RESUMO.
A intenção deste ensaio é circunscrever na tradição social brasileira recente a problemática do populismo de extrema direita, em uma retomada e repetição do que se passou nos tempos nefastos da ditadura militar. Para isso, vamos destacar a dívida estabelecida pela sociedade brasileira para com os mortos, na medida em que os crimes realizados pela ditadura não foram julgados. Além disso, tal dívida remete a outras dívidas existentes na sociedade brasileira, referentes à tradição escravocrata, assim como as relações patriarcais no registro do gênero.
Palavras-chave:
dívida; violência; melancolia
RESUME:
L’intention de cet essai est de circonscrire dans la récente tradition sociale brésilienne la problématique du populisme d’extrême droite, dans une reprise et une répétition de ce qui s’est passé dans les temps néfastes de la dictature militaire. Pour cela, nous soulignerons la dette établie par la société brésilienne envers les morts, dans la mesure où les crimes perpétrés par la dictature n’ont pas été jugés. En outre, cette dette fait référence à d’autres dettes existant dans la société brésilienne, se référant à la tradition esclavagiste, ainsi qu’aux relations patriarcales dans le registre des sexes.
Mots-clés:
dette; violence; mélancolie
ABSTRACT.
This essay intends to circumscribe in the recent Brazilian social tradition the problem of far right-wing populism, in a resumption and repetition of what happened in the nefarious times of the military dictatorship. For this, we analyzed the debt established by Brazilian society towards the dead, insofar as the crimes committed by the dictatorship were not judged. In addition, this debt refers to other existing debts in Brazilian society, referring to the slavery tradition, as well as gender related patriarchal relations.
Keywords:
debt; violence; melancholy
1 Preâmbulo
A intenção fundamental deste ensaio é a de problematizar,1 1 FOUCAULT, M. Dits et écrits. Volume IV. Paris: Gallimard, 1994. 2 2 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux, Capitalisme et schizophrenie 2. Paris: Minuit, 1980. as condições concretas de possibilidade para o retorno no Brasil, por via eleitoral e democrática, de um discurso político de extrema direita, trinta anos após o término da Ditadura Militar e o estabelecimento conexo do Estado Democrático de Direito, pela instituição da Constituinte no final dos anos 80. Com efeito, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 foi totalmente inesperada e surpreendeu a todos, não apenas no Brasil como também na comunidade internacional, pois todos supunham em uníssono que a democracia brasileira estava já definitiva e efetivamente consolidada há muitos anos, de maneira que qualquer retrocesso democrático, político e ideológico seria efetivamente inimaginável.
Além disso, o que existiu de inesperado na eleição presidencial em pauta se intensificou e se destacou ainda mais na medida em que Bolsonaro era um deputado de pequena importância no cenário político brasileiro de então, ocupando assim um lugar francamente secundário como deputado no parlamento brasileiro. Até aquele momento, destacava-se apenas negativamente, por promover pequenos e grandes escândalos no âmbito parlamentar, de características ideológicas de cunho evidente de extrema direita, mas sem que isso implicasse na sua punição exemplar, por motivos éticos evidentes, sendo assim protegido acintosa e vergonhosamente pelos seus pares.
Porém, a vitória eleitoral da política da extrema direita no Brasil com Bolsonaro foi a versão latino-americana de um processo populista mais abrangente e global, que começou inicialmente em países europeus orientais, como na Hungria e na Polônia, e que ameaça perigosamente desde o novo século a ordem democrática no espaço internacional. A eleição de Trump nos Estados Unidos foi outro signo preocupante da disseminação do discurso político da extrema direita, em um país ocidental efetivamente democrático.
O que pretendemos realizar neste ensaio é a leitura genealógica do discurso da brasilidade, na perspectiva teórica delineada por Foucault na retomada por este do discurso sobre a genealogia na filosofia de Nietsche, para empreender, em seguida, a interpretação da formulação tardia de Lacan, segundo o qual ‘o inconsciente é a política’.
