Resumos
Analisa-se a primeira década de produção teórica freudiana, com o intuito de circunscrever a primeira concepção metapsicológica de angústia. A angústia é referida a uma psicopatologia particular, a neurose de angústia, sendo esta tomada como modelo para a primeira teoria sobre a angústia. Discute-se o mecanismo que articula excesso energético e insuficiência de elaboração psíquica, além das ambigüidades na teoria dos representantes psíquicos. O objetivo é mostrar que um contraponto à teoria da representação psíquica pode ser traçado desde as origens da metapsicologia, apontando alguns desdobramentos para investigações posteriores sobre o movimento do pensamento freudiano.
Metapsicologia; neurose de angústia; angústia automática; elaboração psíquica
Freud's first conception of anguish: a critical review. The paper analyses the first decade of Freud's theoretical production in order to define the first metapsychological concept of anguish. Anguish is related to a specific psychopathology, the neurosis of anguish, electing it as a paradigm of that first model. The mechanism that articulates energetic excess and lack of psychic working over is discussed, as well as the ambiguities in the theory of psychic representation theory. The purpose is to show that a counterpoint to the theory of psychic representation can be traced back to the origins of metapsychology, pointing to some unfolding for further investigations on the development of the Freudian thinking.
Metapsychology; anguish neurosis; automatic anguish; psychic working over
ARTIGOS
A primeira concepção freudiana de angústia: uma revisão crítica
Érico Bruno Viana Campos
Psicólogo, mestrando do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Bolsista do CNPq. Rua Professor Teotônio Monteiro de Barros Filho 535/33; Vila Butantã 05360-030 São Paulo SP; Tel. (11) 3719-5284; ericobvcampos@uol.com.br
RESUMO
Analisa-se a primeira década de produção teórica freudiana, com o intuito de circunscrever a primeira concepção metapsicológica de angústia. A angústia é referida a uma psicopatologia particular, a neurose de angústia, sendo esta tomada como modelo para a primeira teoria sobre a angústia. Discute-se o mecanismo que articula excesso energético e insuficiência de elaboração psíquica, além das ambigüidades na teoria dos representantes psíquicos. O objetivo é mostrar que um contraponto à teoria da representação psíquica pode ser traçado desde as origens da metapsicologia, apontando alguns desdobramentos para investigações posteriores sobre o movimento do pensamento freudiano.
Palavras-chave: Metapsicologia, neurose de angústia, angústia automática, elaboração psíquica.
ABSTRACT
Freud's first conception of anguish: a critical review. The paper analyses the first decade of Freud's theoretical production in order to define the first metapsychological concept of anguish. Anguish is related to a specific psychopathology, the neurosis of anguish, electing it as a paradigm of that first model. The mechanism that articulates energetic excess and lack of psychic working over is discussed, as well as the ambiguities in the theory of psychic representation theory. The purpose is to show that a counterpoint to the theory of psychic representation can be traced back to the origins of metapsychology, pointing to some unfolding for further investigations on the development of the Freudian thinking.
Keywords: Metapsychology, anguish neurosis, automatic anguish, psychic working over.
INTRODUÇÃO
O artigo discute os escritos freudianos dos anos 1890 no intuito de esclarecer a noção de angústia que é circunscrita no primeiro esforço de sistematização nosográfica empregado pelo autor, o qual resultará na diferenciação das neuroses atuais, por um lado, e nas neuropsicoses de defesa, por outro. Pretende-se demonstrar que o mecanismo da neurose de angústia constituirá um primeiro modelo de abordagem da angústia, o qual pode ser sintetizado na articulação entre uma angústia inscrita no corpo e a insuficiência de elaboração psíquica. Esse modelo, entretanto, se revela muito incipiente do ponto de vista teórico, deixando ambigüidades no que diz respeito à distinção entre a angústia da neurose de angústia em relação à angústia das neuropsicoses de defesa. Além disso, há ambigüidades concernentes ao próprio mecanismo responsável pela impossibilidade de representação1 psíquica quanto à excitação somática sexual nas neuroses atuais.
A análise dessa questão envolve o esclarecimento da trama conceitual freudiana do período, a qual carece da elaboração sistemática de alguns conceitos fundamentais como os de inconsciente tópico, pulsão e repressão. Esse esforço teórico encontra-se sustentado em uma hipótese energético-representacional para se compreender as relações entre o somático e o psíquico, o que marca a importância da concepção dos representantes psíquicos enquanto fundamento axiológico da metapsicologia freudiana.
A criação da categoria nosográfica das neuroses atuais, em particular a neurose de angústia, possui o valor de demarcação do campo psicopatológico da psicanálise pelo negativo, ou seja, distinguindo aquilo sobre o que a psicanálise não poderia intervir (LAPLANCHE & PONTALIS, 1998, p.300). Dessa forma, as neuroses atuais viriam a cair no ostracismo com o desenvolvimento da psicanálise freudiana.
Há, contudo, uma segunda possibilidade de encaminhamento da questão, desta vez pelo que traz de positivo. Trata-se de tomar a impossibilidade de representação psíquica que caracteriza a neurose de angústia como aquilo que se inscreve como o impensado no paradigma da representação. Esse impensado, por sua vez, só poderá ser elaborado a partir de uma reestruturação da metapsicologia freudiana, a qual seria anunciada apenas na assim chamada "virada" dos anos 1920. Essa segunda abordagem se mostra mais atraente para um estudo do pensamento freudiano em seu movimento intrínseco, a partir de sua caracterização como pendular e espiral. Essa interpretação do desenvolvimento da metapsicologia afirma que polaridades de continuidade e ruptura ou mesmo uma concepção de superação dialética precisam ser repensadas nos moldes de uma progressiva redefinição, retificação e explicitação de conceitos que se dá em um movimento discursivo pendular e espiralado, determinado pela sua lógica interna própria e pela integração com os dados da experiência analítica (MONZANI, 1989, p.301-304).
Convém alertar o leitor de que o trabalho de integração do modelo da neurose de angústia com concepções da segunda tópica, como desamparo psíquico, repetição e trauma, não será efetuado no âmbito desse artigo. O propósito é circunscrever a questão para um encaminhamento futuro à luz do desenvolvimento teórico freudiano, ou seja, marcar um ponto de fixação ao qual o pêndulo deverá retornar em sua busca de equilíbrio.
