Open-access Perspectivas sobre a “Terra sem Mal” na poesia contemporânea

Perspectives on the “Land Without Evil” in Contemporary Poetry

Resumo

Os fenômenos de criação e destruição da terra fazem parte da complexa cosmologia Guarani, que foi registrada no livro As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani, do etnólogo Curt Nimuendaju. Essa visão cataclísmica do mundo leva-os a crer que a terra que hoje conhecemos poderia ser novamente destruída. Em contrapartida, existiria a Yvy marã’ey, uma terra indestrutível, cuja localização é desconhecida, o que em parte explicaria o comportamento migratório dos Guarani. Traduzido como “Terra sem mal”, o termo Yvy marã’ey parece apontar para um caráter utópico e messiânico, tema que será retomado por vários poetas contemporâneos, tais como Sophia de Mello Breyner, Josely Vianna Baptista e Waldo Motta. Este artigo pretende discutir em que medida, ao encenarem um diálogo com a cultura indígena, esses poetas elaboram também uma crítica do presente.

Palavras-chave “terra sem mal”; migração; escatologia; poesia contemporânea

Abstract

The phenomena of creation and destruction of the land are part of the complex Guarani cosmology, as recorded in As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani by the ethnologist Curt Nimuendaju. This cataclysmic view of the world led them to believe that the Earth we know today could once again be destroyed. Instead, there would be the Yvy marã'ey, an indestructible land whose location is unknown, which in part could explain the migratory behaviour of the Guarani. The term Yvy marã’ey, translated as “Land without evil”, seems to point to a utopian and messianic character, a theme that will be taken up by several contemporary poets, such as Sophia de Mello Breyner, Josely Vianna Baptista, and Waldo Motta. This article aims to discuss to what extent these poets also elaborate a critique of the present by staging a dialogue with indigenous cultures.

Keywords “the land without evil”; migration; eschatology; contemporary poetry

Résumé

Les phénomènes de creation et de destruction de la terre font partie de la complexe cosmologie guaranie, qui a été enrigestrée dans le livre As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani, par l’ethnologue Curt Nimuendaju. Cette vision cataclysmique du monde les amène à croire que la terre que nous connaissons aujourd’hui pourrait être à nouveau détruite. En revanche, il y aurait Yvy marã’ey, une terre indestructible, dont la localization est inconnue, ce qui expliquerait en partie le comportement migratoire des Guarani. Traduit par “La Terre san mal”, le terme Yvy marã’ey semble être marqué d’un trait utopique et messianique, theme qui sera repris par plusiers poètes contemporains, comme Sophia de Mello Breyner, Josely Vianna Baptista et Waldo Motta. Cet article vise à discuter dans quelle mesure, lors de la mise en scène d’un dialogue avec la culture indigene, ces poètes en élaborent une critique du present.

Mots-Clés “terre sans mal”; migration; eschatology; poésie contemporaine

No livro Ilhas, de Sophia de Mello Breyner, publicado em 1989, encontra-se um poema intitulado “O país sem mal”:

Um etnólogo diz ter encontrado Entre selvas e rios depois de longa busca Uma tribo de índios errantes Exaustos exauridos semimortos Pois tinham partido desde há longos anos Percorrendo florestas desertos e campinas Subindo e descendo montanhas e colinas Atravessando rios Em busca do país sem mal - Como os revolucionários do meu tempo Nada tinham encontrado (ANDRESEN, 2015, p. 802)

Decorridos quinze anos desde a Revolução dos Cravos, Sophia reflete sobre o seu tempo, no qual as utopias, que foram acesas no calor da hora revolucionária, parecem ter se transformado em cinzas. Engenhosamente construído, o poema só desfaz a ilusão do encontro desse país utópico no último verso, já que o primeiro, lido como um desdobramento do próprio título, indica uma ação afirmativa - “Um etnólogo diz ter encontrado”. O etnólogo, porém, não encontrou o “país sem mal”, e sim um determinado povo indígena que o buscava. Esse primeiro verso do poema, segundo creio, não evoca um etnólogo qualquer nem um povo inventado, à moda de Henri Michaux, mas sim o etnólogo Curt Nimuendaju e seu estudo pioneiro sobre os Guarani, As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani, publicado na Alemanha em 1914 e no Brasil somente em 1987. Nimuendaju conviveu durante cinco anos, de 1905 a 1913, com grupos Guarani que habitavam os estados do Mato Grosso, Paraná e São Paulo e que se caracterizavam pelos deslocamentos constantes.

Essas migrações, tão presentes na cultura Guarani, serão amplamente investigadas no estudo de Nimuendaju como comportamentos pertencentes a um complexo profético-migratório enraizado numa visão cosmológica bastante elaborada e que se desdobra em profundas implicações éticas. Dentre as variadas temáticas que atravessam esse complexo universo mitológico, há uma que se destaca e que, de algum modo, se popularizou mais do que qualquer outra: a busca da “Terra sem mal”. Foi Nimuendaju quem introduziu essa expressão nos estudos etnográficos, e ainda que essa “tradução” para a Yvy marã’ey1 dos Guarani, que comentarei adiante, possa ser questionada por alguns especialistas, ela reina soberana tanto na antropologia quanto na literatura que dela se nutre.