2 Discurso político da extrema direita
Assim, através de um discurso caracterizado pela regressão civilizatória evidente - em que pautas pré-modernas no campo dos costumes foram frontalmente perseguidas de maneira ampla, geral e irrestrita -, o governo Bolsonaro empreendeu a desconstrução sistemática do Estado e da sociedade brasileiros ao mesmo tempo, nos diferentes registros da saúde, da educação, da cultura, da religião, das relações entre os gêneros, das relações raciais e da segurança pública, em um projeto político deliberado. Visava autorizar, assim, a liberalização da venda e da posse de armas pela população civil em nome da suposta autodefesa dos cidadãos brasileiros, para poder privatizar mais ainda o precário sistema brasileiro da segurança pública e retirar paulatina e decididamente do Estado brasileiro o imperativo do monopólio da força,3 3 WEBER, M. Economie et société. Paris: Plon, 1968. que marcou a tradição política moderna do Ocidente desde o século XVII.
Ao lado disso, promoveu ostensivamente a morte de segmentos da população brasileira com a política genocida realizada durante a recente pandemia de covid-19, opondo-se, assim, às políticas sanitárias e científicas consagradas nacional e internacionalmente no campo da saúde pública, como a vacinação ampla e medicamentos comprovadamente científicos e devidamente testados, o que teve como consequência nefasta a morte de setecentas mil pessoas; em âmbito global, esta foi uma taxa de mortalidade que ficou abaixo apenas daquela norte-americana durante a pandemia, onde o presidente Trump adotou igualmente práticas anticientíficas similares, com as consequências igualmente genocidas conhecidas de todos.
Além disso, o projeto político em questão ameaçou de forma também genocida a existência dos povos originários, assim como as pautas ecológicas que orientaram as políticas brasileiras do meio ambiente há muitas décadas, em consonância até então com a comunidade internacional.
Neste contexto político e social brasileiro, repressivo e retrógado ao mesmo tempo, ocorreu o incremento ostensivo da violência contra as mulheres, inclusive do aumento vertiginoso do estupro e do feminicídio, assim como da morte violenta das populações de transexuais e de homossexuais, pela galvanização governamental tanto do machismo estrutural quanto dos arcaicos pressupostos sociais e morais da tradição de patriarcado.
Evidentemente, este conjunto de práticas políticas e de discursos ideológicos conexos no registro dos costumes se empreendeu em conjunção aberta com a aliança estabelecida pelo Estado brasileiro com as religiões neopentecostais - as quais apoiarem Bolsonaro desde a sua eleição -, de forma a delinear perigosamente um horizonte futuro de ordem teológico-política para o Estado brasileiro, de características marcadamente pré-modernas.
Em consequência, Bolsonaro se autoriza, assim, a enunciar diretamente e sem pestanejar, no confronto político das forças políticas da extrema direita com as forças progressistas, democráticas e de esquerda no Brasil, que se trata efetivamente da luta apocalíptica sempre recomeçada do Bem contra o Mal, com a finalidade de purificação definitiva e absoluta da sociedade brasileira do Mal “comunista” que lhe perpassa já há muito tempo.
Enfim, a precarização social e a miserabilidade brasileiras se intensificaram vertiginosamente e de forma exponencial, com o projeto político-econômico estabelecido literalmente no governo Bolsonaro e sem contrapartidas de proteção para as classes populares, de forma que a resultante maior da totalidade deste processo foi o retorno escandaloso do Brasil para o mapa de fome da ONU, de onde tinha sido excluído no tempo do primeiro governo Lula na Presidência da República.
Ao lado disso, as reformas da previdência e das relações de trabalho norteadas pelo Estado brasileiro não encontraram resistência e oposição significativas na sociedade civil e na sociedade política, contrariamente ao que acontece hoje na sociedade francesa nas manifestações públicas contra projeto previdenciário promovido pela presidência francesa, ao qual se opõe a grande maioria da população daquele país, segundo as pesquisas recentes de opinião pública.
