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Começa tudo outra vez...

Again and again...

Resumos

O presente ensaio descreve três experiênciasclínicas do grupo Balint do Hospital das Clínicas da UFPE e do Hospital Barão de Lucena, onde os pacientes apresentam comprometimento corporal gravíssimo, expressando dor e incompetentes para expressar o sofrimento. Os autores relatam as dificuldades transferenciais destes pacientes e tentam articular sua estrutura com a estrutura melancólica.

Grupo Balint; transferência; relação médico-paciente; morte; segredo


The present report describes three clinical experiences inside the Balint group of two hospitals: Hospital das Clínicas (UFPE) and Barão de Lucenas's Hospital, where patients had very serious illnesses, expressing pain and unable to express suffering. The authors report the difficulties with these patients' management of transference and try to articulate their psychic structure with melancholic structure.

Balint group; transference; patient-doctor relationship; death; secret


ARTIGOS

Começa tudo outra vez...

Again and again...

Gilda KelnerI, Norma FilgueiraII, Suzana BoxwellIII, Marcelo BouwmanIV

IProfessora adjunta do Departamento de Medicina Clínica da UFPE; mestre em medicina clínica pela UFPE; médica, psicanalista, coordenadora de Grupos Balint

IIProfessora assistente do Departamento de Medicina Clínica da UFPE;preceptora da residência de clínica médica do Hospital das Clínicas da UFPE; Mestre em medicina interna pela UFPE

IIIPsiquiatra, psicanalista; preceptora de estagiários e residentes do Hospital Barão de Lucena; chefe do Serviço de Saúde Mental do Hospital Barão de Lucena; coordenadora do Grupo Balint Júnior

IVMédico, psicanalista; preceptor de estagiários e residentes do Hospital Barão de Lucena; coordenador do Grupo Balint Júnior

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Gilda Kelner Av. Beira Rio, 660/1201 Madalena 50610-100 Recife PE gildakelner@uol.com.br

RESUMO

O presente ensaio descreve três experiênciasclínicas do grupo Balint do Hospital das Clínicas da UFPE e do Hospital Barão de Lucena, onde os pacientes apresentam comprometimento corporal gravíssimo, expressando dor e incompetentes para expressar o sofrimento. Os autores relatam as dificuldades transferenciais destes pacientes e tentam articular sua estrutura com a estrutura melancólica.

Palavras-chave: Grupo Balint, transferência, relação médico-paciente, morte, segredo.

ABSTRACT

The present report describes three clinical experiences inside the Balint group of two hospitals: Hospital das Clínicas (UFPE) and Barão de Lucenas's Hospital, where patients had very serious illnesses, expressing pain and unable to express suffering. The authors report the difficulties with these patients' management of transference and try to articulate their psychic structure with melancholic structure.

Keywords: Balint group, transference, patient-doctor relationship, death, secret.

Freud (1912/1976) introduziu a noção de transferência a partir de seus estu-dos sobre o inconsciente. Antes dele, Breuer (1893/1976) já sofrera os efeitos do fenômeno da transferência, principalmente no tratamento de Anna O, tendo sido obrigado a interrompê-lo. Radmilla Zygouris (2003), em livro recente, faz uma distinção entre a transferência e algo mais da esfera dos sentires indizíveis, um vínculo inédito.

A partir da leitura do mencionado estudo recente, passamos a refletir sobre outros tantos vínculos, talvez não tão inéditos, mas raros.

Depois de coordenar grupos Balint durante 17 anos, um deles com uma das participantes trabalhando conosco desde o início, pretendemos desenhar uma trajetória desses vínculos. São indivíduos que trazem as falas de terceiros para o grupo, submetendo-as às escutas de outros envolvidos, quando são transformadas, clareadas ou obscurecidas, tornadas mais dias ou mais sombras das noites, 'retaguardadas' pelo hospital, perpassadas continuamente pela doença e pela morte. E, ainda, pela possibilidade ou impossibilidade de mediação, de comunicação, de partilha subjetiva. As falas vão e voltam e, naturalmente, quando voltam já não são mais as mesmas.

