Open-access Não ensaiar: do poético ao ensaístico e de volta outra vez, entre Roland Barthes e Paloma Vidal

Not to essay: from the poetic to the essayistic and back again, between Roland Barthes and Paloma Vidal

Resumo

Este artigo discute a escrita do ensaio a partir da obra de Roland Barthes. Inicialmente, buscamos demonstrar uma teoria singular do ensaio articulada em seu trabalho, a partir de uma relação ambígua com as escritas acadêmica e literária, entre desejo e recusa. Nossa hipótese é que Barthes trabalha o ensaio como uma reação à escrita; o que o leva a conceber experimentos formais com o gênero. Essa discussão se ilumina também com uma análise do projeto Não escrever, de Paloma Vidal. Estudando Barthes e seu “medo de escrever”, Vidal parte do ensaio para propor um livro que deriva para a poesia. De um a outro, nosso texto realiza uma leitura cruzada: com Barthes se lê o ensaio como reforma do literário; com Vidal, vemos o poético se insurgir a partir do ensaio. De um a outro, podemos caracterizar linhas de força da poética ensaística contemporânea.

Palavras-chave: Roland Barthes; Paloma Vidal; ensaio; poesia; performance

Abstract

This article discusses essay writing based on the work of Roland Barthes. To begin with, we aim to demonstrate a unique theory of the essay articulated in his work, stemming from an ambiguous relationship with academic and literary writing, between desire and refusal. Our hypothesis is that Barthes approaches the essay as a reaction to writing, leading him to conceive formal experiments within the genre. This discussion is further illuminated by an analysis of Paloma Vidal's project Não escrever. Studying Barthes and his "fear of writing," Vidal starts from the essay to propose a book that transitions into poetry. Moving from one to the other, our text conducts a cross-reading: with Barthes, the essay is read as a reform of the literary; with Vidal, we see the poetic emerging from the essay. Moving from one to the other, we can characterize the lines of force of contemporary essayistic poetics.

Keywords: Roland Barthes; Paloma Vidal; essay; poetry; performance

Resumen

Este artículo discute la escritura del ensayo a partir de la obra de Roland Barthes. Inicialmente, buscamos demostrar una teoría singular del ensayo articulada en su trabajo, desde una relación ambigua con las escrituras académica y literaria, entre el deseo y el rechazo. Nuestra hipótesis es que Barthes aborda el ensayo como una reacción a la escritura, lo que le lleva a concebir experimentos formales dentro del género. Esta discusión también se ilumina con un análisis del proyecto Não escrever de Paloma Vidal. Estudiando a Barthes y su "miedo a escribir", Vidal parte del ensayo para proponer un libro que se transforma en poesía. De uno a otro, nuestro texto realiza una lectura cruzada: con Barthes, el ensayo se lee como una reforma de lo literario; con Vidal, vemos lo poético surgir a partir del ensayo. De uno a otro, podemos caracterizar las líneas de fuerza de la poética ensayística contemporánea.

Palabras clave: Roland Barthes; Paloma Vidal; ensayo; poesía; performance

É porque há uma angústia da banalidade que a literatura não cessa de inscrever suas informações dentro de uma área de segurança. VIGIÁ-LAS, para distanciarem-se da nomenclatura espontânea dos sentimentos (Cesar apudCamargo, 2003, p. 184).

A reflexão é da poeta Ana Cristina Cesar - tão ciosa da banalidade que registrou essa ideia em uma marginália, no calor de uma leitura: a citação está inscrita em seu exemplar de Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes (2010), conforme recupera Maria Lucia Camargo (2003) em seu estudo sobre a escritora. Cesar se preocupa com o excesso de imunidade da literatura, temerosa de se diluir diante da espontaneidade. Que a poeta anote essas reflexões no corpo de um livro como Fragmentos é já uma espécie de resposta a sua observação, uma oferta de plano de saída à tal clausura autoimportante do literário: afinal, é um livro que fala de amor, do discurso amoroso, da banalidade. E o faz fora, mas também dentro da literatura, forçando suas comportas: queremos dizer, o faz como ensaio.

Toda a escrita de Barthes parece se mover abastecida pela mesma inquietação, no desejo de dar forma a uma observação e reflexão do mundo que transcenda o rigor da literatura (que ele pensou científica, afinal - ao menos no início de sua obra), na direção da banalidade da observação corriqueira, na sua tomada não só como objeto, mas também como método. Escreve, de si próprio, o seguinte:

[...] o que ele diz dos grandes objetos do saber (o cinema, a linguagem, a sociedade) nunca é memorável: a dissertação (o artigo sobre alguma coisa) é como um imenso dejeto. A pertinência, miúda (quando ela existe), vem apenas nas margens, nas incisas, nos parênteses, de viés: é a voz off do sujeito. (Barthes, 2003c, p. 87, grifos do autor).

As margens, novamente. Surge aqui uma distinção importante, que parece ecoar, de algum modo, a de Cesar: entre os textos que falam sobre seus temas, e os textos que os abordam de viés. Eco também da distinção entre “texto de escrevente” e “texto de escritor”, célebre na crítica barthesiana inicial (Barthes, 2007b), tal diferença funda uma tática de pensamento e produção ao longo do exercício intelectual do semiólogo, como ele mesmo admite naquela citação. A partir de sua perspectiva oblíqua, pode se livrar das obrigações da instituição literária, que instrumentaliza o pensamento (Barthes, 2007b, p. 32).

Ao não escrever (teses), Barthes escreve (aproximações). Ao não escrever (literatura), Barthes escreve (ensaios). Nesse movimento também expande o ensaísmo para além de si. Nossa hipótese, neste texto, é pensar como a escrita do ensaio, como feita pelo semiólogo francês, instaura torções nessa prática, atualizando o gênero e aproximando-o cada vez mais de um exercício poético de jogo e desmonte, de interpretação no sentido performático, recusando o “desvelamento”, o sentido hermenêutico.