DEFESA, REPRESENTAÇÃO E PSICOPATOLOGIA
A introdução do conceito de defesa na teorização freudiana foi tão estruturante em termos metapsicológicos a ponto de alguns comentadores afirmarem que se encontra aí o início da teoria psicanalítica (MEZAN, 2001, p.27-28). Foi responsável por um arranjo mais coerente e satisfatório das primeiras observações freudianas sobre a histeria, levando a uma superação das concepções de estrangulamento dos afetos e de estados hipnóides através da descrição dos diferentes mecanismos defensivos em jogo nas neuroses. Constata-se, nos anos 1990, uma série de textos que procuram elucidar a etiologia e os mecanismos nas diferentes neuroses, delineando o primeiro quadro nosográfico freudiano.
De forma sintética, este quadro diferencia duas categorias nosográficas principais: 1) neuropsicoses de defesa psicose, paranóia, neurose obsessiva, fobia, histeria cuja etiologia se deve aos diferentes mecanismos defensivos que procuram manter a representação ideativa indesejável afastada da consciência; 2) neuroses atuais neurastenia e neurose de angústia cuja etiologia se dá não por fatores de ordem psíquica, mas por alterações no nível de descarga da excitação sexual somática.2 No primeiro grupo, a causa geral se deve à incompatibilidade na vida psíquica, ou seja, uma representação ideativa ou afetos aflitivos ao ego que não podem ser sanados pela atividade de pensamento. Entraria em cena a defesa, que consiste no esforço voluntário do ego em diminuir a força da representação de forma que esta não demande exigência do trabalho de associação, o que é obtido "privando-a do afeto a soma de excitação do qual ela está carregada" (FREUD, 1894c, p.56, grifo nosso). O resultado dessa operação implica na liberação da soma de excitação ligada originalmente à representação ideativa e é o destino dessa soma de excitação que caracterizará os diferentes mecanismos defensivos e, por conseqüência, as diferentes neuropsicoses. Sinteticamente, tem-se: 1) conversão _ descarga da excitação para o somático ao longo da inervação motora ou sensorial relacionada à experiência traumática, tendo como conseqüência a formação de um símbolo mnêmico e de um grupo psíquico isolado na consciência; 2) transposição, deslocamento ou falsa conexão _ excitação permanece na esfera psíquica, ligando-se a outras idéias associáveis, criando um substituto da idéia e, secundariamente, rituais obsessivos; 3) rejeição _ a representação e a excitação são excluídas da esfera psíquica, como se jamais houvesse ocorrido, levando consigo um fragmento da realidade; 4) projeção _ manutenção da excitação com transposição para um objeto externo. Esses mecanismos estariam relacionados, respectivamente, aos quadros de: 1) histeria de defesa, 2) obsessões e fobias, 3) psicose alucinatória e 4) paranóia.
Percebe-se, nesse quadro, o delinear dos principais mecanismos de defesa, assim como os principais quadros psicopatológicos que serão pouco a pouco elaborados ao longo da teorização freudiana. Do ponto de vista metapsicológico, essa organização do conceito de defesa se baseia em uma hipótese sobre o funcionamento mental, que é a de uma concepção representacional do psiquismo cuja dinâmica remete a uma noção de investimento energético. Trata-se da teoria dos representantes psíquicos e pode-se afirmar que ela atua como um fundamento axiológico para a metapsicologia freudiana. Nada mais esclarecedor a esse respeito do que os parágrafos finais do texto:
"Gostaria finalmente de demorar-me por um momento na hipótese de trabalho que utilizei nessa exposição nas neuroses de defesa. Refiro-me ao conceito de que nas funções mentais deve ser distinguida alguma coisa uma quota de afeto ou soma de excitação que apresenta todas as características de uma quantidade (embora não disponhamos de meios para medi-la), capaz de crescimento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços de memória das idéias, tal como uma carga elétrica se expande na superfície de um corpo.Tal hipótese, que aliás já subjaz a nossa teoria da 'ab-reação' em nossa 'Comunicação Preliminar', pode ser aplicada no mesmo sentido que os físicos aplicam a hipótese de um fluxo de energia elétrica. Ela é provisoriamente justificada por sua utilidade na coordenação e explicação de uma grande variedade de estados psíquicos." (FREUD, 1894c, p.66, grifos nossos)
Eis o reconhecimento por parte de Freud da importância da hipótese dos representantes psíquicos operando desde os seus primeiros trabalhos. De fato, trata-se de uma hipótese bastante profícua, que norteará a investigação freudiana por vários anos, não sendo nunca totalmente abandonada: representação e afeto estão no centro da trama conceitual freudiana. A passagem citada constitui a sua primeira explicitação.
Pode-se, ainda, voltar mais um pouco no tempo e encontrar a primeira problematização dessa suposição na monografia sobre as afasias, na qual está em jogo justamente a elaboração da concepção dos representantes psíquicos como paralela ao processo fisiológico (FREUD,1891). Esse paralelismo não será resolvido com a elaboração do modelo da defesa, mas encontrará um notável desenvolvimento. Em primeiro lugar, percebe-se que Freud passa a admitir um fator dinâmico na esfera psíquica, algo que estava completamente ausente no estudo sobre as afasias. Trata-se da noção de uma excitação psíquica que investe os traços mnêmicos na formação das representações ideativas. O fluxo desse fator quantitativo é o responsável pela dinâmica psíquica, sendo o que está na base dos mecanismos de defesa. A dinâmica da excitação, por sua vez, é função de um esforço voluntário do ego para evitar o sofrimento, o que revela a hipótese subjacente de que o aumento da excitação é incompatível com a saúde do ego, ou seja, de que o psiquismo seja orientado por um princípio de regulação energética. Encontram-se implícitas tanto a noção de um princípio de prazer como a de um princípio de constância. Há também a ultrapassagem da abordagem neuropsicológica, com a revelação da importância dos fatores sexuais nas neuroses e a concepção da formação de um grupo psíquico isolado, levando ao abandono de uma psicologia estrita da consciência. Em suma, Freud está em um nível diferenciado de teorização em relação ao estudo das afasias, quer seja na abordagem da patologia, quer seja na introdução de um fator dinâmico no seu quadro de referência. As primeiras contribuições agora se encontram em um novo patamar. Não cabe aqui articular todos os pontos dessa passagem. O que interessa particularmente para essa discussão é a noção da introdução do fator energético psíquico e como ele se relaciona com a excitação somática.
