Acessibilidade / Reportar erro

DESCRIÇÃO DE UM CASO DE ENTEROCOLITE PSEUDOMEMBRANOSA EM BOVINO

CASE REPORT OF PSEUDOMEMBRANOUS ENTEROCOLITIS IN BOVINE

RESUMO

A colite pseudomembranosa é uma doença inflamatória do cólon, caracterizada pela presença de placas exsudativas superpostas à uma mucosa congesta e edemaciada. Nesta patologia, o cólon apresenta-se revestido por um material fibronecrosante felpudo, cobreado, sobre uma mucosa colônica lesionada e vermelha. Este é o primeiro relato de enterocolite pseudomembranosa em bovino no Brasil. A antibioticoterapia prolongada com enrofloxacina provavelmente esteve envolvida na patogenia.

PALAVRAS-CHAVE:
Clostridium difficile; colite pseudomembranosa; bovino; patologia.

ABSTRACT

Pseudomembranous colitis is an inflamatory disease of the colon, characterized by presence of exudative plates superposed to a congestive and edematous mucosa. In this pathology, the colon appears coated by a copper color fluffy fibrous-necrosis material, over a red and injuried colonic mucosa. This is the first report of bovine pseudomembranous enterocolitis in Brazil. Long-term antibiotic administration, specially with enrofloxacine, probable was involved in the pathogeny.

KEY WORDS:
Clostridium difficile; pseudomembranous colitis; bovine; pathology.

A colite pseudomembranosa é uma doença inflamatória do cólon caracterizada por placas exsudativas superpostas à uma mucosa congesta e edemaciada. Ela é causada pela infecção da mucosa do cólon pelo Clostridium difficile, uma bactéria Gram positiva, anaeróbia, produtora de esporos e toxigênica. O Cl. difficile é uma agente oportunista, presente na microbiota cólica normal; no entanto, algumas cepas são patogênicas. A transmissão ocorre por meio das fezes. Seus esporos podem sobreviver até 5 meses no meio ambiente. A alteração da microbiota gastrintestinal, interferindo com as interações normais entre as bactérias, pode tornar o Cl. difficile um agente patogênico. Esta alteração ocorre geralmente em decorrência de antibioticoterapia com fármacos de amplo espectro (HINES & DICKERSON, 1993HINES, R.S.; DICKERSON, S. Pseudomembranous enteritis associated with ciprofloxacin and Clostridium difficile in a penguin (Eudyptes chrysolophus). J. Zoo Wild. Med., v.24, n.4, p.553-556, 1993.; RAYMUNDO, 1993RAYMUNDO, I.D. Enterocolite pseudomembranosa. In: DANI, R. & CASTRO, L.P. (Eds.) Gastroenterologia clínica. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogam, 1993. v.1, p.783-787.).

