universidade de Picardia, França. 26, Rue du Commandant René Mouchote; 75.014 Paris França

L’interprétation du rêve. Oeuvres completes Psychanalyse, v. IV

Sigmund Freud

Tradução do alemão de Janine Altounian, Pierre Cottet, René Lainé, Alain Rauzy, François Robert. Paris: PUF, 756 p.

Independentemente do que aconteça nos próximos meses, o ano de 2003 permanecerá marcado pelo acontecimento editorial e intelectual mais importante, a publicação de uma nova tradução francesa, a terceira desde 1926, da Traumdeutung, a primeira das 23 obras escritas por Freud.

Este verdadeiro início da revolução psicanalítica — a compreensão das psiconeuroses, escreverá Freud em sua narração da análise de Dora, teria sido impossível sem que tivesse sido efetuado previamente “um estudo laborioso e aprofundado dos sonhos” — foi antes traduzido em francês por Ignace Meyerson, sob o título de A ciência dos sonhos; tradução esta depois revisada e enriquecida, em 1967, por Denise Berger para receber então o título que conhecemos, A interpretação dos sonhos. A nova tradução, pois, que prefere o singular, opção a ser discutida, vem ocupar lugar entre os 11 volumes já publicados dessas Obras completas, cuja realização começou em 1989, sob a direção científica de André Bourguignon (depois falecido), de Jean Laplanche e de Pierre Cotet.

Na nota de apresentação da obra, que não peca senão pelo concisão da bibliografia reduzida a três títutlos,1 1 Os de Didier Anzieu, de Alexandre Grinstein e de Ilse Grubrich-Simitis; o artigo dessa última autora, tendo tido uma tradução francesa, que não está indicada aqui, na Revue Germanique Internationale, v. 6, 2000. os tradutores lembram o que foi a dolorosa elaboração desse livro sobre o qual Freud não cansou de trocar idéias, alternando descontentamento com manifestações de euforia, com seu amigo Wilhem Fliess2 2 Quando teremos uma tradução francesa não expurgada desta correspondência — Naissance de la psychanalyse, PUF, 1956 — disponível em sua integridade em inglês desde 1985? entre 1896, ano de sua primeira elaboração no contexto das turbulências do trauma da morte do pai, e outubro de 1899, tempo da entrega do manuscrito, que aparecerá em novembro do mesmo ano mas será datado — capricho freudiano — de 1900.

Não se pretenderá ofender os leitores da Quinzaine, de toda maneira não haveria espaço, com o resumo do livro que o movimento surrealista colocou nas nuvens para grande espanto de Freud, que nunca compreendeu o entusiasmo de um André Breton. Salientaremos apenas alguns traços marcantes de um trabalho efetivamente, e ainda hoje, revolucionário. Como, por exemplo, a contribuição conceitual que constitui o último capítulo, o célebre capítulo VII, portador do essencial da arquitetura teórica da psicanálise, que surgiria ainda, e também dessa verdadeira demarcação epistemológica que Freud realiza metodicamente em relação à psicologia fisiológica de seu tempo a cada ocasião concreta de seu percurso, mostrando, assim, como ele forja, numa espécie de incessante violência da linguagem, seu conceito de inconsciente. Mas ao lado dessa vertente teórica, nunca se enfatizará de modo suficiente a natureza inédita desse duplo movimento que ele deliberadamente exerce: o que em parte consiste em deixar sua concepção dos sonhos baseada na concepção popular mas também na tradição literária alemã dos séculos precedentes — “Para minha grande surpresa”, escreve ele nessa espécie de resumo da grande obra que publica em 1901 com o título de Sobre o sonho, “descobri um dia que a concepção não medicinal do sonho, a concepção profana, aquela que está um tanto prisioneira da superstição, aproxima-se da verdade” — e o que opera, por outro lado, mas ao mesmo tempo, a subversão absoluta da posição do sonhador que, de suporte passivo do sonho vivido como portador de boas ou más notícias, tornase, pelo trabalho de associações livres feitas a partir da narração manifesta que ele faz de seu sonho, o intérprete ativo que tem acesso a seu conteúdo latente. Desse segundo tempo, Freud nos informa quase de maneira incidental numa nota acrescentada na quarta edição da obra, em 1914: “A técnica que exponho a seguir distancia-se da técnica dos Antigos neste ponto essencial: é o próprio autor do sonho quem deve ter o trabalho de interpretação. Ela quer levar em conta não o que vem à idéia do intérprete dos sonhos, mas do que vem à idéia de quem sonhou, a propósito do elemento sonho” (1900, p.133, nota 2). Reviravolta essencial estreitamente ligada ao trabalho de libertação do sujeito que constitui a psicanálise, aspecto que não demorou a ser esquecido no movimento psicanalítico e que coube a Jacques Lacan fazer ressurgir quando ele fala não mais do analisado mas do analisando.