Para reconstituir tal trajetória do pensamento barthesiano e suas lições para uma poética ensaística contemporânea, propomos neste artigo uma argumentação em três movimentos. De início, cabe uma certa arqueologia do ensaísmo de Barthes como via de subversão, ao mesmo tempo, da exposição científica e da escrita literária. Para isso, é preciso recuperarmos a tensão da resistência barthesiana ao escrever, retomando seu assombro pelos projetos fracassados de incursão pela ficção. Barthes torna o ensaio palco de uma dramatização, como veremos.

Para melhor entendê-lo, também, em um segundo momento nosso artigo propõe ler os gestos de um outro ator nesse teatro do ensaio. Apresentamos e analisamos o projeto Não escrever, de Paloma Vidal (2023b), um ciclo de trabalhos e performances construído em torno de Barthes. Mais especificamente, sobre o tormento barthesiano em seu projeto de eterna e frustrada preparação da escrita romanesca. Essas reflexões, porém, partem do ensaísmo acadêmico para tensioná-lo, propondo performances e textos de forma e inspiração poéticas - formas de reencantar as observações barthesianas. Mais: levando Barthes (que concebia o ensaio como uma saída da literatura) de volta à poética - como vemos na terceira e conclusiva seção do texto.

“Um romance sem nomes próprios”: o ensaísmo de Roland Barthes como recusa da escrita

“E se é verdade que, por longo tempo, quis inscrever meu trabalho no campo da ciência, literária, lexicológica ou sociológica, devo reconhecer que produzi tão somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise”, começa Roland Barthes na Aula (2007a, p. 7, grifos nossos), sua conferência de abertura ao assumir uma cátedra no College de France em 1977.

Nessa fala, exame retrospectivo de todo seu pensamento, Barthes admite ter uma obra constituída inteiramente pela fragmentariedade do ensaio. Ato contínuo, define esse gênero textual de modo sintético e singular: a escrita da incerteza - e, podemos extrapolar, oferece essa definição como imagem de si próprio, repetindo o adjetivo que usara para se apresentar logo no começo da Aula (2007a, p. 7, grifo nosso): “Eu deveria começar por interrogar-me acerca das razões que inclinaram o Colégio de França a receber um sujeito incerto, no qual cada atributo é, de certo modo, imediatamente combatido por seu contrário”.

Um texto (e um sujeito) no qual o ato de escrever adquire tanta importância quanto a razão ou o objeto da escrita; de uma interrogação constitutiva, pois o exercício da escrita seria exploratório, tentativo, francamente contraditório em suas revoluções internas e em sua aposta na incerteza como princípio. Barthes joga aí com as definições clássicas do ensaio, postas desde sua experimentação inicial com Montaigne (2010), no século XVI. Porém Barthes não apenas segue o molde, a forma de algo que é, afinal, informe: sua apropriação desse gênero incerto é central na história do ensaísmo, como aponta Marielle Macé (2004; 2008), modificando sua própria poética. Para entender aquilo que Barthes faz com o ensaio, porém, é preciso primeiro perguntar: por que o ensaio?

A aposta barthesiana nesse gênero nasce de uma impossibilidade: sua atribulada formação institucional por conta das crises de tuberculose e dos consequentes períodos de internação em sanatórios. Entrar e sair dos hospícios nos Alpes era também entrar e sair dos liceus e dos espaços acadêmicos, gerando uma posição ela própria ambígua na cena intelectual da época (Calvet, 1993; Samoyault, 2017): afinal, quem era aquele sujeito que emergiu de uma cama de hospital cheio de artigos, conhecedor da literatura de vanguarda, mas que não tinha ainda uma dissertação? - situação que forjou uma assumida insegurança diante das liturgias do pensamento “oficial”, como ele próprio assume na Aula (Barthes, 2007a).

Esse medo, Barthes abordaria de viés: assumindo influências diretas dos trabalhos de autores como Jules Michelet e Jean-Paul Sartre, dá partida a sua produção de textos breves e de circunstância. Desde O grau zero da escrita (Barthes, 2004c), em 1953, e mais diretamente nas reflexões metaensaísticas reunidas nos Ensaios críticos (2007b), busca distanciar-se de uma tradição contextualista e ideológica, identificada por ele como motor da produção crítica universitária. O ensaio apresenta-se para Barthes, como bem sintetiza Réda Bensmaïa (1987, p. 31), como a recusa do sistema e da autoridade - tornando-se, mais diretamente, a recusa da dissertação: e isso o leva a ter de inventar uma nova economia do texto, uma redefinição da própria noção do trabalho da escrita. A sua será aquela que, diante da obra analisada, diante do tema a ser abordado, se mobiliza não por um desejo de explicação ou pela defesa de uma tese, mas tão somente por um “poder de espanto” (Barthes, 2007b, p. 155, grifos nossos).

A mobilização desse espanto - choque que deverá ser, ele mesmo, o “tema” do trabalho - se dá pela desmontagem da forma argumentativa, buscando produzir um texto que seja, ele próprio, análogo à experiência de encanto e surpresa do ensaísta. É disso que trata sua famosa imagem da escrita crítica como coleta dos momentos em que o leitor levanta a cabeça do livro que lê, possuído por uma variedade de ideias e sensações (Barthes, 2012b, p. 26).

