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Poética do encontro

Poetics of encounter

Resumo

Num passeio por textos literários diversos, como costumo fazer em minhas aulas, encontro professores reais e ficcionais que compartilham sua experiência docente. Sem discutir o modo como são representados, busco escutar o que eles dizem, especialmente sobre o reconhecimento da própria ignorância e o acolhimento do mistério do outro, chaves fundamentais para que a aula de literatura possa se tornar um lugar de encontro. Rastreando desde os primeiros contatos entre participantes da aula, especialmente em olhares, até chegar ao encontro radical, que escapa às palavras, faço a aposta numa prática ancorada na disposição de falar com, caracterizada pela troca e escuta, em oposição à prática corrente de falar para, centrada na explicação. Esse enfoque busca, no limite, permitir que cada um encontre a obra literária capaz de melhor falar consigo.

Palavras-chave:
ensino; ignorância; encontro; literatura; sala de aula.

Abstract

When undertaking a journey through various literary texts, as I often do in my classes, I encounter real and fictional teachers who share their teaching experiences. Without delving into how they are portrayed, I aim to listen to what they specifically convey about acknowledging one's own ignorance and embracing the mystery of the other -key elements for literature classes to become a space for encounter. Tracing the initial interactions among class participants, especially their glances, until they are reaching the radical encounter that eludes verbal expression, I advocate for a practice rooted in the willingness to speak to, characterized by a spirit of exchange and attentive listening, as opposed to the prevalent practice of speaking at, which is focused on explanation. At its core, this approach seeks to enable each individual to discover the literary work that speaks to them most directly.

Keywords:
Teaching; ignorance; encounter; literature; classroom.

Resumen

En un recorrido por diversos textos literarios, como suelo hacer en mis clases, encuentro a profesores reales y ficticios que comparten su experiencia docente. Sin adentrarme en la forma en que están representados, busco escuchar lo que expresan especialmente acerca del reconocimiento de su propia ignorancia y la aceptación del misterio del otro, claves fundamentales para que la clase de literatura se convierta en un espacio de encuentro. Siguiendo desde los primeros contactos entre los participantes de la clase, especialmente a través de miradas, hasta llegar al encuentro radical, que escapa a las palabras, apuesto por una práctica arraigada en la disposición de hablar con, caracterizada por el intercambio y el escuchar, en contraposición a la práctica común de hablar para, centrada en la explicación. Este enfoque busca, en última instancia, que cada individuo encuentre la obra literaria que más directamente hable consigo mismo.

Palabras clave:
Enseñanza; ignorancia; encuentro; literatura; aula.

Primeiro contato

Na primeira vez em que pisa numa sala de aula, o jovem Karl Ove Knausgård relata seu anseio diante de poucos alunos: “Quando parei em frente à cátedra e larguei as minhas coisas, todos estavam olhando para mim. A palma das minhas mãos estava suada, meu coração batia com força e a minha respiração estava ofegante” (Knausgård, 2016KNAUSGÅRD, Karl Ove. Uma temporada no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 32). Em segundos, fica nítido o tanto que acontece antes mesmo de qualquer troca de palavras. O narrador é alvo de olhares, o corpo manifesta toda a tensão. Tudo isso se esconde na rotina da apresentação: “Enquanto eu falava os alunos trocavam olhares, duas meninas riam um pouco. A atenção que concentravam em mim não era perigosa, percebi no mesmo instante, mas infantil. Eram crianças” (Knausgård, 2016KNAUSGÅRD, Karl Ove. Uma temporada no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 33). Uma ação tão corriqueira da escola, do primeiro contato entre professor e estudantes, está carregada de impressões e julgamentos. Como acompanhamos o olhar do professor, seguimos seu movimento de confirmar aquilo que sabia antes mesmo de entrar em sala: estava diante de crianças. Foi necessário avaliar e ser avaliado para que a identidade do outro se materializasse, confirmando um alinhamento entre atitude e idade. Ficamos, porém, sem saber o que pensam as crianças, de quem só nos chegam olhares e risos. Notavam o nervosismo? Estranhavam a juventude? O que significava para elas a constatação “era o professor”?

Buscamos respostas às questões acima em Ei, professor, de Frank McCourt (2006MCCOURT, Frank. Ei, professor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006. ). Nesse livro que retrata um professor experiente, lemos seu diagnóstico sobre os estudantes, também em seus primeiros momentos diante de uma turma: “São especialistas em professores” (Mccourt, 2006MCCOURT, Frank. Ei, professor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006. , p. 20). Trata-se de um conhecimento consolidado, construído ao longo da escolarização, que capta nuances dos professores e transmite as conclusões, como um legado: “Os alunos observam, examinam, avaliam. Conhecem a linguagem corporal, o tom de voz, o modo de ser em geral. Não é como se discutissem esse assunto no bar ou no banheiro. Eles apenas assimilam esse conhecimento ao longo de onze anos, transmitem-no para as gerações seguintes” (2006MCCOURT, Frank. Ei, professor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006. , p. 20).

Mesmo antes do encontro entre professor e estudantes, eles já carregam suas impressões sobre o outro, de modo que o contato inicial é a atualização de uma projeção. Em instantes, olhares treinados dos dois lados reconhecem sinais que definem o outro e medem sua ação. Mesmo sem ser enunciada, paira a questão: será possível pensar e dizer diante desse outro?

No caso da aula de literatura, a presença da obra gera questões específicas: como se dá a abertura para novos textos e ideias? Ou antes: como é possível abrir-se a uma obra inesperada? Como superar aquilo que se ouviu dizer sobre um autor, uma temática ou ir além de sua capa? E no limite: como é possível ocorrer o encontro singular entre o leitor e a obra?