Como já descrevemos em trabalho anterior (KELNER 2003), a relação médico-paciente é diferente de qualquer outro tipo de relação profissional ou interpessoal. Duas pessoas se encontram — o móvel é a doença. Se se pudesse pensar de forma simplista: sofrimento para um, profissão para o outro. Na maioria das vezes, não pode nem haver escolha... É o médico que está de plantão, é o médico que tem o convênio, etc. É também o paciente que chega para buscar atendimento, sem haver escolha da parte do médico. Uma relação desigual quanto às necessidades. Um precisa de cuidados e o outro precisa de reconhecimento e de fundos para a sobrevivência.

O estudo prático e continuado da relação médico-paciente, dentro de um contexto médico-institucional específico, é um dos objetivos do funcionamento de um grupo Balint no hospital geral.

Há 50 anos, Michael Balint, psicanalista húngaro, iniciou seus primeiros trabalhos com grupos de médicos, na Inglaterra, sendo seu propósito ajudá-los a adquirirem maior sensibilidade diante do processo que se desenvolve, consciente ou inconscientemente, na mente do paciente, quando médico e paciente estão juntos, provocando uma limitada, porém considerável mudança da personalidade do médico. Esta mudança deve permitir ao médico sobretudo poder "escutar" seu paciente e compreendê-lo em consonância com essa distinta forma de escutá-lo.

Este médico criou os hoje famosos e difundidos grupos Balint, coordenados por ele, médico e psicanalista, e composto por não mais que dez médicos, trabalhando num enquadre e numa sistematização rigorosos. Um médico relatava seu caso clínico, não se restringindo à doença propriamente dita, mas procurando contar a "história clínica" vivida pelo par médico/paciente, a história de vida do paciente, sua inserção na própria doença, na instituição hospitalar, na família, na sociedade, no trabalho, etc. Depois de terminado o relato, sem interrupção, Balint estimulava que cada membro do grupo relatasse o que achava do(s) sentimento(s) que se passaria(m) entre o paciente relatado e o seu médico (a transferência) e do(s) sentimento(s) que se desenvolvera(m) do médico para seu paciente (contratransferência). Cada médico falava, um a um, e, no final, o coordenador tentava articular uma reflexão levando em conta o relato inicial, os comentários de outros componentes do grupo, a inserção de tudo aquilo no hospital, a interlocução positiva ou negativa com outros setores do hospital e o significado de tudo aquilo para aquele paciente, para aquele médico e para as situações por eles vividas.Exige-se o sigilo absoluto sobre tudo o que se ouve no grupo Balint.

Duas foram primordialmente as metas buscadas por Balint ao estudar a relação médico-paciente dentro dos grupos: 1) Buscar um enriquecimento da prática médica, devido à ampliação diagnóstica decorrente da semiologia do "saber escutar". 2) Introduzir a noção de ação terapêutica da "droga-médico"; uma vez que o médico sempre se prescreve ao seu paciente, é necessário conhecer melhor sua posologia, sua toxicidade, seus efeitos colaterais (BALINT, 1957/1984).

Michaël Balint deu à medicina a possibilidade de se renovar, ampliando a teoria analítica e as possibilidades de trabalho do analista. Dessa maneira, de modo algum desconsiderou a distância necessária entre a psicanálise e a medicina. O médico pode mudar ininterruptamente sem deixar de ser médico, o psicanalista pode trabalhar de modos diferentes sem deixar de ser analista, sem perder sua especificidade — sua função de desvelar os efeitos do inconsciente (MISSENARD, 1982/1994).

Desde 1950, os médicos se reúnem em grupos Balint pelo mundo afora, coordenados por um psicanalista médico, ouvindo um colega apresentar o caso de um paciente e podendo pensar nas relações que perpassam este par médico-paciente, interagindo entre si e com a doença, com o hospital, com a sociedade em geral e com o mundo contemporâneo. A compreensão destas relações favorece um melhor desempenho de ambos no que diz respeito à doença, à profissão e à própria vida.

Jovens médicos, cujos nomes designamos como Esculápio, Arquimedes ou outros, se deparam com pacientes gravíssimos, com as dificuldades dos hospitais públicos, com a morte, com os erros médicos, com os abusos das empresas seguradoras de saúde, com os donos de alguns hospitais que só visam ao lucro, com a miséria humana, com o desamparo, com a injustiça, com a insensatez... não é fácil (KELNER, 1999a, 1999b, 1999c, 1999d). Há 17 anos os grupos Balint do Hospital das Clínicas da UFPE e do Hospital Barão de Lucena pretendem ajudá-los nesta dura tarefa.