Ainda em Escrever a leitura, Barthes (2012b, p. 27) oferece uma contraposição de metáforas esclarecedora: se a crítica acadêmica opera ora com microscópio (dissecando a obra nos mínimos detalhes, em busca de uma verdade intrínseca), ora com telescópio (usando o texto de pré-texto para exploração de seu universo sócio-histórico), ele irá usar uma câmera cinematográfica primitiva, como a de Eadweard Muybridge, que captura em decomposição os movimentos de seu objeto.

Aqui, Barthes se aproxima de uma mudança latente na prática ensaística do século XX, como aponta Macé (2004, p. 127): sua assunção como gênero de preferência do discurso intelectual, frente a uma crise de confiança na razão científica. É o movimento celebremente registrado por Theodor W. Adorno (2003) em seu ensaio sobre o ensaio, pensando tal modo de escrita enquanto crítica da sistematização dogmática, da metodologia científica como procura da verdade. Essa transição marca um deslocamento - suave, porém decisivo - na própria lógica do gênero: da exploração livre de um Eu, com Montaigne (2010), de interesse pelas possibilidades de subjetivação dessa escrita, para um primado da experimentação formal, segundo Adorno, por ser um gênero que busca suplantar a teleologia da ciência moderna, propondo um contra-método1. Algo como uma tática sem estratégia, como Barthes (2003c, p. 190) definirá a própria obra: o exercício de um perpétuo deslocamento de seus objetos temáticos, sem nunca chegar a “conquistar” seu terreno, fincar uma bandeira.

Porém, se à primeira vista o ensaísmo como recusa científica aproxima Barthes do filósofo alemão, sua contribuição à lógica do ensaio modula essa filiação, introduz disjunções na cronologia do ensaísmo. Contra as lógicas cientificistas, que chama de forças ora de silogismo, ora de abstração, ele oferece a saída do “discurso dramático” (Barthes, 2007b, p. 211): como uma espécie de terceira via ao experimento do sujeito e ao experimento da forma, Barthes sugere o ensaio como construção do sujeito em um trabalho de interpretação teatral, sobre a cena do texto.

A forma dessa representação se dá por uma colagem de notas de choque e estranhamento, o relato em câmera lenta de um encontro de corpos; são, afinal de contas, registros de incidentes. O termo, que se tornará importante para a produção (mesmo a íntima) barthesiana, aparece pela primeira vez no ensaio “F.B.”, recolhido em O rumor da língua (Barthes, 2012b). Recolhido e reconstituído, montado a partir de anotações feitas por Barthes nas margens dos manuscritos de um jovem escritor mantido anônimo pela edição. Como Ana Cristina César faria com ele próprio, Barthes aproveita a marginália como espaço de diálogo, de ensaio, e parte do autor lido para fazer algumas proposições gerais sobre uma poética do literário. F.B. escreve em estilhaços, os tais incidentes; e, para o ensaísta que o lê, essa fragmentariedade apresenta em potência duas das principais características do romance moderno: primeiro, “a incerteza da consciência narrativa, que nunca diz francamente ele ou eu”, e segundo, “uma maneira cursiva”, uma fluidez veloz que breca leituras totalizantes (Barthes, 2012b, p. 284). A elaboração sobre o estilo desse autor, leva à conclusão: “Por esse motivo, poder-se-ia chamar os textos de F.B. não de fragmentos, mas de incidentes, coisas que caem, sem choque, e no entanto com um movimento que não é infinito: contínuo descontínuo do floco de neve” (Barthes, 2012b, p. 284, grifos do autor). Mas essa brevidade não é a do aforismo, Barthes alerta, pois este transforma a ambiguidade em desejo de desvelamento: F.B. desenvolve os incidentes como metáforas infinitas, troca a ambiguidade pelo mistério, e, assim, acaba “recusando o tempo do romance” (p. 285).

Poderíamos transcrever tudo que se diz nesse texto literalmente marginal e, com um deslocamento de siglas, afirmar que o texto de R.B. é uma poética incidental, que recusa o romance enquanto mobiliza o romanesco. Seu ensaísmo, já situado em uma fronteira que é sobreposição de fronteiras (entre o funcional e o lúdico; entre o institucional e o amador; entre o leitor e o autor), se entrincheira afinal no espaço conflituoso entre o científico e o literário. E assim passamos a entender a outra renúncia que leva Barthes ao ensaio como gênero de preferência para sua escritura, além da recusa ao universitário: a desistência do ficcional, da literatura.

É notória a indecisão barthesiana diante do desejo de escrever literatura. Toda a parte final de sua obra se contamina dos planos frustrados de começar Vita Nova, o romance proustiano e projeto de testamento intelectual, fracasso que assombra os últimos ensaios e cursos, de meados a fins dos anos 1970. Se a presença dessa ausência arrisca tornar-se mítica, seguimos a hipótese de Claudia Amigo Pino (2015), segundo a qual a não escrita romanesca de Barthes realiza-se, de viés, na escrita ensaística. Não só os diários - como Incidentes (2004a) - são rascunhos e experimento para o livro, mas textos de aparência mais “tradicional” enquanto artefatos de crítica intelectual, como A câmara clara (2012a), mobilizam a escrita de Barthes na direção de afetos e elementos formais que o próprio atribuía ao literário: a indecisão entre narrativa e relato; a intrusão da voz de um eu que não se configura como sujeito, mas como uma força enunciativa, efeito de linguagem; um desafio, via encenação paródica, do senso comum (Pino, 2015; Oliveira; Pino, 2018).