Para dialogar com as questões acima, apostamos numa poética do encontro. A ideia de encontro não é nova na educação, como se vê em López Quintás (2005LÓPEZ QUINTÁS, Alfonso. Descobrir a grandeza da vida: introdução à pedagogia do encontro. São Paulo: ESDC, 2005.) e também em Marina Garcés (2023GARCÉS, Marina. Escola de aprendizes. Belo Horizonte: Âyiné, 2023. ). Neste caso, porém, a diferença está em pensar naquilo que há de específico no ensino de literatura, rastreando nela mesma a possibilidade de estar junto. Para tanto, foram selecionados alguns textos literários que nos ajudam a pensar desde a negação do encontro até sua efetivação mais radical. Nesse passeio, deslocamo-nos do falar para, preponderante no especialista que explica o conhecido, para atingir a impossibilidade da fala diante do ininteligível, o silêncio do arrebatamento. Entre os dois extremos, nossa atenção está centrada no falar com, com sua disposição para a troca, para a escuta. Apostamos que essa abertura ao outro e ao diálogo está ancorada no reconhecimento da própria ignorância e na disposição ao aprendizado, os quais nem sempre são evidentes para quem assume a condição de professor, mas que pavimentam o caminho para o encontro do leitor com a literatura.

Desencontro

Num evento acadêmico a que fui durante o doutorado, havia uma participante que, ao final de cada comunicação, indicava um filme relacionado à pesquisa apresentada. Como todas as recomendações tinham sido muito boas, estava ansiosa para receber a minha. Com ar maroto, ela disse que faria uma sugestão diferente dos filmes antes mencionados e recomendou Liberal ArtsLIBERAL Arts (Histórias de amor). Direção: Josh Radnor. Elenco: Josh Radnor, Elizabeth Olsen, Richard Jenkins IFC Films, 2012. . Não conhecia o título e logo fiquei decepcionada ao ver a tradução: Histórias de amor. Parecia (e era!) um filme ao estilo Sessão da Tarde, estrelado por Elizabeth Olsen e Josh Radnor.

Enquanto todos tinham recebido uma indicação que permitia um belo trabalho comparativo, eu tive a impressão de ter recebido um tapinha nas costas. Frustrada, demorei para ver o filme e o fiz apenas para “matar o tempo”. Era o tipo de filme que veria por acaso ao zapear canais, mas dificilmente buscaria. Anos depois, a indicação parece ter valido a pena, já que trago aqui uma cena do filme.

O casal, formado pela estudante de 19 anos Zibby e pelo especialista em literatura de 35 anos Jesse, encontra-se no quarto da jovem quando ele vê o exemplar de uma série sobre vampiros, em clara alusão a Crepúsculo. Ao questionar o interesse da moça, ela pergunta se o rapaz havia lido o livro. Após a negação enfática, Jesse se compromete a ler o livro para poderem discuti-lo. Passado um tempo, o casal se reúne em uma lanchonete, e cada um faz suas considerações. De um lado, Zibby afirma seu gosto pela obra, que, embora considere “divertida e estúpida”, a deixou feliz. De outro, Jesse afirma que aquele seria o pior livro escrito em inglês, questionando quem o lê. A discussão envereda pela oposição entre gosto e valor, que os leva a um impasse. Jesse quer mostrar exemplos de sua argumentação, mas Zibby arranca o livro de suas mãos e pergunta: “Onde você está?”. Diante da hesitação de Jesse, Zibby afirma que ele está em algum lugar, mas não ali e pergunta novamente “Então por que estamos passando o tempo tendo uma estúpida discussão sobre um livro?”. A conversa termina.

A cena revela o desencontro dentro de um encontro. O encontro do casal havia se dado superando o desconforto de Jesse com a diferença de idade. Mas o encontro de leitura não consegue superar barreiras de formação, de expectativas e de julgamentos. Com isso, a possibilidade de manter o encontro maior se dá com a admissão do fim do encontro literário. Em oposição a esse silêncio, observamos de modo mais recorrente a fala incessante quando a possibilidade de encontro já foi rompida. Nesse eloquente falar para, embora haja um interlocutor, não se espera escuta ou resposta. Quantas vezes não vemos esse diálogo fraturado nas polêmicas literárias que ocupam as redes sociais?

O falar para se contrapõe de modo duro à literatura, que sempre fala com cada um de modo específico. Diante desse caráter multifacetado da literatura, nossa questão é pensar como a sala de aula pode instaurar um ambiente mais ajustado à sua natureza do que vemos nas redes sociais. Como é possível que a aula de literatura se torne não um palco de monólogos sobre as obras, mas de troca, de escuta e diálogo?

Em 22 de abril de 2023 foi publicada na Folha de S. Paulo a crônica “Drummond fascista misógino”. O texto se desenrola no contexto de uma aula de Modernismo em que a professora discutiria o “Poema de sete faces” do escritor mineiro. Desde o primeiro verso, porém, ela passa a ser interrompida por estudantes que apontam o caráter “problemático” do texto e, por consequência, do autor. Além das ofensas já indicadas no título, Drummond é chamado de machista, abusador, privilegiado, “homem branco, hétero, cis e colonialista”. A professora, com seus chamados ao texto, valendo-se de seus poucos versos, fica indefesa diante do turbilhão de adjetivos e acusações que se seguem ao primeiro comentário, que dá a tônica da crônica:

Com a segurança de um palestrante num TED Talks - coisa rara, antigamente, em primeiranistas - o aluno explica: "Um anjo?! Sério?! Anjo é um elemento do catolicismo, é a religião opressiva do invasor. Esse verso aí reforça o colonialismo que massacrou e calou as religiões dos povos originários! Por que não: ‘Quando eu nasci, Anhangá’? Ou: ‘Quando eu nasci, Xolotl’? Ou: ‘Quando eu nasci, Wakan Tanka’? (Prata, 2023PRATA, Antonio. Drummond fascista misógino. Folha de São Paulo, 22 abr 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2023/04/drummond-fascista-misogino.shtml . Acesso em 20 dez 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/an...
).