Durante a vida de Freud, a obra teve nada menos de 18 edições, ocasiões para o autor, que aliás não cessou durante toda sua vida de trabalhar na análise dos sonhos, de enriquecê-la com novos sonhos para ilustrar, a despeito de tal ou qual dificuldade nova, a correção da descoberta princeps, que estabelece que os sonhos constituem sempre a realização de um desejo inconsciente. Se como dizem os tradutores deste imponente e belo livro, a Traumdeutung “é o título mais universalmente divulgado de toda a obra freudiana”, não deixa de ser verdade, e sua correspondência, sobretudo com W. Fliess, atesta que Freud ficou um pouco decepcionado com a acolhida que o livro teve quando foi lançado, dando assim origem ao que se tornará uma espécie de lenda que estabelece solidão e incompreensão como marcas do percurso freudiano. O rigor histórico obriga a dizer que instaurou- se a esse respeito uma espécie de equívoco: os artigos da imprensa, mais ou menos laudatórios, não faltaram, mas a acolhida jornalística, literária e filosófica contava menos para Freud que aquela, efetivamente para lá de morna, vinda dos meios médicos e científicos.

Terceira tradução francesa, e quem não é germanista, verdadeiro handicap na matéria, fica ainda mais dependente dela que das outras, formados, marcados que somos pela tradição, principalmente em matéria de vocabulário, sensíveis ao rigor da sintaxe, preocupados de ter acesso a um corpus sempre difícil em si mesmo, que nenhuma preocupação filológica estranha ao texto psicanalítico viesse servir de entrave. Deste ponto de vista, se a admirável competência dos tradutores não é posta em dúvida nem também a qualidade editorial do projeto, é necessário constatar que esta nova versão da Traumdeutung, que se tornou A interpretação do sonho, corre o risco de relançar uma polêmica instaurada desde o aparecimento do primeiro volume dessas Obras completas. O espanto e a incredulidade dos leitores franceses foram muito grandes e até mesmo permeados de cólera pelas opções da direção científica do projeto, que levam a uma língua francesa sobrecarregada de neologismos de toda espécie, de construções gramaticais no limite do compreensível levando a uma modificação do vocabulário psicanalítico utilizado hoje, que parece arbitrária e mesmo inaceitável: entre muitos outros exemplos dessas opções arbitrárias, não se pode deixar de perguntar por que souhait e não désir, fantaisie e fantasier para traduzir o vocábulo alemão Phantasie e Phantasieren quando os termos fantasme e fantasmer já eram consagrados pelas traduções de Freud, discutíveis em outros aspectos, mas também por aquelas que fazem parte de todo corpus das obras psicanalíticas dos companheiros de Freud e de seus sucessores.

