RESUMO:
Este artigo visa abordar as diversas nuances da metáfora no pensamento de Lacan nos anos 50. Nosso ponto de partida serão os trabalhos do linguista Roman Jakobson sobre as afasias, a partir dos quais ele postula a metáfora e a metonímia como elementos linguísticos fundamentais. Claramente influenciado por Jakobson, Lacan constrói noção de metáfora paterna sobre a qual se sustenta a hipótese da foraclusão do Nome-do-Pai como sua teoria das psicoses. A partir desses pontos, analisaremos as diferenças estruturais entre neurose e psicose no que tange às consequências da metáfora paterna no nível do significante, da fala e da falta.
Palavras-chave: psicanálise; Jacques Lacan; psicose; metáfora; linguagem
Abstract:
This article aims to approach the various nuances of the metaphor in Jacques Lacan’s thought in the 1950s. Our starting point will be the works of linguist Roman Jakobson about the aphasias, from which he postulates metaphor and metonymy as fundamental linguistic elements. Clearly influenced by Jakobson, Lacan constructs the notion of paternal metaphor on which he build the hypothesis of the foreclosure of the Name-of-the-Father as his theory of psychoses. From these points, we will analyze the structural differences between neurosis and psychosis in terms of the consequences of the paternal metaphor in the level of the signifier, speech and lack.
Keywords: psychoanalysis; Lacan; psychosis; methafor; language
A metáfora na psicose: Lacan com Jakobson
A entrada de Lacan no estruturalismo linguístico se deu tanto por sua aproximação com Saussure quanto com Jakobson. De Saussure, Lacan toma e altera uma teoria sobre significantes e significados, e, em Jakobson, ele encontra a metáfora e a metonímia como pontos de um movimento feito por este autor na aproximação da linguística com a poética.
Entre os linguistas da época, pode-se dizer que Jakobson foi aquele que se propôs a estudar um objeto com falhas, ou seja, que não atende as regras de modulação utilizadas pelo método científico. Na busca por se aproximar deste objeto imperfeito, Jakobson inclui no escopo de sua pesquisa a fala da criança, o balbucio, a afasia e a poesia. Pode-se então observar que, de modo semelhante, Lacan também deu ênfase, na obra de Freud, àquilo que se aproxima do que seria uma suposta falha: o ato falho, o chiste e o lapso.
Foi Jakobson quem deu o passo inicial no sentido de elevar a metáfora e a metonímia à categoria de lei geral da linguagem, projeto que tem seu ponto fundamental no artigo Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasias (JAKOBSON, 1956/1969), onde vemos que o autor oscila entre filiar-se a Saussure ou à retórica clássica. Nesse artigo, o autor classifica as afasias em dois tipos: distúrbios da similaridade, que abrangem uma disfunção metafórica, ou distúrbios da contiguidade, que estão ligados à metonímia.
É pela aproximação de Jakobson do estudo de um objeto com falhas, ou melhor, da falha como um objeto de investigação, que Lacan se apropria daquilo que o linguista fez da metáfora e da metonímia. Este último, trouxe esses conceitos da Retórica e os transformou em bases para a linguística que ele radicava. Essa novidade teórica introduzida por Jakobson proporcionou a Lacan um novo lugar onde ele pode construir e solidificar a lógica do significante e o que dela se deriva, mais uma vez, o chiste, o lapso, o ato falho, o sonho e o sintoma.
No texto de Jakobson sobre as afasias, este autor parte do pressuposto de que se elas são uma perturbação da linguagem, é necessário se perguntar quais os aspectos destas são prejudicados, ou seja, qual a natureza e a estrutura disso que parou de funcionar e causou o problema em questão. Para tal finalidade, em primeiro lugar, é preciso colocar a linguística como um saber que deve se debruçar sobre este tema para além das disciplinas médicas.
Sobre a fala, Jakobson diz que ela implica a seleção e a combinação de certas unidades linguísticas de modo a se tornarem cada vez mais complexas. Para isso, o emissor e o destinatário devem partilhar um código; caso contrário, o ato de fala não alcança eficácia. Neste jogo de combinações das unidades linguísticas, quanto maior o nível de possibilidade das combinações, mais liberdade há. Por exemplo: a liberdade que o falante tem em criar fonemas dentro de uma dada língua é praticamente nula, mas a possibilidade de criar palavras com esses fonemas já é maior, pois podem-se criar neologismos. Consequentemente, temos ainda que a liberdade do ser falante em combinar essas palavras (novas ou não) e fazer disso um enunciado também existe em uma gama muito maior.