Pela citação, é fácil imaginar que a crônica se tornou alvo de intenso debate nas redes sociais. Não sendo nosso objetivo rastrear a recepção do texto, apenas registro que a crônica teve uma centena de comentários, divididos em elogios e ataques ao modo como foi retratado o cenário crítico atual, refletindo tanto apoio à posição da professora quanto à dos estudantes.

A crônica nos conduz a tomar partido da professora, que se vê desamparada diante de seus alunos. Na construção do texto, é significativo, por exemplo, o modo como são caracterizados os participantes do debate. Dentre os estudantes, como mostra a citação, está alguém com mais segurança do que o esperado, e há ainda a “garota loira, que joga a ponta de sua keffiyeh palestina por cima do ombro”; já a professora é, ao final, apresentada como alguém com mais de 40 anos de magistério, que teve “aula com Antonio Candido e Milton Santos, resenhou Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu”. Assim, modulando as palavras enunciadas, temos, de um lado, a caracterização de uma atitude, marcada nas ações, na voz e no corpo e, de outro, o conhecimento da profissão e da matéria, o qual inclusive é recebido como um legado de outros grandes mestres.

Apesar das tintas acentuadas da crônica1 1 Em crônica de algumas semanas depois, o autor abre um parêntese sobre o gênero e nosso tempo: “(Ainda existe espaço pra crônica ou ela já foi cancelada em nome das guerras culturais?).” Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2023/05/tres-homens-e-uma-marreta.shtml , é possível entender o desgosto da personagem na sua frágil tentativa de retomar o texto e o controle da aula. A professora, tal como visto em em Knausgård e McCourt, recorre ao olhar para identificar a possibilidade do encontro. Ela desloca seus olhos da lousa para buscar a voz do estudante: “Ela se vira e fica surpresa ao perceber que a voz tonitruante vem de um magricela que não parece ter mais de 18 anos. Ele a encara com um brilho nos olhos, o brilho dos que viram a luz” (Prata, 2023PRATA, Antonio. Drummond fascista misógino. Folha de São Paulo, 22 abr 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2023/04/drummond-fascista-misogino.shtml . Acesso em 20 dez 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/an...
). Enquanto em Knausgård, a primeira impressão confirmava aquilo que esperava dos estudantes “Eram crianças” (2016KNAUSGÅRD, Karl Ove. Uma temporada no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 33), aqui há um aparente desajuste entre a imagem do interlocutor e seu discurso. Considerando que aquele jovem fosse um desvio, a professora ainda busca o apoio da turma: “Os olhos da professora percorrem a classe em busca de alguma cumplicidade”. Ao invés de apoio, ela ouve novos argumentos que aprofundam a leitura do primeiro estudante. A cena mostra que os jovens de hoje não se assemelham aos que, ao longo de 40 anos, ouviriam possivelmente calados a explanação sobre o poema de Drummond.

Há, por certo, algo inegavelmente positivo nessa disposição à fala dos estudantes. Eles podem falar! A questão, porém, é que as vozes jovens emulam a voz professoral, como se ambos disputassem a possibilidade de falar para, sem uma abertura efetiva à escuta, ao diálogo, ao falar com. Como resposta a isso, a acuada professora fecha o espaço de debate, oferecendo apenas a borda institucional: “Vocês têm razão. São temas interessantes. Podem inclusive pensar em alguma coisa por aí pro trabalho de encerramento do curso. Agora vamos lá pro próximo verso”. Contraria-se aqui a possibilidade de demorar-se num assunto, seguindo o “método desviante” de que fala Gagnebin (2006GAGNEBIN, Jeanne Marie. O método desviante. Algumas teses impertinentes sobre o que não fazer num curso de Filosofia. Revista Trópico: ideias de norte a sul, São Paulo, 03 dez. 2006. ). Se o espaço não é ofertado, a porta deve ser aberta. Assim, os estudantes seguem falando, e a professora, ao final da crônica, recita, apenas para si, outros versos de Drummond.

A voz do narrador parece resolver com facilidade tudo que aconteceu em sala: “nada do que disser ali fará qualquer diferença: eles vieram para ensinar, não para aprender”. Nos termos do nosso artigo, poderíamos dizer que não há nada da ordem do falar para que possa instaurar um falar com. Talvez a questão não esteja no conteúdo a ser dito, mas na forma como ele é colocado. Talvez o falar com precise estar instaurado de antemão para que ele se desenrole em sala. Talvez aquilo que a crônica aponta como uma falha dos estudantes possa também ser colocado à professora, “ela veio para ensinar, não para aprender”, algo que depois discutiremos. No momento, destacamos apenas o seguinte: não podemos mudar os estudantes que encontramos em sala, ainda que desejemos que eles saiam modificados desse encontro. Se é assim, o foco necessariamente recai na professora, que não acolheu aquilo que lhe foi dito. Ela buscou um apoio para silenciar, ela relegou a segundo plano a discussão em sala. Sem de fato dialogar sobre o assunto, apenas tentando retomar o conteúdo previsto, ficou aberto o espaço para que novas falas se sobrepusessem, sem qualquer escuta. Uns falavam para os outros, mas não com os outros.

Abertura ao encontro

“Não é preciso ir longe, alguém pode passar pela esquerda enquanto olhamos distraídos para a direita. Por um triz o paralelo nos obriga ao desencontro eterno. É preciso uma coincidência qualquer para que o amor se instale. Existe um certo milagre nos encontros.” (Madeira, 2022MADEIRA, Carla. Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record, 2022. , p. 109). O trechinho, retirado de Tudo é rio, de Carla Madeira, nos faz lembrar os versos finais de “A uma passante”, de Baudelaire: “Pois ignoro onde tu foste, tu não sabes onde vou / Ah se eu a amasse, ah se eu a conhecesse!” (1985BAUDELAIRE, Charles. Flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985., p. 345). Em registros tão diferentes, o encontro se revela em sua fragilidade e força. O encontro carrega a promessa da transformação, mas pode nunca se cumprir. O encontro pode estar ao alcance dos dedos, mas nunca ser tocado.