A passagem citada antes revela e sintetiza algo que está presente na consideração psicopatológica de Freud nesse período, a saber, a ambigüidade entre conceber o afeto como representação psíquica e como sinônimo de excitação somática; como quota de afeto e como soma de excitação.3
Freud é enfático ao diferenciar o afeto enquanto um tipo de emoção um fenômeno qualitativo situado na esfera do psíquico da excitação enquanto um termo referente à energia que investe o psiquismo um fenômeno quantitativo situado na esfera do somático. Essa concepção é defendida ao longo de toda sua obra (FREUD, 1893, 1895d, 1900, 1915, 1916). Contudo, é possível encontrar utilizações menos rígidas dessas duas definições, as quais apagam justamente a oposição fundamental entre a qualidade e a quantidade ou entre o psíquico e o somático (LAPLANCHE & PONTALIS, 1998, p.421). A explicação de Strachey (FREUD, 1894c, p.81-72) para essa aparente ambigüidade está na própria concepção freudiana sobre a natureza dos afetos. Como se sabe, Freud irá definir posteriormente o afeto a partir de duas ordens de manifestação: 1) processos de descarga motora; 2) processos sensitivos tanto da ordem da percepção dessas descargas quanto da ordem de sensações de prazer e desprazer (FREUD, 1915, p.204-205 e 1916, p.396). Ou seja, o afeto não seria estritamente psíquico, mas envolveria também uma descarga para o somático. Seria, portanto, mais claramente relacionado a uma expressão do fator quantitativo da excitação somática. Nesse sentido, a quota de afeto seria uma manifestação particular do fator mais geral da soma de excitação. Como Freud estaria mais interessado nessas manifestações particulares que ocorriam nos quadros neuróticos, descrevia a quantidade deslocável de excitação como uma quota de afeto, em vez de diferenciar melhor os níveis do problema. Esse hábito persiste mesmo nos artigos de metapsicologia, contribuindo para tornar o conceito freudiano menos claro.
A interpretação de Strachey é coerente, mas é preciso avançar nesse argumento de forma a explicitar a natureza do afeto enquanto fenômeno ao mesmo tempo somático e psíquico. Ver-se-á que é justamente nesse período de definição dos quadros nosográficos e de introdução de um fator dinâmico na teoria que a problemática se mostrará mais evidente, em particular na definição dos mecanismos em jogo na neurose de angústia, na fobia e na melancolia.
O MECANISMO DA NEUROSE DE ANGÚSTIA
As neuroses atuais possuem em sua etiologia não um mecanismo psíquico, mas sim o emprego inadequado da energia sexual. A neurastenia seria originada pela inadequação da ação de descarga da tensão sexual, ou seja, na substituição da ação específica a única que traz a satisfação plena da excitação por formas alternativas como a masturbação e poluções. Nesse caso haveria uma descarga da excitação sexual, porém não satisfatória. Isso levaria a um aumento das descargas sem satisfação plena, o que acabaria esgotando o estoque energético do indivíduo. Freud reinterpretou a neurastenia nos termos de uma economia insatisfatória de energia sexual, antes considerada uma degeneração da condução nervosa. Mais interessante, contudo, é o quadro de neurose de angústia, termo cunhado por Freud para diferenciar um quadro sintomatológico que se confundia com a neurastenia e com a histeria de conversão, tendo como sintoma nuclear a expectativa ansiosa ou angústia flutuante. Tratava-se de uma quantidade acumulada de excitação, a qual originava irritabilidade, hipocondria, angústia moral, ataques de angústia ou mesmo uma angústia difusa, com vários sintomas somáticos associados, em especial a sensação de falta de ar. O intrigante nesses casos é que não havia nenhuma origem psíquica para a angústia, ou seja, a excitação não era desvinculada da representação por um processo defensivo, mas se tratava de uma excitação somática acumulada, de origem sexual. Além do mais, o quadro era acompanhado por uma redução da libido sexual ou do desejo psíquico, o que indicava que essa excitação somática não passava para a esfera do psiquismo. Isso levou à afirmação de que o mecanismo da neurose de angústia estaria relacionado com uma "deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica, com um conseqüente emprego anormal dessa excitação" (FREUD, 1894e, p.109, grifo do autor). Haveria um acúmulo da excitação sexual que não chegaria a ser descarregado e, o que é mais importante, não transporia o limite entre o somático e o psíquico. Seria, portanto, defletido da consciência e depois transformado em descarga somática na forma de ataques de angústia.
O primeiro ponto importante a considerar na neurose de angústia é a necessidade de destacá-la da neurastenia no campo das neuroses atuais. Como foi colocado no início, um dos pontos importantes da categorização das neuroses atuais é justamente a sua exclusão da esfera de atuação da psicanálise, pois sua etiologia seria sexual, porém não remetida a um conflito defensivo e sim a um emprego inadequado da excitação sexual. Essa tese é parcialmente válida, pois contribuições importantes para o entendimento de mecanismos gerais do psiquismo são retiradas desses quadros. Um deles é a compreensão da relação entre a excitação sexual somática e a dinâmica psíquica. O outro é a origem do afeto de angústia. É nesse segundo ponto que se justifica a necessidade de destacar da neurastenia a neurose de angústia, pois esta revelaria com clareza que os sintomas da angústia possuiriam uma etiologia específica e uniforme de natureza sexual (FREUD, 1895c, p.125). Ou seja, a neurose de angústia seria um modelo para a compreensão da angústia, em especial para marcar a origem sexual de tal afeto. Essa vinculação é a mais facilmente demonstrável, já que várias complicações importantes daí se originam.
A primeira e mais marcante delas é a indefinição do mecanismo em jogo. Os dois artigos (FREUD, 1894e, 1895c) afirmam que a angústia não se origina da defesa, mas sim de um mecanismo que não se situa na dimensão psíquica. As razões para isso, contudo, não são explicitadas. Fala-se de uma particular transposição do afeto, de um impedimento ou interferência no exercício psíquico da tensão somática sexual, de uma deflexão desta do psiquismo e ainda de uma alienação entre as esferas psíquica e somática no curso tomado pela excitação sexual. Em suma, tratar-se-ia de algum tipo de insuficiência psíquica. De qualquer forma, o mecanismo em si ou a origem dessa insuficiência não são satisfatoriamente elucidados.