Disso, então, é possível extrair dois tipos de arranjos do signo linguístico:
-
combinação: todo signo é composto e está em combinação com outros signos; e
-
seleção: implica a possibilidade de escolha de um determinado signo e, por consequência, a substituição de um pelo outro.
A partir dessas classificações, há uma consequência lógica: os distúrbios da linguagem devem afetar as operações de linguagem. Sobre as afasias, resta então saber qual a relação que elas apresentam com esses modos de funcionamento da linguagem. Assim, Jakobson chega à seguinte conclusão:
Distinguimos, seguindo essa direção, dois tipos fundamentais de afasia - conforme a deficiência principal resida na seleção e substituição, enquanto a combinação e a contextura ficam relativamente estáveis; ou, ao contrário, resida na combinação e contextura, com uma retenção relativa das operações de seleção e substituição normais. (JAKOBSON, 1969, p. 42).
Torna-se claro, então, que os afásicos com dificuldades na seleção e substituição facilmente conseguem fazer as combinações necessárias para manter um ato de fala a partir do contexto apresentado pela palavra ou pelo enunciado. Esse tipo de afasia, cuja dificuldade está em fazer substituições, é chamada por Jakobson de afasia por Distúrbio da Similaridade. Este sujeito consegue continuar uma frase ou falar sobre um assunto desde que esteja tudo muito bem contextualizado. O encadeamento não sofre prejuízo porque o contexto dá o suporte e faz com que sejam possíveis os laços de contiguidade. Um exemplo, trazido por Jakobson em seu artigo, é o de uma pessoa que era capaz de usar o termo “solteiro”, em uma conversa sobre apartamentos para solteiros, não podia dizê-la como um substituto de “homem não casado”. Em função da dificuldade de substituição de um termo por outro, Jakobson chega à conclusão que é a metonímia a operação empregada por esses afásicos em detrimento da metáfora.
Por outro lado, se é a capacidade de seleção de unidades linguísticas que é afetada, enquanto a capacidade de substituição é preservada, tem-se um tipo de afasia caracterizada por um Distúrbio de Contiguidade. Este tipo de afasia se caracteriza pela dificuldade ou impossibilidade que o sujeito apresenta em construir proposições, combinar entidades linguísticas simples com unidades complexas, apresentando uma deficiência em relação ao contexto. Isso faz as frases se tornarem um combinado de palavras muitas vezes agramatical e caótico. Desse modo, Jakobson chega à conclusão de que, neste tipo de afasia, há uma deficiência na metonímia enquanto mantêm-se preservadas as operações metafóricas de substituição. O sujeito que sofre desse tipo de afasia é capaz de dizer com o que um objeto se assemelha, mas é incapaz de enunciar o nome do mesmo objeto. Por exemplo, ele pode dizer “óculo de alcance” mas não é capaz de dizer “microscópio” ou diz “uma pobre casinha” no lugar de “choupana” (exemplos utilizados por Jakobson no artigo em questão). Vê-se então que essa categoria de afasia é caracterizada por um distúrbio das operações metonímicas, enquanto as metafóricas são preservadas, possibilitando a substituição de um termo por outro.
Jakobson dá o nome de Distúrbio da Similaridade para o primeiro caso aqui descrito, pois, nele, ocorre uma falha na propriedade que algumas palavras têm de poderem se substituir, desde que haja entre elas uma paridade semântica ou posicional. Portanto, neste distúrbio, mesmo que haja similaridade semântica, não há substituição de termos, manifestando-se apenas a contiguidade posicional e semântica. No caso do Distúrbio de Contiguidade, o encadeamento não acontece, mesmo que haja entre as palavras uma contiguidade semântica, restando, a este sujeito, trabalhar na linguagem apenas com a similaridade posicional e a similaridade semântica.
A fim de esclarecer melhor este ponto tão importante para o seguimento do trabalho realizado por Lacan com a metáfora e a metonímia segue o quadro:
Este mapeamento das possibilidades e dificuldades de uso das unidades linguísticas pode ser levado para além da teorização sobre as afasias. Jakobson diz que algumas pessoas, algumas escolas literárias, alguns tipos de poesia podem se aproximar mais de um tipo de processo ou de outro. Por fim, ele irá reconhecer que em todo processo simbólico - subjetivo ou social - haverá certa competição entre os procedimentos metonímicos ou metafóricos. E, por esta via, o autor chega a citar Freud, que, em seu livro sobre a interpretação dos sonhos, traz, segundo Jakobson, uma questão decisiva sobre as operações de contiguidade e similaridade pelas vias da condensação, do deslocamento, da identificação e do simbolismo. Desse modo, além de ater a linguística ao campo da literatura e ao da poesia, Jakobson dá um passo importante e a aproxima das questões dos seres humanos como sujeitos e como participantes de um todo sociocultural. Indo ainda mais longe, é notável que ele abre caminho e oferece a possibilidade de uma aproximação entre a linguística e a psicanálise, passos que vieram a ser seguidos e ampliados posteriormente por Lacan.
