Resumo:
Partindo da pesquisa multicêntrica - USP, UFRGS, UFMG - sobre os sonhos na pandemia, o presente artigo objetiva apresentar aspectos sobre a questão temporal no sonhar, a partir da psicanálise lacaniana. Para isto, parte-se do pressuposto presente na obra “Sonhos do Terceiro Reich”, de Charlotte Beradt, de que existiria uma ficção que fala da realidade, no sonhar das pessoas nos momentos que precederam a ascensão do nazismo. Segue-se a linha de interrogar qual futuro pode-se entender a partir dos sonhos e qual a potência desse futuro em tempos de pandemia.
Palavras-chave: sonhos; futuro; pandemia; ficção; psicanálise lacaniana
Abstract:
Based on a multicentric research - USP, UFRGS, UFMG - on dreams in the pandemic, this article aims to present aspects of the temporal issue in dreaming, based on Lacanian psychoanalysis. For this, it starts from the assumption present in the work “Dreams of the Third Reich”, by Charlotte Beradt, that there would be a fiction that speaks of reality, in people’s dreams in the moments that preceded the rise of Nazism. It follows the line of questioning which future can be understood from dreams and what is the power of this future in times of pandemic.
Keywords: dreams; future; pandemic; fiction; Lacanian psychoanalysis
INTRODUÇÃO
Artemidoro de Daldis escreveu sua “Onirocrítica” no século II. Trata-se de uma arte voltada para a interpretação de sonhos e uma técnica capaz de orientar o modo como os homens podem se conduzir, dado que o futuro deles poderia ser previsto pelos sonhos. Assim, Artemidoro inaugura uma técnica de interpretar sonhos, como um modo de tratamento par sofrimentos da vida cotidiana como relacionamentos, morte, comércio e a vida política (ARTEMIDORO, 2009).
A técnica de “ler” a imagem dos sonhos se engajava na decomposição dos signos em elementos que pudessem ter sentido. Era uma investigação por uma verdade escondida no conteúdo onírico que poderia ser descoberta pela onirocrítica, já que, para Artemidoro, os sonhos seria movimentos da alma que antecipariam o bem ou o mal porvir.
A onirocrítica de Artemidoro falava da possibilidade de se interpretar o futuro por meio dos sonhos. Ao colocar o futuro, nos deparamos com uma questão profundamente complexa, que diz respeito ao tempo. O tempo é um conceito filosófico com diversas compreensões. É um tema filosófico antigo que passa por Platão, atravessa a escolástica e toda a idade moderna, passando por Santo Agostinho, Descartes, Kant, Hegel, Marx, Heidegger, Bergson, Deleuze, e mais tantos de uma lista da qual só arriscamos citar alguns. No entanto, a questão do tempo, para o sonho, não percorre as vias que a filosofia colocou desde então.
Propomos seguir a questão do tempo a partir da psicanálise em sua relação com o sonho. Todavia, o investimento desta empreitada seria injusto se não incluíssemos uma questão fundamentalmente ligada ao tempo: o espaço. Nesse sentido, o sonho seria um lugar, um espaço, mas também uma produção que possui uma temporalidade própria. Mas que temporalidade seria esta do sonho? Podemos tomar um sonho como uma possibilidade premonitória? O que os sonhos podem falar das condutas dos homens? O que os sonhos podem falar da maneira como nos implicamos na vida em vigília?
Artemidoro elenca duas formas de sonhos, a enupnia e a oneiroi. A enupnia traduz os afetos atuais do sujeito, os que acompanham a alma em seu percurso, que seriam sonhos que apresentam o objeto de desejo na medida em que ele falta, como um sonho de ser estar comendo ou um sonho com a pessoa amada. Esse tipo de sonho é estabelecido no momento presente e manifesta, no sujeito que dorme, o seu estado atual por meio de uma falta ou excesso. O sonho oneiroi traz a possibilidade de entender um encadeamento do tempo de um acontecimento futuro. Ele age sobre a alma e a excita. É um sonho que sinaliza um futuro na medida em que modifica a alma (FOUCAULT, 1983/2004, p. 169).
Portanto, são duas categorias de sonhos: uma que mostra claramente um conteúdo que não demanda muito esforço de tradução; e outra que demanda um esforço de deciframento de suas alegorias. A onirocrítica nos indicaria um caminho de prever o destino?
Pensamos que, no máximo, os sonhos nos avisam acerca de afetos e de gozo que podemos recolher das produções oníricas e que indicam uma radicalidade, na medida em que nos colocam o ato diante de questões como a morte e a opacidade do Outro. A Política dos sonhos se dá na medida em que, no inconsciente, se constitui a política onde gozamos no quadro da fantasia.
Freud (1922/1969) leva a sério a questão da telepatia nos sonhos em um texto intitulado Sonhos e telepatia. Não que Freud acredite em previsões de futuro, mas aborda a questão dos sonhos premonitórios sem julgamentos antecipados sobre o fenômeno. Freud não tem uma resposta definida para isto. Por outro lado, fica clara a conclusão de que as análises revelam que algo, de fato, é transmitido pelos sonhos, na medida em que contamos ele para alguém. Esta narrativa é a de algo muito desejado, está em uma relação privilegiada com a consciência, onde encontra a sua expressão, porém de maneira encoberta. É transitando por esses caminhos trançados e sinuosos do sonho, do tempo, do espaço e do enigma, que tentaremos colocar em questão alguns horizontes possíveis da relação com sonhos na pandemia.