A explicação freudiana é sustentada pelo modelo da concepção energética. Parte-se da noção de que no organismo do sexo masculino a excitação sexual somática é produzida de forma contínua e que periodicamente esta se torna um estímulo ao psiquismo.4 A idéia é que um certo nível de excitação visceral precisa ser alcançado para vencer a resistência do caminho intermediário de condução ao córtex e expressar-se como estímulo psíquico. Quando isso ocorre, o conjunto de representações psíquicas sexuais o grupo psíquico fica suprido de energia, criando consigo o estado de tensão libidinal. Este estado traz consigo uma ânsia de remover tal tensão, o que só é possível através da ação específica, que efetivamente suprime a totalidade da excitação sexual somática (FREUD, 1894e, p.109).5
A explicação acima apenas dá conta da suposição energética que subjaz ao funcionamento mental em geral, estando presente em todas as neuroses. Não há em nenhum lugar nos textos desse período uma definição satisfatória de como se dá essa "passagem" do processo fisiológico para o psicológico. Ou seja, a indefinição anunciada no texto sobre as afasias ainda se encontra presente. A questão, contudo, não se coloca da mesma forma. Para elucidá-la é preciso examinar as formas de relação entre essas duas esferas, esclarecendo que não há uma divisão entre as duas esferas, como se as neuroses atuais fossem puramente somáticas e não envolvessem alguma forma de representação psíquica apenas pelo fato de haver uma depleção do desejo sexual. Para tanto, faz-se necessário distinguir entre a etiologia psíquica ou atual de uma neurose e a inscrição psíquica ou corporal da energia sexual.6
No caso da etiologia psíquica, o que está em consideração são os mecanismos defensivos em atuação nessa dimensão e as respectivas vicissitudes dos componentes ideacional e afetivo. Da operação desse mecanismo psíquico resulta uma quantidade de excitação psíquica livre na forma de um afeto, o qual é convertido por meio de descarga somática ou transformado em outro afeto, inclusive a angústia. Há, portanto, uma inscrição psíquica da energia sexual e é pela vicissitude dos mecanismos psíquicos que esta pode ser reenviada para o corpo na forma de descarga. Nessa descarga conversiva o corpo se torna um símbolo do conflito (símbolo mnêmico) e, portanto, um corpo erogeneizado.7 A descarga não é apenas de sintomas conversivos, mas também de afetos. Cabe lembrar a consideração feita acima de que os afetos são compostos tanto da sensação psíquica de prazer ou desprazer como de descargas motoras. O afeto nas neuropsicoses de defesa é expressão de um conflito psíquico, o que pode ser constatado principalmente pela vicissitude do componente ideacional a que ele se encontrava ligado. É isso que sustenta a noção de uma transposição afetiva na neurose obsessiva e na fobia.
No caso da etiologia atual, a causa é o acúmulo da energia sexual somática impossibilitada de se inscrever no psiquismo. O mecanismo não é de natureza defensiva, tratando-se de uma impossibilidade de inscrição de outra ordem. A princípio, Freud afirma, no modelo do coito interrompido feminino, que a impossibilidade de inscrição se dá pela alienação entre o psíquico e a excitação somática devido tanto à indução da excitação somática sem desejo psíquico correlato quanto à interrupção da ação específica antes da descarga. Esse, contudo, é apenas o caso mais simples do mecanismo: o alheamento psíquico devido ao deslocamento da atenção sobre os objetivos sexuais. Percebe-se já aí que há uma impossibilidade psíquica de inscrição dessa excitação, mesmo que seu incremento seja dado por um fator da conduta sexual do indivíduo. Observando-se os quadros mais complexos abstinência forçosa, ansiedade virginal ou das pessoas extremamente pudicas e a angústia do homem decorrente do coito interrompido encontram-se fatores psíquicos impeditivos definidos nos termos de rejeição psíquica, defesa e repressão intencional das representações sexuais (FREUD, 1894b, p.239 e 1894e, p.106-107). Nesses casos, não há apenas alheamento, mas também um mecanismo intencional de defesa8 contra a excitação sexual somática. O que difere é o fato de a defesa, tal como definida nas neuropsicoses, se dar contra a excitação já inscrita no psiquismo, desligando-a do seu representante. Já no caso da neurose de angústia a "defesa" se dá antes da inscrição no psiquismo, sendo necessário se admitir que haja aí um mecanismo impeditivo. A questão é saber se isso se dá por interferência na representação ideativa ou por impossibilidade constitutiva do aparelho psíquico em ligar essa excitação ao circuito representacional. Em suma, o mecanismo em jogo seria efetivamente da ordem do psíquico, mas de uma outra maneira: em vez de uma ação secundária no manejo da excitação psíquica, um processo mais primitivo que abortaria a excitação do circuito psíquico em sua própria origem.
O ponto a ser elucidado é como essa impossibilidade que resulta na deflexão se origina: de uma carga hereditária, de um fator constitutivo psíquico ou de uma circunstância da vida atual do paciente. O esclarecimento deve ser buscado no contexto da equação etiológica. Essa proposição está sustentada na compreensão da causalidade enquanto somação energética, ou seja, articulando diferentes fatores quantitativos na superação do limiar de carga suportável ao sistema nervoso que resulta na neurose. Os fatores são: precondição (hereditária ou decorrente da história infantil), causa específica, causas concorrentes e causa precipitante ou desencadeante. Apenas a causa específica poderia operar na dimensão qualitativa ou seja, na forma da neurose enquanto os demais operariam apenas na dimensão quantitativa como multiplicadores da carga total sobre o sistema nervoso, resultando daí a noção de sobredeterminação na etiologia das neuroses (FREUD, 1895c, p.134-137). Na neurose de angústia, a causa específica seria a insuficiência psíquica, que levaria a um desvio do curso normal da excitação sexual somática, levando, por sua vez, a processos anormais, sendo a causa desencadeante o súbito incremento da quantidade de excitação devido a condições atuais na conduta sexual. Entretanto, não há um esclarecimento da precondição para essa insuficiência, a qual é remetida a uma obscura origem genética e sobredeterminação, não havendo, assim, uma resposta satisfatória.
A estratégia freudiana no período é esclarecer, primeiramente, os mecanismos em jogo nos quadros e sustentá-los em uma hipótese energética de forma mais ou menos satisfatória sem, contudo, ter elementos para esclarecer especificamente a etiologia das diferentes neuroses. Para tanto, é preciso remontar a uma gênese do psiquismo e a hipóteses sobre a origem dos mecanismos de defesa. Dessa linha de investigação resultarão as hipóteses sobre a teoria da sedução ativa e passiva e o trauma sexual vivido a posteriori (FREUD, 1896a). Todavia, se deterá na elucidação de apenas três quadros nosográficos: a histeria, a neurose obsessiva e a paranóia. Ficarão de fora a melancolia e as fobias, além do grupo das neuroses atuais. A questão da gênese da insuficiência psíquica e sua relação com a angústia, bem como os aspectos em jogo na melancolia e na fobia permanecerão latentes na teorização freudiana por um bom tempo.