Toda essa teoria de Jakobson sobre as afasias se torna um campo fecundo para que Lacan possa trabalhar a incidência do significante no ser falante, pois se, mesmo nas afasias, cuja origem se remete antes ao anatômico, podem-se observar efeitos causados pela articulação significante, isso será ainda mais incisivo, por exemplo, nas psicoses.
A metáfora de Booz
Metáfora e metonímia são temas que começaram a ser elaborados por Lacan no Seminário livro 3, As psicoses (1955-1956/2010), onde o autor se dedica a explorar a incidência desses elementos de linguagem na estrutura psicótica. Porém, nesse seminário, este ponto ainda é abordado de um modo sutil se comparado com os desdobramentos dos trabalhos publicados nos anos seguintes, a saber, os artigos: A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957/1998), De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1958/1988) e o seminário 5 As formações do inconsciente (1957-1958/1999).
No seminário 3, Lacan introduz a questão da metáfora em relação ao campo das psicoses lançando mão, como exemplo, de um poema do escritor francês Victor Hugo (1802-1885), intitulado Booz endormi - considerado um dos mais célebres poemas deste autor. Ele é baseado em uma passagem da Bíblia, mais precisamente, do livro de Ruth, do Antigo Testamento. O poema se refere à história de Ruth, uma mulher viúva, que vai viver e trabalhar na terra de Booz, um homem de idade avançada que era considerado por todos muito generoso. Certo dia, Booz tem um sonho no qual lhe é anunciado que será pai, o que vai se concretizar com Ruth. Apesar da idade avançada dos personagens, a paternidade se torna uma questão para além do biológico, o que deixa um espaço aberto onde Lacan irá introduzir a discussão sobre a questão da paternidade em psicanálise por meio do significante. Toda a trama do poema se dá em torno dessas questões, e o modo como Lacan se apropria deste poema para trazer o tema da metáfora aponta para dois pontos fundamentais: a generosidade e a paternidade anunciada. Sendo a paternidade o tema de maior interesse na abordagem deste assunto, não é precipitado dizer que a significação nova que surge com a metáfora feita por Victor Hugo, em seu poema sobre Booz, diz respeito à significação da paternidade da personagem que não será o pai somente do filho anunciado, mas também, por consequência, será o ancestral de toda uma linhagem de Israel. Essas e outras interpretações ajudam a esclarecer os motivos que fizeram Lacan escolher este poema - que trata do surgimento de um pai - para trazer, em seu seminário sobre as psicoses, a questão crucial da metáfora paterna.
Na terceira estrofe do poema de Victor Hugo, há a seguinte frase: “Sa gerbe n’était point avare ni haineuse”, traduzida para o português como “seu feixe não era avaro nem odiento”; aqui, o significante “feixe” vem ocupar o lugar do nome próprio “Booz”. A identificação entre eles é posicional. Ambos conseguem operar a partir do mesmo lugar em uma cadeia significante e, por isso, são identificáveis, podendo se substituir. Colocando em relação duas cadeias significantes distintas e, havendo substituição, se precipita uma nova significação que, nesse caso, diz da paternidade de Booz. A nova significação é, pois, aquilo que domina na metáfora, visto que ela “arranca o significante de suas conexões lexicais” (LACAN, 1955-1956/2010, p. 255) criando um cenário de dominância da significação surgida.
Ainda no seminário 3, Lacan irá marcar a importância da estruturação da cadeia significante para que possa ocorrer a metáfora. Em primeiro lugar, tem-se que esta operação só é possível devido à estrutura da linguagem, ou seja, do significante. Em segundo, não é possível que a metáfora ocorra em qualquer arranjo de significantes; é necessário um ordenamento particular, um certo vínculo posicional, para que dois significantes possam se substituir. Este vínculo posicional, diz Lacan, se refere à ordem das palavras numa dada língua, de modo que o lugar das palavras se torna o fundamento do sentido. Isto fica muito claro quando tomamos a frase “Pedro mata Paulo” e vemos que ela é muito diferente de “Paulo mata Pedro”. A linguagem é um sistema de coerência posicional que, como não poderia deixar de ser, deve ser respeitado. É nesse sentido que, da organização do significante em cadeia, pode haver metáfora e consequentemente a precipitação de um novo sentido.
