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O DESTINO DECOLONIAL DA SUBLIMAÇÃO: AS MÍDIAS POPULARES NO COMBATE AO RACISMO BRASILEIRO1 1 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

RESUMO:

Apresentamos nesse artigo os primeiros resultados de uma pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, que tem, como campo de intervenção do psicanalista, os movimentos sociais populares. A hipótese de trabalho sustentada é a de que a presença do psicanalista junto a tais movimentos favorece a sublimação, um destino da pulsão diferente do recalque e das perversões e pode servir como meio de decolonização dos laços sociais e de tratamento do gozo racista. Através da apropriação das novas tecnologias digitais, movimentos de base popular e de transformação social e política constroem novos modos de transmissão de um uso particular da língua, da cultura e das invenções singulares para enfrentamento do colonialismo e da necropolítica. A subversão do sujeito pode ser testemunhada pela amplificação de vozes que encontram ressonância na pólis, rompendo o silenciamento histórico imposto pelo jugo da raça, que reduz sujeitos a objetos-dejeto do capital.

Palavras-chave:
psicanálise; decolonização; racismo; sublimação; mídias populares

ABSTRACT:

We present in this article the first results of a post-doctoral research developed in the Graduate Program in Psychoanalytic Theory at UFRJ, which has, as a field of intervention of the psychoanalyst, popular social movements. The working hypothesis is that the presence of the psychoanalyst with such movements favors sublimation, a destination of the drive different from repression and perversions and can serve as a means of decolonizing social ties and treating racist jouissance. Through the appropriation of new digital technologies, grassroots movements and social and political transformation build new modes of transmission of a particular use of language, culture and unique inventions to face colonialism and necropolitics. The subversion of the subject can be witnessed by the amplification of voices that find resonance in the polis, breaking the historical silencing imposed by the yoke of race, which reduces subjects to capital waste objects.

Keywords:
Psychoanalysis; decolonization; racism; sublimation; popular media

As massas, de que falava Ortega y Gasset, na primeira metade do século (La rebelion de las massas, 1937), ganham uma nova qualidade em virtude de sua aglomeração exponencial e de sua diversificação... junte-se a esses fatos a emergência de uma cultura popular que se serve dos meios técnicos antes exclusivos da cultura de massas, permitindo-lhe exercer sobre esta última uma verdadeira revanche.

Milton Santos

Levantamos uma hipótese sobre o enfrentamento do racismo no Brasil através das produções culturais que instauram um processo de decolonização no laço social, quando minorias oprimidas se servem de mídias alternativas e populares para transmissão e difusão de uma marca, de uma língua e de uma versão da história impedidas de se propagar pelo aparato imperial representado pela imprensa hegemônica que detém o poder de comunicação das massas. As correntes de pensamento pós-colonial e decolonial criticam os efeitos de cegueira e crueldade induzidos por uma concepção ocidental de razão, de humanismo e de universalismo, que encobre a violência colonial dirigida a sujeitos historicamente escravizados e que não cessou após a independência das colônias. O empreendimento político, militar e econômico instaurado pelas relações de colonialidade é, sobretudo, epistemológico e subjetivo, mas tem hoje, como principal meio de sustentação, a manipulação dos afetos para falseamento da verdade, através do controle via redes tecnológicas digitais controladas por grandes instituições financeiras, detentoras do poder da globosfera.

Boaventura de Sousa Santos (2017SOUSA SANTOS, B.; MENDES, J. M. Introdução. In: SOUSA SANTOS, B.; MENDES, J. M. Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas. Lisboa: Edições 70 , 2017.) faz uma oposição entre as epistemologias do Norte e as do Sul. As do Norte, as europeias e norte-americanas - países que detêm o poder financeiro global -, são validadas pelos cânones universitários e obtêm dividendos com o consumo científico global. As produções do Sul são pouco consideradas e advêm dos países considerados de terceiro mundo, subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Thamy Ayouch (2019AYOUCH, T. Psicanálise e hibridez: gênero, colonialidade, subjetivações. Curitiba: Calliguraphie, 2019.) afirma a especificidade da psicanálise através de sua produção de historicidade, que faz das tecnologias de coerção e da coerção de si uma transformação das normas de gênero e da cultura. Concordamos com a proposta do autor de produzir uma hibridez da psicanálise, a entrada dos psicanalistas no debate pós-colonial; através de autores africanos, árabes, indianos, latino-americanos. Embora criada no seio da Europa e tendo ganhado força como pratica clínica das burguesias alemã, inglesa e francesa, a psicanálise, nos lembra o autor, era conhecida inicialmente como “ciência judaica”, em uma época na qual o nazismo rapidamente ocupou o poder e tomou o judeu como alvo da perseguição. Portanto, desde sua origem, a psicanálise ocupou lugar marginal, estrangeiro, no movimento cultural vienense no final do século XIX, considerando ainda que os psicanalistas eram perseguidos e os livros de psicanálise foram queimados em praça pública pelas forças nazistas de Hitler. Desde as clínicas públicas de psicanálise (DANTO, 2019DANTO, E. A. As clínicas públicas de Freud: psicanálise e Justiça Social (1918-1938). São Paulo: Perspectiva, 2019.), testemunhamos uma preocupação do próprio Freud e dos analistas da primeira e da segunda geração, em relação à extensão do atendimento psicanalítico à população de baixa renda, e a intenção freudiana de que a psicanálise se tornasse um tratamento acessível a toda a população, subsidiado pelo Estado, conforme explicitado na conferência sobre a terapia analítica, publicada em 1916.

A difusão da psicanálise se internacionalizou principalmente em função da guerra, com a migração de muitos analistas, não apenas para os Estados Unidos, mas também para a América Latina. Curiosamente, não vingou na América do Norte, onde a face mais violenta do imperialismo econômico e político contemporâneo se estabeleceu, mas frutificou na América Latina, em países geopoliticamente submetidos e explorados. A surpreendente expansão da psicanálise em países como Argentina, México e Brasil se deu tanto nas sociedades e escolas de formação, mas também nas instituições universitárias e na rede pública de saúde, cada vez de modo mais capilarizado. Atualmente, com o recrudescimento do conservadorismo e incremento do discurso fascista no Brasil, somado ao desmonte da rede de saúde mental, observamos o crescimento de ofertas de atendimentos nas praças, nas ruas e periferias. Coletivos independentes de psicólogos, vinculados ou não a uma instituição psicanalítica ou universitária, denominados recentemente como “clínicas de borda”, ampliam ainda mais o acesso da prática psicanalítica a miseráveis, vítimas da violência do Estado, transexuais e travestis, sem-teto, sem-terra e até mesmo algumas etnias indígenas. Tais associações de profissionais, orientadas pela psicanálise, vêm experienciando um modo de operar com o inconsciente a partir de territórios onde o racismo estrutural impera e relega o sujeito ao lugar de objeto-dejeto, seres abjetos, como denomina Judith Butler.

Autores negros brasileiros que se servem da psicanálise, psicanalistas ou não, em geral mulheres, como Lélia Gonzales (1983), apontam para um racismo denegado no Brasil, portanto inconsciente, que estrutura o laço social brasileiro e promove efeitos extremamente nefastos e deletérios na constituição do sujeito, alvo do racismo. Mas, poderíamos dizer também, para toda a sociedade brasileira fundada e sustentada sob uma farsa de cordialidade, que encobre um Estado brutalmente perverso e que estrutura as demais relações sociais.