A questão do futuro nos sonhos é abordada por Lacan (1973/1974) em Les non-dupes errent, onde ele aponta para o sonho como algo que remete a um futuro. A que futuro ele se refere? O sonho poderia ser um vidente? Uma oniromancia, como era praticada por Artemidoro? Na obra Sonhos do Terceiro Reich, a autora Charlotte Beradt (2017) ouviu mais de 300 sonhadores entre 1933 e 1939, que traziam uma mistura de fenômenos sociopolíticos com aflições e construções relativas às suas vidas psíquicas particulares.
Trata-se de sonhos produzidos a partir dos atravessamentos entre os sujeitos e o contexto situado nos vapores da ascensão do nazismo na Alemanha, crivado de “meias verdades, suspeitas, fatos, boatos e suposições” (BERADT 2017, p. 39). Esses sonhos tratam de relações humanas perturbadas pelo meio em que tais pessoas vivem.
No prefácio do mesmo livro, Dunker ressalta a tese de que os sonhos são ficções em dois sentidos. O primeiro é enquanto negação da realidade e, no segundo, como “suposição de um sujeito futuro para o qual aquilo que é hoje absurdo, insensato ou irracional se tornará compreensível, porque então o mundo terá se transformado” (DUNKER 2017, p. 21). Diante disto, nosso objetivo é estabelecer uma relação do sonho com o tempo, ou seja, uma temporalidade singular dos sonhos, diferente da temporalidade da consciência, o que nos permite chegar a reposta da questão do sonho como uma premonição.
O inconsciente é a política, “quero dizer que o que liga os homens entre eles, o que lhes opõe, é precisamente a motivação do que tentamos nesse instante articular na lógica” (LACAN, 1966-1967/2008, p. 350). A partir desta frase, podemos interrogar o sonho como uma via régia, ou seja, um espaço, um percurso para um lugar cuja travessia revela uma lógica da fantasia, portanto, o que liga os sujeitos. Está na ordem da satisfação e do gozo que se colocam dentro de uma cena possível de ser suportada pelo Eu no relato do sonho. A política, nos sonhos, revelaria justamente isso que o sujeito busca na ficção.
I - Contexto da escrita
O âmbito da pandemia trouxe um novo contexto, no qual parte da população, subitamente, teve que aderir ao isolamento social, e mesmo a outra parte que não aderiu, por motivos diversos, teve que lidar direta e indiretamente com consequências do distanciamento social, seja no ambiente de trabalho, da família, de relacionamentos, da política etc. Logo, a questão aqui se localiza nesse descompasso tempo/espaço entre uma vida corrente anterior à pandemia e o tempo/espaço corrente no isolamento.
Nesse sentido, os sonhos podem servir como um índice privilegiado para observarmos a alteração de uma experiência singular, cuja processo onírico pode revelar as consequências dessa mudança de regime de temporalidade da vida. Assim, observar as consequências que a pandemia teve na vida onírica, levando em consideração essa espécie de descompasso súbito do ritmo da vida acompanhado pela gravitação dos significantes flutuantes da pandemia, pode nos auxiliar na compreensão de uma espécie de retração imaginária do “espetáculo mundo” (LACAN, 1964/1998, p. 76), esse movimento de redução do espaço da vida para o interior da casa. É uma divisão do espaço que, ocorrendo ou não com outras pessoas, parte do mesmo princípio: a redução do espaço como variedade e possibilidades de dissolução das experiências de sofrimento em um horizonte maior de cenários e relações de objeto.
II - Sonho e tradução
Poderíamos apontar como primeiro problema a questão do antes e depois da pandemia, uma vez que não vamos fazer uma análise a partir da comparação dos sonhos antes e depois dela. Na coleta de sonhos feita na pesquisa Sonhos na pandemia, composta por equipes da USP (PSOPOL e Latesfip), UFRGS, UFMG, UFRN e UFRJ, fragmentos e restos diurnos predominantes em sonhos foram mandados para os grupos de pesquisa, via formulários.
Tais fragmentos de sonhos constituíram uma espécie de nuvem de temas, significantes e afetos comuns, que destacaram aspectos críticos em suas relações com a política da vida cotidiana.
Nesse sentido, elementos que gravitaram na linguagem, no período da pandemia, se destacaram como pontos a partir dos quais a subjetividade do momento pôde se apresentar, a partir dos sonhos. Para ilustrar, destacamos o relato de uma de nossas sonhantes, seguido de sua própria interpretação:
O sonho mais marcante e central que tive durante a pandemia foi apocalíptico. No sonho, os meios de comunicação alertaram o mundo todo sobre um meteoro que atingiria o planeta Terra daqui a cinco anos e que seria letal para a vida humana (o mundo iria acabar). As cenas posteriores se concentraram nas pessoas em desespero e a comunidade científica paralisada: como nos proteger de um meteoro que está cientificamente comprovado que atingirá a Terra em um futuro próximo? Atento-me à cena do próprio meteoro no espaço se aproximando lentamente de nosso planeta (em todo o sonho, eu me posiciono como espectadora, pois ele ocorre em terceira pessoa). Pessoas próximas a mim fazem chacota com a notícia como uma espécie de mecanismo de defesa do real da morte estampado sem nenhum véu para toda a humanidade.
Para ela, uma psicóloga que atua na urgência e emergência de um hospital localizado em uma capital do sudeste do Brasil, que conta o sonho no início da pandemia (abril de 2020):
Esse sonho expressa um sentimento que tenho no ambiente de trabalho (urgência e emergência em meio à pandemia) relacionado ao esperar. É como se nós, profissionais da saúde, estivéssemos esperando a tsunami nos atingir, já que até o momento, no meu caso, a COVID-19 estava apenas no discurso e no imaginário. Sentimentos de tensão, apreensão, angústia e expectativa por algo ruim são presentes diariamente. Quando se tornará real? Tenho chance de escapar desse meteoro?