Para retornarmos ao poema de Sophia, é possível ouvir nesse “País sem mal” um eco da “Terra sem mal”, porém não se trata, como para os Guarani, de uma terra cuja localização é incerta, e sim de um país demarcado histórica e geograficamente, lugar político e ético, ainda que igualmente utópico. Lembremos que Sophia exerceu um importante papel de militância contra a ditadura do Estado Novo, chegando a ser eleita deputada pelo partido Socialista para a Assembleia Constituinte em 1975, um ano após a Revolução dos Cravos. O poema, no entanto, parece sinalizar alguma decepção em relação aos projetos revolucionários almejados à época do 25 de abril de 1974.

Mas para começar pelo começo, já que trataremos aqui de começo e de fim, de gênese e de escatologia, seria bom retomarmos a expressão Yvy marã’ey. Para os Guarani, essa terra que habitamos não é de forma alguma a “primeira terra”2 criada, até mesmo porque a primeira terra era perfeita; nela não havia morte nem trabalho. Os mitos apresentam variantes de acordo com as especificidades de cada povo, mas para os Tupi-Guarani3, de forma geral, haveria outras terras que foram destruídas, antes de chegarmos a essa que agora conhecemos, na qual a morte é uma circunstância inevitável. A “Terra sem mal” seria, portanto, uma terra que estaria ao abrigo dos desastres e destruições. Os Guarani partem de uma visão cataclísmica do mundo, acreditando que, se a terra já foi destruída anteriormente, uma nova catástrofe é algo iminente e previsto, podendo ocorrer a qualquer momento. Vários são os motivos que desencadeariam o fim do mundo, tais como os Morcegos originários que devorariam o sol, o ataque dos Jaguares azuis que exterminariam toda a humanidade, ou mesmo o desabamento da terra, ocasionado pela retirada do esteio que se encontra em seu centro. Vale ressaltar que o estudo de Nimuendaju baseia-se nos Apapocúva, o povo Guarani com o qual ele teve um contato mais próximo e duradouro. Outro traço fundamental assinalado por Nimuendaju é o papel dos grandes pajés na migração em busca da “Terra sem mal”:

No princípio do século XIX, começou entre as tribos Guarani daquela região um movimento religioso que até hoje ainda não está completamente extinto. Pajés, inspirados por visões e sonhos, constituíram-se em profetas do fim iminente do mundo: juntaram à sua volta adeptos em maior ou menor número e partiram em meio a danças rituais e cantos mágicos em busca da “Terra sem Mal”; alguns a julgavam situada, conforme a tradição, no centro da terra, mas a maioria a punha no leste, além do mar. Somente deste modo esperavam poder escapar à perdição ameaçadora. (NIMUENDAJU, 1987, p. 8-9)

Na esteira de Nimuendaju, vários outros etnógrafos se dedicaram posteriormente ao tema da “Terra sem mal”, tais como Alfred Métraux, León Cadogan, Bartolomeu Melià e Pierre e Hélène Clastres, por vezes estendendo essa ideia a outros povos e ao período inicial da colonização, o que tem gerado uma série de críticas por parte de alguns antropólogos contemporâneos. Mas não é isso o que importa aqui, e sim perseguirmos o modo como a crença na “Terra sem mal” se associa, por um lado, a uma visão cataclísmica do mundo; por outro, a uma espécie de superação da própria condição humana de ser mortal.

É curioso falarmos do fim do mundo agora que esse assunto está na ordem do dia e que muitas vozes têm se levantado para nos lembrar da catástrofe iminente, da grande crise climática que compreende o superaquecimento da terra, a destruição das florestas e a poluição dos rios e oceanos, bem como da exploração cada vez mais predatória dos recursos naturais, como assinala Bruno Latour em muitos de seus ensaios recentes, como é o caso de Facing Gaia: Eight Lectures on the New Climatic Regime. Entre essas vozes, muitas são provenientes do mundo indígena, basta lembrarmos de A queda do céu, do xamã Yanomami Davi Kopenawa e do ainda mais recente Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak.

Há, porém, uma diferença básica entre a escatologia dos Guarani e as escatologias contemporâneas sobre o fim do mundo, mesmo quando formuladas por grandes representantes dos povos indígenas. Essas escatologias contemporâneas consideram o momento em que vivemos como uma época com características próprias, infinitamente diferente de outros períodos; o que definiria esse novo período seria a forma como o ser humano afeta intensamente o ambiente, terminando por alterar os ciclos biológicos, geológicos e químicos do planeta. Nessa era, que vem sendo chamada de Antropoceno, reina, igualmente, o homem branco, o Ocidental, dominado pela tendência ao acúmulo financeiro e pela adoração da mercadoria, submetendo a terra a uma série de processos destrutivos dos quais, em pouco tempo, não será mais possível regressar, ao menos se pensarmos que continuamos caminhando sempre em frente, numa linha reta em direção ao progresso.