É preciso enfatizar que não somente os autores que têm suas obras publicadas e lidas devem ser fonte de consulta e de reconhecimento público. Os chamados intelectuais orgânicos hoje despontam com lives, podcasts, vídeos, poesias e textos publicados nas redes, permitindo que um saber oral ancestral ou atual extremamente valioso seja difundido e aprendido, servindo como consulta e como caixa de ressonância entremeada e citada junto às obras acadêmicas; como é o caso do militante Nego Bispo, do sambista Rumba Gabriel, das quilombolas Selma Dealdina e Maria Aparecida Mendes, dos caciques Payaya e Pataxó Hahahãe, da trans e travesti Sara York, entre outros protagonistas de saberes que vêm sendo validados por acadêmicos e pesquisadores. Na década de oitenta, Milton Santos (2008SANTOS, M. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2008.) propôs a criação de uma “outra globalização”: a apropriação das novas tecnologias em prol de uma integração cultural entre os povos subalternizados do mundo, de forma que as epistemologias não oficiais, muitas vezes transmitidas pela oralidade, possam chegar a cada uma das demais regiões pobres e que, assim, venha a alterar o jogo de forças do capitalismo e, com isso, visando incidir sobre a lógica racista. Nesse sentido, Achille Mbembe (2019MBEMBE, A. Sair da Grande Noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes, 2019. (Coleção África e os africanos)) afirma o afropolitismo como movimento artístico e multicultural, presente na diáspora africana com tamanha força literária, cultural e de transmissão ancestral que resgata o sujeito eliminado pela colonização. Por seu potencial sublimatório, que porta uma política do inconsciente, é capaz de produzir decolonização: “Esse ato literário, se não serve como ato psicanalítico puro e simples, se presta ao menos como sistema de simbolização, cuja primeira intenção é a cura” (MBEMBE, 2019MBEMBE, A. Sair da Grande Noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes, 2019. (Coleção África e os africanos), p. 81).

Ao longo deste artigo, discorreremos como o conceito psicanalítico de sublimação, um destino da pulsão diferente do recalque (FREUD, 1915FREUD, S. As pulsões e suas vicissitudes (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)), pode produzir enfrentamento do racismo estrutural e interferir na objetificação dos corpos engendrada pelo discurso capitalista e pela exclusão do sujeito através do discurso da ciência. Mas nossa ênfase incide no fato de que o capitalismo foi produzido a partir da colonização, e este ponto costuma ser negligenciado pelas teorias e práticas do Norte global.

Através do desenvolvimento da minha pesquisa de pós-doutorado junto a minorias sociais e políticas, ao escutar os coletivos de movimentos populares um insuportável grito afônico ecoava em uníssono nos ouvidos psicanalíticos tão sensíveis ao sofrimento humano: “Não aceitamos mais o modo como a imprensa, as instituições, o Estado, os representantes da branquitude falam de nós!”. A narrativa dos meios de comunicação sobre o que ocorre com a população manipula os acontecimentos e a reação que se tem diante deles. Essa narrativa é a responsável pelos efeitos de marginalização e, portanto, de aniquilamento da subjetividade das populações afrodescendentes e indígenas. Como diria Althusser em sua leitura de Marx: a televisão é um aparelho ideológico do Estado que, juntamente com sua máquina repressiva, sustenta uma maioria absolutamente inerte ou mesmo aderida ao discurso capitalista e uma minoria ínfima que usufrui das vantagens e ganhos da dominação instalada.

Uma demanda se destacou em meio aos encontros de organizações de favela: dos encontros com tais coletivos populares, foi possível escutar o desejo de registro. Registrar a violência de Estado, contar e escrever a marca em seus corpos, do que tem sido feito por parte da polícia, pela milícia e por diversos níveis distintos das instâncias governamentais. Essa escrita, essa fala, esse canto, essa dança endereçada ao grande público poderia então ser lida ou escutada dentro e fora da favela, o que motivou a ideia de construir uma mídia muito diferente.

O Portal Favelas1 1 Essas ideias aparecem em inúmeros programas. Para assistir, ver https://www.portalfavelas.com/. é uma associação de TVs, rádios, sites e jornais comunitários - alguns já existentes e outros novos ou em construção - que pretende romper um silenciamento histórico através do enfrentamento do medo pela ameaça de morte constante e pela chance de constranger os abusos policiais com imagens e relatos divulgados pela própria população que testemunha o açoite e que sensibilize a sociedade omissa. Fazer ressoar notícias nos quatro cantos, dar mostras de que a favela é espaço de cultura, de arte, de memória, de solidariedade, de desejo de vida.

VIOLÊNCIA DE ESTADO: ORIGINA-SE NA LÍNGUA E EFETIVA-SE NA PROPAGANDA

Segundo os comunicadores da TV Portal Favelas2 2 Ver: https://www.youtube.com/c/TVPortalFavelas. , assim como os escravizados eram responsáveis pela produção agrícola na plantation, os habitantes dos morros e periferias sustentam hoje as grandes metrópoles. Os corpos que construíram as avenidas, prédios e fábricas coexistem nos espaços urbanos como novos quilombos. Se seus habitantes são, por um lado, responsáveis pela produção de riqueza e pelos serviços na era uber-globalizada, por outro, são violados pela neo-casa grande dos acionistas que multiplicam suas cifras sem produzir qualquer “bem” para o Outro e que, ainda, terceirizam o chicote e o pau de arara pelo fuzil e pelo caveirão aéreo controlados pelo Estado. Se as classes trabalhadoras no Brasil são aviltadas, o que mais chama a atenção é que, com as pessoas negras, a polícia humilha mais, marginaliza a priori e, de preferência, mata3 3 Segundo dados do IBGE, em 2018, as taxas de homicídios contra a população, apontam que 71,5% eram negros. “Segundo o Mapa da Violência de 2016, no Brasil, em 2014, foram mortas quase 45 mil pessoas por arma de fogo, o que significa dizer que aqui são assassinadas mais pessoas do que em alguns países em guerra, sendo que a grande maioria assassinada no Brasil é negra. Enquanto que, entre os anos de 2003 e 2014, houve queda de 26,1% no número de brancos mortos por arma de fogo, no tocante à população negra houve aumento de quase 47%. A vitimização negra que, em 2003, era de 71,7%, saltou para 158,9% em 2014, ou seja, naquele ano foram assassinados 158,9% mais negros do que brancos. Alagoas tem sido o estado que mais mata negros de forma violenta, em 2014, foram assassinados 1702 negros e 60 brancos, ou seja, a taxa de vitimização negra naquele estado foi de 1028,2%. Dados do Ministério da Saúde sistematizados por Goes (2016) revelam que, em 2014, meninas e adolescentes (até 19 anos) foram as principais vítimas de estupro (72%), 40% passaram por repetidas experiências de estupro e 61% eram negras” (Relatório Relações Raciais CFP, 2017, p. 13-14). .

Desde a implantação da política de “pacificação das favelas do Rio”, a Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro vem registrando uma gestão do território de forma militarizada e seu ápice foi o decreto n. 9.288, de 16 de fevereiro de 20184 4 Em 2018, o Circuito de Favelas por Direitos, uma iniciativa da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que reúne organizações civis e órgãos públicos capazes de fazer uma escuta qualificada dos moradores, percorreu mais de 30 favelas e cerca de 60 defensores públicos, juntamente com servidores, advogados, pesquisadores e ativistas chegaram a três centenas de pessoas e colheram mais de 500 relatos nas ruas, becos, vielas, casas e espaços comunitários. Um relatório publicado pela defensoria em 2019 afirma que são mais de 30 os tipos de violações por parte da política contra os moradores, que inclui “invasão a domicílio”(Relatório do Circuito de favelas por Direitos, 2018, p. 108-112) (crime tipificado pelo art. 150), “violência sexual” (art. 213), “Dano ao Patrimônio na residência”, “subtração de bens” (arts. 155/157), “ameaça e agressão física” (art. 147), “violação contra crianças” (art. 5, Lei 8.069/90, ECA) “extorsão”, “disparos a esmo” e muitos, muitos outros (ibidem, p. 89-125). . Nessas operações, são utilizados armamentos de guerra (tanques, caveirões e drones) e estratégias militares de combate (troia, fichamento de pessoas, invasão de domicílio, execuções em massa). Recentemente, em 2018/2019, foram usados helicópteros como plataforma de tiro, impedindo a circulação das pessoas, provocando o fechamento de creches e escolas, e levando a um pânico generalizado. Mas, principalmente, sendo realizada a execução sumária de muitas pessoas, entre elas, inúmeras crianças e adolescentes.