Isto vem evidenciar, então, de forma ostensiva a passividade estabelecida na sociedade brasileira, com a violência instituída nas práticas e na retórica política de Bolsonaro desde o início do novo governo em 2018, que se norteava assim de maneira sistemática pelos estímulos de ódio aos opositores e que se traduzia pala instalação do gabinete do ódio nas dependências e no coração do poder executivo, no Palácio do Planalto.
Portanto, a nossa questão fundamental neste ensaio é a indagação do porquê o Brasil, como país e sociedade, optou pelo retorno de um regime político de extrema direita em 2018, mesmo que Bolsonaro tenha sido posteriormente derrotado em 2022 por Lula na eleição presidencial. Afinal, a presença do discurso da extrema direita permeia ainda estruturalmente a sociedade brasileira na atualidade, se destacarmos o alto nível de eleitores que Bolsonaro teve ao seu lado durante a última eleição, assim como a representação parlamentar de extrema direita política que foi eleita na última eleição, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado.
Portanto, é fundamental interpretar devidamente o que ocorre ainda na sociedade brasileira na sua relação com a extrema direita nos registros político e ideológico, para que não ocorra no futuro a repetição do retorno da política de extrema direita em um pleito presidencial, como ocorreu catastroficamente em 2018.
Enfim, foi para responder e problematizar tal impasse que este ensaio foi então desenvolvido nas suas formulações fundamentais e argumentos apresentados, buscando problematizar, assim, no campo específico da sociedade brasileira, a formulação tardia enunciada por Lacan, que surpreendeu então a todos no campo psicanalítico francês e internacional, de que o inconsciente é a política.
3 Tortura e melancolia na brasilidade
Assim, para delinear devidamente de forma inicial o campo histórico e social onde esta questão se constituiu - para apreender em seguida as condições concretas de possibilidade para o retorno do discurso político da extrema direita no Brasil, trinta (30) anos após o término da ditadura militar -, é preciso enunciar que infelizmente o Brasil não saiu dos tempos de chumbo da ditadura militar da mesma maneira que alguns países vizinhos da América do Sul, como foi o caso da Argentina e do Uruguai, onde a justiça foi efetivamente realizada contra as políticas fascistas de Estado realizadas nos anos da ditadura militar.
Com efeito, na Argentina, ocorreu a punição exemplar dos assassinos e torturadores da época da ditatura, inclusive do alto escalão das forças armadas e do poder político do país, assim como aconteceu de forma similar no Uruguai, a partir de processos judiciários seriamente conduzidos. Bem posteriormente no século XXI, de forma conexa, o Chile está tentando fazer igualmente o mesmo nos tempos recentes, procurando enterrar definitivamente assim a Constituição oriunda dos nefastos tempos ditatoriais de Pinochet, que provocou tantos males na sociedade chilena, devidamente evidenciados e colocados em questão pelas rebeliões populares que antecederam e conduziram para os resultados progressistas das últimas eleições.
Porém, o mínimo que se pode dizer é que, no Brasil, infelizmente não foi bem assim que as coisas aconteceram. Longe disso, pois a conciliação geral entre os oponentes radicais da esquerda e da direita foi a tônica fundamental que direcionou e regulou a saída brasileira do processo ditatorial.
Com efeito, no Brasil, foi instituído um grande acordo político norteado pelo imperativo da anistia ampla, geral e irrestrita que formalmente seria voltada para os dois polos do espectro político, mas que efetivamente protegeu apenas os torturadores (policiais e militares) às expensas dos torturados e perseguidos pelo regime militar, pois os ativistas políticos foram anteriormente castigados e punidos pela violência ilegítima do Estado (ditatorial), sob as diversas formas da morte, de mutilações físicas, de exílio, dos suicídios e da ampla e radical destruição de famílias.
Além disso, mesmo que posteriormente diversos presos e exilados políticos tiveram reparações financeiras pelo que sofreram e perderam pelo regime ditatorial, promovidas pelos governos democráticos posteriores, os torturadores não foram efetivamente nem julgados nem devidamente punidos pelos seus atos, ficando então impunes.