Imaginem uma mulher que foi acompanhada por nós desde seu atendimento de emergência, com infecção urinária e, sob leve suspeita de icterícia, não confirmada, foi indicada a uma investigação cuidadosa da função hepática, que resultou num diagnóstico de hepatite C, que evoluiu para uma cirrose hepática, que evoluiu para um hepatocarcinoma, enfrentou a lista de espera, dolorosa e cruel, e chegou a fazer um transplante hepático bem sucedido. Vivemos com a história desta jovem senhora durante quatro anos, talvez tenhamos contribuído para algumas condutas de seu tratamento sem que ela nunca suspeitasse de nossa existência. Não estamos presentes mas existimos, compomos a cena... nos bastidores? Somos, por acaso, fantasmas?

"já não temo fantasmas

invoco a todos

que venham em bando

povoar meus dias

atormentar minhas noites

entre tantos

loucos e livres

existe um

que é doce

e que me falta."

(RUIZ, "Fantasmas")

Com a continuidade da vida e do trabalho, vamos perdendo o medo dos fantasmas e até querendo que os meigos nos acompanhem e nos componham.

Fantasma implica, na linguagem comum, na volta de um morto. Quantos mortos carregamos? Quantas mortes morremos? Quantas agüentamos?

"Em cada morto que morreu morri.

Em cada voz que se calou, calei.

E tantas vezes já me despedi,

De tanto ver morrer tanto morri

Que, a morrer, já me habituei."

(HORTAS, 1985, p. 23)

Quantos de nossos duplos não são fantasmas? Pelos quais sentimos piedade, repulsa, simpatia, ódio, medo? Entrar num desses fantasmas é o equivalente a entrar em nós mesmos e, uma vez dentro, não saberemos ir a nenhum outro lugar.

Muitos escritores nos fazem pensar que ninguém se livra de seu duplo, de sua sombra, de seu outro eu.

De repente, voltando aos componentes dos grupos, nós somos um e somos muitos, tanto somos alguns pacientes como alguns dos participantes dos grupos, quanto as inúmeras misturas, nem sempre identificadas.

Algo se sente além das palavras. Tentamos nos desviar dos pensamentos mas eles nos perseguem.

Ao relermos nossas anotações, nos perguntamos o quanto são nossas. Quanto tem de cada um em tudo aquilo? O grupo somos todos, a coordenadora, os coordenandos, os pacientes, o hospital, as histórias repassadas e o espaço potencial de criação e elaboração. Sabemos do início, do ponto de partida, mas não temos controle daí por diante. Tomamos muito cuidado, mas sabemos que isso não é tudo. Fernando Pessoa nos remete a uma inquietante questão: "Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?"(PESSOA, 1997, p.123-130).

No fundo, é mais fácil pensar que estamos escutando uma outra pessoa ou que o relator está misturado com seu paciente do que no fato de que estamos todos no mesmo barco, em silêncio. Por trás deste nobre silêncio, muitos outros se denunciam.

No entanto, existe também um amplo espaço de reflexão, no qual nos distanciamos, nos separamos e nos interpretamos. E começa tudo outra vez...

Que dizer de um jovem paciente que chegou à emergência do hospital com quadro de astenia, vindo de outro Estado, por ocasião das férias, e o médico, Esculápio, suspeitou que algo mais grave estivesse por trás da simples presunção de uma virose, um surto epidêmico?

Esculápio, professor de Hipócrates, que os gregos chamavam de Asclépio, foi o patrono dos médicos. Ele teve muito prestígio no mundo antigo, quando seus santuários converteram-se em sanatórios. Homero o apresenta na Ilíada como um hábil médico e Hesíodo e Píndaro descrevem como Zeus o fulminou com um raio, por pretender igualar-se aos deuses e tornar os homens imortais. Com o tempo, passou a ser considerado um deus, filho de Apolo e da mortal Coronis, com o poder de curar os enfermos (BRANDÃO, 1992). Esculápio usava o princípio, até hoje atual, de que a cura total do corpo só se fazia através da cura da mente. Só haveria cura com "metanóia", ou seja, a transformação dos sentimentos (idem, 1993).

O garoto tinha 24 anos, 24 anos não vividos, por isso um garoto, era técnico em informática, foi o produto da primeira gestação (de cinco) de sua mãe. Os outros quatro conceptos foram abortados. Mãe produtora de mortes?