Como anteriormente mencionado, foi ancorado na linguística de Jakobson que Lacan pode estabelecer a metáfora e a metonímia como mecanismos de funcionamento do inconsciente. Jakobson iniciou sua apropriação dos termos metáfora e metonímia ao associá-los respectivamente aos eixos paradigmático e sintagmático - conceitos já colocados no âmbito da linguística por Saussure -, e, assim, pode fazer uso destes como métodos de abordagem de seus objetos, como, por exemplo, a afasia e a poesia. Dos estudos de Jakobson sobre a metáfora e a metonímia, Lacan extraiu muitos elementos que o ajudaram a construir uma teoria psicanalítica para as psicoses.
A metáfora não é uma substituição entre termos quaisquer, mas, sim, entre significantes que estão articulados em cadeia. Ela tem a função de deslocar um efeito de sentido e criar um novo, em uma dada articulação significante existente. Para que os significantes possam se substituir, eles devem estar encadeados e deve haver uma identidade entre eles, porque a identidade se dá pela posição, e, para haver pareamento posicional, é indispensável uma cadeia significante articulada. Portanto, se a metáfora se faz por uma articulação posicional, a condição para que ela exista é que haja articulação significante e que, nesta articulação, cada elemento ocupe a posição específica que lhe caiba. Um significante resta e outro é elidido. O significante que cai no decorrer desta operação não sai totalmente de cena. Ele se mantém em uma relação metonímica com o restante da cadeia.
A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substitui o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia.
Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora [...]. (LACAN, 1957/1998, p. 510).
É importante notar que a metáfora é subordinada à metonímia, pois esta última garante o encadeamento e o contexto, ou seja, sem a estruturação do significante é impossível o surgimento de um novo sentido. É a metonímia a responsável por fazer com que toda significação remeta a outra e, deste modo, a cadeia não para de se articular.
Lacan nos traz ainda um modo de representação matemática da metáfora. A partir da descrição da função que modula a relação entre significantes e significados na metáfora e na metonímia, ele nos apresenta uma equação que diz respeito à operação em si. De acordo com o que já foi apresentado acima, pode-se desdobrar a ocorrência da metáfora em uma operação de quatro termos, ei-los
A metáfora paterna
A proximidade entre metáfora e paternidade na psicanálise lacaniana não é óbvia nem tampouco é colocada desde o início. Como prova disso, temos que, no artigo Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938/2003), Lacan faz uma séria crítica à hipótese freudiana de Totem e tabu (1913/2012), porém irá mudar de opinião e expressará, no seminário As psicoses, o início de uma relação entre metáfora e paternidade, até que, no Seminário livro 5, As formações do inconsciente (1955-1956/2010) e nos artigos A instância da Letra... (1957/1998), A metáfora do sujeito (1961/1998) e De uma questão preliminar... (1958/1998), ele chegará às últimas consequências dessa relação nesta primeira fase de sua obra. Assim, no seminário As psicoses, Lacan anuncia questões relevantes em relação à metáfora e ao significante paterno. Mas é só depois, no seminário As formações do inconsciente, que ele irá entrelaçar fortemente esses dois polos através de uma formulação algébrica, dando origem à metáfora paterna que parte, então, da fórmula geral da metáfora já apresentada em A instância da letra... Ou seja, nesse caminho, há uma passagem que vai do pai como significante ao pai como metáfora, abrindo, então, uma dupla via que vai da metáfora do pai ao pai como metáfora.
A metáfora paterna tem a função de selar a proeminência do simbólico sobre o imaginário e o real, colocando um limite e organizando o campo simbólico. Ela instaura o símbolo do pai totêmico por meio de uma repetição simbólica da cena da horda primitiva que marca sua morte e sua incorporação. Tendo que a metáfora paterna é o mecanismo que passa a operar a partir de e como repetição do mito do pai da horda, nada mais lícito do que nos debruçarmos sobre esta aproximação.