Para que se sustente um espaço de exceção dentro do Estado democrático de direito, onde se convive com verdadeiros campos de concentração a céu aberto em meio às cidades, é preciso criar na opinião pública a ideia, plantada e reiterada cotidianamente, de que tais territórios são extremamente perigosos. Tratam-se não de informações, mas de uma máquina tecnológica poderosa de propaganda. O poder que institui tal marketing perverso é a imprensa. Uma cadeia de jornais, rádios, televisões utiliza a força da imagem e da produção de supostas verdades repetidas como forma de produzir factoides, que garantam o apoio da sociedade a essa militarização ostensiva. Embora a violência já fosse excessiva, com a eleição de Jair Bolsonaro, aumentou sobremaneira a perversa máquina de poder de morte, que mantinha a população inerte frente à barbárie das operações policiais nas favelas. Além disso, as redes e fake news promovidas por disparos em massa via Whatsapp e outras redes sociais fomentaram o acirramento do discurso de ódio e, por consequência, a prática de extermínio à população negra, indígena e periférica, assim como houve um aumento vertiginoso dos índices de feminicídio, de assassinato de pessoas LGBTQIA+ e de violência contra crianças.

De acordo com Kempler (2009KEMPLER, Victor. LTI: a linguagem no Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.), o que permitiu a Hitler a dominação da massa para implantar a certeza da pureza da raça alemã e perseguição aos judeus e a todo aquele que fosse uma ameaça ao seu poder, foi a criação de um novo uso da língua, e o modo de difundi-la foi a propaganda. A imprensa teve importância fortíssima para a disseminação e sustentação do nazismo.

De acordo com a psicanalista Betty Fuks (2020FUKS, B. Da linguagem do terceiro Reich e da linguagem do bolsonarismo. In: Psicanalistas pela Democracia [online]. Jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://psicanalisedemocracia.com.br/2020/06/da-linguagem-do-terceiro-reich-e-da-linguagem-do-bolsonarismo-por-betty-bernardo-fuks/ . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://psicanalisedemocracia.com.br/202...
), a fonte de inspiração do bolsonarismo não é propriamente a ideologia nazista, mas claramente a linguagem do Terceiro Reich, que serviu de garantia para Hitler ocupar o locus do poder. Traduzidas do alemão, o aspirante a tirano brasileiro usa expressões linguísticas, paráfrases, que mantêm a estética destrutiva e os temas racistas e militaristas do Terceiro Reich. Através de uma língua empobrecida, são repetidos jargões e mentiras reiteradas para incitar o ódio do povo ao Outro e, principalmente, em uma tentativa de apagar a história. “É o caso da declaração de Bolsonaro, quando de sua visita ao Museu do Holocausto em Israel, de ‘não ter dúvidas’ que o nazismo tenha sido um movimento de esquerda. Aí reside uma das chaves mais destrutivas do governo: não se trata aqui de uma tentativa de apagar as marcas da História de maneira semelhante ao que se faz num crime onde, como indicou Freud em O homem Moisés e o monoteísmo, ‘a dificuldade não está na execução do ato, e sim na eliminação de seus rastros’” (FREUD, 1939 apudFUKS, 2020FUKS, B. Da linguagem do terceiro Reich e da linguagem do bolsonarismo. In: Psicanalistas pela Democracia [online]. Jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://psicanalisedemocracia.com.br/2020/06/da-linguagem-do-terceiro-reich-e-da-linguagem-do-bolsonarismo-por-betty-bernardo-fuks/ . Acesso em: 10 jul. 2021.
https://psicanalisedemocracia.com.br/202...
, p. 76).

A outra característica fundamental, marcada pela autora, que faz convergir as estratégias nazifascista e bolsonarista na manipulação das massas, é o controle da sexualidade através do discurso religioso, que não tolera outras formas de sexualidade que não seja a heterossexual e patriarcal. De acordo com Doria (2020DORIA, P. Fascismo à brasileira: como o integralismo, maior movimento de extrema-direita da história do país, se formou e o que ele ilumina sobre o bolsonarismo. São Paulo: Planeta, 2020.), o movimento integralista brasileiro de 1930 - que teve forte influência do fascismo de Mussolini, utilizando os mesmos mecanismos de poder e que, segundo o autor, é precursor do bolsonarismo - tem uma diferença em relação ao nazismo alemão e ao fascismo italiano. Ele utiliza acima de tudo o componente religioso para a manutenção do poder. Humberto Eco, em seu livro Ur-fascismo (fascismo eterno), de 2018ECO, H. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018., afirma que as características do fascismo e do nazismo, mesmo com sua dissolução histórica como regime, após a Segunda Guerra Mundial, permanecem como traços na cultura pós-moderna.

No caso do Brasil, o fascismo apoia-se no fundamentalismo evangélico para fins de impor verdades inquestionáveis que neguem qualquer prova científica capaz de abalar a palavra do tirano. O aspecto fundamental do fascismo é que a resposta fascista para a cultura é sempre uma guerra, como observa Eco citando Goebbels, o responsável pela propaganda nazista: “Toda vez que ouço falar de cultura, tenho vontade de sacar minha arma” (GOEBBELS apudECO, 2018ECO, H. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018., p. 49).

Mas, por que a cultura é tão ameaçadora para os objetivos fascistas?

Certamente porque ela tem características capazes de subverter a ordem autoritária, principalmente através da subversão dos usos da língua.

Freud (1932) atribui a fatores específicos a submissão da maioria oprimida por uma minoria de detentores do poder. As leis foram criadas para substituir a violência física, embora ainda sejam violentas, pois passou para as mãos do Estado o direito de punir e de reprimir as pulsões. Muitas vezes, entretanto, o conjunto de leis não é suficiente para passar da violência real para a simbólica. A imprensa, a influência religiosa e a própria coerção pela violência são formas de controlar os possíveis arroubos da população oprimida quando tenta sair dessa submissão. Muitas vezes realizada por diferenças raciais, a coerção constitui estados próximos à guerra para manutenção do domínio. Além da rebelião e da tentativa de mudanças de leis por protestos e lutas políticas, o terceiro elemento capaz de alterar as relações de poder de uma elite para com o povo, diz Freud, “consiste na transformação cultural dos membros de uma comunidade” (FREUD, 1932FREUD, S. Por que a guerra? (1932). Rio de Janeiro: Imago , 1987. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23), p. 200).

Fanon (2015FANON, F. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed UFJF, 2005.), psiquiatra e revolucionário nas lutas de independência da Argélia, partiu da leitura de Freud para pensar os destinos sintomáticos da colonização, apontando a violência revolucionária como solução para uma saída do jugo colonial. Se a violência, para a psicanálise, está no ato de fundação da cultura, através do assassinato de um pai tirânico que podia gozar livremente, é na revolta das classes trabalhadoras e das nações colonizadas que se pode instaurar a possibilidade de recuperar a condição de sujeitos. O parricídio em Totem e tabu (FREUD, 1913), realizado coletivamente, é justamente o que instaura o campo simbólico, que é também o campo da linguagem e a fundação da cultura. Mbembe parece tomar a proposição fanoniana como alegoria e extrai desse saber um apontamento para a potência libertadora não simplesmente da linguagem, mas especificamente de sua polissemia, de sua dimensão equívoca e poética. Nesse sentido, faz uma ressalva acerca da impossibilidade de constituir a decolonização de um país a partir da abolição. Para ele, é preciso uma segunda abolição, que diria respeito à posição subjetiva dos próprios oprimidos. É preciso se libertar do ódio de si e produzir também uma operação de mudança de discurso.

Os moradores de favelas não buscam, segundo nossa escuta, simplesmente um levantamento quantitativo sobre o número das violações e chacinas, já que a própria ouvidoria da defensoria pública do estado faz esse levantamento. Não é a denúncia a principal motivação para um apelo ao Outro. O sujeito da favela quer testemunhar, quer transmitir aquilo que é impedido de passar de geração em geração. Por que seu saber e sua língua são interrompidos?

Lélia Gonzales (1984GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.) afirma que há apenas três lugares fixos para a mulher negra no Brasil, mas apenas dois são aceitos. Como doméstica (lugar servil) e como mulata, no carnaval, quando o corpo da mulher negra é alçado como fetiche. Categorias impostas pelo europeu. Os dois se condensam em mucama (mulher de estimação, que, na história do Brasil, sempre foi objeto do estupro dos escravagistas). A leitura de Gonzales sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo brasileiros resulta em um sintoma: o racismo como neurose cultural brasileira.