Diante disso, o que podemos articular entre sonho e tempo? Entendemos os sonhos partindo do pressuposto de que o relato do sonho seria uma espécie de tradução dessa experiência inconsciente. O que entendemos por tradução?
Em Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-1954/1979, p. 272) coloca que “a palavra só é palavra na medida exata em que alguém acredita nela”. A palavra seria, então, o meio de ser reconhecido. Quando os companheiros de Ulisses, ao serem transformados em porcos, passam a emitir ruídos, eles não perdem o estatuto de “companheiros de Ulisses”, pois seus ruídos continuaram sendo reconhecidos pelo seu comandante.
A palavra se institui como tal na estrutura do mundo semântico que é linguagem, é o significante que não tem a determinação de um sentido. Seria este o efeito que permite a Lacan, com o significante, fazer entrar sala adentro um elefante. Em outras palavras, o conceito não é a coisa que ele representa, o conceito sempre está onde a coisa não está, ele substitui a coisa temporalmente: “A palavra, a palavra que nomeia, é o idêntico. Não é à distinção espacial do objeto, sempre pronta a dissolver-se numa identificação ao sujeito, que a palavra responde, mas sim à sua dimensão temporal” (LACAN, 1954-1955/1985, p. 215).
A característica atemporal do inconsciente postulado por Freud encontra, nesta relação do conceito com a coisa, um problema. É consenso que o inconsciente tem um tempo (Katz, 1995; Gondar, 1996; Porge, 1994), mas não um tempo cronológico organizado pelos princípios lógicos formais que organizam a forma de pensar consciente.
Freud coloca fora do tempo exatamente o conceito; ou seja, o inconsciente se coloca fora do tempo exatamente como conceito porque é o tempo de si mesmo, o tempo puro da coisa, que pode, como tal, reproduzi-la em uma certa modulação, onde qualquer coisa pode ser suporte material. Este é o princípio que sustenta o automatismo de repetição (LACAN, 1953-1954/1979, p. 276).
No caso dos sonhos, encontramos uma superposição das significações de um material significante. Lacan (1953-1954/1979) observa que, na Interpretação dos sonhos (FREUD, 1900), Freud mostra como a palavra transmite o desejo por esse princípio de superposição. Assim, a palavra pode fazer reconhecer qualquer coisa, desde que ela esteja lá. Logo, há na função do sonho uma superposição das significações de um material significante, que Freud mostra como a palavra que transmite o desejo. Esta palavra pode se fazer reconhecer através de qualquer coisa desde que ela esteja situada e organizada em sistema simbólico.
Diante disto, é preciso traduzir hieróglifos, pois os sonhos contam com uma gramática própria, com léxicos, sintaxes e semânticas que não estão organizados pela estrutura corrente dos sistemas simbólicos comuns. No caso dos sonhos, o subjuntivo e não o presente do indicativo é quem comanda o verbo (FREUD, 1900), indicando que o centro de referência da estabilidade do sentido está na gramática da consciência, do Eu, do princípio de identidade e de não-contradição. Por isso, Lacan (1953-1954/1979, p. 278) assinala que uma pequena silhueta humana pode querer dizer um homem, mas também pode representar o som homem e entrar em uma palavra a título de sílaba. Ou seja, hieróglifos que aparecem nos sonhos.
Para Lacan (1955-1956/2002), a aproximação dos sonhos com a decifração hieroglífica apontaria, na cadeia significante, para um significante último, que, na neurose, apesar de ser um significante, não é sem significação. Ele não depende da significação, mas ele é a sua fonte. A sexualidade, por exemplo, não pode ser deduzida da experiência (LACAN, 1955-1956/2002, p. 283). Para deduzi-la, é preciso que o sujeito se ache nela por meio de um sistema significante, na medida em que este sistema instaura o espaço que permite a este sujeito ver como um objeto enigmático, à distância, a coisa mais difícil de se aproximar, ou seja: a própria morte.
Há, com efeito, algo de radicalmente inassimilável ao significante. É, simplesmente, a existência singular do sujeito. Por que será que ele está ali? De onde ele sai? O que está fazendo ali? Por que vai desaparecer? O significante é incapaz de dar-lhe a resposta, pela simples razão de que ele o coloca justamente além da morte. O significante o considera já como morto, ele o imortaliza por essência. (LACAN, 2002, p. 205).
O inassimilável é o traço que serve de suporte material para o significante, o que Freud nomeou de Ein einziger Zug, o traço unário. O que resta desta operação é um ser cuja fala circunda um vazio, o vazio da falta-a-ser, mas que, por outro lado, está sempre em relação à vivência de um corpo habitado pela linguagem e aprisionado pelo discurso. Para Katz (1995, p. 21), na obra freudiana, encontram-se dois tempos psíquica e ontologicamente distintos. O que nos distancia do tempo para filosofia é justamente a diferença que marca o estatuto ontológico do tempo para a filosofia, e o tempo das inscrições do aparelho psíquico que situamos, a partir de Lacan, na hiância pré-ontológica. O que queremos dizer com o estatuto pré-ontológico do tempo?