Com efeito, como não haveria Freud de reconhecê-la, quando a necessidade de sua reflexão o levara a ligar o aparecimento do significante do Pai, como autor da Lei, à morte, ou até mesmo ao assassinato do Pai? - assim, mostrando que, se esse assassinato é o momento fecundo da dívida através da qual o sujeito se liga à vida e à Lei, o Pai simbólico, como aquele que significa essa Lei, é realmente o Pai morto. (LACAN, 1958/1998, p. 563).
Sobre essa aproximação entre o mito do pai da horda e o pai como metáfora, Le Gaufey (2015) sublinha que o principal de todo esse acontecimento mítico é justamente seu retorno na infância, pois o que importa nele não é a ação de afastamento de algo que estava atrapalhando a convivência dos membros do clã, mas, sim, a morte e a refeição primordial como aquilo que instala a comunidade fraterna. Nesse sentido, o pai é morto para que haja uma operação que instala o laço fraterno e, desse modo, os irmãos podem se tornar filhos do pai sem o intermédio da mãe. Além disso, o chefe da horda só se torna um pai depois de morto; antes ele era apenas chefe. E é neste après-coup que os filhos passam a ter memórias do chefe como se fosse um pai, visto que, depois da morte, só existe o pai que surge, então, em um movimento retroativo. Portanto, não há realidade do pai antes do símbolo, isto é, o pai só surge simbolizado. Isso é equivalente a dizer que o pai surge ao mesmo tempo que a metáfora paterna.
Tomando por base a fórmula da metáfora apresentada anteriormente, temos que, para que ela aconteça, é necessário que haja identificação entre S1 e S2, pois a condição da metáfora é que um significante seja substituído por outro, ou seja, um precisa ser elidido; para que ocorra tal elisão é imprescindível a identificação de S’1 e S’2, pois, caso contrário, eles não poderão ser cortados, e, se eles não saírem de cena, não há condição de surgimento para uma nova soldadura entre S e x, de onde poderá surgir um novo efeito de sentido.
A partir da fórmula geral da metáfora, chegamos à fórmula da metáfora paterna. Nesse tipo de operação, haverá um intercâmbio entre o lugar e a função de cada elemento dentro da fórmula. No caso da metáfora paterna, teremos na primeira fração o NP, que é o Nome-do-Pai, e o DM1, um significante do desejo da mãe, que assume nesse jogo a função de significado do desejo da mãe para o Nome-do-Pai, já que estão se relacionando mediante uma barra. Do outro lado, o DM2 é o significante sem significado para a criança, e o x, que ainda nada mais é do que um grande vazio, indica na fórmula o significado enigmático do desejo da mãe para o sujeito.
Do ponto de vista do sujeito, o que se passa na operação metafórica é:
-
a percepção de um significante enigmático = DM1
-
o ato de colocar em relação o NP com o DM1
-
a identificação entre DM1 e DM2
-
a obliteração ou o desaparecimento diagonal do DM1 e DM2 como consequência (LE GAUFEY, 2015, p. 9).
Para a criança, o DM 1 é um significante enigmático. Ele representa o desejo da mãe por algo que não se sabe. A criança pode tentar se identificar imaginariamente com aquilo que supostamente corresponderia ao significante do desejo materno, ou seja, ela pode tentar se colocar como aquilo que oferece satisfação a este desejo ou como um significado para este significante. Porém, vimos que não há qualquer significado que corresponda diretamente a um significante, visto que é preciso a articulação de uma cadeia significante para ter como resultado um significado. Entretanto, se houver a identificação da criança com o lugar deste significado enigmático, representado na fórmula pelo x, teremos um caso de psicose, se não, os DMs serão elididos, e o x se ligará ao NP.
Isto posto, não é um exagero dizer, acompanhando Le Gaufey, que há uma morte na metáfora: morte de um significante para que se dê espaço a outro, bem como, na horda primitiva, há morte de um ser que virá a se constituir como pai. Este ato fundador do pai na horda e o ato fundador do significante Nome-do-Pai por meio da morte e da elisão, respectivamente, são os que instauram a falta na cadeia significante. O resultado de uma metáfora é a criação de uma nova significação; no caso da metáfora paterna, a nova significação posta é a fálica. O significante fálico, nessa operação, é transmitido através da função materna, na queda dos significantes de seu desejo. Por isso, pode-se dizer: “E é assim que entre ´moi´ e ´je´, entre identificação imaginária e identificação simbólica, acontece comumente na espécie humana que um pai nasce de um filho, pelo interposto da mãe, repentinamente, interdita” (LE GAUFEY, 2015, p. 9).