A autora mostra que Gilberto Freyre apresenta a ama de leite como figura da babá boa, que só aí “vira gente”. No momento seguinte, no próprio texto, o autor, afirma Gonzales, “começa a discutir sobre a diferença entre escravo (coisa) e negro (gente)” (GONZALES, 1984GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.), e acaba por desvalorizar ambos. Através da figura da “mãe-preta”, a verdade surge da equivocação (LACAN, 1979 apud GONZALES, 1984). A língua que atravessou gerações e tem sua origem denegada recebeu das mães pretas o legado multicultural entre África e populações indígenas e nordestinas, e se espalhou por todos os espaços da sociedade brasileira, principalmente os filhos brancos do Senhor.

[...] E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira, [...] Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês. A função materna diz respeito [...] ao ensino da língua materna e a uma série de outras coisas, inclusive o nome do pai [...] Ela passa prá gente esse mundo de coisas que a gente vai chamar de linguagem. (GONZALES, 1984GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244., p. 343).

O “pretuguês” transmitido pela mãe preta é aquilo que o branco recalca, afirma a autora. Há aqui um apontamento muito importante: a tentativa de apagamento da opressão quanto ao gênero aparece como elemento fundamental; a questão do racismo se articula com uma questão sobre a diferença sexual (MILLER, 2016MILLER, J-A. Racismo e extimidade. Derivas Analíticas - Revista Digital de Psicanálise e Cultura da EBP-MG, n. 4, maio 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-2/o-entredois-ou-o-espaco-do-sujeito . Acesso em: 2 fev. 2018.
http://www.revistaderivasanaliticas.com....
).

De acordo com Guerra (2020GUERRA, A.; TEIXEIRA, L.; TOROSSIAN, S. Da escravização ao genocídio: amarrações subversivas entre psicanálise e política junto à juventude negra. In: DANZIATO, L.; POLI, M. C.; COSTA-MOURA, F. (orgs.). Cisões e paradoxos na política brasileira: efeitos para o sujeito. Curitiba: Appris, 2020.), a violência sistêmica engendrada pelas estruturas simbólicas de exclusão no Brasil aprisiona os corpos negros e faz deles um corpo descartável, matável, e isso se deve a uma ideologia da branquitude, herdeira das teorias científicas sectaristas que produziam o ideal humano como cor branca, com ideias supremacistas. As teorias da miscigenação, que produziram o mito da cordialidade das raças alimentado pelos estudos antropológicos com base na mestiçagem como símbolo da identidade nacional, nega a negritude e o negro como condição de vítima. A miscigenação é um projeto, um movimento em relação ao branqueamento como ideal social e inconsciente. Lélia aponta que o projeto da miscigenação fracassa, já que é impossível apagar a marca de nossa amefricanidade.

Em oposição à língua plural periférica, temos a monolíngua do déspota colonizador, que obriga a nação colonizada a esquecer sua própria língua para falar a língua do seu opressor. O projeto do Portal Favelas visa valorizar as expressões populares, o seu estilo de falar.

Mesmo após a abolição do racismo institucional, o “espírito do racismo se deslocou e passou a se anunciar em outras línguas” (MBEMBE, 2019MBEMBE, A. Sair da Grande Noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes, 2019. (Coleção África e os africanos), p. 50). De acordo com o pensador africano, as imigrações europeias a partir do séc XVII, a importação de mão de obra servil na região do Cabo, a implantação de indianos em KwaZulu-Natal no começo do boom açucareiro e também os chineses no começo da era industrial fizeram da África do Sul um país “transnacional”.

A política pós-apartheid exige sair da lógica da vingança e uma das formas é a produtividade artística da memória e também uma poética do religioso. A primeira condição para sair desse lugar de objeto-dejeto é a libertação do ódio de si e do ódio do Outro, afirma Mbembe. Libertar-se do vício da lembrança do próprio sofrimento como vítima. “Se libertar desse vício é a condição para reaprender a falar uma linguagem humana e, eventualmente, criar um mundo novo” (MBEMBE, 2019MBEMBE, A. Sair da Grande Noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes, 2019. (Coleção África e os africanos), p. 55). O monolinguísmo imposto pela língua do colonizador, não somente criou a república, o Estado, mas criou a si mesmo, sob as ruínas de outras línguas.

SUBLIMAÇÃO E DECOLONIZAÇÃO

De acordo com Crítica da razão negra (MBEMBE, 2018aMBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 edições, 2018a.), a escravização do negro africano foi a gênese da tomada do ser humano como mercadoria e, por essa razão, o colonialismo originou o capitalismo. O africano foi o único ser falante vendido e trocado e, ao mesmo tempo, arrancado de seu território. O homem escravizado passou a ser objeto de troca do senhor, sua propriedade, podendo ser vendido e comprado enquanto coisa, usado como bem que trazia lucro para seu proprietário. O colonialismo, segundo nos mostra o cientista político, não foi um evento datado e superado. Ele instituiu uma tecnologia de poder que excede o que Foucault chamou de biopolítica; fazer viver uma parte da sociedade e deixar morrer aqueles que não interessam ao estado de bem-estar social. O biopoder, de acordo com Foucault (2008bFOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.), empreendeu dispositivos capazes de manipulação da espécie através do controle das populações, cujo argumento é a preservação da vida e, para isso, o controle dos corpos, de sua sexualidade.

O que Mbembe (2018bMBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições , 2018b.) faz avançar em relação a Foucault é algo muito mais radical, instituído e perpetuado pelo empreendimento colonial e acirrado pelo neoliberalismo. A necropolítica é uma política de morte, que sequer promove ações de vida para a maioria. Sua expressão máxima é o extravio de pessoas de um local de pertencimento - através de um soberano que empreende o extermínio de determinadas populações - não apenas num processo histórico e econômico, mas através de uma lógica de dessubjetivação centrada na dominação racial. A mortificação não se restringe ao assassinato, mas a uma animalização do ser humano, uma tentativa de morte em vida. Atualmente, há um empuxo ao que o autor nomeia de devir negro no mundo, que levaria a uma tendência à condição negra, para todos aqueles que não interessam aos objetivos de lucros do mercado. Isso não significa que o racismo arrefeceu - seu alvo principal continua a ser os afrodescendentes -, mas se alastra à tendência de empuxo à coisificação de todo ser humano subalternizado.

No entanto, o próprio devir negro é um conceito que aponta a positividade de gerações diaspóricas pelo mundo, que encontraram formas de se defender dos horrores coloniais e, com sua força cultural e sua sabedoria revolucionária, têm muito a nos ensinar sobre as formas de enfrentar o colonialismo.

Para entendermos o fundamento do que nomeamos como gozo racista (RIBEIRO, 2020RIBEIRO, M. Como tratar o gozo racista? In: DANZIATO, L.; POLI, M. C.; COSTA-MOURA, F. (orgs.). Cisões e paradoxos na política brasileira: efeitos para o sujeito. Curitiba: Appris , 2020.) - conceito extraído a partir da escuta dos sujeitos que sofrem racismo e estão em análise e da própria escuta dos coletivos do movimento negro e dos movimentos de favela, através dos dispositivos de conversação -, é preciso considerar a torção que Lacan realiza na leitura do texto freudiano de Psicologia das massas (FREUD, 1921FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do eu (1919[1921]). Rio de Janeiro: Imago , 1987. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)), ao construir sua lógica do laço social. Além da identificação ao líder como fator maior de unificação das massas, residiria no falante uma tendência mais primitiva, a saber, uma primeira rejeição pulsional, a expulsão de um objeto segregado. O bode expiatório, como ocorreu com o judeu na Alemanha nazista, é eleito à eliminação por uma multidão disforme daria uma coesão grupal através do ódio (FREUD, 1921FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do eu (1919[1921]). Rio de Janeiro: Imago , 1987. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)). O ódio seria dirigido àquele que goza diferente de mim, um estrangeiro, e essa força seria tão ou mais unificadora do que a identificação com e o amor ao líder. O crime fundador no caso do gozo racista, termo que temos cunhado ao longo desta pesquisa, não seria, segundo Laurent, “o crime do assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito” (LAURENT, 2014LAURENT, E. Racismo 2.0. Lacan Cotidiano, n. 371, 2014(versão em português). AMP Blog, Disponível em: Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com.br/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html . Acesso em:31 jan. 2018.
http://ampblog2006.blogspot.com.br/2014/...
, p. 3).