Esticando essa leitura, podemos pensar se, de saída, a escolha por ser um escritor de ensaios já não teria sido uma elaboração dessa deserção da literatura tout court. Se não há no arquivo biográfico (Calvet, 1993; Samoyault, 2017) relatos explícitos de um desejo frustrado de escrever ficção na sua juventude, os textos críticos que produz nessa fase são um verdadeiro programa estético de rejeições: o elogio do nouveau roman, por exemplo, se dá pela sua dupla negação, do lirismo e da representação realista, em prol de uma literatura “desliteralizada” - algo próximo ao teatro desdramatizado de Bertold Brecht, autor largamente elogiado por Barthes desde o começo de sua produção crítica (e que modula sua proposição do ideal de “discurso dramático” da escrita intelectual, como já vimos aqui). Essa literatura que vai além ou aquém do literário (este entendido do lado da institucionalidade, assim como a ciência) é chamada de objetiva, em referência a obra de Alain Robbe-Grillet: não porque é funcional ou “direta”, mas porque se constrói num corpo a corpo com o seu objeto, e este “não tem função nem substância” (Barthes, 2007b, p. 84). Escapar do literário, fugir ou recusar ao ser por ele recusado, é se reencontrar de novo com os objetos, e é nesse encontro, nesse incidente, que nasce o ensaio - sempre uma tentativa não só de abarcar e entender seus objetos de reflexão, mas mesmo questionar a capacidade para se dar conta deles, a responsabilidade ou direito do ensaísta para tocá-los. A objetividade torna-se assim, paradoxalmente, uma aproximação tentativa, vacilante - à maneira da prosa cheia de descrições sem referente de Robbe-Grillet -, e que se torna definição da própria escritura.

O desejo de uma outra forma de contar põe em jogo essa dinâmica entre literatura e ensaio, a partir da literatura-sem-literário, sintetizada na ideia de ficção; a força da escrita em desmontar as estruturas discursivas e ideológicas estanques, presas na língua como um travo (Barthes, 2007a). O que Barthes introduz na prática ensaística é essa vibração ficcional, a dramatização desdramatizada de um texto que inventa sua capacidade ou mérito de falar dos objetos de que fala. Como define Bensmaïa (1987), a poética barthesiana do ensaio leva ao limite a função experimental e prospectiva do gênero, que refunda o sistema de sua escritura a cada novo texto, a cada nova incursão: “aqui, não é mais o Autor que produz uma Obra, mas sim a estrutura formal do texto - os protocolos de produção e enunciação (procedimentos) moldados por ela - que produzem, ao mesmo tempo, as expressões e os temas que servirão como seus suportes”2 (Bensmaïa, 1987, p. 53, tradução nossa).

É o que leva ao paroxismo a lição de Montaigne (2010) - que Barthes, aliás, pouco cita e admite pouco ter lido.3 Uma das únicas poucas alusões ao patrono do ensaio está no segundo volume dos cursos da Preparação do romance, às voltas com a escrita/não escrita de Vita Nova; e aí o assume como patrono de todo seu desejo discursivo:

E talvez seja isso que Montaigne quis dizer com esta frase lapidar, a qual gostaria de ver afixada nesta sala, junto ao perfil de Bergson, ao menos em todas as ocasiões em que nos reunirmos aqui aos sábados pela manhã, porque não quero adotar o mesmo lema dos outros professores, e este lema é, portanto, o de Montaigne quando ele diz: "Eu não ensino; eu conto".4 (Barthes, 2003b, p. 408, tradução nossa).

Vê-se aí que o “Efeito Barthes” sobre o ensaísmo, como é o conceito defendido por Bensmaïa (1987, p. 61), é o “poder de simulação”, a transformação de seu exercício em uma militância pela suspensão entre verdadeiro e falso, na valorização do texto como uma máquina de efeitos. É o ensaio como contação - o que acaba por atar as pontas, refazer as pazes entre Barthes e a literatura.

Isso aparece de forma explícita em 1973, na entrevista “O adjetivo é o ‘dizer’ do desejo”, a propósito do lançamento de O prazer do texto (Barthes, 2013) - texto bastante sintético dos impulsos de “incidentar” a ciência e a literatura ao mesmo, de pensar o pensamento escrituralmente. Na conversa, Barthes escancara o procedimento que produz no coração do ensaísmo - o seu e o de sua época:

É provável que eu nunca escreva um “romance”, isto é, uma história dotada de personagens, de tempo; mas se aceito com tanta facilidade essa renúncia (pois deve ser coisa muito agradável escrever um romance) é certamente porque meus escritos estão cheios de romanesco (o romanesco é um romance sem personagem); e é verdade que, atualmente, encarando de um modo pouco fantasístico uma nova fase de meu trabalho, tenho vontade é de ensaiar formas romanescas, nenhuma das quais tomaria o nome de “romance”, mas cada uma delas guardaria, se possível renovando-o, o de “ensaio” (Barthes, 2004b, p. 250, grifo do autor)

E é curioso perceber, ainda, como dois anos depois ele reelabora, quase termo a termo, essa mesma reflexão, desdobrando-a em RolandBarthes por Roland Barthes (2003c), a obra síntese de seus esforços ensaísticos, paródia da autobiografia e laboratório da escritura propriamente dita. Como se estivesse ensaiando o que chamar de seu ensaio. No fragmento apropriadamente chamado “O livro do Eu” (aí de novo a tensão entre o subjetivo e o formal, tensão motora do ensaísmo, como vimos), reescreve:

A substância deste livro, enfim, é pois totalmente romanesca. A intrusão, no discurso do ensaio, de uma terceira pessoa que não remete entretanto a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade de remodelar gêneros: que o ensaio confesse ser quase um romance: um romance sem nomes próprios (Barthes, 2003c, p. 136-137, grifo do autor).