No entanto, no escopo deste trabalho, o que nos cabe é perguntar: e se não houver essa morte? E se o DM2 se mantiver ligado ao x, impossibilitando a elisão e o acesso ao NP? E se não houver o nascimento de um pai por um filho? Quais as consequências disso para o sujeito?
A ausência de metáfora na psicose
Retomando o que vimos até então, a questão da metáfora na psicose já havia sido colocada desde o seminário As psicoses, mas a ideia do pai como metáfora, apesar de ser tangenciada neste seminário e no seguinte, se concretiza apenas em As formações do inconsciente e no artigo De uma questão preliminar... Sendo o pai uma metáfora, sua função dentro do complexo de Édipo é ser um significante que substitui outro significante, que, no caso, é o desejo da mãe. Essa substituição faz surgir uma nova significação, que é fálica e cuja função é orientar o sujeito na ordem simbólica.
Na psicose, o que é posto em cheque é a capacidade do significante de permitir que ocorra com ele uma metáfora desse tipo e disso decorreria a impossibilidade de um psicótico criar uma metáfora. Como diz Lacan no seminário As psicoses, a propósito do livro de Schreber: em todo este livro não se encontra uma única construção metafórica. Mas o que exatamente quis dizer Lacan marcando essa impossibilidade? Se os psicóticos não fazem metáforas, qual a diferença entre eles e os afásicos de similaridade de Jakobson?
Toda a preocupação de Lacan nesses primeiros seminários era marcar a força do campo da Linguística na Psicanálise e, deste modo, deixar bem claro como as leis que regem a linguagem são as mesmas que regem o inconsciente, portanto estas estão funcionando em todo sujeito falante independentemente de sua estrutura clínica. Nesse caso, o que diferencia a psicose da neurose, nesses primeiros anos do seminário de Lacan, é a incidência ou não do significante fálico via metáfora paterna, o que, obviamente, acarreta consequências para o modo de apresentação do inconsciente e da fala, porém, não lesa o que se tem de mais fundamental, ou seja, a estrutura de linguagem do inconsciente. A relação entre significante e significado é alterada e algumas operações significantes também; porém não deixa de existir um modo de articulação e operação com resultados próprios. É, pois, nesse sentido, que se pode trabalhar com a ausência da metáfora (metáfora esta que é a paterna) na psicose.
É importante destacar que esta ausência não diz de uma deficiência. A não ocorrência da operação da metáfora paterna na psicose abre um novo campo de possibilidades de articulação da linguagem, pois, mais uma vez, é preciso reforçar que, dentro da estrutura de linguagem do inconsciente, há muitas possibilidades de variação e criação de sentidos. É verdade que, como vimos, a metáfora é uma operação que possibilita a criação de uma nova significação - e, por consequência, traz um efeito que pode ser de criação poética -, mas esse não é necessariamente o único modo de se criar com a linguagem. Existem outros modos de criação tão importantes quanto os efeitos provocados por uma metáfora, como, por exemplo, em uma poesia. Entretanto, é indispensável colocar as diferenças entre neurose e psicose em relação a este ponto, e elas estão, basicamente, em torno da existência ou não de uma promessa de sentido. Na neurose, toda significação remete a um para-além, a algo a ser futuramente significado (ou não, já que é promessa e não certeza de acontecimento); na psicose, o sentido repousa sobre a significação, não há nada que tenha ficado por significar, tudo está posto, já que a significação não é fálica.
Na neurose, pode-se pensar na formalização do sintoma como uma metáfora, ou seja, como tendo uma estrutura de metáfora (através da substituição de um significante por outro), porém, na psicose, com a não incidência do Nome-do-Pai, neste lugar, Lacan coloca o delírio, mas não se pronuncia sobre os sintomas de fala, como, por exemplo, as frases interrompidas, os neologismos, os automatismos etc. Nesse caso, a metáfora delirante é uma tentativa de cura pela significação. É uma estabilização da relação entre significante e significado que substitui o significante Nome-do-Pai. Por exemplo, quando Schreber nos diz “há anos o Sol fala comigo” (SCHREBER, 1995, p. 35), não se trata de uma metáfora sobre a relação de alguém com algo maior e mais superior como um astro celeste, mas, sim, de uma conversa estabelecida de fato entre ele e o sol, tanto que acrescenta: “em palavras humanas” (SCHREBER, 1995, p. 35). Outro exemplo pode ser visto em: “Deus soprou o vento e eles desapareceram” (SCHREBER, 1995, p. 35), e, para afastar qualquer interpretação metafórica desta frase, Schreber, mais uma vez, completa dizendo que isto “contém muito provavelmente uma verdade histórica” (SCHREBER, 1995, p. 35).