Numa sala de aula, em que as pessoas já se encontram no mesmo espaço, o que é possível fazer para que o encontro não se esvaia nos poucos minutos que compartilham? O que é necessário para que, como na crônica de Prata, as palavras de estudantes e professora não deslizem em paralelo sem nunca se aproximarem? O que seria necessário modificar na disposição dos dois lados para que cada um encontrasse algo novo naquela aula, não apenas os conhecidos incômodos que separavam professora e estudantes, velho e novo, tradição e contestação? Para dialogar com essas questões, seguimos buscando em textos literários alguns indícios da abertura ao encontro.

Em “A carta roubada”, de Poe, o delegado de polícia procura Auguste Dupin para ajudá-lo a resolver um caso descrito com adjetivos contraditórios: simples e estranho. O delegado afirma que, “embora tão simples, o caso escapa inteiramente a nossa compreensão”. A isso, Dupin afirma que “Talvez o mistério seja um pouco simples demais”. Está resolvido aqui o caso antes mesmo que o delegado comece a expor seus detalhes sobre o roubo. Sabendo quem é o ladrão, a polícia vasculha, sem sucesso, “todos os cantos” da casa, numa busca minuciosa por qualquer espaço secreto. Embora realizada com perfeição, a busca não foi exitosa, segundo Dupin, por um erro na avaliação do ladrão, com uma “uma apreciação inexata, ou melhor, uma não apreciação da inteligência daqueles com quem se metem” (Poe, 2002POE, Edgar Allan. A carta roubada. In: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Nova Cultural, 2002. p. 203-224, p. 217).

Diferentemente da polícia, Dupin conhecia a faceta dupla do ladrão: matemático e poeta. Familiarizado com o oponente e respeitando sua inteligência, o investigador logo encontra a carta, colocada em local bastante visível e com aparência desleixada para simular seu pouco valor. O documento é prontamente identificado, e Dupin recebe sua recompensa.

No caso da carta roubada, o desencontro ocorre mesmo quando se busca evitá-lo, mesmo tendo às mãos os melhores instrumentos para o encontro. A sala de aula, como iremos discutir, é o espaço dos desencontros imprevistos, como o da passante e do enamorado que está ao lado, mas é também o espaço em que o desencontro se opera apesar de preparo, de empenho. Ou talvez em que o desencontro ocorra inclusive por causa de preparo, de empenho.

Se a crônica de Prata fosse uma história de detetive, os estudantes e a professora seriam como a equipe de polícia buscando o texto e recorrendo aos lugares secretos já conhecidos. Ela aposta na leitura centrada do texto e eles se voltam a seus fatores externos. Ambos são conhecedores poderosos de suas ferramentas e, com as cabeças voltadas a si mesmos, deixam de olhar para os lados, para as pessoas com quem dividem a sala, para a carta suja à disposição de todos. Na sala, não há Dupin.

A professora quer entregar o texto para que perdure, enquanto o delegado queria capturar o documento para que desparecesse. Com motivações diferentes, ambos sabem tudo sobre o papel, mas não sabem como atingir seus objetivos. Nenhum dos especialistas se pergunta sobre o que se desconhece do outro, atendo-se apenas ao objeto conhecido. Com isso, perdem de vista a simplicidade oculta tanto na cena de crime quanto na sala de aula. É fácil esquecer a diferença do outro, deixar de encontrar nela o que muitas vezes nem se sabia faltante.

Nem sempre é fácil abrir-se à diferença. As acaloradas discussões sobre política já nos mostraram que, em muitos casos, é preferível bloquear a tentar conversar. Parece haver um limite estreito para que a diferença engendre a conversa. Fora disso, há discursos isolados que podem se sobrepor, sem nunca se complementar, no pleno exercício do falar para. Para tentar a abertura ao desconhecido, é preciso lembrar que o outro pensa diferente, como no caso das cartas, mas também que ele pode ser diferente da imagem que projetamos dele. Há muito que se deve questionar em si mesmo antes de ir ao encontro do outro e seus mistérios.

Um texto simples e bonito me ensinou muito sobre a diferença: o famoso discurso de paraninfo de David Foster Wallace. “Isto é água” me marcou profundamente, bem antes de conhecer a obra do escritor estadunidense. Circulando em versões animadas no YouTube, é fácil notar seu apelo, pois as anedotas, exemplificações e frases de sabedoria podem sugerir que ele tenha uma simplicidade fácil, com ares de autoajuda. Trata-se, no entanto, de um texto que revela a complexidade do simples, do quanto precisa ser questionado em nós para ver o que está diante dos olhos, como a carta roubada que escapa aos policiais bem treinados.

Ao contrário do falar para esperado do discurso de um professor experiente e homenageado, “Isto é água” é exemplar na sua preocupação de falar com os jovens formandos e uma ampla audiência posterior. O discurso começa com uma história de dois peixinhos que encontram o peixe mais velho e se surpreendam com seu questionamento sobre a água: “Água? Que diabo é isso?” (2012WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275., p. 263). A partir daí, David Foster Wallace mostra que deseja escapar ao tom de parábola que domina os discursos de paraninfo: “Não sou o peixe velho e sábio. Minha intenção com a historinha dos peixes é simplesmente mostrar que as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeito” (2012WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275., p. 264). O lugar de conhecedor é deixado de lado em nome da partilha sobre a complexidade daquilo que (não) é evidente.