Vale lembrar que Psicologia das massas (1921) foi uma obra escrita por Freud logo antes do seu exílio, quando da tomada da Alemanha pelo nazismo. Portanto, podemos considerar que a adesão da massa a um ideal do eu representado pelo líder é um modelo bastante próprio às igrejas e ao exército, que funcionam por níveis hierárquicos, doutrinas, poder centralizador e principalmente na sustentação de um gozo compartilhado pelos membros do grupo, que são fruto da idealização do líder. A estratégia de poder manipula esta identificação dos “irmãos” ao líder totalitário e elege um objeto hostil a ser eliminado, como ocorre no racismo nazista em relação aos judeus. O nazismo, entretanto, levou a mente grupal longe demais. O Füher encarna o pai que não está morto e que pode gozar livremente sem totem nem tabu; ele é a própria lei e seu gozo é ilimitado. Esse gozo sem barras é assumido por todo o grupo, que se sente poderoso, e suas barreiras de vergonha, nojo, medo e ameaça que impedem o ato são reduzidas.

O sujeito repercute a estrutura grupal; o objeto aviltado que é atribuído ao Outro - a ser eliminado pela execução ou pela anulação subjetiva - encarna afinal um gozo originalmente próprio, gozo extraído da ejeção do próprio objeto. Entretanto, por que, no caso do racismo, esse gozo que é tomado como fora é tão insuportável para o racista, ao ponto de que ele precisa praticamente criar um delírio, uma certeza de que aquele gozo precisa ser eliminado?

A experiência do unheimlich, estranho, tal como desenvolvida por Freud (1919), é esclarecedora para a pesquisa sobre o racismo, já que o próprio sujeito não percebe que o objeto que ele odeia e quer eliminar foi produzido por ele. O estranho se elucida com o objeto a lacaniano através de sua aparição no terreno dos objetos comuns e é vivida com a presença do sinistro, do bizarro, do inquietante. O mais íntimo é um objeto que paradoxalmente encontra-se no exterior, é êxtimo (LACAN, 1959LACAN, J. A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro, Zahar , 1997, p. 111-159. (O seminário, 7)-1960, p. 173). Hitler chegou a formular certa vez a estrutura presente no fenômeno racista do nazismo: todo alemão tem um judeu dentro de si, que deve ser eliminado.

Para Freud, o familiar heimlich é o mais íntimo, doméstico, é o que causa angústia. Ao se defrontar com este objeto fora, fazendo sua aparição na realidade ou localizado no Outro, apresenta em sua dimensão de presença, alheia à perda estrutural do objeto do desejo humano. Na emergência da angústia, falha a pretensão de autonomia do eu, que não mais se harmoniza com a imagem de domínio na qual, até então, se reconhecia. Das Ding, esse primeiro exterior, é algo cuja aproximação produz horror, já que o objeto perdido deixa sua marca, como forma de representação de sua ausência. É através da linguagem que podemos nos aproximar do objeto êxtimo como falta. Ali, onde a falta está obturada, a violência advém.

O ódio que recai sobre um ponto insuportável experimentado pelo fenômeno racista é a tentativa de extirpar imaginariamente, pelo grupo, um gozo do Outro que não reconheço. Tem uma dimensão estrutural e pode ser entendido, segundo Miller (2016MILLER, J-A. Racismo e extimidade. Derivas Analíticas - Revista Digital de Psicanálise e Cultura da EBP-MG, n. 4, maio 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-2/o-entredois-ou-o-espaco-do-sujeito . Acesso em: 2 fev. 2018.
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), pelo estatuto que o imigrante adquiriu no contemporâneo. O desprezo em relação aos signos africano e indígena deve ter como questão o enigma da transmissão desse rosto estrangeiro em sua dimensão familiar, próxima, doméstica. No caso do escravizado negro, ele era também moeda, cifra, fonte de lucro. Não foi simplesmente um estrangeiro, inimigo. Foi sequestrado de sua terra, de seu local de pertencimento, passou a ser um objeto de posse e de uso, quase uma parte do corpo do senhor, que poderia gozar daquele corpo como bem lhe apetecesse. A figura do estrangeiro parece provocar de cara uma repulsa e uma tentativa de afastamento. O escravizado negro era domiciliar, quase um membro da família. Mas, não, ele era algo mais íntimo, muito mais íntimo.

Trabalhar com o paradoxo colocado pelo unheimlich freudiano para interrogar modos de produção da decolonização é o desafio apresentado pela sensibilidade cultural, histórica e estética. O afropolitismo, conforme Mbembe nos ensina, é um trabalho subjetivo que envolve o coletivo e, poderíamos dizer, operaria o tratamento do que chamamos de “gozo racista”.

O afropolitismo vem crescendo no mundo e está ligado às raízes multiculturais que resistem a uma hegemonia do falocentrismo. Há uma ponte entre prazer sexual e aquele que resulta do ato de torturar seus inimigos. “O falo trabalha,” “é ele que fala, dá ordens e age”. A luta política ganha a aparência de luta sexual. Se quisermos compreender a vida psíquica do poder e os mecanismos de subordinação na pós-colonia, adepta do estupro voraz e da afirmação brutal do desejo de potência, a representação fálica do déspota compreende uma repressão original das tradições patriarcais do poder na África: a da homossexualidade. O ânus era apresentado no discurso como objeto de aversão e sujeira durante a colonização, pois representava o zênite da anarquia do corpo e da intimidade, do segredo. Recolocar o lugar da defecação, do excremento, como inteiramente outro, inteiramente íntimo, representante de uma “potência oculta”, foi um empreendimento de dominação que é recuperado pela arte africana, também se apresentava em rituais sagrados.

O declínio da força fálica é um discurso que vem crescendo. Se, em vários países, a guerra contra os homossexuais os tornou a escória e dejetos humanos, na África do Sul, a constituição nacional passou a incluir seus direitos de matrimônio. Aqui, o autor toma o falo como sinônimo de potência fálica e não no sentido psicanalítico de castração, como referência à falta, própria à conceitualização lacaniana.

Portanto, vale tomar a argumentação mbembiana acerca da produção artística, poética do afropolitismo a partir da sublimação tal qual trabalhada por Lacan no Seminário VII ([1959-1960] /1997), para extrair os desdobramentos desses efeitos no campo do gozo, considerando, sobretudo, suas consequências subjetivas e políticas. A sublimação é uma satisfação que produz uma operação muito particular com das Ding e que envolve diretamente a dimensão unheimlich do inconsciente. O ponto diante do novo a partir do sujeito não se reconhece e, ao mesmo tempo, reencontra algo de absolutamente familiar, é reinventado. Ao objeto êxtimo é dado um destino muito específico. A sublimação envolve algo que se passa entre um sujeito, sua satisfação e a produção de um objeto novo no laço social. Freud chega a dizer que o processo sublimatório seria capaz de elevar as barreiras entre cada eu individual e o coletivo, produzindo certa satisfação justamente onde todo sujeito perde algo no processo de socialização do desejo. Em Psicologia das massas (1921), Freud chega a falar das festas de expressão popular e cultural, do folclore como momentos em que o que está recalcado em um grupo vem à tona; trata-se da emergência do inconsciente, da diferença que a massa tentou apagar. Em termos lacanianos, o destino para a pulsão define o tratamento do real.

Segundo Safatle (2006SAFATLE, V. A paixão do negativo. São Paulo: UNESP, 2006, p. 280-298.), em Lacan, a experiência da sublimação aponta certa estética do real como formalização de experiências de descentramento. Ao tratar da ética psicanalítica, Lacan mostra que toda arte se caracteriza por uma organização em torno do vazio de das Ding. Se, no racismo, ocorre um gozo maciço do objeto em sua vertente de presença, uma hipótese bem interessante de pesquisa tem sido pensar que esse trabalho que a sublimação faz com o objeto, que aponta para o vazio, pode ser um modo de esvaziar o gozo racista.