A investigação revelou o indesejável, era portador de um hepatocarcinoma com metástases generalizadas, sem perspectivas terapêuticas e sem poder escutar o diagnóstico. Mesmo depois de várias sessões de quimioterapia, só o que perguntava era quando poderia voltar ao Amazonas, onde muitas tarefas interrompidas pelas férias deveriam ser retomadas. Não podia ouvir nada sobre diagnóstico, prognóstico, futuro.

O futuro para ele era afunilado, voltar a viver sua vida rotineira e retomar as tarefas interrompidas. Para algumas pessoas, como o garoto, não há possibilidade de se tomar consciência da transitoriedade da vida, o futuro não pode ser imaginado, só o apego aos gestos faz o tempo passar. Marcar passo é o mesmo que avançar. Era, para ele, inteiramente impossível fantasiar identidades, criar personagens, representar mais que um papel na vida. O futuro era apenas um imenso vazio, como bem descreve Saramago:

"Cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que damos o nome de futuro... talvez a idéia correta seja a de que o futuro é somente um imenso vazio, a de que o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta." (SARAMAGO, 2002, p. 210)

Não há propriamente traumas a recordar, que evocassem o medo, apenas o vazio, o que deveria acontecer e não aconteceu, o que deveria ter sido significado e ressignificado... Fica-se com a impressão de que seu destino o ultrapassa. E que nunca o espelho refletiu um rosto que fosse seu.

O paciente parece falar para ignorar o médico. Em todas as tentativas de explicação, ele entende algo diferente do que é dito e retoma seu automatismo discursivo. Julia Kristeva (2002) se pergunta onde está a alma destas pessoas, ou se elas perderam a alma.

Há que salientar a semelhança deste discurso com o discurso melancólico, um discurso meramente formal, em que não se percebe fantasma nem representação. Para o paciente, a verdade verdadeira está lá escancarada, ele não deixa brechas interpretativas ou explicativas para seu médico. A única coisa a perseguir é a volta ao trabalho, às tarefas interrompidas.

Se Esculápio pudesse pensar nos estudos de Lambotte (1997), lhe pareceria que as palavras que ele dirigia ao garoto o atravessassem, se perdessem em direção a um alvo atrás dele, como se o garoto fosse uma moldura vazia. No seu solipsismo, o garoto não interage, não escuta, não compreende; não está ali, talvez esteja no seu "exílio melancólico".

Realidade plana dos melancólicos, o sentimento de que nada dito ou feito fizesse qualquer diferença. Não há movimentos de assimilação e expulsão, parece que, neste paciente, há um sentimento de existência, mas sem os pólos de atribuição, como Lambotte1 1 A questão do atestado de existência que o melancólico recebe na figura da moldura vazia que Lambotte trabalha no seu livro, não viria atrelada a uma designação de atributos. Essa questão foi levantada no 1º Encontro de Itatiaia, realizado em março de 2003. salientou.

Esculápio se desespera. De repente, some sua percepção, sua própria presença. É como se falasse para ninguém, reeditando uma dinâmica do passado. Para ocupar este espaço, o médico precisa compreendê-lo minimamente. O grupo Balint favoreceu essa compreensão; preencheu o lugar de um parceiro confiável, que o fez apoderar-se de um saber custoso de ser suportado quando não partilhado. A dinâmica do grupo favorece a atenuação do imenso vazio de Esculápio, não só por dividi-lo com todos, mas também recordando outros casos em que o vazio pressupostamente insuportável tornou-se suportável, e começa tudo outra vez...

A morte ocorreu à noite. Na tarde deste dia, o paciente, muito mal, ainda perguntava a Esculápio quando seria a próxima quimioterapia... a próxima repetição.

E a mãe dele, ao ser confirmado o óbito, aos gritos, surpresa, sofreu algo inesperado, que ela não admitia, negava... chorou convulsivamente, todo o hospital participou de seu pranto. Houve necessidade de sedá-la para prosseguir com o desconhecido ritual do luto. A morte teria que ser encarada, não dava para fazer de conta que não existiria ou estaria colocada no futuro.