Barthes aceita a renúncia porque, no fim das contas, não está abrindo mão de nada - de nada que não gostaria mesmo de abandonar: a institucionalidade, a fixidez, a escrita como produção de estabilidades. Do romance, recolhe o romanesco; da literatura, o literário; da linguagem, seu poético. Do ensaio faz o ensaísmo: não um substantivo, mas uma força. Porém, se essa definição de ensaio é uma definição sem imunidades, necessariamente aberta a sua contaminação pelo fora (fora da instituição; fora da literatura; fora de Si), cabe ainda provocar a síntese barthesiana. Podem os nomes próprios se rebelarem da exclusão, decidirem invadir (como já o fizera o romanesco) o espaço ensaístico? E o que dizer de uma literatura que leva não apenas um nome, mas justo o de Barthes? Ou, ainda, é possível restituir a esse ensaísmo da fuga e da desistência uma reconciliação com o literário esconjurado? Se parecem dissonantes, em um primeiro momento, essas questões emergem de um corpo a corpo com esse ensaísmo: aquele praticado por Paloma Vidal (2023b) junto à obra barthesiana; abrindo aqui, ao mesmo tempo, exemplo de um exercício do tipo de ensaio que viemos caracterizando até aqui, e tensão na sua forma.

Um rosto sobre o outro: o ensaísmo de Paloma Vidal como retorno ao poético

“Em outubro de 2018, fiz uma performance sobre Barthes em que usava uma máscara com seu rosto” (Vidal, 2023b, p. 13).

Assim Paloma Vidal abre “Resistir a Barthes”, o primeiro ensaio de seu livro Não escrever. Mas ensaio? Poderíamos chamar ainda assim um texto que segue deste modo?

quando começou isso de me fantasiar de Barthes? Fotos de Barthes O CORPO DE BARTHES O corpo de Barthes, sua voz, seu olhar, uma maneira de olhar, uma maneira de escrever, tomaram em algum momento meu corpo - seu medo, seu prazer. Fotos de Barthes Olhando para as imagens O corpo de Barthes não são estas imagens (Vidal, 2023b, p. 14, grifos da autora).

Ao romance sem nomes próprios, Vidal parece oferecer um ensaio cheio deles; primordialmente o de Barthes. Mas um Barthes que já não é sujeito, não aquele fotografável ao menos, com um objeto que está no mundo, à espera do registro. Como o próprio texto, ele se constrói no incidente. Como categorizar o exercício de escrita deste livro, de construção desses nomes próprios que contaminam o próprio ensaísmo - levando-o, talvez, de volta ao literário?

Não escrever encerra e organiza um ciclo de produções iniciado por Vidal em 2015, a partir da proposta de um projeto de pesquisa acadêmica em torno de Vita Nova e seu fracasso. Pensado primeiro de forma mais ampla, e assim oferecido às instâncias de fomento, o plano inicial era pensar escritas do inacabamento em diversos autores; no começo do trabalho, porém, ele passou por um refinamento de seu corpus (procedimento tipicamente científico), bem como a uma torção do desejo, do surgimento de uma relação com o objeto que o faz atuar como personagem na pesquisa (procedimento, diríamos a princípio, romanesco) (Vidal, 2023b). Como a própria Vidal afirma, no prefácio do livro, o desenvolvimento do trabalho tornou-se, ele próprio, uma reflexão sobre seu espaço e modo de atuação enquanto investigação:

Falar em “pesquisa” coloca este livro no âmbito de um trabalho específico, dentro da universidade, que foi o espaço que o tornou possível. Por uma sorte do cruzamento entre as línguas, eis que em francês a palavra recherche tem uma ambivalência muito barthesiana: a pesquisa é também a busca. (Vidal, 2023b, p. 8).

Há a confissão de uma distância, de um estranhamento em se assumir científico, herdados diretamente de Barthes: Vidal também nega o microscópio e a luneta em prol das câmeras (seu livro é coalhado de fotografias, afinal). Mas diferentemente de Barthes, por seguir Barthes, ela já possui uma forma, um gênero no qual desenvolver sua inquietação: o ensaio. Não escrever é um projeto todo movido pela lógica ensaística barthesiana, como vimos até aqui: não apenas escrever sobre algo, mas tornar esse escrever autorreflexivo. Não querer chegar a algo, mas querer que o texto seja seu próprio objetivo - querer anotar a leitura.

Em Vidal, porém, essa postura sofre ainda uma torção já que ela segue Barthes também na falta do literário. Aqui, a falta de texto (ou o excesso de projeto) é tema central e também autobiográfico: a pesquisa se motiva pelo inacabamento de um romance que a autora relutava em escrever desde 2013. Ainda em “Resistir a Barthes” elabora tal passagem:

E porque eu tentava fazia vários anos, sem conseguir, escrever um romance. Eu comecei a viver com Barthes. O CORPO DE BARTHES Um corpo que se escreve e é escrito por outros. (Vidal, 2023b, p. 23)

Não escrever passa, portanto, a caracterizar de forma exemplar a ensaística barthesiana como sistema da dupla recusa, como exposto até aqui. Mas vai além ao refletir sobre essa própria posição como escrita negativa; ao negar o aspecto de negativo. Em “Nunca mantive um diário”, texto que encerra o volume, ensaio monográfico em prosa, Vidal reflete que, para Barthes, aquele que escreve sempre pratica alguma coisa, dá materialidade, por meio da atividade, a algo. Se, por um lado, rechaça certos gêneros ou escolas, não o faz para se manter silente, senão para ampliar o campo de jogo possível. É a prática de uma teimosia, da recusa em tomar parte do dado e do regulado para reafirmar a intransitividade de sua ação. “‘Não escrever’, então, nesta pesquisa, tal como ela foi se dando desde que começou há quase três anos, é isto: ‘manter ao revés e contra tudo a força de uma deriva e de uma espera’”, explica Vidal (2023b, p. 104), abrindo aspas que citam a si mesma enquanto parafraseiam trechos da Aula (Barthes, 2007a).