Depreende-se do até aqui exposto que a afirmação do mecanismo em jogo nas neuroses atuais como não sendo da ordem do psíquico é parcial. Na verdade, ele deve ser diferenciado do mecanismo de separação entre as representações ideativa e afetiva, denominado, nesse momento, de defesa. O mecanismo de insuficiência psíquica seria mais primário do que a defesa, pois impede a ligação da excitação sexual somática com a cadeia associativa. Não se pode, portanto, confundir o mecanismo de defesa com a totalidade dinâmica psíquica: há algo na constituição representacional que não está claramente definido. Esse é o primeiro ponto na elucidação das relações entre o somático e o psíquico em jogo na neurose de angústia.
O segundo ponto é investigar se, de fato, não há inscrição da excitação sexual somática no psiquismo no caso da neurose de angústia. A resposta se dá na mesma direção do que foi antes colocado: não há inscrição no sentido de uma dinâmica representacional que origine a angústia. O que ocorre na neurose de angústia é que o acúmulo progressivo da excitação que não encontra expressão psíquica acaba transpondo de qualquer forma o limiar de excitabilidade e transforma-se em descarga afetiva na forma de angústia. A angústia, enquanto afeto, é tanto descarga para a inervação somática quanto sensação de prazer e desprazer. Trata-se, portanto, de uma manifestação psíquica, porém específica. Sua particularidade decorre da expressão profundamente visceral e da indefinição de um conteúdo ideacional específico. Pode-se afirmar que a excitação somática, quando pressiona sua representação, acaba por não investir em ligações associativas complexas devido à insuficiência psíquica, ficando no nível das associações mais simples.9 A angústia, portanto, inscreve-se no psiquismo e de uma forma precária em relação a outros afetos. É, também e por conta disso, fundamentalmente descarga, cuja direção se dá no sentido de inervações associadas à respiração e ao ato sexual.
À luz destas considerações, a leitura de algumas sínteses freudianas sobre o assunto se tornam mais ricas e reveladoras:
"(...) nessa neurose, as coisas se desvirtuam da seguinte maneira: a tensão física aumenta, atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos. Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em angústia." (FREUD, 1894b, p.238)
"Nos casos em que há um considerável desenvolvimento da tensão sexual física, mas esta não pode ser convertida em afeto pela transformação psíquica por causa do desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, ou por causa da tentativa de suprimi-la (defesa), ou por causa do alheamento habitual entre sexualidade física e psíquica , a tensão sexual se transforma em angústia. Assim, nisso desempenham um papel a acumulação de tensão física e a evitação da descarga no sentido psíquico." (FREUD, 1894b, p.240)
O primeiro trecho é revelador ao falar de uma insuficiência psíquica que pode ser entendida como parcial, pois o afeto parcialmente formado é um afeto particular, a angústia, e não um afeto sexual.10 No segundo trecho, observa-se de forma bastante resumida a constelação de possibilidades dinâmicas em jogo na insuficiência psíquica como um dos pólos do mecanismo da neurose de angústia. O que fica obscuro no texto freudiano é a gênese dessa insuficiência e a natureza da angústia; pontos que aqui se procurou elucidar minimamente.
O argumento até aqui exposto coloca-se contra a distinção estrita entre somático e psíquico que polarizaria de início a diferenciação entre as neuroses atuais e as de defesa. O erro está em vincular a etiologia psíquica e sua inscrição com o conceito de defesa sem atentar para o fato de que há um impedimento psíquico originário que força a expressão da excitação somática no psiquismo na forma de angústia. A diferença, portanto, não se dá entre o nível psíquico e somático, mas no caráter primário ou secundário do mecanismo e da angústia. Assim, na neurose de angústia o mecanismo é primário, no sentido de um impedimento de ligação psíquica, e a angústia também o é, pois é transformação direta da excitação somática em afeto. Já nas neuroses de defesa o mecanismo é secundário, no sentido de uma desvinculação entre os representantes, e da mesma forma o é a angústia, pois essa é transformação do afeto em angústia.
Percebe-se o quanto o modelo da neurose de angústia é paradigmático para entender a angústia não apenas devido a sua ligação direta com a vida sexual atual, mas, sobretudo, devido a ser esta a manifestação mais "bruta" do mecanismo que origina a angústia: a transformação da energia psíquica que não encontra inscrição adequada na rede associativa, ultrapassando o limiar de suporte energético do aparelho psíquico. Desse modo, a angústia é a expressão mais direta de uma insuficiência econômica do aparelho psíquico, tanto em sua manifestação mais pura na neurose de angústia quanto nos demais quadros nosográficos.
AMBIGÜIDADES DA TEORIA ENERGÉTICO-REPRESENTACIONAL
Uma vez apresentada a hipótese que procura situar o lugar do afeto na neurose de angústia nas relações entre a excitação somática e a psíquica, pode-se avançar em algumas considerações adicionais. Trata-se de demonstrar que a trama conceitual embasada na hipótese energético-representacional encontra-se ainda extremamente ambígua nos textos freudianos do período em questão. Nesse intuito, três pontos serão abordados: 1) a indefinição do mecanismo psíquico presente na angústia das neuropsicoses de defesa; 2) a problemática da diferenciação entre energia somática e psíquica nos quadros nosográficos; 3) a própria natureza da concepção energética que serve de hipótese básica.
Até agora foi descrita em pormenores a angústia em seu mecanismo primário, mas não foram abordados ainda os detalhes da angústia que é provocada pela defesa. Sabe-se que o afeto de angústia encontra-se presente também de forma marcante nas histerias e nas fobias. Nas histerias, a angústia decorre também do processo conversivo, que em vez de se instalar como símbolo mnêmico, se descarrega na inervação na forma de angústia. A derivação do afeto, contudo, é secundária e não primária, decorrendo daí a sugestão que a neurose de angústia é a contrapartida somática da histeria, diferindo desta quanto ao mecanismo (FREUD, 1894e, p.115).