Os responsáveis por essas Obras completas de Freud, que faziam falta à França, país onde a psicanálise conheceu um desenvolvimento sem precedentes sobretudo pela refundação lacaniana, explicaram tudo. Em primeiro lugar, o célebre encontro Assises sobre a tradução, realizado em Arles, em 1988,3 3 As atas foram publicadas nas edições Actes Sud, em 1989. transformado num volume intitulado Traduzir Freud, publicado pelas edições PUF em 1989, foi incluído na coleção dessas Obras completas, enriquecido de um glossário um tanto indigesto e destinado, de certa forma, a servir de chave explicativa do trabalho. Mas tudo isso não chegou a convencer certos germanistas mais respeitados e outros grandes conhecedores de Freud, como foi o caso de Jacques Le Rider, que escreveu, então, a propósito desta aventura tão esperada: “É uma tarefa de interesse público que acaba de começar e até 1996 (era então a data prevista para a conclusão desse projeto mas não se pode culpar os tradutores de não terem cumprido o prazo e deve-se, ao contrário, elogiá-los por suas exigências) será preciso mudar de rumo” (1989). É preciso que se diga que nenhuma das opiniões e conselhos dados foram ouvidos e que este novo volume traz nele as mesmas singularidades já amplamente contestadas. E a questão começa no próprio título, a opção do singular, do sonho, que apesar de não ser condenável em si mesma, leva no entanto a privilegiar um deslize para um espírito cientista, do qual Freud é freqüentemente acusado, cometendo assim de uma só vez um anacronismo revelado por mais de um autor: não é Freud quem assinala com precisão em sua autobiografia: “não foi sem motivo que não intitulei meu livro de ‘O sonho’”? E o fato de que o tradutor desse pequeno livro, Fernand Cambon, tenha também optado pelo singular, A interpretação do sonho, contentando-se em assinalar esta inovação sem explicá-la, não serviria de justificativa para essa tentativa de instaurar um singular que choca tanto nossa relação com o texto de Freud quanto este título do capítulo IV, “A deformação de sonho” quando se trata de “A deformação no sonho” para indicar um dos processos que se operam nos sonhos, parte do que constitui “O trabalho do sonho” em vez de “O trabalho de sonho”.

Tudo está pronto para que a polêmica prossiga, não necessariamente uma vantagem para os jovens leitores de Freud, germanistas ou não, mesmo se, como lembrava Georges-Arthur Godschmidt: “Ninguém é obrigado a deformar o francês para mostrar que lê alemão” (1999, p.61). Que desejar aqui senão a chegada de 2009, data na qual, salvo nova mudança, a obra freudiana será de domínio público, abrindo a possibilidade a nossos melhores germanistas de participar dessa história das traduções de Freud da qual Jacques Le Rider escrevia recentemente que será “...nos próximos anos um dos grandes empreendimentos da história da psicanálise” (2002).4 4 O título do artigo é evidentemente uma homenagem feita ao teórico da tradução Antoine Berman e a seu livro L’ Épreuve de l’étranger. Paris: Gallimard, 1984.

Recebido em 13/5/2003

Aprovado em 30/5/2003

  • *
    Publicado na revista
    La Quinzaine Littéraire, n. 848, 16-28 de fevereiro de 2003. Traduzido do francês por Leneide Duarte- Plon.
  • 1
    Os de Didier Anzieu, de Alexandre Grinstein e de Ilse Grubrich-Simitis; o artigo dessa última autora, tendo tido uma tradução francesa, que não está indicada aqui, na
    Revue Germanique Internationale, v. 6, 2000.
  • 2
    Quando teremos uma tradução francesa não expurgada desta correspondência —
    Naissance de la psychanalyse, PUF, 1956 — disponível em sua integridade em inglês desde 1985?
  • 3
    As atas foram publicadas nas edições Actes Sud, em 1989.
  • 4
    O título do artigo é evidentemente uma homenagem feita ao teórico da tradução Antoine Berman e a seu livro
    L’ Épreuve de l’étranger. Paris: Gallimard, 1984.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2003
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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