A todo momento, o orador lembra aos estudantes que eles sempre estão diante de escolhas, mesmo em relação ao que, por ser tão natural, parece não demandar qualquer ação. Para falar disso, Walalce aborda sua experiência, compartilhando dificuldades e dúvidas que acredita serem extensíveis aos jovens: “Nos vinte anos que se passaram desde a minha formatura, fui entendendo aos poucos que, na verdade, o clichê das ciências humanas que fala sobre ‘ensinar a pensar’ é a abreviatura de uma verdade muito profunda e importante” (2012WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275., p. 267). Demora muito tempo para entender efetivamente o clichê, que, repetido à exaustão, parece ter sua verdade obliterada. Não é fácil aprender a pensar, reconhecer a escolha diante de cada pensamento com todos os impeditivos a ela, incluindo nossa “configuração padrão natural” autocentrada.

De modo didático, o autor apresenta diversos episódios cotidianos das escolhas que devem ser enfrentadas pelos jovens. No trânsito, por exemplo, a reação imediata é de irritação, de extravasar o próprio incômodo em relação ao comportamento dos outros motoristas. Já numa reação em “modo mais socialmente consciente, digno das ciências humanas” (2012WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275., p. 270), é possível analisar e julgar o comportamento alheio, crente de que se chegou à compreensão da situação, sem, no entanto, aplacar o nervosismo. Mesmo essa solução mais sofisticada é também “algo tão fácil e automático que não precisa ser uma escolha” (2012WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275., p. 271). A escolha está em imaginar o outro, imaginar sobre ele algo diferente do imposto pelos limites da própria experiência e conhecimento. Quando pensamos nesse exemplo e o relacionamos à carta roubada, podemos considerar que o policial estava no segundo nível de pensamento, o da análise, do julgamento aprofundado das ações alheias com base no próprio conhecimento. Já Dupin dá um passo adiante em direção à proposição de Wallace, na escolha por entender o outro em si, por abraçar sua singularidade.

David Foster Wallace não tenta aplacar a cegueira do outro, mas compartilhar seus pontos cegos e os esforços constantes para remediá-los. Trata-se, no limite, de compartilhar um desejo que ele próprio não foi capaz de cumprir, já que ele fala sobre manter-se vivo e consciente, “sem querer dar um tiro na cabeça” (2012WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275., p. 275). E o autor, como sabemos, se suicidou aos 46 anos. Assim, o discurso lida com os limites, frustrações e dúvidas dos estudantes por reconhecê-los de modo profundo em si mesmo. Dessa posição, é questionado o gênero “discurso de paraninfo”, pois a sabedoria inconteste cede espaço a uma luta compartilhada, de modo a apenas ser possível o falar com o outro, ainda que ele esteja na posição de falar para o outro.

Nas palavras finais do discurso, quando o título de sua fala ganha sentido e se retoma a cena inicial dos peixes, temos um chamado à “simples consciência”, “consciência daquilo que é tão real e essencial, que está escondido à luz do dia onde quer que se olhe que precisamos repetir para nós mesmos a todo momento: ‘Isto é água, isto é água...’” (2012WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275., p. 275). Assim como a carta roubada está colocada aos olhos de todos, a resposta a desafios cotidianos, como os da sala de aula, também pode desfilar diante de nós, sem que notemos.

Para abrir-se ao encontro em aula, parece necessário que seu cotidiano, com os ritos, os incômodos, as repetições, as discussões e as avaliações sejam tomadas como acontecimento. Eles podem ser pautados unicamente pelo professor, com seu conteúdo e seu desejo de falar para, ou também pelo outro, com seus desafios e o risco de falar com. Para abrir-se ao encontro, é preciso o exercício aparentemente banal, mas difícil, como mostraram Dupin e Wallace, de não medir o outro por si próprio, de aceitar a simplicidade do mistério. As palavras de Murakami sobre o romancista talvez sejam válidas também para o professor: “O mundo pode parecer monótono, mas está cheio de diamantes brutos, atraentes e misteriosos [...] E, ainda melhor, eles são oferecidos quase gratuitamente” (2017MURAKAMI, Haruki. Romancista como vocação. São Paulo: Alfaguara, 2017., p. 75).

Isto é água, isto é água.

O encontro de ignorantes

Massimo Recalcati, em Ora di lezione: per um’erotica dell’insegnamento (2014RECALCATI, Massimo. Ora di lezione: per un’erotica dell’insegnamento. Torino: Einaudi, 2014.), conta sobre o encontro com uma professora de literatura, o que o leva a refletir sobre como os encontros de amor entre alunos e professor ocorrem devido não apenas ao conteúdo, mas também ao estilo do docente, ao modo como ele é capaz de transformar um objeto de saber em um corpo de desejo. Nesse sentido, vale observar, com Recalcati, que 'ensinar' significa deixar um sinal, uma marca, no outro.

É preciso tempo e disposição para que um sinal se inscreva. O encontro amoroso de Recalcati passa longe do desencontro pedagógico da crônica de Prata (2023PRATA, Antonio. Drummond fascista misógino. Folha de São Paulo, 22 abr 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2023/04/drummond-fascista-misogino.shtml . Acesso em 20 dez 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/an...
). Ali vimos especialistas disputando a sala de aula, com professora e estudantes empenhados na tarefa de falar para o outro sobre seus conhecimentos, sejam eles literários ou políticos. Em oposição a isso, apostamos aqui no encontro entre ignorantes, entre aqueles que acolhem a potência do desconhecido e, por conta disso, se abrem a falar com o outro, a encontrar diferentes textos e pessoas, como vimos no caso de Dupin e Wallace. Essa disposição ganha contornos mais significativos quando se dá no responsável por ensinar, essa prática que poderia estar a princípio relacionada ao falar para.