Colite causada por Cl. difficile já foi descrita no homem (RAYMUNDO, 1993RAYMUNDO, I.D. Enterocolite pseudomembranosa. In: DANI, R. & CASTRO, L.P. (Eds.) Gastroenterologia clínica. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogam, 1993. v.1, p.783-787.) e em diversas espécies animais, tais como cães, gatos (DORDINI et al., 1993DORDONI, E.; TAGLIABUE, S.; RUFFO, G. Gli animali d’affezione quali veicolo di alcune zoonosi. Arch.Vet. Ital., v.44, n.1, p.14-17, 1993.), eqüinos (BAVERUD et al., 1997BAVERUD, V.; GUSTAFSSON, A.; FRANKLIN, A.; LINDHOLM, A.; GUNNARSSON, A. Clostridium difficile associated with acute colitis in mature horses treated with antibiotics. Equine Vet. J., v.29, n.4, p.279-284, 1997.), suínos (NEEF, 1993NEEF, N. La colite non-spescifique du porc en croissance revue bibliographique. Rec. Med.Vet., v.169, n.8/9, p.675-684, 1993.), coelhos (PERKINS et al., 1995PERKINS, S.E.; FOX, J.G.; TAYLOR, N.S.; GREEN, D.L.; LIPMAN, N.S. Detection of Clostridium difficile toxins from the small intestine and cecum of rabbits with naturally acquired enterotoxemia. Lab. Anim. Sci., v.45, n.4, p.379-384, 1995.), cobaios (BOOT et al., 1989BOOT, R.; ANGULO, A.F.; WALVOORT, H.C. Clostridium difficile-associated typhlitis in specific pathogen free guineapigs in the absence of antimicrobial treatment. Labor. Anim., v.23, n.3, p.203-207, 1989.), hamsters (BLANKENSHIP-PARIS et al., 1995BLANKENSHIP-PARIS, T.L.; WALTON, B.J.; HAYES, Y.O.; CHANG, J. Clostridium difficile infection in hamsters fed an atherogenic diet. Vet. Pathol., v.32, n.3, p.269-273, 1995.), saguis (Saguinus oedipus) (ROLLAND et al., 1997ROLLAND, R.M.; CHALIFOUX, L.V.; SNOOK, S.S.; AUSMAN, L.M.; JOHNSON, L.D. Five spontaneous deaths associated with Clostridium difficile in a colony of cotton-top tamarins (Saguinus oedipus). Lab. Anim. Sci., v.47, n.5, p.472-476, 1997.), avestruzes em cativeiro (Struthio camelus) (FRAZIER et al., 1993FRAZIER, K.S.; HERRON, A.J.; HINES, M.E.; GASKIN, J.M.; ALTMAN, N.H. Diagnosis and enterotoxemia due to Clostridium difficile in captive ostriches (Struthio camelus). J. Vet. Diagn. Invest., v.5, n.4, p.623-625, 1993.) e pingüins (Eudyptes chrysolophus) (HINES & DICKERSON, 1993HINES, R.S.; DICKERSON, S. Pseudomembranous enteritis associated with ciprofloxacin and Clostridium difficile in a penguin (Eudyptes chrysolophus). J. Zoo Wild. Med., v.24, n.4, p.553-556, 1993.). Em ruminantes, há apenas uma descrição de colite pseudomembranosa em caprinos (FERREIRA et al., 1997FERREIRA, F.A.; COELHO, H.E.; MANZAN, R.M.; QUEIROZ, R.P.; BELETTI, M.E. Colite pseudomembranosa em caprino - relato de caso. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE MEDICINA VETERINÁRIA, 25., 1997 Gramado. Anais. Gramado: Sociedade Brasileira de Medicina Veterinária, 1997. p.133.). Por outro lado, em bovinos não foi encontrado na literatura nenhum caso descrito de enterocolite pseudomembranosa, sendo este o primeiro relato no Brasil.

O caso ocorreu no mês de outubro de 1996, em uma fazenda localizada no Município de Itapira, São Paulo. Trata-se de uma vaca leiteira da raça Pardo-Suiça, com 6 anos de idade, que apresentava apatia e diarréia crônica. Foi realizado tratamento anti-diarréico utilizando-se variados antibióticos por um período superior a 2 anos, principalmente com 2,5 mg/kg enrofloxacina (Flotril 10%, Schering-Plough, Rio de Janeiro), não eficaz. Este animal veio a óbito depois de cerca de 30 meses, sobrevivendo sua cria, com a mesma sintomatologia materna. À necropsia, foram encontradas erosões intestinais e enterocolite pseudomembranosa, caracterizada por um revestimento fibronecrosante felpudo, cobreado, sobre uma mucosa colônica lesionada vermelha (Figs. 1 e 2). Como o material foi recebido fixado em formalina 10%, não foi possível a realização de cultivo para se tentar isolar o agente etiológico.

As pseudomembranas são formadas por células epiteliais necróticas, muco, fibrina e neutrófilos. Estas pseudomembranas, que podem ser pequenas e pontilhadas em algumas áreas, e confluentes em outras, são macias e arrancadas facilmente, expondo as erosões superficiais na mucosa subjacente. Ao exame microscópico (Fig. 3), há necrose focal das células epiteliais superficiais nas criptas glandulares acompanhada por intensa infiltração de neutrófilos e fibrina, e trombose das vênulas submucosas. A inflamação é mais superficial e dissemina-se lateralmente. As báctérias estão localizadas no espaço intraluminal (BOOT et al., 1989BOOT, R.; ANGULO, A.F.; WALVOORT, H.C. Clostridium difficile-associated typhlitis in specific pathogen free guineapigs in the absence of antimicrobial treatment. Labor. Anim., v.23, n.3, p.203-207, 1989.; HINES & DICKERSON, 1993HINES, R.S.; DICKERSON, S. Pseudomembranous enteritis associated with ciprofloxacin and Clostridium difficile in a penguin (Eudyptes chrysolophus). J. Zoo Wild. Med., v.24, n.4, p.553-556, 1993.; RAYMUNDO, 1993RAYMUNDO, I.D. Enterocolite pseudomembranosa. In: DANI, R. & CASTRO, L.P. (Eds.) Gastroenterologia clínica. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogam, 1993. v.1, p.783-787.).