A definição mais conhecida para a sublimação - elevar o objeto à dignidade da Coisa - oferecida pelo desenvolvimento lacaniano sobre a ética, subverte o amor cortês que apresentava a mulher como ideal. Sempre a mesma vênus, a mesma dama. Elevar a dignidade da coisa significaria subtraí-la de toda determinação atributiva e qualitativa. O objeto feminino porta uma privação, uma inacessibilidade, diz Lacan.

Freud desenvolve o conceito de das Ding a partir do Nebenmensch, que é o mais próximo da ambiguidade do homem, já que é frente ao desamparo que se produz o laço com o Outro, mas, como este é sempre insatisfatório, a impossibilidade de alívio joga o bebê humano para um mal-estar impossível de ser aplacado. O mandamento “ama a teu próximo como a ti mesmo” mostra o paradoxo. Uma exterioridade jaculatória que se identifica no seu íntimo e que o homem atribui a algo de fora; eis o ponto preciso onde se produz o grito.

No Seminário XVI (1968-1969), Lacan volta à questão da sublimação ao se referir à magnífica gravura de Munch que se chama O grito, “que pode expressar justamente esse grito paradoxal do sujeito frente ao complexo do próximo: trata-se de uma paisagem calma, onde há uma estrada e uma mulher em primeiro plano”. Ela grita desesperada, no entanto, em total silêncio. O próximo aqui não é o Outro, mas é a iminência intolerável do gozo referido ao objeto. Ao “vacúolo”, no ponto mais próximo e íntimo que é vivido como externo, Lacan nos indica usar o termo “êxtimo” (LACAN, 1968LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro, Zahar , 2008, p. 211-227. (O seminário, 16)-1969, p. 219).

De acordo com Safatle (2006SAFATLE, V. A paixão do negativo. São Paulo: UNESP, 2006, p. 280-298.), a produção do objeto artístico na obra de arte só pode ser entendida como sublimação quando mostra, aponta, realiza a destruição dos protocolos de identidade e representação. A negação do objeto é algo próprio à pulsão de morte. A pulsão de morte poderia ser pensada como um motor de desalienação no imaginário, na medida em que a sublimação revela que o objeto empírico é, a princípio, um polo imaginário de projeção narcísica. A sublimação “pode se apresentar como satisfação da pulsão de morte ao produzir um objeto que é a destruição de sua própria identidade” (SAFATLE, 2006SAFATLE, V. A paixão do negativo. São Paulo: UNESP, 2006, p. 280-298., p. 284).

Portanto, podemos partir da hipótese de que uma identidade fixada pelo gozo nazi ou pelo gozo racista colonial, promovido pelos ideais da branquitude, encerram o “judeu” ou o “negro” como signos de gozo, colando o significante a uma significação, e que a operação pulsional sublimatória pode servir para provocar um descolamento, um descentramento nessa fixidez.

No texto A salvação pelos dejetos (2010), Miller destaca que a sublimação seria uma possibilidade de elevar, idealizar o dejeto. É como a psicanálise, que recolhe os restos - sonhos, atos falhos, sintomas - e faz deles uma categoria de verdade.

O surrealismo é um bom exemplo de estetização do dejeto, afirma o autor. Ele faz passar o dejeto ao registro da estética, mas sem botar em questão a definição do belo. O ato de elevar o urinol à categoria de objeto artístico evidencia essa subversão possível com o objeto-resto. O gesto de Marcel Duchamp não parece se distanciar em nada ao ato subversivo de Lélia Gonzales, quando legitima o lugar da mulher negra no Brasil como aquela que transmite, pela lalíngua brasileira, a cultura silenciada de um povo, quando profere um dizer que ficou marcado, escrito na história do movimento antirracista: “Agora o lixo vai falar, e numa boa!”.

Macedo (2014MACEDO, L. Primo Levi: a escrita do trauma. Rio de Janeiro: Subversos, 2014.) desenvolve a importância da escrita no testemunho de traumatizados do estado de exceção nazista, particularmente o do Primo Levi, que passou à escrita após ter sido confinado e torturado em Auschwitz. No estado absolutamente racista e assassino, constituído por Hitler, Levi (2010) mostra como a morte era trivial e cotidiana, tanto a morte como o morrer; uma fábrica de cadáveres, que tornava indiscernível a diferença entre um corpo e outro.

Sobre os restos do campo de concentração, pergunta Agamben (2008AGAMBEN, J. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.): quem seria o sujeito do testemunho dos sobreviventes? Há no testemunho ao menos dois sujeitos: o sobrevivente, que pode falar, mas não tem nada a dizer já que quem teria a dizer sucumbiu; e aqueles que se tornaram o “muçulmano”, teria a dizer, mas foi tomado por tamanha objetificação que está impedido de falar. Para o filósofo italiano, o que dá testemunho é o não-homem no homem. O segundo empresta a voz para o primeiro, já que há algo que se dessubjetivisa integralmente e emudece. Portanto, o sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma dessubjetivação. O que resta de Auschwitz não são nem os mortos, nem os sobreviventes, nem os submersos, mas o que resta entre eles.

OUTRA GLOBALIZAÇÃO E O PORTAL FAVELAS

Atualmente, as formas de influência e manipulação das mídias digitais se intensificaram e se complexificaram de tal modo, com os esquemas do big data e dos algoritmos da internet, que é muito difícil fazer uma análise sobre a repercussão subjetiva do Dilema das redes (2020). O famoso documentário de Jeff Orlowski retrata de forma didática e surpreendente como o sistema criado por desenvolvimento de tecnologia da informação se tornou um grande olho que não apenas vigia, filma e anota, particulariza cada um dos seus usuários, como ocorria no panóptico de Jeremy Bentham, lido pela sociedade disciplinar analisada por Foucault, mas permite agrupar perfis de interesses de consumo, oferecendo ao usuário exatamente aquilo que ele pensa querer. Ele mobiliza uma rede de consumo e compulsão no lugar do desejo. Ou seja, a influência de manipulação sobre a novidade do momento, passou a servir para destruir a democracia de países através de fraudes eleitorais, com fake news, manipulação de dados e provocações, das mais ignorantes e escatológicas às mais criminosas. São estratégias que mobilizam gozos e afetos.

Duas experiências do uso do novo paradigma comunicativo da internet foram, contudo, utilizadas de modo diferente para a eleição de governantes progressistas. Os novos governos assumiram a presidência para justamente restabelecer o espaço democrático e promover a recuperação da igualdade social; como exemplo, as eleições na Espanha e em Portugal. Segundo Sabariego (2017SABARIEGO, J. Tecnopolítica e movimentos sociais globais recentes: questões preliminares para um estudo de caso espanhol e português. In: SOUSA SANTOS, B.; MENDES, J. M. (orgs). Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas. Lisboa: Edições 70, 2017.), a chamada “tecnopolítica” permitiu que movimentos populares dessem uma resposta às democracias portuguesa e espanhola, repolitizando a sociedade, tanto para uma nova geração quanto atuando intergeracionalmente. Uma pedagogia democrática inédita surgiu das redes, através do crescimento dos movimentos sociais, que lutam pela água, pela terra, lutas feministas e ecológicas; atos políticos produzidos quase que secretamente por milhares de pessoas. Coletivos plurais de organização horizontais foram criados em função do interesse em comum. A primavera árabe, o Ocupy e grandes manifestações feministas na América Latina apontam para pautas relacionadas à sexualidade e às liberdades individuais. Tais usos tecnopolíticos das redes desafiam a ordem dominante. Estes fenômenos parecem se aproximar da definição de grupos efêmeros que Freud (1921) cunhou para distinguir dos grupos artificiais. Ele utiliza a multidão e a contingência para aventar a possibilidade de transformações éticas impossíveis a um único indivíduo. Ainda seria preciso, no entanto, segundo Sousa Santos (2017SOUSA SANTOS, B.; MENDES, J. M. Introdução. In: SOUSA SANTOS, B.; MENDES, J. M. Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas. Lisboa: Edições 70 , 2017.), superar a infoexclusão, mas as lutas por direitos humanos, segundo ele, têm sido realizadas através de organizações pela internet, criando novos processos políticos de participação.