No que tange às fobias, a questão é um pouco mais complexa. Isso se deve ao fato de que as fobias têm um estatuto bastante inconsistente nos textos desse período. A princípio, o que distinguiria as obsessões das fobias não seria propriamente o mecanismo já que é o mesmo, transposição, para as duas mas a qualidade do afeto associado à neurose: nas obsessões o afeto permaneceria inalterado, mas ligado a outra representação ideativa, enquanto nas fobias esse afeto seria sempre o de angústia, havendo, portanto, uma transformação do afeto original (FREUD, 1894d, p.79-80). Além disso, o objeto da fobia não teria tão marcadamente o caráter de substituto ideativo, sendo mais contingente que nos quadros histéricos. Haveria, então, diversos tipos de fobias comuns, histéricas e contingentes sem que fique muito clara a distinção entre elas. De qualquer forma, o estado de angústia seria o mais marcante nas fobias "típicas", como a agorafobia e sua origem deveria ser encontrada na evitação de um ataque original de angústia que não derivaria de qualquer lembrança. Assim, pareceria haver uma distinção entre uma fobia de base psíquica, mais próxima da obsessão, e outra de base não psíquica. Essa constatação leva Freud a afirmar que o segundo tipo de fobia seria então "parte da neurose de angústia" (FREUD, 1894d, p.85), na forma de um sintoma a ela associado como manifestação psíquica desta e não mais como um quadro relacionado à neurose obsessiva. O problema é que essa distinção entre uma fobia de inscrição psíquica e outra não psíquica se confunde com a que faz distinção entre os objetos e ainda com a classe de fobias de origem traumática que se ligam à histeria. Porém, no artigo sobre a neurose de angústia a distinção recai novamente entre as fobias pertencentes à neurose obsessiva e as pertencentes à neurose de angústia, só que agora se afirma que o afeto transposto da segunda não tem origem em uma idéia reprimida, mas em algo como um ataque original de angústia (FREUD, 1894e, p.99). Observa-se, de novo, que Freud associa um mecanismo defensivo a um fator energético aparentemente não psíquico. Além disso, não esclarece a angústia presente nas fobias de origem defensiva. Ao que parece, nessas, a angústia encontra-se mais ligada a um objeto específico, devido a sua maior inserção na rede associativa psíquica. Em suma, o mecanismo das fobias permanece obscuro para Freud, dificultando ainda mais uma elucidação das diferentes manifestações do afeto de angústia. De fato, é só no caso do "pequeno Hans" que Freud irá dar um passo na definição da entidade clínica que compreenderá algumas das fobias, dessa vez articulando-a ao mecanismo da histeria: a histeria de angústia (FREUD, 1909, p.106). Assim, parece que as fobias e a histeria pouco ajudam a compreender o mecanismo da angústia no período dos anos 1890. Compartilham apenas a noção de uma transformação automática do excesso de excitação em angústia, que é emblemático na neurose de angústia. Por esse motivo, Freud toma a angústia das neuroses atuais como primeiro paradigma da angústia.
Um segundo ponto é a forma incipiente da relação entre excitação somática e psíquica enquanto hipótese explicativa dos quadros nosográficos descritos por Freud. Além das disjunções aparentes entre a origem não psíquica e a psíquica para diversos distúrbios, é interessante notar o caso da melancolia. Freud interpretará a melancolia como uma patologia decorrente de perda de libido ou, mais especificamente, o afeto de luto pela perda da libido (FREUD, 1895a, p.247). Não há, contudo, um mecanismo que dê conta dessa defasagem libidinal. Isso faz com que Freud não consiga fazer uma distinção exata entre a perda de libido decorrente das neuroses atuais da perda de libido psíquica que ocorre na melancolia propriamente dita, que ele chama de comum.11 Além disso, não há como explicar, teoricamente, a presença do afeto de luto, assim como o mecanismo específico que retira a libido psíquica da representação e a transforma em angústia. Em suma, a melancolia não recebe uma explicação devida dentro do contexto da teorização freudiana do período e não é para menos que ela venha a desaparecer dos textos sobre as neuropsicoses de defesa.12 De qualquer forma, a consideração da melancolia traz mais elementos para ilustrar as dificuldades que Freud encontra nessa primeira abordagem da relação entre o somático e o psíquico e seu ponto nodal: a angústia.
O terceiro ponto é outra ambigüidade presente na concepção energética de Freud, além da confusão entre a quantidade e a qualidade. Como se pôde observar, o anúncio da hipótese básica de Freud mostra que a concepção de energia investindo nas representações encontraria seu amparo no modelo físico da eletricidade. Haveria, portanto, uma noção de quantidade energética subjacente à dinâmica psíquica. A questão é que esse quantum não é pensado em fatores absolutos mas, principalmente, em fatores relativos nos termos de sua distribuição e de sua dinâmica, o que alude mais a uma concepção de intensidade energética (BARROS, 1975). Constata-se, nesse período, a dúvida de Freud em utilizar um termo ou outro. Percebe-se não só uma confusão entre o fator quantitativo e o qualitativo, mas uma indefinição quanto ao estatuto do fator quantitativo (ou intensivo) por ele postulado. Essas definições serão mais bem trabalhadas no Projeto de uma psicologia (FREUD,1895d) sem, contudo, sanar as superposições entre um fator extensivo e um intensivo da economia psíquica.13
CONTEXTUALIZAÇÃO DO PRIMEIRO TEMPO DA ANGÚSTIA
Os pontos desenvolvidos revelam o quanto a hipótese básica freudiana é fragmentária, apesar de rica e instigante. Percebe-se, ainda, de que forma o problema das relações entre o somático e psíquico começa a se organizar, trazendo um emergente teórico particular como ponto de dificuldades: a dimensão econômica da angústia em sua síndrome mais característica. É o momento de sintetizar a discussão e retomar seu tema central, relacionando-o ao contexto mais amplo da teorização metapsicológica sobre a angústia.
A angústia aparece, na teorização freudiana dos anos 1890, fundamentalmente como a inscrição corporal de uma impossibilidade de ligação psíquica, sendo o modelo da neurose de angústia o que melhor aborda a questão, ficando obscura ou minimizada a importância teórica da angústia nos demais quadros psicopatológicos. Foi visto que tanto a angústia aqui denominada primária quanto a secundária compartilham de um mesmo modelo energético de ultrapassagem do limiar de suporte do psiquismo, ou seja, a angústia é vista aqui como a transformação em afeto de energia excessiva. A diferença é dada em sua origem inicial: somático no primeiro caso e psíquico no segundo, o que não quer dizer que um mecanismo psíquico não esteja envolvido nos dois casos. Pelo contrário, esse mecanismo foi intuído por Freud, mas não pôde ser esclarecido na ocasião. Depreende-se daí que a angústia, mesmo em seu estado mais bruto, refere-se a e se inscreve em um corpo erógeno; ela é expressão de um sentido psíquico.