III - Tempo e espaço da hiância pré-ontológica
Hiância é um termo espacial. Ele indica um lugar intervalar, um espaço mesmo que indefinido. A hiância é por onde a neurose se conforma a um Real que não é determinado (LACAN, 1964/1998, p. 27). É onde se apresenta esse incógnito, o último termo, o insondável que Freud chamou de umbigo dos sonhos (Unerkannten):
Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. (FREUD, 1900/1969, p. 557).
É neste ponto que Lacan (1964/1998) introduz, no domínio da causa, a lei do significante no lugar onde hiância se produz. Ou seja, além do significante, é a causa do sujeito ao produzir hiância, o furo que se tenta costurar. E, neste furo, que poderíamos chamar também de buraco, é onde o sujeito tropeça nas formações do inconsciente nos sonhos nos atos falhos e no chiste.
Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar - algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim, de começo, que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente. (LACAN, 1964/1998, p. 30).
Logo, a hiância do inconsciente é pré-ontológica. O ôntico na função do inconsciente é colocado por Lacan como uma fenda, ou seja, um espaço por onde algo passa no movimento de abertura e fechamento. Essa abertura é um instante, isto é, um tempo em que o ôntico surge e cessa no segundo tempo, o do fechamento. Isto dá a essa apreensão um caráter evanescente. Assim, de acordo com Lacan (1964/1998, p. 35), o inconsciente possui uma cadência temporal, uma pulsação em um movimento de abrir e fechar, que revela e vela o inconsciente. O que se passa nessa fenda é inacessível à contradição, inacessível à localização espaço-temporal e inacessível ao tempo tal como ele é organizado dentro da razão cronológica.
Lacan (1964/1998, p. 35) diz que “se o desejo não faz mais do que veicular para um futuro sempre curto e ilimitado, o que ele sustenta de uma imagem do passado, Freud diz, no entanto, indestrutível”. O desejo indestrutível escapa ao tempo, ele é afirmado pela realidade mais inconsistente. Lacan (1964/1998) questiona o que é uma coisa senão aquilo que dura idêntica em um certo tempo. As coisas que duram um tempo são coisas idênticas. Estaríamos falando, então, de algo que não é idêntico a si, da ordem de uma pura diferença?
Porge (1994) comenta que a espacialização do pensamento implica na espacialização do tempo. Isto segue o princípio onde a intervenção simbólica abre caminho na percepção que inaugura o espaço. Lacan (1954-1955/1985, p. 215) comenta que o poder de nomear os objetos estrutura a percepção. Isto implica dizer que o percepi se mantém dentro de uma zona em que se pode nomear, é assim que se pode fazer subsistir os objetos a partir de uma consistência. É o caso do sonho do morango de Anna Freud. Neste sonho, fica claro que a percepção do objeto e a própria relação narcísica da criança não são percebidos de maneira instantânea e direta. É pelos significantes que se nomeia o idêntico, por isso, Anna Freud não fala só do morango, mas de toda uma série de comidas relacionadas à satisfação - “molangos, molangos silvestres, omelete, pudim” - e o seu próprio nome.
Assim, a materialidade das coisas é dada na função de um que não é o da duração, cronológico, mas o de uma “dimensão temporal também implicada na ação nachträglich (só-depois) do significante” (PORGE, 1994, p. 84). É o tempo lógico que introduz uma nodulação do tempo e do espaço que determinará o pensamento temporalizado enodado ao pensamento espacializado. Neste sentido, do ponto de vista ôntico, o inconsciente é evasivo, pois se engendra a partir desse sulcamento do Real que abre espaços e temporalidades. É por esse princípio que Lacan observa que ele se dá na abertura e fechamento, articulando isso que vem do traço de memória e se apresenta como uma invasão súbita.
Assim, o inconsciente é este intervalo, um hiato que estabelece um espaço que é, antes de mais nada, um espaço de tempo sincopado no qual tropeçamos nas surpresas, isto é, no que se produz na hiância e que se apresenta como um achado: “Ora, esse achado, uma vez que ele se apresenta, é um reachado, e, mais ainda, sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda” (LACAN, 1964/1998, p. 30). Ou seja, uma perda de algo, de um objeto que introduz uma dimensão espaço/temporal na medida em que fura o Real cifrando-o com uma marca que conta. Temos, portanto, um achado que se introduz no tempo como corte que modula o movimento de abertura e fechamento do inconsciente.
Aqui, cabe considerar que a noção de memória, para Freud, não se trata de um acúmulo de arquivos, mas de uma memória dos traços cujas marcas indicam os caminhos facilitados da excitação. Assim, ao articularmos a memória, estamos também pontuando o seu esquecimento que se mantém presente como marca a partir da qual a cadeia significante se apoiará. Ou seja, há algo de singular que se apresenta no reachado para, subitamente, ser perdido.
O reachado é o jorro, a invasão de algo do Real no tempo e no espaço estabilizado pelo imaginário e simbólico. Ele coloca em crise o espaço delimitado, das formas e contornos estáveis. Ele estremece a sustentação simbólica cuja firmeza se apoia nos sistemas e nas ordens simbólicas que universalizam as semânticas.
Poderíamos ilustrar esta passagem com mais um relato de uma sonhante. Ela nos conta:
Esta noite eu sonhei que estava tentando me esconder ou fugir de algo ou alguém. No primeiro momento, estava com meu esposo e depois era com a minha irmã, estávamos disfarçados, eu estava vestida de criança e com máscara, passava por pessoas da minha família, mas não era reconhecida e mesmo assim ficava com medo [sic].