Propomos pensar os coletivos que se reúnem em torno de determinada causa - feminismo negro, trabalhadores sem-terra, moradores de favela etc. - como diversos do grupo que veicula uma “mente grupal”, conforme Le Bon nos mostra, na leitura freudiana de Psicologia das massas (FREUD, 1921FREUD, S. O estranho (1919). Rio de Janeiro: Imago , 1987. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17)) e trazer o paradigma desses grupos efêmeros, organizados em torno do Comum, para entender seus movimentos e efeitos. No grupo freudiano, havia a pregnância da identificação como base de unificação das semelhanças e apagamento das diferenças. Na minha experiência como pesquisadora e como psicanalista participando dos grupos e acolhendo as questões que surgem no caso dos movimentos sociais de politização das minorias oprimidas no Brasil, o processo parece, pelo contrário, uma estratégia de decolonização e des-identificação dos ideais eurocêntricos e do saber universal que foi utilizado para submissão.

Jorge Alemán (2012ALEMÁN, J. Soledad: Común. In: ALEMÁN, J. Políticas em Lacan. 1 ed. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012.), ao analisar o conceito de Comum (HARDT; NEGRI, 2011), propõe debater as novas formas de coletivo através da proposta dos pós-marxistas articuladas à psicanalise. O Comum, segundo o autor, pressupõe um lugar vazio, desde o qual pode se engendrar de modo contingente e retroativo, promovendo uma invenção como ato político e permitindo que venha à tona a dimensão da enunciação. O autor aproxima essa nova forma de coletivo da proposta de Lacan para as escolas de psicanálise. Enquanto a IPA é estruturada pela lógica da identificação, uma escola na contracorrente da lógica do grupo identitário seria inconsistente, não-toda. Um vazio de saber no centro deslocaria ideologicamente a fixidez de determinada mestria centralizadora: “Toda invenção que se preze por esse nome surge desse hiato constitutivo” (ALEMÁN, 2012ALEMÁN, J. Soledad: Común. In: ALEMÁN, J. Políticas em Lacan. 1 ed. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012., p. 33). Para o autor de A esquerda lacaniana (ALEMÁN, 2010ALEMÁN, J. Uma izquierda lacaniana. Latusa: testemunho e passe - psicanálise e escrita, n. 15, p. 97-114, out. 2010. Rio de Janeiro: EBP Seção Rio.), os movimentos sociais da América Latina são coletivos em movimento, cuja causa aponta para um tornar-se; é um conjunto aberto e indecidível no plano das identificações, o que representa a lógica interna de uma transformação política.

Advertindo que as utopias progressistas podem ser totalizantes, Alemán aponta para a contribuição de Lacan para uma superação no campo da esquerda, para um além da lógica identificatória, através da construção de uma “poética política” (ALEMÁN, 2012ALEMÁN, J. Soledad: Común. In: ALEMÁN, J. Políticas em Lacan. 1 ed. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012., p. 38). A “experiência dos movimentos sociais nacionais e populares latino-americanos pode alcançar uma inteligibilidade inédita que pode interpelar o panorama europeu, em muitos casos, algo adormecido em seu eurocentrismo” (ALEMÁN, 2012ALEMÁN, J. Soledad: Común. In: ALEMÁN, J. Políticas em Lacan. 1 ed. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012., p. 38).

Em Tornar-se negro (1983SOUSA, N. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.), Neusa Santos aponta para o percurso psicanalítico do sujeito que sofre racismo no Brasil, o qual implicaria em abrir mão dessa identificação ao ideal do eu branco, dessa fixação da identidade baseada nos padrões europeus. O sujeito passaria por um processo, segundo entendemos, de singularização baseado na busca da própria ancestralidade e das marcas subjetivas apagadas ou recalcadas, de um povo submetido ao lugar de objeto-mercadoria. No entanto, para produzir um passo para fora da estrutura racista, que permita no futuro superarmos a ideia de raça, não basta o processo singular, mesmo no atravessamento de seu inconsciente pela experiência analítica. É preciso, pelo que fica claro na escuta dos coletivos, um processo de transmissão que cada um produziu da passagem de objeto a sujeito; esta é a chave da decolonização como um processo da pólis. Nesse sentido, as estratégias de mídias populares vêm permitir a difusão e a coletivização desse tratamento dado ao gozo racista a ser inscrito no laço social.

Milton Santos (2008SANTOS, M. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2008.) afirma que excluídos do Estado de bem-estar social estão submetidos a uma ilusão promovida pelo mercado através da mídia hegemônica, que ele denominou de globalização como farsa. Iludem-se com a possibilidade de adquirir, por meios individuais, a partilha dos privilégios econômicos da elite global. Servimo-nos da tese de Milton Santos sobre uma outra globalização - a ser construída pela tomada das novas tecnologias por parte de sujeitos segregados do consumo de bens e do mercado de trabalho, que habitam territórios periféricos -, para permitir a possibilidade de emancipação subjetiva da opressão. Este processo se dá por meio da des-identificação dos significantes mestres colonizadores que inscrevem o discurso colonial que está na base estrutural da sociedade brasileira.

Pudemos escutar de Rumba Gabriel, fundador do Portal Favelas, sobre sua ideia de uma ferramenta tecnológica que permita em tempo real o registro da violência de Estado, em toda a cidade e não só em uma ou outra favela, um ou outro caso isolado, como a mídia trata. Um registro da violência policial que desumaniza os corpos. Rumba propõe uma inversão: são os policiais que serão filmados; frente ao panóptico, é oferecido um espelho.

Diferente dos crimes do nazismo que foram registrados, muitos dos assassinos punidos e os restos transformados em obras em museus para que a marca histórica fosse transmitida para todo o mundo, no Brasil, não houve responsabilização nem dos crimes coloniais nem dos crimes cometidos na ditadura militar pós-64. O que não é inscrito simbolicamente, já afirmara Freud, retorna no desde fora, como ocorreu com a subida ao poder de um representante escravocrata e da tortura da ditadura, em pleno século XXI.

O Portal Favelas pode ser considerado um modo de fazer valer o projeto de Milton Santos, geógrafo negro e um dos maiores pensadores da história brasileira, reconhecido internacionalmente na década de 80. Ele propõe uma transformação nos modos globais de gestão e agenciamento do capitalismo, através de uma mudança na apropriação das novas tecnologias de mídia pelas populações periféricas, de maneira a modificar o cenário global de desigualdades econômicas e sociais. Santos (2008) analisa a globalização em sua dimensão perversa, que se dá na perspectiva econômica através do ganho de riquezas concentrado nas regiões mais ricas e na mão de detentores dos poderes instituídos, que controlam as oscilações do mercado através do poder da mídia de manipular a opinião pública. Haveria três formas de globalização: a globalização como fábula, a globalização como perversidade e uma nova globalização.

A primeira consiste no mundo tal qual nos fazem ver, onde uma máquina ideológica determina que aquelas são as notícias que realmente informam as pessoas, de maneira a homogeneizar os conteúdos, estimular o consumo e uniformizar serviços e atores políticos. A segunda, o mundo tal como ele é, trata-se do capitalismo com suas ilusões de livre concorrência e meritocracia - tem como objetivo o fortalecimento estatal para atender os interesses financeiros, em detrimento da vida. O desemprego cresce crônico, a pobreza, a violência e a fome aumentam e as classes médias perdem sua qualidade de vida.

A perversidade sistêmica está na raiz dessa farsa midiática pela adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que caracterizam as ações hegemônicas, que são diretas ou indiretamente estimuladas pela globalização. De acordo com Santos, uma terceira forma de globalização só poderia se estabelecer pela construção de uma apropriação das novas tecnologias de informação, em prol da convergência de interesses humanos a serviço de novos fundamentos sociais e políticos. O encontro de várias culturas, raças, povos e gostos pode favorecer certa mistura de epistemologias e saberes outros em detrimento do centralismo racionalista e colonial europeu, ou da homogeneização do mercado promovida pelo imperialismo norte-americano. Construir o que ele chamou de uma “nova sociodiversidade”.