O revés, o viés, a marginália como política - mesmo quando o próprio ensaísmo fracassa. Pois ele também fracassa, não é solução mágica a qualquer dificuldade ou recuo. E é diante do fracasso do ensaio que o texto de Vidal mais nos interessa, por demonstrar os limites e as artimanhas do procedimento. Quando dá início a sua pesquisa, entre leituras e releituras, entre estadias em Paris e a lida com os arquivos, escrever o trabalho acadêmico também se torna impossível - mas por razões outras: Barthes rechaçava o acadêmico nos anos 1950 e 1960. O mal-estar aqui é mais difuso e afeta não só a escrita de teses ou artigos, formas institucionais, mas o exercício da própria liberdade de pensar do ensaio:

Isto aqui faz parte de um grupo de textos que escrevi entre 2015 e 2018, a partir de uma inquietude relacionada com os momentos em que, por motivos pessoais, por motivos políticos, por motivos difíceis de entender ou de explicar, se torna impossível continuar a escrever (Vidal, 2023b, p. 26).

Como prosseguir? Assumindo o ensaísmo barthesiano menos como gênero formal, como estrutura ou mesmo estilo, e mais como uma inspiração: ensaiar com Barthes é ficcionalizar, por vezes até contra o próprio ensaio. Daí a multiplicidade de formas e mesmo linguagens a que Vidal se lança nos textos que passam a emergir do projeto de pesquisa (ou melhor dizendo, do projeto de busca): performances, vídeos, textos poéticos e mesmo o próprio livro, já muito distante da lógica monográfica. Não escrever consiste em cinco textos, recolhidos de circunstâncias e experiências ao longo dos quatro anos do projeto: um ensaio de corte mais “clássico”, escrito em prosa; um excerto de diário; e três textos em verso, que podemos ler como poemas, mas que possuem mesmo entre si uma variação de gêneros - o primeiro é retirado do roteiro de uma performance, o segundo encarna a voz do próprio Barthes fantasiando uma viagem sua a São Paulo, e o terceiro desenvolve leituras teóricas a partir de um trecho de Como viver junto (Barthes, 2003a). Por todos encontramos personagens e nomes próprios: Barthes, mas também Paloma, Claudia, Felipe, Magali, Leyla, Leonardo… Se o romanesco é o romance sem personagens ou tempo, e o ensaio uma escrita em que a terceira pessoa se disfarça de um Eu, como avaliar esses textos estranhos, em que há vida, sujeitos e uma sensação presente de História e de estória, em que o Eu é ponto de partida? Seria a deriva para um poético, um poético contagiado pelas experiências de troca entre aqueles dois gêneros/forças.

O que é o poético de Vidal? Em um exercício especulativo aqui, podemos pensá-lo aliando a leitura de Não escrever a de um artigo seu intitulado “Inquietações teóricas, saídas poéticas: ferramentas barthesianas em algumas poetisas brasileiras contemporâneas” (Vidal, 2023a). Especulativo, pois trata-se de imaginar esse artigo como um texto análogo ao “F.B.” de Barthes (2012b): um comentário às margens da produção de outro escritor, para nele confessar os próprios conceitos e dispositivos. Tomar o diálogo como laboratório. No caso de Vidal, diferentemente do objeto de “F.B.”, o interlocutor é nomeado e reconhecido: tratam-se das poetas Leila Danziger, Marília Garcia e Aline Motta.

Vidal observa, a partir delas, alguns usos poéticos das táticas sem estratégia da escrita ensaística barthesiana, entendendo a necessidade desta em não ser apenas uma prática em si, mas legar-se a ser usada e distendida por outros escritores - forma de insistir nas negativas-criativas vistas até aqui, como se lê no trecho: “Nela [a universidade] a teoria fica muitas vezes encurralada entre sua inutilidade, porque teríamos de ir diretamente ao texto, e sua tirania, porque deveríamos nos curvar a ela aceitando que nunca estaremos à altura do debate” (Vidal, 2023a, p. 8). Buscando sair dessa clausura, a teoria barthesiana se acidenta para fora de si, caminhando na direção de tornar-se instrumento daquilo que evitou fazer em um primeiro momento: literatura.

Seguindo tal vertigem, o artigo de Vidal passa a listar procedimentos formais de escrita tomados a essa teoria e sua experimentação ensaística em obras como Roland Barthes por Roland Barthes e A câmara clara. Porém, tais procedimentos só interessam fora daí, quando lidos nas poéticas de Danziger, Garcia e Motta. São alguns deles a elaboração de espaços vazios, seções em branco, por onde entram e se reorganizam trechos e fragmentos; a construção de uma relação entre texto e imagens em que o primeiro não faz legenda, mas sim perguntas às segundas; a exclusão de imagens e referentes imagéticos a que o texto alude e sobre os quais se desenvolve; a intrusão da figura do corpo e sua forçosa tradução em dispositivos discursivos que simulem, no texto, a dinâmica performática (Vidal, 2023a, p. 5).

De mesmo modo que a composição incidental de F.B. inspira Barthes (e podemos entendê-la como a própria descoberta da possibilidade do romanesco sem romance), essas artimanhas teórico-poéticas podem ser lidas como guias da produção de Vidal mesma, ela também empenhada em encontrar formas de dar vazão a um desejo de escrita que já não cabe nos gêneros ou nos modelos oferecidos - nem pelo próprio ensaio barthesiano. Ao abandoná-lo, retorna ao literário de viés, com a poesia, compondo textos em verso e atravessados pelas mesmas ferramentas colhidas às poetas contemporâneas que analisa. Vimos, nos trechos aqui, uma outra operação da fragmentariedade, amplificada não só pelo corte do verso, mas também pela interposição de imagens; e também pela alusão a imagens não inseridas, transformadas em legendas-sem-foto como “Fotos de Barthes”, “Olhando para as imagens”.