E interpreta que:
Este sonho me faz pensar o momento que estamos vivendo, esta semana comprei máscaras por meu marido e para minha irmã, acho que por isso eles aparecem no sonho também. Amo muito as minhas irmãs e os meus sobrinhos e somos próximos e apegados, mas estamos afastados por causa da Pandemia. Como eu trabalho no hospital tenho muito medo de me aproximar deles, tenho medo de está [sic] com o vírus e não apresentar sintomas, por isso estou afastada das pessoas que mais amo. Isto está me causando muita dor. Mas o final do sonho feliz que não lembro dos detalhes, acho que simboliza a minha fé, não sei como será o futuro mas creio que dará tudo certo. Daqui a pouco esta pandemia irá passar e poderei abraçar e beijar os meus amores.
É no movimento de vacilação de saber e não saber que a verdade do gozo se define a partir do desatrelamento do saber. Este súbito se apresenta no sonho como surpresa em uma cadeia de pensamentos inconscientes, um rébus (LACAN, 1971/2009, p. 83), para, logo em seguida, sumir no fechamento. Todavia, este fechamento deixa vestígios que permanecem incubados. Ele não deixa o sonhador incólume a esta experiência, pois não há um apagamento ou retorno a um estado anterior a ela. Assim, no movimento de pulsação do inconsciente, a experiência do sonhador não se dará sem passar por uma reorganização que resvala no que a surpresa deixou. Seria este um efeito do Real no sonho, a partir de um movimento sincopado de um tempo próprio.
Ao falarmos de memória, não nos referimos a uma lembrança de infância ou de um passado longínquo. Nos referimos aqui à regressão ao significante mestre. Lacan comenta:
Cada vez que Freud fala o que acontece no processo primário, vejamos bem do que se trata: acontece um movimento regressivo. Quando, por um motivo qualquer, a saída da excitação para a motilidade é barrada, produz-se sempre algo que é de ordem regressiva. É aqui que aparece algo que é uma vortellung que por acaso dá a excitação em questão uma satisfação que rigorosamente falando, é alucinatória. Eis a novidade introduzida por Freud. (LACAN, 1958/1959/s.d., p. 77).
A vorstellung demarca a regressão na medida em que estabelece uma gramática para o gozo. Logo, regredir é, sobretudo, regredir à cadeia significante que estrutura o sujeito e aparelha o gozo. Nesse sentido, é preciso retomar a Carta 52 para observar como Freud destaca o momento em que o traço mnêmico faz justamente essa marca no Real. Nos referimos à excitação envolvida no processo em que a escrita do traço produz a temporalidade a posteriori (nachträgliches), de modo que este insiste onde quer que falte uma escrita sobreposta posterior (LACAN 1964/1998). O traço mnêmico é esta marca estética, visual e auditiva, que forma sistemas que balizam as excitações e serve de suporte para a Vorstellung. Eles formam a escrita psíquica deixada pela dinâmica pulsional inconsciente, que pode ser traduzida.
Em Freud (1896/2017, p. 37), fica claro que esta tradução só pode ocorrer em um regime de temporalidade. Isto se dá no intervalo, na fronteira de dois tempos que ficam entre as sobreposições de escrita do traço que representam o trabalho psíquico em épocas sucessivas da vida. É o que permite a Katz (1995, p. 22) observar a distinção entre presente e presença. O presente não precisa estar na presença, como uma percepção atualizada. Ele está à disposição enquanto afeto e/ou representação, como uma memória perceptual comparece, mas sem um referente.
Portanto, a regressão não é possível sem a excitação do traço mnêmico e sem a precipitação do significante. Assim, o que regride são as vorstellungs, os significantes do sujeito na direção dos S1s (significantes-mestre - marcas diferenciais do sujeito) em um movimento que se chegaria àquele que define um Real do gozo. Talvez seja este o momento do despertar, pois o sujeito encontraria isso que, em sua singularidade, ele não reconhece no Outro, isto é, o espaço/limite da sutura que liga sua demanda ao seu desejo, onde ele não é idêntico a si em seu gozo. Isto consiste em um tempo lógico que desloca a regressão de qualquer tentativa de compreensão a partir de uma concepção de tempo cronológica. Logo, as regressões oníricas vão na direção do S1 a partir das associações da cadeia. É uma redução ao ponto singular do sujeito.
Diante disso, podemos dizer que a regressão na realização do desejo no sonho, apesar da excitação da memória, não se trata de uma descarga como no modelo de arco-reflexo. Ela trata de uma satisfação inconsciente, que será estranha à consciência.
IV - Despertar e desejo
A diferença entre Real e realidade é marcada na medida em que o conteúdo que aparece nos sonhos não é objeto da necessidade - que correspondente ao alívio fisiológico que vem por meio de uma alucinação - mas, sim, representações deslocadas metonimicamente na série de significantes. Podemos dizer que a regressão é um percurso pelos significantes primordiais que não volta a um momento em que só teria a relação do corpo com o objeto. Com o significante, inscreve-se um lugar de sujeito entre objetos. A questão a ser colocada é a da reapresentação, ou seja, da súbita irrupção do Real de uma marca fundamental, o lugar, o espaço onde surge o Real do gozo singular entre os objetos.