Parecia a Esculápio que ele era desalojado, desligado dos acontecimentos. Desalojado enquanto pessoa e enquanto função. Situações anteriores, pacientes semelhantes, quase o enlouqueceram também. E era como se, não situando o pré-morto em seu lugar, o médico tivesse que morrer, fosse carregar mais este fantasma que não aceitava a morte.

Freud mostrou claramente a função do luto: "O luto tem uma missão psíquica definida, que consiste em estabelecer uma separação entre, de um lado, os mortos, e de outro, as lembranças e as esperanças dos sobreviventes" (FREUD,1913/1976, p.87).

É como se Esculápio chegasse para acolher e ajudar a sustentar a situação e fosse sentido como intrusivo e como responsável pela ruptura da única defesa possível, a rotina, a repetição.

O encontro com o outro, para o paciente, o encontro da alteridade, o momento da passividade mais passiva, segundo Figueiredo (1999), é o tempo da instituição/destituição do "eu-mesmo", tempo irrecuperável (imemorial) porque tempo pré-histórico, tempo fora do tempo, tempo atemporal, tempo da angústia mais radical e originária, todavia, indispensável na instauração da subjetividade do homem e que desde então nela reside como sua condição de possibilidade e de impossibilidade.

Como bem disse Birman (2003), a subjetividade atual não consegue mais transformar dor em sofrimento, estando aqui sua marca diferencial e inconfundível. Ele chama a atenção de que "a dor é uma experiência em que a subjetividade se fecha sobre si própria, não existindo qualquer lugar para o outro no seu mal-estar... é uma experiência marcadamente solipsista, restringindo-se o indivíduo a si mesmo, não revelando este então qualquer dimensão alteritária... portanto a subjetividade contemporânea se evidencia como essencialmente narcísica, não se abrindo para o outro, de forma a poder dirigir para este um apelo."

Não é o sofrimento do jovem que se apresenta a Esculápio, é a dor, abstraindo a presença ou atuação do outro, que se torna apenas um espectador excluído, mas obrigado a assumir posições e viver o sofrimento isoladamente, sem parceiros ou aliados. "Não me compreendo nem no que, compreendendo, faço"(PESSOA, 1997, p.123-130), este parecia ser o sentimento de Esculápio trazido a nós e bradando por partilha.

Na verdade, quando Esculápio foi pedir à mãe do jovem para investigar sua função hepática, ela se esquivou, tanto quanto o próprio paciente, com relação ao diagnóstico. É que um paciente tão jovem com hepatocarcinoma poderia ter sido infectado pelo vírus da hepatite B in utero, e a mãe, solicitada a fornecer material para esta investigação, o sangue, ficasse apavorada com a possibilidade de se descobrir que ele não era filho de seu pai e sim de seu tio, amante da mãe. Segredo que ela carregou durante todos estes anos, mesmo depois da morte do tio.

Como se desfazer deste crime que tem o peso da realidade? Esculápio carregará mais este segredo para o túmulo. O "crime", sob a roupagem de enigma, de mistério, de dor impossível de ser vivida, é transferido a Esculápio. As palavras dele, se não pudessem vir a nós, este outro espaço, seriam enterradas vivas. Para o paciente, como para Hamlet, "palavras, palavras, palavras" (SHAKESPEARE,1601/2001, p.48), as palavras seriam podres até os recônditos. As palavras só lhe serviriam para expressar o que já estivesse morto no coração, restava-lhe o silêncio; falar seria perturbação, inquietação, tormento, para si próprio e para terceiros. Ele também não pode "incriminar" a mãe. A doença fez com que o garoto passasse a representar algo, ele que ficou congelado durante 24 anos, representação esta feita à sua revelia.

Nós nos perguntávamos o quanto a negação do paciente, até sua morte, nove meses depois, sempre solicitando o prazo para voltar a trabalhar, mesmo com uma enorme ascite (barriga d'água), ictérico, quase verde, astênico, apontando todas as causas para suas dores nas costas ("será que dormi de mau jeito?"), será que esta negação teria algo a ver com o segredo de sua mãe? Sentíamos que pudesse ter, mas não tínhamos elementos em que nos embasar... O sentir, os sentires... O que era mesmo que ele precisava retomar? O que já havia sido deixado inacabado e ele não queria repetir? Segundo Deleuze (1968), a repetição não se refere a alguma semelhança ou equivalência, não é acrescentar nenhuma segunda ou terceira vez à primeira, é elevar a primeira à enésima potência. E Garcia-Roza acrescenta: "É pelas máscaras que a repetição se constitui, isto é, como disfarce. As máscaras, porém, não encobrem senão outras máscaras..." (GARCIA-ROZA, 1986, p. 44).