Fig. 1
Enterocolite pseudomembranosa em bovino. Aspecto macroscópico.

Fig. 2
Enterocolite pseudomembranosa em bovino. Aspecto macroscópico. Maior detalhe.

Fig. 3
Microfotografia em que se observa sobre o epitélio intestinal a pseudomembrana, composta aparentemente por células inflamatórias, epitélio necrótico e muco. Material em princípio de autólise. Aumento 31,2 .

Quando cepas patogênicas colonizam o colo, liberam 2 exotoxinas protéicas: a toxina A (308 KDa) e a toxina B (275 KDa). Estas toxinas possuem forte atividade citotóxica por desagregarem os filamentos de actina e romperem as junções desmossômicas ao desativarem a ligação GTP-proteína Rho, necessárias para a manutenção da integridade da actina. Ambas as toxinas ligam-se à receptores glicoprotéicos das vilosidades dos colonócitos causando necrose e descamação das células epiteliais no lume intestinal (CASTAGLIUOLO & LAMONT, 1999CASTAGLIUOLO, I.R.; LAMONT, J.T. Pathophysiology, diagnosis and treatment of Clostridium difficile infection. Keio J. Med., v.48, n.4, p.169-174, 1999.).

A patogenia da inflamação pela toxina A envolve interações entre células epiteliais, nervos sensitivos e células inflamatórias da lâmina própria intestinal. Os nervos sensitivos parecem estar envolvidos apenas nos estágios iniciais da cascata inflamatória pela toxina A, provavelmente pela liberação do peptídeo proteína P do nervo sensitivo. Este peptídeo parece ativar macrófagos e células de defesa da lâmina própria, as quais por sua vez liberam mediadores inflamatórios que regulam a expressão das moléculas de adesão das células endoteliais e neutrófilos , mediando o recrutamento e migração em direção à mucosa intestinal. Estes mediadores derivados dos neutrófilos são os principais responsáveis pela destruição aguda e necrose dos enterócitos (CASTAGLIUOLO & LAMONT, 1999CASTAGLIUOLO, I.R.; LAMONT, J.T. Pathophysiology, diagnosis and treatment of Clostridium difficile infection. Keio J. Med., v.48, n.4, p.169-174, 1999.).

A microbiota gastrintestinal normal protege o organismo contra a colonização pelo Cl. difficile. Esta proteção ocorre por meio da secreção de ácidos graxos inibitórios e de proteínas degradadoras de toxinas, além de competição na ligação à mucosa (TRINKA & LAMONT, 1984TRINKA, Y.M.; LAMONT, J.T. C. difficile colitis. Adv. Internal Med., v.29, n.1, p.85-106, 1984.). Assim, a infecção pelo Cl. difficile ocorre geralmente em pacientes debilitados, especialmente naqueles que estão recebendo terapia prolongada com antibióticos de amplo espectro (BACON et al., 1991BACON, A.E.; MCGRATH, S.; FEKETY, R.; HOLLOWAY, W.J. In vitro synergy studies with Clostridium difficile. Antimicrob. Agents Chemother., v.35, p.582-583, 1991.; RAYMUNDO, 1993RAYMUNDO, I.D. Enterocolite pseudomembranosa. In: DANI, R. & CASTRO, L.P. (Eds.) Gastroenterologia clínica. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogam, 1993. v.1, p.783-787.; BAVERUD et al., 1997BAVERUD, V.; GUSTAFSSON, A.; FRANKLIN, A.; LINDHOLM, A.; GUNNARSSON, A. Clostridium difficile associated with acute colitis in mature horses treated with antibiotics. Equine Vet. J., v.29, n.4, p.279-284, 1997.). No presente relato, a antibioticoterapia prolongada, especialmente com enrofloxacina, provavelmente esteve associada ao desenvolvimento desta patogenia.