Ao colocarmos essa questão em termos de lugar entre objetos, pressupomos uma questão temporal nesta relação do sujeito entre eles. Aqui, cabe um modelo temporal que coloca dois tempos: S1 do gozo com o objeto, e S2 da representação/significante na cadeia. É entre os dois que está o lugar do sujeito e o lugar do desejo. Assim, o sujeito se situa neste intervalo de tempo, entre um presente e um passado, sendo este passado algo que não se sabe se realmente aconteceu, um passado que é uma atualização, no discurso, das relações fantasísticas restauradas pelo Eu nas etapas da decomposição da estrutura. Ele precisará ser dito a posteriori para que esse passado se efetive na fala. É o futuro anterior que Freud pontua (Carta 52, Rascunho K etc.) e Lacan (1958/1959/s.d, p. 86) assinala. É o passado que está condicionado ao futuro.
Assim, é o desejo do sujeito que causa a regressão temporal no sonho mediante uma representação significante, o que, como dissemos acima, implica em uma impossibilidade de separar a experiência bruta de excitação do traço mnêmico.
É esta articulação que nos coloca diante de uma hiância cujos pólos definem uma relação lógica em que o presente precisa do passado, mas o passado não é sem o presente. Ou seja, a realidade de um acontecimento que só vai se dar na medida em que for sendo articulado na linguagem. Algo do desejo que tem na sua escolha, a própria transformação do seu sentido, ou seja, o ato da escolha transforma o que foi escolhido. Esta é, para o sujeito, a escolha real.
O Real é isso no intervalo do entre dois, que define o desejo do sujeito entre presente e passado, em um tempo infamiliar, experimentado como surpresa, mas que escapa. Um Real que volta, provocando novamente surpresas, mas também todo tipo de narrativas dadas a resolver antinomias dentro de uma lógica de linguagem que satisfaça a linearidade espaço/temporal da gramática que organiza os pensamentos conscientes.
Porém, Lacan (1964/1998) nos coloca a questão do pesadelo, em que o encontro com o Real não é apenas a questão do entre dois significantes onde podemos situar a singularidade de um modo de gozo. O pesadelo aparece fora de uma temporalidade entre passado e futuro. Ele opera uma ruptura da cadeia significante, como se reapresentasse justamente o fora do tempo. Como no pesadelo, ao não encontrar um significante que o represente, o sujeito sofre uma espécie de crise na cadeia. É um Real que se apresenta a partir de um objeto com o qual o sujeito não consegue se identificar. Este momento de reapresentação é a crise do Real que nos faz acordar. É o ponto do sonho que não é sonhável, pois é deslocado do encadeamento narrativo onde o sujeito pode se instituir como tal. Ao reapresentar isto que fura a narrativa, desperta-se:
O sonho mais impressionante que tive estes dias era de que eu estava em frente aos fornos de Auschwitz (aparentemente em uma daquelas visitas educativas na Alemanha) e no meio da explicação do guia sobre os procedimentos que aconteciam no local, eu entendi que se tratava de um sonho e comecei a imaginar que, quando a pandemia do Covid-19 piorasse, os fornos eram os destinos meu e da minha mãe, já que eu sou negra e ela é do grupo de risco. Então comecei a imaginar o corpo da minha mãe sendo jogado em um dos fornos e acordei.
Este troumatism nos distancia da leitura freudiana de que o sonho é uma realização de desejo que garantiria as propriedades restaurativas do sono. A diferença está no que podemos entender que acordamos para que possamos dormir o sono na fantasia. Acordamos para retomar um encadeamento narrativo na nossa relação com a vida, dentro de uma história, situada em um espaço e tempo. A sonhante do sonho relatado acima descreve a lembrança que está no sonho e a relação que estabeleceu do passado para o presente:
O sonho que relatei acima sobre estar em frente a dois fornos de Auschwitz percebendo que eu e minha mãe terminaríamos ali, refere-se a um vídeo que eu vi, mais ou menos, um ano atrás. Os brasileiros do canal Jovem Nerd fizeram uma visitação nos campos de extermínio na Alemanha. Quando eu acordei, eu procurei o vídeo e os fornos mostrados eram os mesmos do meu sonho. Eu tenho sonhado sempre com algo que reflete as minhas preocupações do dia. Eu sei que sonhei com os fornos porque me desesperei imensamente com a possibilidade de perder a minha mãe. E também sei que isso tem a ver com todos os discursos que li sobre a Covid-19 só matar “velhinhos”. A minha mãe tem 74 anos.
V - O futuro de uma ficção
Se a realidade que constitui a experiência de viver é sustentada pelo sentido, não seria possível viver nesse fora de sentido absoluto do Real. Portanto, recuperar a capacidade de sonhar é recuperar um sentido para a vida. Nos sonhos, podemos experimentar resvalar nisto que está radicalmente além do sentido. Situado na hiância, vem como um tempo lógico, que, do non-sense, produz narrativas. Neste sentido, se opõe à vida como uma espécie de inefável, cujo nome mais imediato podemos chamar de morte. É na aproximação dessa morte que se acorda. Freud pensava o sonho como uma realização de desejo que guarda o sono. Desta forma, o sonho serviria para que o sujeito continue dormindo. Mas Lacan (1973-1974/s.d.) aponta uma outra possibilidade: a do sonho como desejo do despertar absoluto da morte.
O encontro com o gozo absoluto, sem significante, é a morte. Sem os significantes mestres, o corpo se despedaça diante da opacidade do Outro. Tal opacidade implica na impossibilidade do trabalho de interpretar o desejo do Outro, como no seguinte relato: “Ele não respondeu no sonho e eu acordei. Não estava angustiada e o sonho pareceu bem real! Logo me dei conta que era um sonho, mas não ‘só’ um sonho”.
A angústia surge nesse ponto de passagem para o gozo do Outro. Se, com o significante, o sujeito não é o objeto de desejo que responde a falta no Outro, então, ele será o que lhe falta no Real. Decifrar é ir em direção ao significante que, pelo Outro, o sujeito tenta se compreender como resposta à falta do Outro.