A concepção de uma angústia inscrita no corpo refere-se tanto ao excesso energético quanto à insuficiência de elaboração psíquica da excitação somática. Compartilha com a concepção de uma angústia inscrita no psiquismo, um mecanismo comum de transformação da excitação não ligada a uma representação ideativa em afeto. Portanto, pode-se afirmar que aquilo que será posteriormente conhecido como primeira teoria freudiana da angústia encontra aqui o seu fundamento e é desenvolvida em dois tempos: o primeiro, no contexto dos anos 1890 e o outro, a partir da primeira tópica. Ambas as abordagens fundamentam-se em uma noção de angústia econômica ou automática.
O tema das diferentes teorias da angústia na metapsicologia freudiana é bastante conhecido, mas ainda rende algumas controvérsias. É ponto pacífico a distinção de pelo menos duas teorizações: uma, inserida na trama conceitual da primeira tópica, que define a angústia como transformação da libido reprimida e outra, desenvolvida na segunda tópica, que define a angústia como um sinal do ego que mobiliza a defesa. A relação entre elas não é disjuntiva, mas de complementaridade, e o estudo do primeiro tempo da angústia em Freud ajuda a compreendê-la.
Uma das controvérsias em jogo na teoria da angústia é exatamente o lugar desse primeiro momento. Há comentadores, como Green, que preferem conceber três períodos distintos: 1) a angústia referida à tensão física sexual na neurose de angústia; 2) a angústia articulada à repressão e 3) a angústia remetida ao aparelho psíquico na forma de sinal (1982, p.73-84). Apesar do reconhecimento da centralidade da insuficiência de elaboração psíquica, no primeiro momento, falta-lhe afirmar a articulação que une os dois primeiros tempos tal como aqui argumentado, a saber, o mecanismo comum de transformação automática da excitação. Como foi demonstrado, a angústia da neurose atual é primária em relação à angústia das psiconeuroses de defesa, mas ambas são expressão da falta de ligação representacional, decorrendo daí a máxima freudiana de que a neurose de angústia é a contrapartida somática da histeria. Nesse sentido, a argumentação de Laplanche é mais rigorosa. Ele retoma a discussão entre a teoria fisiológica e a psicológica da angústia, ou seja, entre a angústia que é transformação automática da excitação somática e a que é derivada da operação defensiva, mostrando seu imbricamento profundo. Mais uma vez, é a noção de elaboração psíquica que funciona como elo de ligação entre as duas concepções (1998, p.26). Dessa forma, o primeiro tempo da angústia não pode ser pensado independentemente de um determinante psíquico. O que difere nos dois tempos é o mecanismo que deixa a energia desligada no aparelho psíquico primário no primeiro e secundário no segundo mas ambos compartilham da mesma concepção econômica e automática da angústia. Laplanche define então duas teorias da angústia: 1) teoria econômica, que articula as concepções fisiológica (não-elaboração) e a psíquica (rompimento da ligação), e 2) a teoria funcional, apoiada no sinal de angústia do ego (1998, p.42-43).
Na mesma direção, Rocha enumera duas teorias da angústia, articulando na primeira as duas facetas da angústia automática: sua inscrição corporal e sua inscrição psíquica (2000, p.10-12). Em particular, chama a atenção o esforço do comentador de conceber dialeticamente essa relação:
"Com isto, porém, não estou querendo dizer que Freud tenha começado o seu estudo da angústia pelas neuroses atuais, apresentando-nos uma angústia primeiramente inscrita no corpo e, só em seguida, inscrita no psiquismo (...) É importante ter presente que mesmo quando Freud fala de uma angústia inscrita no corpo sem nenhuma significação psíquica, isto não exclui a existência de uma relação dialética, que, segundo ele próprio, sempre existe entre as neuroses atuais e as neuropsicoses de defesa e, conseqüentemente, entre a angústia inscrita no corpo e a angústia inscrita no psiquismo."(ROCHA, 2000, p.41-42)
Há uma relação entre a angústia inscrita no corpo e a inscrita no psiquismo que não pode ser entendida nos termos de uma disjunção em que a uma precede a outra. É importante frisar que mesmo que se postule, em termos teóricos, uma precedência genética da primeira sobre a segunda, elas aparecem em conjunto nos quadros nosográficos e compartilham ambas de um simbolismo erógeno. Porém, não basta postular a relação complementar entre esses dois aspectos da angústia, mas também esclarecer o caráter dessa "dialética". O argumento aqui desenvolvido mostra que as duas faces da primeira teoria da angústia compartilham tanto do mecanismo automático de transformação da excitação quanto de mecanismos psíquicos de desligamento energético da representação. A diferença, portanto, é no nível de operação do mecanismo e não na sua essência.
O fundamental da teoria econômica da angústia é pensá-la articulada ao conceito de elaboração psíquica. Essa abordagem, desenvolvida mais extensamente por Laplanche (1998, p.29-33), permite pensar a relação entre afeto e representação ideativa como um processo de ligação psíquica da energia. A idéia é pensar níveis progressivos de ligação e elaboração energética na dinâmica do aparelho psíquico. Nesse sentido, a representação ideativa seria o nível mais estruturado de ligação de energia, passível, inclusive, de formar conexões entre si na forma de grupos psíquicos. Ou seja, o nível mais organizado de ligação energética concebe cadeias representacionais associativas e suprassociativas.14 Um nível intermediário de ligação é dado pelo afeto. Nesse, há tanto um componente organizado de descarga somática quanto uma estrutura representacional associada. A idéia é que a energia devidamente elaborada possa expressar-se no psiquismo na forma de representação ideativa ou afeto. A angústia, contudo, aparece como o nível mais baixo de ligação energética. Trata-se da expressão afetiva mais desorganizada e desruptiva, principalmente em sua manifestação mais brutal na angústia primária das neuroses atuais. Assim, se a defesa desestabiliza a organização representacional e libera afetos, dentre os quais se encontra a angústia secundária, a insuficiência psíquica revela uma angústia menos ligada a representações. Dessa forma, a angústia ligada a um objeto fóbico é menos disruptiva que o pavor inerente a um ataque de angústia, por exemplo. O que está em jogo são níveis progressivos de elaboração psíquica rumo à representação ideativa.