Na literatura brasileira, há uma professora emblemática por sua generosidade e interesse pelo outro. Trata-se de Dona Maria, uma das poucas referências gentis a povoar a dura infância de Graciliano Ramos (1995RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995. ). A mulher apoiou o menino tanto na limpeza das orelhas quanto no aprendizado das palavras, guiando-se pelo gesto simples: “D. Maria escutou-me” (1995RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995. , p. 114). Vejamos como a professora inscreve sua marca:

Felizmente D. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo, aí vivia farejando pequenos mistérios nas cartilhas. Tinha dúvidas numerosas, admitia a cooperação dos alunos, e cavaqueiras democráticas animavam a sala. Certo dia apareceu na gaveta da mesa um objeto com feitio de lápis. Lápis graúdo, alvacento numa extremidade, escuro na outra. Que seria? Toda a aula foi interrogada, examinou o pedaço de madeira, apalpou-o, mordeu-o, balançou a cabeça e estirou o beiço indecisa. [...] E a raspadeira de borracha, imprestável e sem ponta, ficou sobre a mesa, a desafiar-nos a argúcia, a inspirar-nos humildade junto à palmatória. (1995RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995. , p. 111).

Professora e estudantes partilhavam um mesmo mundo, independente das posições sociais que ocupavam. A abertura ao outro guia D. Maria num caso exemplar de pedagogia mesmo sem ela conhecer as mais novas metodologia de ensino. Essa personagem era, em essência, uma mulher disposta a acolher as pessoas a seu redor, permitindo que ela se entregasse com curiosidade ao que não sabia. Mesmo sendo a professora, não sabia de tudo, “tinha dúvidas numerosas”.

A sala de aula se torna cenário de debate e investigação, em que todos estão igualmente dispostos a buscar uma resposta, não a única resposta. Diante de um mistério e de vários palpites, arrisca-se ao final uma hipótese. E a resposta, assim como o próprio objeto, interessa menos do que o desejo de saber, a disposição de escutar e o risco de falar. Com isso, o objeto, ao final, se torna apenas um símbolo a inspirar humildade, lembrar o quanto se desconhece. Na mesa da professora, o objeto está pousado junto à palmatória, nunca utilizada. Lado a lado, ficam na mesa o instrumento de poder docente, aquilo que lhe permitiria silenciar e sempre falar para o outros, e o testemunho de uma mulher que se abria a falar com outro para construir com eles o conhecimento.

Dona Maria se encaixa no seleto grupo dos “excelentes mestres” recordados por Graciliano Ramos: “Na verdade os melhores que tive foram indivíduos ignorantes. Graças a eles, complicações eruditas enfraqueceram, traduziram-se em calão” (1995RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995. , p. 111, grifo nosso). Ignorância e ensino se unem de modo imprevisto, já que do professor se espera justamente o conhecimento. Esses mestres inusitados atuavam em favor do simples. Para incentivar o pequeno Graciliano a atravessar uma infância de tanto silenciamento, o ensinamento maior viria na afirmação de que ele também poderia falar.

A inusitada relação entre ignorância e maestria tem, como sabemos, sua melhor elaboração na obra de Jacques Rancière, que discute a aventura intelectual de Joseph Jacotot no século XIX. Esse pedagogo, que não conseguia se comunicar com um grupo de estudantes que desejava aprender seu idioma, se viu obrigado a uma “solução de improviso” (2015RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. , p.18), como tantas vezes ocorre em sala de aula. Na ausência de uma língua comum, Jacotot selecionou a edição bilingue de Telêmaco, de Fénelon, e pediu que os jovens aprendessem o texto francês com amparo da tradução. Essa ação se tonou uma experiência filosófica, pois, para surpresa do próprio mestre, os jovens conseguiram aprender sem seu auxílio, evidenciando, portanto, que não havia necessidade de explicação:

Explicar alguma coisa para alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos. (2015RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. , p. 23-24).

O exemplo de Jacotot coloca em xeque a necessidade da explicação, entendida como fundamento do ensino. A explicação não é indispensável ao aluno, mas ao mestre, pois lhe distingue dos demais. Por esse motivo, ela permanece inconteste mesmo passados tantos anos da experiência de Jacotot e com tantas mudanças metodológicas. Pode-se inverter a sala de aula, mas a explicação nunca cai! Rancière mostra que tanto a pedagogia tradicional de “transmissão neutra do saber” (2015RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. , p. 14) quanto as “modernistas do saber adaptado” (2015RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. , p. 14) tomam a igualdade como objetivo, nunca como ponto de partida. Isso porque, mesmo com discursos tão diferentes, elas se assentam na desigualdade, com sua contraparte pedagógica da explicação, que implica em aceitar a existência dos que sabem e dos que não sabem, dos que explicam e dos que aprendem.

Na crônica de Prata, os estudantes questionam a professora, mas o fazem desejosos de se apropriarem do poder da explicação, da possibilidade de falar para. No caso específico do ensino de literatura, podem mudar os objetos, mas permanece o ímpeto de falar para o outro aquilo que deve ser lido e como deve ser lido. É possível ser explicador mesmo para indicar os livros mais transgressores!

Entre iguais, independente do objeto em pauta, apenas é possível falar com. D. Maria, sem conhecer Jacotot, os debates pedagógicos ou as disputas literárias recentes, ia muito além da explicação. Essa figura, comparada a uma santa por Graciliano, conseguiu, numa sala de aula do interior, fazer aquilo que ganha ares religiosos no texto de Rancière: “não se tratava aí de um método para instruir o povo, mas da graça a ser anunciada aos pobres: eles podiam tudo o que pode um homem. Bastava anunciar” (2015RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. , p. 38). No caso de Dona Maria, o anúncio veio com o imperativo: “Leia” (1995, p. 109). Diante da recusa confusa do menino, a mestra restringe sua explicação:

D. Maria resolveu esclarecê-las [as letras finas], mas parou logo, deixando-me andar só no caminho desconhecido. Parei também, ela me incitou a continuar. Percebi que os sinais miúdos se assemelhavam aos borrões da carta, aventurei-me a designá-los, agrupá-los, numa cantiga lenta que a professora corrigia. (1995, p. 109).