O sofrimento de Esculápio foi indescritível, com ímpetos de dizer da gravidade da situação e absolutamente sem espaço. Estava completamente desalojado. Resgatava seu espaço pela Ciência e por nosso intermédio, seu grupo de partilha e reflexão.

Esta angústia era a angústia de morte... a angústia do desejo do outro... O que o garoto quer de mim, se pudesse, se perguntaria Esculápio. Ou o que ele quer que eu seja que não consigo ser, nem quero, nem posso? Como se este peso não fosse demasiado, o que a mãe quer de Esculápio?

Os relatos sobre o garoto vinham e voltavam, até sua morte, predominando a impossibilidade de viver a pré-morte, mãe e filho "negantes" renitentes, projetando no médico os sentimentos que não poderiam viver.

Uma das preocupações de Balint e dos seus seguidores é a de manter o grupo de pessoas num nível de distância "regulamentar", para evitar misturas. Nossa experiência de 17 anos nos demonstrou o quanto pôde ser ganho, em termos de compreensão, de partilha, de construção, se não estabelecermos a distância como dogma. Existem cuidados, e muitos, não estamos ali como amadores, desvinculados de regras, de leis, da teoria, mas estamos abertos à sabedoria, no sentido que lhe conferiu Barthes, na Aula (1978/1992). O grupo não se sujeitou a um saber dirigido, não atendemos à demanda, institucional ou de pessoas, para nos enquadrarmos no que "eles" acharam que estava estabelecido, na chamada demanda tecnocrática. Procuramos nos desapegar dos estereótipos de coerção, dos cúmulos de sacrifício e limitação das emoções.

Exercendo, todos, e principalmente o coordenador, esta liberdade, nos indagamos se nos agarramos a algo que nos aprisionasse ou, ao contrário, a algo que seduzisse as pessoas a marcharem conosco a nossa marcha. É importante, neste momento, acionar uma fala de Barthes:

"Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística tal como a descreve Kierkegaard, quando define o sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda a palavra, mesmo interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da linguagem..." (BARTHES, 1978/1992, p.16)

Devemos ir atrás deste logro magnífico que permite ouvir a língua, as falas, fora do poder.

No espaço do grupo Balint, com as misturas que instituímos (nossos grupos não agregam apenas médicos), as disputas de poder são vividas claramente. O grupo faz girar os saberes, aprendemos com todos, principalmente com os pacientes, e ensinamos a todos. Não temos nenhum preconceito contra este verbo ensinar. E também com freqüência registramos nossas experiências por escrito (KELNER, 1999).

Parodiando Lacan, o real do grupo não é representável e nós usamos a linguagem para atenuar nossas inquietações, para aprisionar, diferenciar, reduzir, negar estes sentimentos impossíveis de serem relatados, os sentires irrelatáveis, estes vínculos indizíveis, incompletamente compreendidos, diante dos quais as palavras são insuficientes. Nem por isso deixamos de pensar sobre eles, com disciplina, mas também com prazer, com imensurável prazer. E escrever, com tantas linguagens quantos desejos houver.

O escritor é o sujeito de uma prática. Zygouris (2003) se regozija de que os verdadeiros clínicos não esperam que a teoria em curso os autorize a sentir e dar lugar a experiências inéditas.

Por fim, um dos últimos dramas vividos por nós, a partir do relato de um médico psiquiatra, Arquimedes, de fora do grupo, a Esculápio.

Um problema preocupava Hierão, tirano de Siracusa, no século III a.C.: havia encomendado uma coroa de ouro, para homenagear uma divindade, mas suspeitava de que o ourives o enganara, não utilizando ouro maciço em sua confecção. Como descobrir, sem danificar o objeto, se seu interior continha uma parte feita de prata? Só um homem talvez conseguisse resolver a questão: seu amigo Arquimedes, famoso matemático e inventor de vários engenhos mecânicos. Hierão mandou chamá-lo e pediu-lhe uma resposta que pusesse fim à sua dúvida. Arquimedes aceitou a incumbência e pôs-se a procurar a solução para o problema. Esta lhe ocorreu durante o banho. Observou que a quantidade de água que se elevava na banheira, ao submergir, era equivalente ao volume de seu próprio corpo. Ali estava a chave para resolver a questão proposta pelo tirano. No entusiasmo da descoberta, Arquimedes saiu nu pelas ruas, gritando: Eureka! Eureka! ("Achei! Achei!"). Se ele mergulhasse uma quantidade equivalente à coroa em ouro, na banheira, uma determinada quantidade de água se elevaria. Se, ao mergulhar a coroa, a quantidade de água deslocada fosse inferior, teria havido fraude. Este é o fundamento do princípio de Arquimedes (SERRES,1989).