A partir do exposto, pode-se concluir que o que se denomina angústia inscrita no corpo (ROCHA, 2002) ou teoria fisiológica da angústia (LAPLANCHE, 1998) revela-se um contraponto teórico ao paradigma da representação. Em outras palavras, o primeiro tempo da angústia mostra uma primeira antítese ao modelo energético-representacional. Mais que isso, esse primeiro momento lança os elementos fundamentais que serão contemplados em um desenvolvimento posterior da teoria da angústia no qual as noções de desamparo psíquico e pulsão de morte, entre outras, trarão uma nova significação teórica para o problema aqui apontado.
Esse movimento de integração, revisão e ressignificação depende, por sua vez, da estrutura conceitual freudiana e seus desenvolvimentos heurísticos. Nesse caso, não se pode falar em uma síntese dialética entre os pólos do problema, já que a teorização freudiana não se encaixa em uma dialética estrita (MONZANI, 1989, p.201-204). De qualquer forma, pode-se afirmar que a polarização entre angústia inscrita no corpo e no psiquismo é uma matriz conceitual importante, que traz em seu cerne o seu próprio impensado, a saber, de que no limite, a noção de angústia aponta para o irrepresentável. Mais ainda, é contra essa irrupção energética, cuja angústia automática primária é o melhor exemplo, que se estrutura o aparelho psíquico. Essa concepção de ligação energética é relativamente forte na primeira década do pensamento freudiano, mas se torna fundamental na segunda tópica. Enveredar por essa discussão transcende os propósitos deste artigo, mas alguns desdobramentos podem ser apontados. Para ficar apenas no âmbito da metapsicologia da angústia, basta dizer que a angústia automática primária da teoria econômica se aproxima da angústia primordial tematizada na teoria funcional. Pode-se pensar, também, em uma teoria unificada da angústia: contra a irrupção energética traumática o ego mobiliza a defesa por intermédio do sinal de angústia. A operação da defesa sobre as representações ideativas, por sua vez, também causaria desligamento energético, levando a uma irrupção de afetos, entre eles a angústia (SEVÁ, 1975, p.88, 92-94). Encontra-se, assim, uma articulação entre o primeiro, o terceiro e o segundo tempo da teoria freudiana da angústia, respectivamente.
CONCLUSÃO
Uma leitura rigorosa da teoria freudiana dos representantes psíquicos deve levar em conta os seus desenvolvimentos iniciais na consideração dos impasses que levam à proposição de novos modelos explicativos na metapsicologia freudiana.
Conclui-se que a consideração dos textos freudianos dos anos 1890 revela alguns pontos interessantes para a compreensão do desenvolvimento da teoria da angústia e sua relação com o paradigma representacional na metapsicologia freudiana. Trata-se de textos pioneiros e, como tais, recheados de hipóteses organizadoras que operarão por longo tempo nos bastidores da teorização freudiana. O mesmo pioneirismo que indica as primeiras direções também é responsável pelo evidenciamento dos primeiros impasses ao desenvolvimento teórico, criando uma série de trilhas mais ou menos consistentes que serão retraçadas de diferentes formas nos vários momentos do pensamento freudiano.
De forma esquemática, podemos demarcar o campo de afirmações e impasses que emerge desse momento teórico a partir dos seguintes parâmetros:
1. A afirmação da teoria energético-representacional como fundamento axiológico do esforço freudiano de teorização;
2. A revelação de impasses quanto ao modelo físico que a sustenta, bem como à capacidade de ela dar conta das relações entre a esfera somática e a psíquica;
3. A emergência de quadros psicopatológicos e afetos que testam os limites dessa teoria, fazendo com que a melancolia e a neurose de angústia fiquem como problemáticas latentes na primeira tópica;
4. A síntese dessa problemática na configuração de um modelo de angústia enquanto inscrição corporal e impossibilidade de elaboração psíquica da excitação, o qual se revela um contraponto à noção de representação psíquica.
Uma visão retrospectiva da obra freudiana revelará que esses caminhos de investigação serão contemplados em diferentes momentos da metapsicologia. Tem-se que a elucidação da natureza energética será abordada em primeiro lugar, quer seja no desenvolvimento de um modelo neuronal de aparelho psíquico, quer seja propriamente na elaboração do conceito de pulsão. As interfaces entre o psíquico e o somático, em especial a idéia de uma impossibilidade de elaboração psíquica, ficarão latentes por mais tempo, aguardando uma reestruturação mais profunda da trama conceitual freudiana. Nesse sentido, a primeira tópica freudiana abordará, fundamentalmente, a dimensão representacional do fator energético, deixando a dimensão pré-representacional que emerge no mecanismo da neurose de angústia por muito tempo fora do campo da teorização metapsicológica.
O resgate e crítica da concepção freudiana de neurose de angústia contribuem para a compreensão da teorização sobre a metapsicologia da angústia, além de servir de elemento para as discussões contemporâneas sobre a angústia que escapa à elaboração psíquica refugiando-se no corpo, como nos quadros psicossomáticos. Esses desdobramentos, assim como uma análise geral da teoria da angústia, fogem aos propósitos desse artigo. Espera-se que a análise do primeiro tempo da angústia em Freud possa contribuir para futuras investigações teóricas e clínicas.
(1893) "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar", v. II, p.39-56.
(1894a) "Rascunho D: sobre a etiologia e a teoria das principais neuroses", v. I, p.231-233.
(1894b) "Rascunho E: como se origina a angústia", v. I, p.235-241.
(1894c) "As neuropsicoses de defesa", v. III, p.51-74.
(1894d) "Obsessões e fobias: seu mecanismo psíquico e sua etiologia", v. III, p.75-90.
(1894e) "Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada 'neurose de angústia'", v. III, p.91-120.
(1895a) "Rascunho G: melancolia", v. I, p.246-253.
(1895b) "Rascunho H: paranóia", v. I, p.253-257.
(1895c) "Resposta às críticas a meu artigo sobre a neurose de angústia", v. III, p.121-140.
(1896a) "Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa", v. III, p.163-188.
(1896b) "Carta 52", v. I, p.281-287.
(1900) "A interpretação de sonhos", v. IV-V.
(1905) "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", v. VII, p.117-232.
(1909) "Análise de uma fobia em um menino de cinco anos", v. X, p.13-136.
(1915) "O inconsciente", v. XIV, p.163-222.
(1916) "Conferência XXV: a ansiedade", v. XVI, p.393-412.
(1917) "Luto e melancolia", v. XIV, p.245-266.
Recebido em 24/10/2003. Aprovado em 15/3/2004.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Nov 2005 -
Data do Fascículo
Jan 2004
Histórico
-
Aceito
15 Mar 2004 -
Recebido
24 Out 2003