O encorajamento da mestra estimula o menino a enfrentar as letras desconhecidas. Ela, portanto, enuncia a capacidade do menino desacreditado, deixando de lado a explicação que evidenciaria seu próprio saber. O jovem Graciliano não entende quando irá acabar a empreitada, ao que a mestra apenas encoraja: “Então vamos para diante” (1995, p. 109).

Basta seguir em frente para que o menino encontre o caminho das palavras. Ela não precisa explicar, precisa apenas afirmar a capacidade de alguém tão negligenciado. A mestra age como a prima Emília, cuja gentileza ímpar fazia com que não pudesse ser humana: “Um anjo” (1995, p. 190). Quando, após um raro momento de interesse, o menino é novamente rechaçado pelo pai, é à Emília que ele recorre para acompanhar sua leitura. Ela lança uma pergunta espantosa: “Por que não me arriscava a tentar a leitura sozinho?” (1995, p. 190). O menino responde enumerando suas fraquezas, recusadas pela prima após a comparação com os astrônomos. Se eles conseguiam enxergar coisas distantes, por que o menino não conseguiria ler as palavras diante de seus olhos? Graciliano recusa novamente o estímulo da prima, mas depois toma coragem: “E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetrava, a inteligência espessa. Vagarosamente” (1995, p. 191). As palavras ganham sentido, os personagens ganham consistência e o menino ganha um pouco de confiança em si.

Não importa o que lia Graciliano, importa que ele passa a se reconhecer como alguém capaz de ler e fazer as próprias escolhas. Da mesma forma, não importa se Jacotot escolheu Telêmaco, pois era este ou “qualquer outro” (2015). Talvez seja difícil aceitar que numa aula de literatura a questão central não está na leitura do poema de Drummond, como pensa a professora de Prata, ou na definição da lista de leituras obrigatórias da Fuvest, como visto em polêmica recente. Mais do que uma discussão de conteúdo, defendemos a aula de literatura pautada no encontro, cuja forma se delineia na abertura ignorante do falar com, não no ímpeto explicativo do falar para. O fundamental é construir um espaço em que os estudantes falem com os demais e, mais especificamente, estimular a possibilidade de que cada um encontre o livro que fala consigo, nesse grande encontro do leitor com a obra.

Pelo encontro ininteligível

Ao chegar ao final de um texto que pouco se assemelha a um artigo, que traz mais perguntas do que respostas, é hora de olhar o caminho percorrido. Em nome do encontro, fizemos um passeio por obras literárias sem muito rigor. Um passeio. Foram mobilizados registros distintos, da memória à ficção, do filme renegado ao livro consagrado, da educação básica ao ensino superior, do detetive ao paraninfo. O que alinhava essa variedade é, como vimos, a busca por um falar com em contextos que poderiam prever o falar para. Nesse movimento, os especialistas se deslocam do conteúdo conhecido para o desconhecido do outro e do mundo. Nessa poética do encontro, o foco pedagógico está na possibilidade de diálogo e de cada um reconhecer em si a potência que o iguala aos demais.

Quando Deleuze fala sobre seu papel como professor, destaca a necessidade de ensinar os estudantes a ficarem felizes na solidão, “reconciliá-los com sua solidão” (1988DELEUZE, Gilles. O abecedário. Entrevista a Claire Parnet. Transcrição integral do vídeo. 1988. Disponível em: https://clinicand.com/wp-content/uploads/2021/02/Gilles_Deleuze_Claire_Parnet_Abeced_rioz-lib.org_.pdf Acesso em 10jan2024 . Acesso em: 05 jan 2024.
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, p. 76). Essa afirmação poderia contrariar o encontro aqui defendido, mas entendemos, na verdade, que ela sinaliza sua condição primordial. É preciso encontrar-se antes de encontrar o outro, seja ele um livro ou uma pessoa, pois, talvez assim, o encontro possa ser uma abertura à diferença, não uma necessidade de afirmação da própria singularidade. A aposta é que falar com o outro seja possível se, em solidão, muito já tiver sido falado para si mesmo.

É difícil a tarefa de ensinar a solidão. Há um limite para a explicação, pois o outro precisará justamente enfrentar sozinho aquilo que é necessário para si. Em alinhamento com Jacotot e Rancière, pensamos que cada um deve se entender como alguém capaz de seguir sua vontade, seja ela de estar só, dizer ou ler. Assim, esperamos ter deixado claro que defender a ignorância não implica atacar o conhecimento. Neste texto, acompanhamos grandes mestres (professores experientes, paraninfo e detetive), conhecedores profundos de sua matéria, mas enfocamos o modo como eles são abertos ao mistério do outro. Eles estão aqui por falarem sobre a abertura ao encontro, o desejo de estar com o outro, que exige a aceitação da própria ignorância.

E o que tudo isso tem a ver com a literatura afinal?

Pensamos a sala de aula como o lugar de encontro amoroso, que vai além da relação entre professor e aluno, privilegiada por Recalcati (2014RECALCATI, Massimo. Ora di lezione: per un’erotica dell’insegnamento. Torino: Einaudi, 2014.), e se expande ao coletivo. Nesse sentido, esperamos ter sinalizado, por meio de diferentes mestres ignorantes, a importância de criar um lugar de encontro em que todos possam se arriscar a falar com o outro sobre como o livro falou com eles próprios. A sala de aula pode ser o espaço de coletivizar o encontro radical que sozinho se tem com uma obra. Esse encontro arrebatador, nem sempre possível de explicar em palavras ou traduzir em análises, pode ser compartilhado em sala, ampliando seu alcance. Não se trata de ganhar uma discussão, como vemos nas redes sociais, mas de exercitar a possibilidade de dizer e ouvir o que, na leitura (ou na vida), pode ser ininteligível.