Se a realidade tem estrutura de ficção, então, o sentido do acordar para a vigília seria falho, ou seja, acordamos para continuar sonhando a ficção que está sempre aquém de uma experiência efetiva do nosso corpo. O “espetáculo do mundo” no qual nos situamos no horizonte da vida, dos sistemas simbólicos e das relações apenas nos auxiliam a cingir esse Real que o significante faz furo. Essa ficção é necessária para tornar possível a vida como sujeitos no mundo. Assim, diante do não sentido do sonho, podemos acordar diante do enigma onde “é possível, a todo instante, pôr em causa todo o sentido, na medida em que este é fundado num uso do significante” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 301). A questão aqui é o sonho como esse elemento entre o acordar para o sentido organizado pelas significações e o não sentido do sonho na redução mais fundamental. Por isso, é preciso marcar esta diferença entre dois despertares: o que desperta para continuar sonhando na ficção da vida; e o despertar para a morte. Este último “acordar” vai na direção de uma redução traçada pelos S1s, o ser-para-a-morte, último limite da borda, ponto de gozo que nos faz despertar. Logo, despertamos para adormecermos na realidade.
Talvez seja por isso que autores como Sidarta Ribeiro (2019) assinalem hoje em dia para uma recuperação da capacidade de sonhar, pois ela é a própria forma como vivemos a dura realidade que temos no país. Assim, o desejo do despertar no sonho é um desejo que resvala na antinomia da morte, no fora da vida inefável, cifrado pelo significante no que ele tem de inassimilável, para novamente voltarmos a dormir.
O despertar, que é tematizado por Lacan (1964/1998), indica uma temporalidade tíquica do significante-mestre. Ele estabelece uma repetição que pode ser atualizada em outros contextos da vida, mas voltando como uma surpresa do Real.
O mundo dos sonhos possui narrativas que não obedecem à mesma lógica da nossa consciência, razão formal e tempo cronológico. Para Freud, era uma questão de trazer isso à consciência, falar o que não se pode falar e que, por isso, aparece no sonho. Pensando a partir de Lacan, encontramos uma outra possibilidade de entender o ponto de despertar, não como uma passagem para a vigília, mas como encontro com o Real. Como já mencionamos, isto implica em um tempo, na medida em que despertamos para o dizer sobre o Real, ou seja:
Dizer tem a ver com o tempo. A ausência de tempo é uma coisa com a qual se sonha, é o que se chama de eternidade, e este sonho consiste em imaginar que despertamos. Passamos o tempo a sonhar, não sonhamos apenas quando dormimos. O inconsciente é exatamente a hipótese de que não sonhamos apenas quando dormimos. (LACAN, 1977/1978, aula de 15/11/77).
Assim, o desejo em realização, no sonho, seria esse Real indexado à narrativa do sonho, que está no limite entre narrativa e despertar, que comumente vem como experiência de angústia, de excesso. O inassimilável do significante volta como excesso que desperta. É uma irrupção do Real que, no sonho, indica algo que não encaixa, que sobra ou que falta na narrativa. Neste ponto, no sonho, poderíamos pensar no dilema nos moldes do dilema: a realidade (ficção) ou a morte (eternidade).
É a cifra do gozo que nos interessa aqui para esclarecer o que seriam os sonhos. O que é possível de decifrar desse gozo incomensurável do Outro? Qual o significante que marca uma singularidade e que pode nos dar uma resposta? Um significante que nos representa para o Outro? É este significante que pode nos auxiliar ante ao Real. Entre o “será que você sabe?” e o “que queres de mim?” existe um movimento infindável de decifração do desejo do Outro na direção de se entender o próprio desejo. A angústia diante do não-saber do desejo do Outro nos leva a interpretá-lo (LACAN, 1962-1963/2005). Diante da louva-deus, é interpretação ou morte!
Em Les non-dupes errent (1973/1974), Lacan retoma a ambiguidade no último parágrafo de Interpretação dos sonhos, para apontar que o valor dos sonhos para o conhecimento futuro é fundamental. Freud escreve:
E quanto ao valor dos sonhos para nos dar conhecimento do futuro? Naturalmente, isso está fora de cogitação. Mais certo seria dizer, em vez disso, que eles nos dão conhecimento do passado, pois os sonhos se originam do passado em todos os sentidos. Não obstante, a antiga crença de que os sonhos prevêem o futuro não é inteiramente desprovida de verdade. Afinal, ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos decerto nos transportam para o futuro. Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado. (FREUD, 1900/1969, p. 660).
Isto nos permite entender o que Dunker (2017) escreve sobre a suposição do futuro e a transformação do absurdo em algo compreensível. Tal transformação não é da ordem do que se acreditava que Freud queria fazer na alusão à adivinhação dos sonhos. Ela está de acordo com o que Lacan (1973/1974) aponta sobre o valor do sonho na descoberta do inconsciente. Ou seja, é o futuro experimentado como presente pelo sonhador, estruturado por uma demanda indestrutível que se repete em uma mesma forma. O ato de sonhar transforma aquilo que é sonhado, pois o ciframento determina o sentido da escolha do material do sonho, a partir de um certo saber:
Em relação à vida enquanto viagem que se pode dizer que há uma parte que é passado e uma outra que fica assim, a consumar, que se chama futuro. Estas inscrições do desejo indestrutível seguem o deslizamento. (LACAN, 1973/1974, p. 15).