É preciso evocar ainda que, ao lado disso, a Comissão da Verdade, estabelecida institucionalmente pelo governo de Dilma Roussef, foi marcada nas suas audiências públicas por impasses fundamentais, pois os torturadores, quando compareceram às audiências, ficaram frequentemente em silêncio, ou mesmo se ausentavam. De qualquer forma, a instalação oficial da dita comissão, que indiretamente batia de frente com os imperativos fixados no processo estabelecido de conciliação nacional da anistia ampla, geral e irrestrita, acabou por romper progressivamente os alicerces do governo em questão, conduzindo posteriormente ao impeachment da presidente Roussef, dentre outras razões.
Esta desestabilização grave produzida no processo democrático brasileiro, que implicou efetivamente em um golpe (branco) parlamentar de Estado, sem a participação, é claro, de militares, acabou conduzindo posteriormente a eleição de Bolsonaro em 2018, de forma funesta e inesperada.
É preciso reconhecer, no entanto, que a eleição de Bolsonaro em seguida com o discurso político e ideológico de extrema direita foi a consequência inequívoca da quebra do pacto democrático, que acabou por levar a perda de mandato de Dilma Roussef do posto da Presidência do Brasil.
Portanto, no Brasil, a justiça não foi efetivamente feita, é o mínimo que se pode enunciar, pois os múltiplos crimes realizados pela ditadura militar foram acobertados em conjunto, pelo poder político e pelo Estado brasileiro, de maneira que a sociedade brasileira desde então passou assim a funcionar com estes cadáveres e esqueletos no armário. Não obstante isso, tais cadáveres e esqueletos exalavam odores fedidos que passaram a contaminar e asfixiar o espaço social brasileiro.
Vale dizer, tais cadáveres e esqueletos não foram então efetivamente enterrados, ficando assim na condição de mortos vivos e mortos sem sepultura, parodiando o título de uma peça de teatro de Sartre do pós-guerra,4 4 SARTRE, J. P. Mortes sem sepultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. de forma que não foram realizados em relação a eles nem os devidos rituais funerários, nem tampouco o que Freud denominou no registro psíquico de trabalho de luto.5 5 FREUD. S. Deuil et mélancolie (1917). In: FREUD, S. Métapsychologie. Paris: Payot, 1970. Enfim, tais mortos sem sepultura ficaram assim: como mortos sem sepultura, revirando-se eternamente nos seus túmulos.
Em consequência da totalidade deste processo em pauta, se o trabalho de luto não foi assim devidamente realizado pela sociedade brasileira, uma marca melancólica começa a se disseminar no imaginário brasileiro6 6 Idem. , de forma que uma melancolia também ampla, geral e irrestrita começou a se difundir desde então nas relações e laços sociais existentes na sociedade brasileira.
Enfim, consideramos que todos nós estamos enlutados, pois os nossos mortos não foram efetivamente enterrados, retirando brutalmente deles o respeito como humanos e não lhes reconhecendo assim a sua dignidade de ordem propriamente ética.
Porém, é preciso enunciar que isso não é ainda tudo, pois, associada à melancolia estrutural em questão, dissemina-se também de forma conexa a violência mortífera, que também de maneira ampla, geral e irrestrita se disseminou perigosamente estruturalmente desde então na sociedade brasileira como um rastilho de pólvora sempre prestes a explodir, como veremos em seguida.
4 Morte recusada e violência
Assim, como dissemos, os torturadores foram devidamente protegidos, permanecendo então nas instituições policiais e militares como funcionários públicos regulares, como se nada tivesse ocorrido de trágico na sociedade brasileira nos tempos da ditadura militar. Ao lado disso, parcela dos policiais passou também a constituir empresas de Segurança Pública, inicialmente nos bairros das elites brasileiras nas grandes cidades do país.