Assim, esta é a primeira descrição de enterocolite pseudomembranosa em bovino ocorrida no Brasil. Recomenda-se ter cautela com a administração prolongada de antibióticos, uma vez que esta doença provavelmente foi uma conseqüência dela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BACON, A.E.; MCGRATH, S.; FEKETY, R.; HOLLOWAY, W.J. In vitro synergy studies with Clostridium difficile. Antimicrob. Agents Chemother., v.35, p.582-583, 1991.
  • BAVERUD, V.; GUSTAFSSON, A.; FRANKLIN, A.; LINDHOLM, A.; GUNNARSSON, A. Clostridium difficile associated with acute colitis in mature horses treated with antibiotics. Equine Vet. J., v.29, n.4, p.279-284, 1997.
  • BLANKENSHIP-PARIS, T.L.; WALTON, B.J.; HAYES, Y.O.; CHANG, J. Clostridium difficile infection in hamsters fed an atherogenic diet. Vet. Pathol., v.32, n.3, p.269-273, 1995.
  • BOOT, R.; ANGULO, A.F.; WALVOORT, H.C. Clostridium difficile-associated typhlitis in specific pathogen free guineapigs in the absence of antimicrobial treatment. Labor. Anim., v.23, n.3, p.203-207, 1989.
  • CASTAGLIUOLO, I.R.; LAMONT, J.T. Pathophysiology, diagnosis and treatment of Clostridium difficile infection. Keio J. Med., v.48, n.4, p.169-174, 1999.
  • DORDONI, E.; TAGLIABUE, S.; RUFFO, G. Gli animali d’affezione quali veicolo di alcune zoonosi. Arch.Vet. Ital., v.44, n.1, p.14-17, 1993.
  • FERREIRA, F.A.; COELHO, H.E.; MANZAN, R.M.; QUEIROZ, R.P.; BELETTI, M.E. Colite pseudomembranosa em caprino - relato de caso. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE MEDICINA VETERINÁRIA, 25., 1997 Gramado. Anais Gramado: Sociedade Brasileira de Medicina Veterinária, 1997. p.133.
  • FRAZIER, K.S.; HERRON, A.J.; HINES, M.E.; GASKIN, J.M.; ALTMAN, N.H. Diagnosis and enterotoxemia due to Clostridium difficile in captive ostriches (Struthio camelus). J. Vet. Diagn. Invest., v.5, n.4, p.623-625, 1993.
  • HINES, R.S.; DICKERSON, S. Pseudomembranous enteritis associated with ciprofloxacin and Clostridium difficile in a penguin (Eudyptes chrysolophus). J. Zoo Wild. Med., v.24, n.4, p.553-556, 1993.
  • NEEF, N. La colite non-spescifique du porc en croissance revue bibliographique. Rec. Med.Vet., v.169, n.8/9, p.675-684, 1993.
  • PERKINS, S.E.; FOX, J.G.; TAYLOR, N.S.; GREEN, D.L.; LIPMAN, N.S. Detection of Clostridium difficile toxins from the small intestine and cecum of rabbits with naturally acquired enterotoxemia. Lab. Anim. Sci., v.45, n.4, p.379-384, 1995.
  • RAYMUNDO, I.D. Enterocolite pseudomembranosa. In: DANI, R. & CASTRO, L.P. (Eds.) Gastroenterologia clínica 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogam, 1993. v.1, p.783-787.
  • ROLLAND, R.M.; CHALIFOUX, L.V.; SNOOK, S.S.; AUSMAN, L.M.; JOHNSON, L.D. Five spontaneous deaths associated with Clostridium difficile in a colony of cotton-top tamarins (Saguinus oedipus). Lab. Anim. Sci., v.47, n.5, p.472-476, 1997.
  • TRINKA, Y.M.; LAMONT, J.T. C. difficile colitis. Adv. Internal Med., v.29, n.1, p.85-106, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2001

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2000
Instituto Biológico Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 1252 - Vila Mariana - São Paulo - SP, 04014-002 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: arquivos@biologico.sp.gov.br