A metáfora explicita a relação de falta entre significante e referente, na qual mais de um significante pode ocupar um mesmo lugar em relação a um referente. Na neurose, essa falta se manifesta, mais claramente, de forma sintomática como questões sem respostas prontas sobre alguns significantes cruciais, como, por exemplo, a mulher, o sexo, a morte ou o pai. Isso nos diz que o neurótico tenta fazer do significante o significado, ele tenta apagar a distância entre esses elementos, “o neurótico é um mal dialético. Ele quer anular a anulação da coisa pelo significante” (SAFATLE, 2006, p. 112). Ele quer, mas não consegue e se depara com a impossibilidade dessa anulação. Por outro lado, o psicótico foraclui essa distância e opera com construções imaginárias em vez de metafóricas, de modo que a dimensão do Outro se encontra reduzida ao outro. Aqui, não podemos deixar de lembrar que, para Freud, as palavras na psicose funcionam como coisas o que, portanto, está de acordo com a tese lacaniana deste período de que há um apagamento da distância entre significante e significado, um esvanecimento da barra. Portanto, os psicóticos não fazem metáforas, entendendo esta como a operação que coloca essa distância entre significante e significado e entre significante e referente, de modo que, onde não há metáfora, quando é chamado o Nome-do-Pai, vai responder no Outro um furo que corresponde à ausência da significação fálica. A seguinte passagem do livro de Schreber oferece um ótimo exemplo de um fenômeno que pode ser lido a partir da hipótese lacaniana do esvanecimento da barra que separa significante e significado na psicose. No trecho, observa-se que Schreber mistura os significantes e significados das palavras “bota” e “masculinidade”, de tal modo que a bota se torna o mesmo que masculinidade e o fato de alguém tirar as botas teria como resultado a transformação em mulher, evento que por sua vez é representado pelo neologismo “emasculação”.
Quanto às peças do vestuário (a “armadura”, como diz a expressão da língua fundamental), a diferenciação entre o masculino e o feminino era, quanto ao essencial, evidente por si mesma; as botas pareciam ser um símbolo particularmente característico da masculinidade. “Tirar as botas” era por isso uma expressão que queria dizer aproximadamente a mesma coisa que emasculação. (SCHREBER, 1995, p. 140).
Neste trecho, identificamos que, embora possa haver uma relação, no discurso comum, entre homem e botas, e, por sua vez, ausência de botas e mulher, a expressão “tirar as botas” não se trata de uma metáfora para a transformação em mulher, pois o que Schreber está dizendo é algo que se efetiva, para ele, no real e não no simbólico: um homem que executa a ação de tirar suas botas pode se transformar em uma mulher por meio desta ação.
Da metáfora, surge tanto um novo efeito de sentido, como um novo furo. Uma expressão metafórica explicita o furo e a falta, pois não traz consigo toda a significação possível, essa substituição significante abre possibilidades pelo vínculo metonímico que ela carrega. Desse modo, é possível entender que a poesia nos apresenta um mundo novo, cheio de possibilidades. Isso acontece, entretanto, para aqueles que compartilham o fálico da significação, que partilham o discurso comum e em certa medida previsível ou compreensível, mesmo que as possibilidades de compreensão sejam, e são, variadas. Ao contrário, quando não houve a operação da metáfora paterna, quando na relação com o Outro não foi posto o falo como adjetivo da significação, não há, a priori, o compartilhamento da significação ou do sentido, embora eles estejam presentes e funcionando para o sujeito que os cria. Enquanto, na poesia, há a criação de um novo mundo para aqueles que a ouvem, no delírio, por exemplo, há a criação de um mundo novo para aquele que o enuncia. Em ambos, há criação e ambos existem para ajudar os seres falantes a lidarem com suas questões e angústias. A diferença é o alcance coletivo de cada enunciação: um alcança o Outro e o outro alcança o um.
CONCLUSÃO
Nas psicoses, a foraclusão do Nome-do-Pai através de uma operação metafórica é causa de um modo específico de funcionamento do par significante/significado. Isso faz com que os próprios significantes carreguem o peso do significado e, deste modo, as significações das palavras articuladas se remetem à significação enquanto tal. Isso quer dizer que a significação na psicose remete a si mesma antes de se remeter a outra e que cada significante tem valor em si e não em relação. Antes de se articular na cadeia, antes de mais nada, estas palavras acabam por se reduzirem a si mesmas. Nesse sentido, a palavra leva em si o peso daquilo que ela representa, ou, se aproximando de Freud, é como se a palavra fosse a própria representação da coisa, mas ela não é, pois há um abismo entre a palavra e a coisa, entre o signo e a referência.