Foi neste contexto social e político pós-ditatorial que se iniciou o processo de privatização da Segurança Pública no Brasil, onde policiais oriundos dos porões da ditadura estariam na vanguarda de tais iniciativas. Começaram assim a se constituir milícias, de forma que os milicianos que se disseminaram desde então na sociedade brasileira são oriundos do aparato policial, como se sabe.
Com a privatização da Segurança Pública, nossas residências passaram a ser gradeadas e cerceadas, de forma que, desde então, nossas casas e prédios passaram a ser similares às prisões, reguladas por milicianos (policiais) com suas empresas de segurança, nos diferentes bairros das elites nas grandes cidades brasileiras.
Todo este processo foi reiterado em atos norteados pelo pressuposto de que a criminalidade e a violência urbanas estariam então em alta e que seria preciso assim atacá-las de forma frontal. Com efeito, foi ainda neste mesmo contexto histórico que se constituiu, no Brasil, a palavra de ordem de que “bandido bom é bandido morto”, ou, então, o aforisma de que “para os inimigos devemos aplicar literalmente a força da lei, mas, para os amigos, em contrapartida, todas as regalias seriam possíveis”.
Ao lado disso, os policiais (milicianos) passaram também a ocupar as favelas e as comunidades da periferia das grandes cidades, com a intenção de perseguir os traficantes de drogas. Porém, o que realizaram ao lado disso, como se sabe, foi explorar todos os serviços das classes populares, cobrando propinas aos usurários de forma ostensiva. Enfim, os milicianos passaram também a se associar aos traficantes de drogas, constituindo-se assim grupos de narcomilicianos nas favelas e comunidades das grandes cidades brasileiras.
Em consequência, as comunidades e favelas passaram a ser objeto permanente e privilegiado de invasões policiais sistemáticas, com o intuito deliberado de prender traficantes e gangues, mas que resultaram como se sabe em grandes carnificinas para as classes populares. Neste contexto, moradores comuns, mulheres, idosos e crianças são mortalmente alvejados por esta ação deliberada da violência contra as classes populares e perdem as suas vidas. É como se ser pobre e favelado no Brasil colocasse o indivíduo em uma posição social de periculosidade, de maneira que a sua condição de cidadania entra em estado de suspensão, no qual a sua morte e extermínio ficam assim autorizados pela autoridade do Estado.
Desde então, aumentou enormemente no Brasil a violência e a morte contra as populações pobres e negros, assim como a violência e a morte contra as mulheres, homossexuais e transexuais. Todos esses ataques e dizimações se inscreveram na cartografia brasileira com a disseminação dos milicianos, não resta qualquer dívida, mas este processo se incrementou de forma vertiginosa durante o governo Bolsonaro, pois se incentivou este tipo de violência urbana ao extremo, até mesmo pela autorização para matar propagandeada pelo Estado brasileiro, com a liberação para matar e poder usufruir de porte de armas.
Podemos enunciar e reconhecer, assim, que esse incremento e disseminação da violência urbana na sociedade brasileira, norteada que é pelo Estado brasileiro e pelos policiais autorizados a matar, é de forma inequívoca a consequência e o efeito das mortes realizadas e não efetivamente reconhecida e assumidas nos tempos de chumbo da ditadura militar.
Com efeito, o Brasil criou assim uma dívida para com os mortos que não foram reconhecidos e que não foram acolhidos pela demanda por justiça pelos crimes realizados pela ditadura, de forma que se a dita dívida é sistematicamente recusada (Freud) 7 7 FREUD, S. Le fetichisme (1927). In: FREUD, S. La vie sexuelle. Paris: PUF, 1972. e mesmo foracluída (Lacan)8 8 LACAN, J. Les psychoses. Paris: Seuil, 1990. ; ela retorna, assim, devidamente em contrapartida de forma indireta, pela culpa persecutória e pela violência disseminada no espaço social.