Santos propõe, assim, a invenção de um novo discurso, através de uma universalidade empírica que deixa de estar na abstração de alguns filósofos e vai para a experiência ordinária, que pode ser apropriado por cada homem em sua história concreta. Inspirados em Santos e ouvindo as ideias inovadoras de Rumba Gabriel, Patricia Felix, Nivia Raposo, Lourenço Cesar, Maurício Soca, Rute Sales e outras lideranças populares cariocas, podemos afirmar que o Portal Favelas pretende produzir uma transformação de baixo para cima, na qual as pautas políticas, as informações e as produções culturais partam dos países subdesenvolvidos e dos territórios que recebem pouco ou nenhum investimento do Estado, onde os deserdados e os pobres, explorados por seu trabalho ou açoitados pelo desemprego e pela violência, assumam outro lugar.

Uma participante do coletivo fala na conversação sobre os primórdios da construção de um jornal em sua favela, que hoje integra a rede do do Portal. Claudia Rose, fundadora do CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré) e do Museu da Maré, relata que o início da comunicação no complexo de favelas da Maré se deu na época da ditadura - filmavam o cotidiano dos moradores, que, ao falarem do presente, acabavam por contar o seu passado e ir construindo uma memória, uma historicização daquele local abandonado, onde todos tinham vergonha em dizer que ali moravam. Uma subversão foi produzida ao fazerem o programa entrar no canal 3 das televisões e, bem no horário nobre da novela, os moradores desligavam a TV Globo e assistiam sua própria produção cultural. Uma intervenção pirata!

Através de um jornal impresso chamado O cidadão, criaram o termo mareense, que passou a ser utilizado pela população da Maré para nomear seu lugar de pertencimento àquele território, rompendo com o estigma de espaço degradado que discriminava cada habitante. O processo de criação da mídia produziu uma rede por toda a favela, que redundou na criação do primeiro museu mantido por moradores no mundo e um cursinho pré-vestibular de onde saíram Marielle Franco, Renata Souza e tantas outras lideranças comunitárias que se tornaram representantes da democracia em tempos em que ela é estrangulada.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS PARA A RECUPERAÇÃO DE UM PAÍS

Não se pode dizer que toda sublimação seja uma forma de decolonização, muito menos de produção antirracista, já que sabemos que muitas obras artísticas consagradas são realizadas por figuras que inspiraram iniciativas terrivelmente cruéis na história, a exemplo dos concertos de Wagner, que inspiravam Hitler. O objeto aparece como perturbador na perversão e como apaziguador na criação. A obra se interpõe entre sujeito e seu semelhante. Enquanto Leonardo da Vinci é amado pela humanidade, o Marquês de Sade, embora tenha realizado uma obra literária, é rejeitado. Passou toda uma vida em instituições, seja em presídios, seja em manicômios, já que seu gozo ilimitado fora interditado pela civilização.

Lacan vai além ao utilizar a obra de Sade, por se perguntar como interrogar o campo da Coisa em termos do que está em jogo no desejo, quando este se dirige à sublimação. Das Ding como figura maciça, monstruosa e inominável, como vimos no gozo racista, é relativa a um Outro sem barra. Para que o inominável se torne obra de arte, é preciso supor certa domesticação da pulsão, mas não sem a pulsão de morte em sua subversão criacionista. Para Freud, a condição para que haja sublimação é que haja satisfação e reconhecimento social. Para Lacan, o essencial na transformação do laço produzido pela sublimação não seria o reconhecimento público, mas um objeto criado elevado à dignidade de Coisa. Para Kant, a dignidade é aquilo que não pode ser trocado, equivalente a outro. Portanto, o objeto da sublimação é algo único, que produz dessemelhança, que cava um vazio ali onde havia um ideal no lugar da perda do objeto.

Dignidade é o que falta realmente ao capitalismo, já que os objetos do consumo são uma série que tem valor de troca; na medida de seu valor de uso, só tem valor o que pode ser substituído por dinheiro. Até o ser humano, no caso, o negro escravizado, tornou-se um objeto-moeda e, para sua dignificação enquanto diferença de toda a série de objetos, o processo sublimatório e sua subversão de gozo, implica na provocação de uma subjetivização que se dá por paradoxo. A sublimação apresenta um aspecto de dessubjetivação, uma passagem na qual um novo objeto surge, em detrimento do sujeito. Ali onde havia um objetificação, a dessubjetivação produz uma obra ou um produto que nomeia seu autor. Com isso, ela acaba por produzir um sujeito. A característica política da sublimação se encontra no fato de que, para a elevação de um objeto descartável, que seria um objeto-resto, é preciso que ele produza tanto uma transformação no Outro quanto uma espécie de incidência diferente na linguagem.

A experiência poética, a produção de vídeos, canto e dança, toca em alguma medida naquilo que não é esperado e que produz certa oscilação do senso comum, do sentido fálico. Seja a dimensão não-toda das expressões artísticas ligadas à homossexualidade e que deslocam da centralidade do órgão fálico para o orifício do ânus, sejam os coletivos efêmeros que se produzem nos novos encontros das redes digitais e das mídias populares, é por um processo de des-identificação aos ideais eurocêntricos e da equivocação da língua, instituída pela propaganda autoritária, que se pode produzir uma transmissão outrora interrompida. Trata-se do que está subsumido na linguagem e que diz respeito às origens e marcas de um povo, de uma cultura e de sua herança polissêmica e multicultural.

REFERÊNCIAS

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    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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    Essas ideias aparecem em inúmeros programas. Para assistir, ver https://www.portalfavelas.com/.
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    Ver: https://www.youtube.com/c/TVPortalFavelas.
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    Segundo dados do IBGE, em 2018, as taxas de homicídios contra a população, apontam que 71,5% eram negros. “Segundo o Mapa da Violência de 2016, no Brasil, em 2014, foram mortas quase 45 mil pessoas por arma de fogo, o que significa dizer que aqui são assassinadas mais pessoas do que em alguns países em guerra, sendo que a grande maioria assassinada no Brasil é negra. Enquanto que, entre os anos de 2003 e 2014, houve queda de 26,1% no número de brancos mortos por arma de fogo, no tocante à população negra houve aumento de quase 47%. A vitimização negra que, em 2003, era de 71,7%, saltou para 158,9% em 2014, ou seja, naquele ano foram assassinados 158,9% mais negros do que brancos. Alagoas tem sido o estado que mais mata negros de forma violenta, em 2014, foram assassinados 1702 negros e 60 brancos, ou seja, a taxa de vitimização negra naquele estado foi de 1028,2%. Dados do Ministério da Saúde sistematizados por Goes (2016) revelam que, em 2014, meninas e adolescentes (até 19 anos) foram as principais vítimas de estupro (72%), 40% passaram por repetidas experiências de estupro e 61% eram negras” (Relatório Relações Raciais CFP, 2017CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações raciais: referências técnicas para a prática da(o) psicóloga(o). Brasília: CFP, 2017., p. 13-14).
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    Em 2018, o Circuito de Favelas por Direitos, uma iniciativa da Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que reúne organizações civis e órgãos públicos capazes de fazer uma escuta qualificada dos moradores, percorreu mais de 30 favelas e cerca de 60 defensores públicos, juntamente com servidores, advogados, pesquisadores e ativistas chegaram a três centenas de pessoas e colheram mais de 500 relatos nas ruas, becos, vielas, casas e espaços comunitários. Um relatório publicado pela defensoria em 2019 afirma que são mais de 30 os tipos de violações por parte da política contra os moradores, que inclui “invasão a domicílio”(Relatório do Circuito de favelas por Direitos, 2018, p. 108-112) (crime tipificado pelo art. 150), “violência sexual” (art. 213), “Dano ao Patrimônio na residência”, “subtração de bens” (arts. 155/157), “ameaça e agressão física” (art. 147), “violação contra crianças” (art. 5, Lei 8.069/90, ECA) “extorsão”, “disparos a esmo” e muitos, muitos outros (ibidem, p. 89-125).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2022
  • Aceito
    31 Ago 2022
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