Voltemos à cena inicial de Não escrever, já citada aqui: “Em outubro de 2018, fiz uma performance sobre Barthes em que usava uma máscara com seu rosto” (Vida, 2023b, p. 13). Logo acima, há a foto desse momento - mas que não parece exercer sua função “normal” de ilustração ou indução ao relato. Aparece como seu objeto impossível: convoca a começar a contar.

Nesse relato da sobreposição de Barthes sobre seu corpo, e na literal sobreposição entre palavra e imagem, Vidal parece oferecer uma chave à compreensão da operação poética que desenvolve ao cabo do projeto. Quem está falando? Acelera-se a substituição da ambiguidade pelo mistério, a distensão do texto em ficção como pensamento dos efeitos (Barthes, 2003c, p. 105): o que acontece quando o texto se transveste de Barthes para falar o que Vidal quer dizer? Vestir-se de ensaísta para falar do (fracassado) romance? O jogo entre texto e imagem, tomado às poetas contemporâneas, produz um curto-circuito de leitura, uma indecidibilidade do referencial e um prolongamento do jogo de significação - um efeito poético por excelência. Naquele artigo-ensaio-confissão, Vidal fala de um objetivo semelhante na brincadeira com fotos realizada por Marília Garcia: “O que é dito no texto aparece na imagem, ou vice-versa, como uma surpresa, que abala a separação entre representação e ação, que nos convida a continuar olhando, pensando e fazendo algo com isso, mesmo depois que o poema termina” (Vidal, 2023a, p. 8). Ou antes mesmo que ele comece, no rosto de um homem morto há 40 anos, mas que não cessa de se incidentar sobre nós.

No poema-ensaio praticado por Garcia, e também por Danziger, Motta e, claro, Vidal, há poema porque há verso, mas não só: sobretudo porque há esse adiamento do objeto, a valorização do espaço de leitura e significação, há a pulsão da experiência traduzida em uma escrita em presente perpétuo. Há ensaio porque há tema e reflexão crítica, mas não só: sobretudo porque há o Eu como terceira pessoa, há experimentação e dramatização. Há poema-ensaio porque há poesia e há ensaio, mas sobretudo porque há performance, a compreensão da capacidade de invenção da prática de escrever diante da recusa teimosa e produtiva. Porque há contaminação, há a derrubada de toda e qualquer cerca de gênero ou mecanismo de segurança, em prol das margens e das ações: “Talvez seja por ter visto Marília performando esses textos que em algum momento entendi o que estava em jogo, para mim, nos cursos que me fascinavam de Roland Barthes: a possibilidade de não separar o pensar do fazer” (Vidal, 2023a, p. 8).

Do ensino à contação, para lembrar o que Barthes herda de Montaigne; e agora da contação à ação.

Medo da poesia, desejo de sedução: caminhos para o ensaísmo

Nesse percurso, estamos de volta - mas o ponto de chegada, embora lembre o de partida, não é exatamente o mesmo. Algo se passou. Talvez mesmo porque a viagem tenha alterado de modo radical nossa percepção, como o ensaio tem o dom de transmutar não só seus objetos, mas seu próprio autor. Como síntese desse movimento, é luminoso um trecho de Não escrever, uma estrofe do poema-ensaio intitulado, bem, “Não escrever”. Nela, Vidal conversa com a mãe de um colega do filho durante um passeio escolar. Tenta relatar a ela o que está fazendo na França, como está estudando Barthes e por que:

Pra simplificar, conto do romance que ele não escreveu. “Vita Nova”, eu digo. Ela olha pra mim e diz: “Ah! Então é isso: você veio pra cá pra escrever o que ele não escreveu!” (Vidal, 2023b, p. 77).

E não é exatamente isso que acontece, ao fim? Não porque Vidal escreve o romance abandonado, fantasmado por Barthes; mas porque reverte a máquina de escrita do próprio autor. Se ele inventa um ensaísmo a partir do romanesco, para inventar um outro Eu para si, Vidal inventa um poético a partir dos instrumentos ensaísticos de Barthes, colocando ao centro dele seu próprio nome, seu próprio corpo.

E o faz contra Barthes, também. Faz fazê-lo poesia, uma cena inconcebível. Diferente das recusas lidas aqui, o trato de Barthes para com a poesia é notoriamente espinhoso, desde a denúncia severa dos poetas modernos no Grau zero da escrita (Barthes, 2004c), quando critica sua “autonomia violenta”. Estudiosos radiografam essa tensão, identificando um medo do poético na obra do ensaísta - Claude Coste (2016) chega a chamar de um terror da poesia, no fundo um terror do verso e sua capacidade de reinvenção, radical demais.

Ora, é esse medo que guiará toda uma obra que, se recusa a poesia nominalmente, correrá em paralelo a essa força transmutadora. Afinal: “Barthes escreveu/ ‘Tenho medo, logo vivo’/ E se perguntou se poderia existir/ uma ‘escrita do medo’”, como lê Vidal (2023b, p. 18). O que parece mover Não escrever é experimentar essa escrita do medo barthesiana - e ao fazê-lo, ilumina essa tateação que sua obra fez em direção ao poético: a poesia sem versos, sem instituição ou compromisso estético, apenas experiência de escrita presente.