Tal mesmidade aponta para a morte. Nesse sentido, o surgimento do inconsciente nos indica a estrutura que se dá a partir da relação com um desejo indestrutível. A estrutura está entre o nascimento e a morte. A estrutura simbólica que, para Lacan (1973/1974), está no fim de Interpretação dos sonhos, aponta para um limite que Freud jamais anunciou sobre o sonho. Lacan (1973/1974) indica isso que retroage e que, a propósito do sonho, demonstra o inconsciente. O inconsciente é isso, antes chamado irracional, mas que é simplesmente uma racionalidade que está para se construir, que funciona a partir de um princípio lógico que não é o da não-contradição da lógica clássica aristotélica. O inconsciente ultrapassa a lógica clássica e nos convoca a construir uma outra.
O que é isso que ultrapassa o desejo indestrutível?
VI - A cifra do inexorável
Por um princípio freudiano, sonhar é ato de ganho imediato de prazer. Nada tem a ver com os deveres da vida comum ou com realização de tarefas diárias. A intenção do sonho não é a de comunicar. O que o sonhar nos diz é sobre a construção, sobre o “ciframento que é a dimensão da linguagem e não tem nada a ver com a comunicação” (LACAN, 1973/1974, p. 19). É algo da ordem do significante, que surge de alguma coisa estranha de outro lugar. Só no sonho se pode ver este ciframento feito para o gozo. Lacan destaca que as coisas são feitas para que, no ciframento, se ganhe algo no processo primário, ganho de prazer. E isto continua, mas se apoia porque o sonho não é feito de nada e é por esta razão que ele funciona. É o que Freud destaca em relação à função do sonho como algo feito de nada, senão para proteger o sono. O sonho protege o sono. O sonho depende do inconsciente, da estrutura de desejo e é por isso que ele pode incomodar o sono.
Para Lacan (1973/1974, p. 20), o gozo está no ciframento, logo, podemos ver o ciframento do sonho. É nesta direção que é preciso ver o gozo. A estrutura é uma espécie de história do ciframento onde, no sonho, se chega a alguma coisa de um limite. O sentido que aponta para este limite do inconsciente é o sentido sexual, isto é, o sem sentido onde isso desgasta a relação. Não há relação sexual a não ser a relação enquanto escrita do matema, pois isso escapa. Mas é no momento em que o sonho esvazia, que o sono fica à mercê do gozo. O sentido sexual se define por não se escrever. É que no ciframento se necessita do limite. Um limite tal como uma função matemática, limite de um número real. Ou seja, pode aumentar o quanto for a variável, mas a função não ultrapassa certos limites.
Que limite é esse do ciframento que torna a interpretação incalculável nos seus efeitos? Quer dizer que o único sentido é o gozo; o gozo que faz obstáculo a isso que a relação sexual não pode, de alguma maneira, se inscrever (LACAN, 1973/1974). Isto permite a Lacan formular que: o efeito da interpretação é incalculável. Para Lacan, o sonho é feito de uma série de ciframentos que não podem incidir senão sobre o material que está constituído pelos restos diurnos.
Este é o destino trágico do homem. Na inexorável decifração e inevitável malogro, o ato de interpretar é o da coragem de uma vida que luta pelo e com o sentido. Nossa aposta no sonho é a de uma ética no limite do ato. Uma ética trágica, dentro dos limites dos ciframentos do gozo e que comparece diante da dissolução das identificações, dos limites dissolvidos das referências, nos colocando diante do ato. Beaufret (2008, p. 17) aponta, na leitura de Hölderin, que, em Sófocles, “é o próprio limite que se furta, e o herói se aventura perigosamente no hiato (béance) de um entre-dois, de onde finalmente advém a sua perda”.
É em uma aventura no hiato pré-ontológico que os sonhos nos interrogam sobre uma resposta, uma responsabilidade. Nesse sentido, os sonhos apontam para nossos modos de responder no desamparo, na consistência imaginária esvaziada do Outro ou na ausência de respostas dos Deuses. É justamente a essa coragem heroica, na obra de Sófocles, que Hölderin e Lacan apontam. Diante do desamparo político e do risco biológico, o que nos aponta para o futuro é a nossa resposta singular nos limites em que o Outro não nos garante mais respostas por meio do que sustenta a vida nos espaços públicos. My phinai, já dizia Édipo, que, mesmo assim, continuou sua jornada. Sem esta luta, o que resta?
Referências
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- RIBEIRO, S. (2019) O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho São Paulo: Companhia das Letras.
Nota:
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O presente artigo é resultado da pesquisa Sonhos na pandemia, realizada no decorrer da pandemia de Covid-19. A pesquisa foi coordenada pelas professoras Rose Gurski e Cláudia Perrone (ambas do Instituto de Psicologia da UFRGS), na USP, pelos professores Christian Dunker e Miriam Debieux Rosa, e na UFMG, pelo professor Gilson Iannini. O projeto teve início no final de 2020 e foi composto por equipes da USP (PSOPOL e Latesfip), UFRGS e UFMG. Os autores deste artigo compunham um dos GTs do PSOPOL/USP (Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política). A pesquisa Sonhos na pandemia teve aprovação do Comitê de Ética CAAE: 32732720.0.1001.5334. Número do Parecer: 4.098.076. Instituição Proponente: Instituto de Psicologia - UFRGS. Título da Pesquisa: A Oniropolítica em construção em tempos de pandemia. Pesquisador: Roselene Ricachenevsky Gurski.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
26 Out 2024 -
Aceito
13 Nov 2024