Se estamos, em sala de aula, dispostos apenas ao repetitivo exercício de falar para o outro sobre livros e opiniões, como teremos espaço para falar com o outro sobre o livro inesperado, a própria ignorância e o encontro radical? Como se abrir à incerteza das palavras quando nos moldamos ao discurso certeiro?

Como não lembrar o belo Croire aux fauves, em que a antropóloga busca fugir de moldes para relatar seu encontro com o urso? Ela afirma: “Pois é para mim que ele surgiu. É para ele que eu apareci. É duro deixar o sentido flutuar. Dizer a si mesma: não sei tudo sobre esse encontro” (Martin, 2021MARTIN, Nastassja. Escute as feras. São Paulo: Editora 34, 2021. , p. 78). E o que dizer do arrebatamento do encontro do mar e da mulher, chamados de seres “mais ininteligíveis” por Lispector? Afirma a escritora: “Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões” (1998LISPECTOR, Clarice. As águas do mundo. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 2018. p. 91-93, p. 92). Talvez sobre os grandes encontros pouco seja possível falar, inclusive neste artigo. Fica apenas a sugestão de leitura, como acontecem em tantas aulas de literatura, para que a obra possa falar com cada um, sem mediação.

Para finalizar, apenas registro a cena final de “Senhor diretor”, de Lygia Fagundes Telles, no qual o encontro não se dá, como nos casos anteriores, com a força da natureza, mas com a elaboração da cultura. Ao final de uma carta em que a personagem mescla suas diversas queixas, ela perde as palavras após assistir um filme. O encontro com a obra faz com que se percam as palavras conhecidas. Ela já não mais consegue falar para o diretor, pois há muito que precisa falar consigo mesma:

Abriu a bolsa, tirou o lenço e enxugou os olhos. Através do vidro embaçado dos óculos pressentiu que o filme chegava ao fim e desejou ardentemente que ele se prolongasse, agora não queria mais a claridade, espera, estava tão desalinhada, meus Céus, deixa me abotoar e este cabelo, onde foi parar o grampo? Apalpou depressa a lapela do casaco, desprendeu a camélia e guardou-a no fundo da bolsa. A lágrima contornou-lhe a boca, limpou a boca, como fui me comover desse jeito? Feito uma velha tonta, espera, eu estava querendo dizer que a nossa cidade, Senhor Diretor, que esta pobre cidade - que é que tem mesmo esta pobre cidade? Acabei falando em outras pessoas, em mim, Espera, vamos começar de novo, sim, a carta. Senhor Diretor: antes e acima de tudo. Antes e acima de tudo, Senhor Diretor. Senhor Diretor: Senhor Diretor. (Telles, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Senhor diretor. In: TELLES, Lygia Fagundes. O seminário dos ratos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 17-32, p. 157).

Quem dera a aula de literatura fosse o espaço em que as palavras conhecidas pudessem dividir espaço com aquilo que não sabemos nomear sobre o outro, sobre nós mesmos e sobre os textos. Quem dera pudéssemos nos encontrar para a partilha de palavras formadas entre dúvidas e lágrimas.

Referências

  • BAUDELAIRE, Charles. Flores do mal Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
  • DELEUZE, Gilles. O abecedário Entrevista a Claire Parnet. Transcrição integral do vídeo. 1988. Disponível em: https://clinicand.com/wp-content/uploads/2021/02/Gilles_Deleuze_Claire_Parnet_Abeced_rioz-lib.org_.pdf Acesso em 10jan2024 Acesso em: 05 jan 2024.
    » https://clinicand.com/wp-content/uploads/2021/02/Gilles_Deleuze_Claire_Parnet_Abeced_rioz-lib.org_.pdf Acesso em 10jan2024
  • GAGNEBIN, Jeanne Marie. O método desviante. Algumas teses impertinentes sobre o que não fazer num curso de Filosofia. Revista Trópico: ideias de norte a sul, São Paulo, 03 dez. 2006.
  • GARCÉS, Marina. Escola de aprendizes Belo Horizonte: Âyiné, 2023.
  • KNAUSGÅRD, Karl Ove. Uma temporada no escuro São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • LIBERAL Arts (Histórias de amor). Direção: Josh Radnor. Elenco: Josh Radnor, Elizabeth Olsen, Richard Jenkins IFC Films, 2012.
  • LISPECTOR, Clarice. As águas do mundo. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina Rio de Janeiro, Rocco, 2018. p. 91-93
  • LÓPEZ QUINTÁS, Alfonso. Descobrir a grandeza da vida: introdução à pedagogia do encontro. São Paulo: ESDC, 2005.
  • MADEIRA, Carla. Tudo é rio Rio de Janeiro: Record, 2022.
  • MARTIN, Nastassja. Escute as feras São Paulo: Editora 34, 2021.
  • MCCOURT, Frank. Ei, professor Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006.
  • MURAKAMI, Haruki. Romancista como vocação São Paulo: Alfaguara, 2017.
  • POE, Edgar Allan. A carta roubada. In: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias São Paulo: Nova Cultural, 2002. p. 203-224
  • PRATA, Antonio. Drummond fascista misógino. Folha de São Paulo, 22 abr 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2023/04/drummond-fascista-misogino.shtml Acesso em 20 dez 2023.
    » https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2023/04/drummond-fascista-misogino.shtml
  • RAMOS, Graciliano. Infância Rio de Janeiro: Record, 1995.
  • RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
  • RECALCATI, Massimo. Ora di lezione: per un’erotica dell’insegnamento Torino: Einaudi, 2014.
  • TELLES, Lygia Fagundes. Senhor diretor. In: TELLES, Lygia Fagundes. O seminário dos ratos São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 17-32
  • WALLACE, David Foster. Isto é água. In: WALLACE, David Foster. Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 263-275.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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