A poesia ata as pontas soltas dos fios desencapados do ensaio e do literário - e, desse modo, aponta caminhos possíveis às discussões contemporâneas em torno da hibridez dos gêneros, as crises do verso e os passos de prosa poéticos (Siscar, 2008; Garramuño, 2014). Com Barthes e com Vidal, divisam-se não formas ou regras para o ensaio poético ou para o poema ensaístico, mas um desejo e uma postura.

Como apontava já Bensmaïa (1987, p. 29) em uma bela expressão, o poético, para Barthes, é deixar a ideia seguir a palavra, e o ensaísta é aquele que tem o “poder de sucumbir” ao desejo das palavras. Poeta em potência, poeta das potências, poeta enquanto performa; aquele que escreve nas margens, como Ana Cristina César, para fazer as vigias fugirem e o banal dançar.

Referências

  • ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.
  • BARTHES, Roland. A Câmara Clara Nota sobre fotografia. Rio de. Janeiro: Nova Fronteira, 2012a.
  • BARTHES, Roland. Aula São Paulo: Cultrix, 2007a.
  • BARTHES, Roland. Crítica e verdade São Paulo: Perspectiva, 2007b.
  • BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.
  • BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso São Paulo: Martins Fontes, 2010.
  • BARTHES, Roland. Incidentes São Paulo: Martins Fontes, 2004a.
  • BARTHES, Roland. La Préparation du roman I et II (Cours et séminaires au Collège de France 1978-1979 et 1979-1980). Paris: Seuil; IMEC, 2003b.
  • BARTHES, Roland. O grão da voz São Paulo: Martins Fontes, 2004b.
  • BARTHES, Roland. O grau zero da escrita São Paulo: Martins Fontes, 2004c.
  • BARTHES, Roland. O prazer do texto São Paulo: Perspectiva, 2013.
  • BARTHES, Roland. O rumor da língua São Paulo: Martins Fontes, 2012b.
  • BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes São Paulo: Estação Liberdade, 2003c.
  • BENSMAÏA, Réda. The Barthes effect: the essay as reflective text. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
  • CALVET, Jean-Louis. Roland Barthes São Paulo: Siciliano, 1993.
  • CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina César. Chapecó: Argos, 2003.
  • COSTE, Claude. Roland Barthes: terror in poetry. Barthes Studies, Cardiff, v. 2, n.1, p. 72-94, 2016. Disponível em: Disponível em: https://sites.cardiff.ac.uk/barthes/files/2016/11/COST E-Terror-in-Poetry.pdf Acesso em: 25 abr. 2024.
    » https://sites.cardiff.ac.uk/barthes/files/2016/11/COST E-Terror-in-Poetry.pdf
  • GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
  • MACÉ, Marielle. La haine de l’essai ou les moeurs du genre intellectuel au XXe siècle. Littérature, Paris, n. 133, p. 113-127, mar. 2004.
  • MACÉ, Marielle. L’essai littéraire, devant le temps. Cahiers de Narratologie, n. 14, p. 1-11, fev. 2008.
  • MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • OLIVEIRA, Priscila Pesce Lopes de; PINO, Claudia Amigo. Dois diários, um ensaio e um romance: a presença de “Incidentes” e “Noites de Paris” na escrita narrativa desejada por Roland Barthes. Matraga, v. 25, n. 43, p. 164-192, jan./abr. 2018.
  • PINO, Claudia Amigo. Roland Barthes: a aventura do romance. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
  • SAMOYAULT, Tiphaine. Barthes: a biography. Cambridge: Polity Press, 2017.
  • SISCAR, Marcos. Poetas à beira de uma crise de versos. In: ALVES, Ida; PEDROSA, Célia (org.). Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p. 209-218.
  • STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? Remate de Males, Campinas, v. 31, n. 1-2, p. 13-24, 2011.
  • VIDAL, Paloma. Inquietações teóricas, saídas poéticas: ferramentas barthesianas em algumas poetisas brasileiras contemporâneas. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 69, p. 1-9, 2023a.
  • VIDAL, Paloma. Não escrever [com Roland Barthes]. São Paulo: Tinta-da-China Brasil, 2023b.
  • 1
    Aqui se ecoa a distinção feita por Jean Starobinski (2011, p. 17) entre as vertentes subjetiva e objetiva do ensaio; para ele Montaigne reuniria a ambas, mas com certa propensão à primeira. Em nossa leitura, Adorno encaminharia a segunda - ainda que não se possa confundir tal objetividade - da relação direta com o objeto de desejo e dúvida do ensaio -, com a retidão de uma metodologia cartesiana ou algo assim.
  • 2
    No original: “here it is no longer the Author who produces a Work, but rather the formal structure of the text - the protocols of production and enunciation (procedures) molded by it - that produces at once the utterances and the subjects that will serve as their supports”.
  • 3
    Em caráter anedótico e talvez até mitificante - bom começo para um ensaio -, apesar disso, o significante “Montaigne” é decisivo à vida de Barthes, como se lê na biografia escrita por Samoyault (2017): era o nome do navio em que seu pai morreu, afundado por tropas alemãs durante uma patrulha, na I Guerra Mundial; e também o nome do liceu onde se matriculou logo ao se mudar para Paris, aos 9 anos, começo da relação tumultuosa com as instituições de ensino.
  • 4
    No original: “Et c’est peut-être ce que voulait dire Montaigne par cette phrase lapidaire dont je voudrais bien qu’on l’accroche dans cette salle, à côté du profil de Bergson, en tout cas à chaque fois que nous nous y réunissons le samedi matin, parce que je ne veux pas filer la même devise aux autres professeurs, et cette devise est donc celle de Montaigne quand il dit : ‘Je n’enseigne point; je raconte’”.
  • Parecer Final dos Editores
    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2024
  • Aceito
    26 Jun 2024
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