Arquimedes, nosso psiquiatra, estava em tratamento de um linfoma não Hodgkin, numa fase de remissão. Uma de suas pacientes crônicas, cuja filha estuda medicina, soube do diagnóstico de Arquimedes, embora ele tenha tido um cuidado obsessivo em escondê-lo, e exigiu ser informada do prognóstico, pois alegava estar implicada neste enredo. Arquimedes negou a princípio, mas a paciente foi fornecendo argumentos, inclusive de seu tratamento em São Paulo, e ele não pôde prosseguir com a negação, mas ficou literalmente paralisado, sem saber o que fazer. Esculápio pretendeu compreender melhor a questão se fosse analisada em grupo, na sistemática do trabalho.

As opiniões foram as mais variadas, desde reafirmar que o paciente tem o direito de saber o quanto ele precisa preparar-se para o desligamento daquele médico "doente", tanto quanto ele, como do direito do médico à privacidade. Lugares, lugares... Não chegamos a lugar nenhum, mas a questão levantada não foi mais esquecida. Que direito temos nós, psiquiatras e psicanalistas, de "esconder" dos pacientes as nossas doenças, malignas ou não, mas que podem nos roubar a vida, pacientes estes que nos solicitam, muitas vezes, um contrato de permanência, ou, pelo menos de longo prazo? Será que nosso direito à privacidade não limita o direito do paciente neste contrato de risco? Nosso Arquimedes não se pôde desnudar.

Riscos, riscos, riscos... esta é a vida.

Novamente o segredo e Hamlet. Hamlet, uma convergência de opostos, o ser e não ser, aquele que não é, mas é... São inúmeras as pistas enganosas, como destacou Bloom (2000), no labirinto de interpretações de Shakespeare.

O príncipe ouve o espectro do pai, busca desesperadamente a verdade e a vingança. Seria Hamlet a própria consciência de Shakespeare?

Ainda de acordo com Bloom, Hamlet recusa-se a agir precipitadamente. Em parte, sua liberdade consiste em não se antecipar, em não tomar atitudes prematuras.

E o segredo sobre o assassinato do pai o leva à morte. Segredo/morte. Morte/segredo.

Encerramos estas nossas reflexões com Barthes:

"Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível." (1978/1992, p.47)

______., BOUWMAN, M.; FILGUEIRA, N. (2003). "Relação médico-paciente e Grupo Balint", in Condutas em Clínica Médica, 3. ed.. Rio de Janeiro: MEDSI.(no prelo).

RUIZ, A. Fantasmas. Site da Internet:www.insite.com.br/rodrigo/poet/leminski/aruizp.html

Recebido em 1/9/2003. Aprovado em 29/9/2003.

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  • MISSENARD, A.(1982/1994) A experiência Balint: história e atualidade São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • PESSOA, F. (1997) Obra poética Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
  • SARAMAGO, J. (2002) O homem duplicado São Paulo: Companhia das Letras.
  • SERRES, M.(1989) Elementos para uma história das ciências Lisboa: Terramar.
  • SHAKESPEARE, W.(1601/2001) Hamlet Porto Alegre: L&PM.
  • ZYGOURIS, R. (2003) O vínculo inédito . São Paulo: Escuta.
  • Endereço para correspondência

    Gilda Kelner
    Av. Beira Rio, 660/1201 Madalena
    50610-100 Recife PE
  • 1
    A questão do atestado de existência que o melancólico recebe na figura da moldura vazia que Lambotte trabalha no seu livro, não viria atrelada a uma designação de atributos. Essa questão foi levantada no 1º Encontro de Itatiaia, realizado em março de 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      29 Set 2003
    • Recebido
      01 Set 2003
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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