É neste sentido que a linguagem na psicose respeitará sua estrutura, porém não necessariamente responderá à lei da metáfora paterna que ajuda a organizar o discurso através da inscrição fálica. Não é porque a falta está foracluída que ela deixa de se inscrever ou de manifestar sua presença do lado de fora.
A foraclusão, bem como o recalque ou a denegação, é um dos modos de lidar com a lei, que é a lei do ordenamento discursivo. Esta operação, que envolve uma negação, tem como consequência apontar para uma impossibilidade de significação, de pareamento, de encaixe entre significante e significado, de um ser capaz de dar conta do outro. Essa falta é da ordem da estrutura da linguagem, seja ela foracluída, denegada ou recalcada. A questão é que sempre haverá um resto inalcançável na relação de significação que ficará por significar, pois é da ordem da impossibilidade uma relação de completude entre os termos. A palavra não pode apreender a coisa, o significante não pode apreender o significado e tampouco a referência que é sempre Real.
É importante ressaltar e trazer à tona a problemática imposta pela afirmação corrente de que não há metáfora nas psicoses. É necessário recolocar as questões para que seja possível extrair mais precisamente qual é a consequência subjetiva da operação da foraclusão. Dizer que não há metáfora nas psicoses não é o mesmo que dizer que um psicótico não é capaz de produzir verbalmente uma metáfora. Este é o caso, por exemplo, dos afásicos de similaridade, descrito por Jakobson. Uma ausência no nível da metáfora não nos permite uma simples aproximação entre psicóticos e afásicos. Apesar da noção de metáfora em Lacan ser claramente tributária dos trabalhos de Jakobson, o tratamento dado pelo psicanalista a este elemento linguístico o transforma em uma operação completamente diferente daquela estudada pelo linguista. É nesse sentido que é preciso cautela ao radicalizar a ausência da metáfora paterna nas psicoses, tomando por base essa teoria desenvolvida por Lacan ao longo dos anos 50, como uma impossibilidade verbal constante; inclusive porque há uma diferença importante na linguagem e nos sintomas psicóticos dentro e fora da crise e também porque há uma singularidade no modo de constituição de cada sujeito produzindo diferentes formas de apresentação da foraclusão.
É importante abordar este ponto em toda sua delicadeza e complexidade para não tomar a metáfora como artifício de linguagem ou como uma operação subjetiva específica como idênticas entre si. Segundo os trabalhos de Lacan citados neste artigo, essa questão da metáfora nas psicoses diz respeito a uma operação na qual um significante é foracluído ao invés de ser encadeado, e a operação que poderia instalar esse significante é uma operação de substituição, de metáfora. E, na medida em que este significante for requisitado, a metáfora da sua incorporação não poderá responder ao chamado pois não há este registro. No campo da linguagem, a noção de significante já implica por si só em diferença, em posição, e, consequentemente, ambivalência. Portanto, o que está em jogo é o posicionamento do sujeito frente à função fálica. Nesse sentido, a diferença entre as estruturas se fará de acordo com o assujeitamento de cada um diante dessa lei, já que a falta está posta para todos e cada um tenta tamponá-la utilizando os recursos que tem a sua disposição.
O significante Nome-do-pai não deixa, pois, de marcar sua presença pela ausência, assinalando, a seu modo, a impossibilidade de garantir a significação posto que a falta nessa relação está posta para todos, mas manifesta de modos diferentes. Se a lei do significante é instaurada pelo NP e se é essa interdição que produz o lugar do desejo enquanto lei para o sujeito, só há uma consequência possível: no desejo, se trata sempre de fenda, de barra. É a marca de uma posição frente à lei fálica operacionalizada pela função paterna que vai nos dizer como será a articulação significante em cada sujeito. Seja o significante Nome-do-Pai instalado ou foracluído, é ele quem vai nos dizer como será a relação do significante com a falta, ou seja, da diferença com a falta. Isso porque, à significação, sempre irá faltar. Que o Nome-do-pai esteja foracluído não significa que não esteja presente enquanto falta, pois até para ser fora-da-lei é preciso responder a ela.
REFERÊNCIAS
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- SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos Trad. Marilena Carone. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Out 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
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Recebido
30 Out 2018 -
Aceito
29 Jul 2020