5 Repetição, tragédia e farsa
Assim, para interpretar devidamente a dívida em questão, é preciso evocar a célebre formulação de Marx na obra intitulada O 18 de Brumário de Luís Bonaparte9 9 MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. , na qual o autor enunciou, de forma elegante e cortante ao mesmo tempo, uma leitura original da história, marcada fundamentalmente pela repetição, na qual se opõem especificamente em tal repetição os registros da tragédia e da farsa, respectivamente.
Nesta perspectiva, segundo Marx, a história acontece inicialmente como tragédia e se apresenta posteriormente como farsa, de forma inesperada. Com efeito, se a revolução francesa e as guerras napoleônicas se modularam pelos tempos do trágico, em contrapartida, o populismo de Luís Bonaparte se inscreveria efetivamente no registro da farsa.
Da mesma forma, se a ditadura militar brasileira foi um acontecimento de ordem trágica, pelas destruições que promoveu e pelo solapamento dos direitos humanos, em contrapartida, o retorno do populismo político de extrema direita com Bolsonaro seria um evento da ordem da farsa. Com efeito, em relação a isso não podemos nos esquecer de que Bolsonaro é um representante dos porões da ditadura militar, sendo isso o que foi reproduzido como farsa com as ameaças constantes de golpe militar enunciadas repetidamente por Bolsonaro, que nos torturou a todos durante as suas falas diárias contra a democracia.
6 Dívidas, inconsciente e política
Porém, a dívida brasileira em relação aos mortos na ditadura militar brasileira é a ponta do iceberg de outras dívidas fundamentais que perpassam estruturalmente a sociedade brasileira, quais sejam a extensão e incremento vertiginoso da miséria nas classes populares, assim como o usufruto gozoso da riqueza e de benesses das elites e das classes médias altas, assim como o racismo estrutural, no qual os negros são tratados como cidadãos de segunda categoria em relação às populações brancas. Sem esquecer, é claro, do machismo estrutural brasileiro, que destaca as marcas ostensivas do patriarcalismo no Brasil e expõe as mulheres frequentemente ao estupro, ao assédio e ao feminicídio, e as inscreve no inconsciente no Brasil, de forma que a violência disseminada e permanente existente na sociedade brasileira seria o signo ostensivo de tais dívidas presentes no inconsciente brasileiro.
Enfim, podemos assim enunciar afirmativamente que, pela via das diferentes modalidades recenseadas de dívidas na sociedade brasileira, que o inconsciente é a política no Brasil.
REFERÊNCIAS
- DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux, Capitalisme et schizophrenie 2. Paris: Minuit, 1980.
- FOUCAULT, M. Dits et écrits Volume IV. Paris: Gallimard, 1994.
- FREUD. S. Deuil et mélancolie (1917). In: FREUD, S. Métapsychologie Paris: Payot, 1970.
- FREUD, S. Le fetichisme (1927). In: FREUD, S. La vie sexuelle Paris: PUF, 1972.
- LACAN, J. Les psychoses Paris: Seuil, 1990.
- MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte São Paulo: Boitempo, 2011.
- SARTRE, J. P. Mortes sem sepultura Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
- WEBER, M. Economie et société Paris: Plon, 1968.
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Conferência inaugural realizada no Colóquio Internacional Distopias e clínica do social, realizada na Universidade Federal Fluminense de 8 a 10 de maio de 2023.
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1
FOUCAULT, M. Dits et écrits. Volume IV. Paris: Gallimard, 1994.
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2
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux, Capitalisme et schizophrenie 2. Paris: Minuit, 1980.
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3
WEBER, M. Economie et société. Paris: Plon, 1968.
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4
SARTRE, J. P. Mortes sem sepultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
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5
FREUD. S. Deuil et mélancolie (1917). In: FREUD, S. Métapsychologie. Paris: Payot, 1970.
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6
Idem.
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7
FREUD, S. Le fetichisme (1927). In: FREUD, S. La vie sexuelle. Paris: PUF, 1972.
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8
LACAN, J. Les psychoses. Paris: Seuil, 1990.
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9
MARX, KMARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
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Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
20 Maio 2023 -
Aceito
20 Maio 2023