No caso da cultura Guarani e dos povos indígenas de modo geral, o mundo para eles talvez já tenha acabado há muito tempo, como sublinha Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski no livro Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Essa destruição do mundo indígena que Nimuendaju acompanhou de forma tão próxima fez com que ele enunciasse um diagnóstico extremamente pessimista, como veremos a seguir. No entanto, na cosmologia Guarani, a possível destruição da terra não é necessariamente causada pelos humanos, embora a insistente ocupação das terras indígenas pelo homem branco permita ressignificar esse temor da destruição4. Assim é que, para os Guarani, a busca da “Terra sem mal” funciona como o motor que desencadeia o comportamento das grandes migrações5, uma vez que essa busca se relaciona à ideia de superação da própria condição mortal do homem.

A problemática mística e ética que gira em torno da “Terra sem mal” é extremamente complexa e fascinante, e não à toa vai ecoar nos livros de dois poetas brasileiros contemporâneos, livros que ressoam um no outro a partir do próprio título. Trata-se de Terra sem mal com rolanças e mergulhos pelos divinos roteiros secretos dos índios Guarani, de Josely Vianna Baptista, publicado em 2005 pela editora Mirabilia, e Terra sem mal - um mistério bufante e deleitoso, de Waldo Motta, publicado em 2015 pela Patuá. A começar pelo título, já é perceptível a ressonância temática e, ao mesmo tempo, a grande diferença de registro entre esses dois projetos literários: o primeiro, apontando para uma estética bastante refinada6; o segundo, para um registro debochado e jocoso. No entanto, apesar da disparidade de registros, ambos mencionam o caráter secreto/misterioso que envolve a temática da “Terra sem mal”.

Já comentei em outros ensaios a relação entre a errância propriamente dita e a errância relacionada ao gesto de escrever, um tema muito caro à poesia contemporânea, fazendo-se presente na obra de poetas aos quais venho me dedicando, como Max Martins, Edmund Jabès e a própria Josely Vianna Baptista. No caso de Josely, esse paralelismo entre a errância dos Guarani e a errância propriamente poética aparece diretamente vinculado à busca da “Terra sem mal” (LEAL, 2017). Nesse momento, interessa-me pensar a questão propriamente escatológica, em seu duplo sentido, apontando tanto para o fim do mundo como para o “lugar último” do corpo, lugar de excreção e também de prazer, relacionado à coprologia. Curiosamente, esses dois sentidos aparentemente tão distintos parecem encontrar algum ponto de contato, como tentarei demonstrar.

No caso de Josely Vianna Baptista, o texto de abertura do livro, “Em busca do tempo dos longos sóis eternos”, apresenta um apanhado dos principais fatores culturais relacionados à cultura Guarani desde o momento da colonização, aludindo à leitura que os missionários e cronistas fizeram desse povo “sem fé, sem lei, sem rei”. A poeta menciona o termo indígena Yvy marã’ey, explicando que sua tradução, ao pé da letra, seria “terra que não se estraga”, “terra que não se acaba”, “terra que não se corrompe” (JOSELY, 2005, p. 2). No entanto, conforme já assinalei, não é essa a tradução ao pé da letra fornecida por Curt Nimuendaju. Josely comenta ainda que “muitos o têm interpretado como terra sem mal, e, por extensão, paraíso - superpondo ao termo um conceito judaico-cristão totalmente alheio à cultura indígena” (JOSELY, 2005, p. 2). Essa crítica à tradução do termo é feita também por alguns etnólogos e linguistas, como é o caso de Wilmar D’Angelis (2018).

Curiosamente, no livro de Josely, o poema que faz uma alusão direta à “Terra sem mal”, intitulado inclusive “Yvy Marã’ey” (BAPTISTA, 2005, p. 15), não destaca o tema da destruição da terra, tampouco a questão da migração. Nele, a “Terra sem mal” aparece diretamente associada à dimensão sagrada da linguagem, provavelmente inspirada no segundo canto do Ayvu Rapyta7, no qual se revela que, na visão de mundo dos Guarani, palavra e alma são inseparáveis:

terra de paranás e raízes aéreas de rezas intransferíveis e secretas que os deuses ensinam a cada um em sonho terra em que o fôlego e o ar, a palavra e a alma, são um só corpo que se ergue com as roupas puídas do sentido

Seguindo essa hipótese de leitura, o poema parece apontar para um deslocamento da temática escatológica, instaurando uma relação não entre a “Terra sem mal” e o fim do mundo, e sim entre a terra e sua gênese. O horizonte místico dos versos convida a pensar a palavra originária em sua relação com a potência puramente criadora da linguagem, sendo a forma referencial e cotidiana uma espécie de derivação, um simples meio de comunicação que se (re)veste “com as roupas puídas / do sentido.” No entanto, a questão da migração em busca da “Terra sem mal” não está ausente no livro de Josely. No texto introdutório, a poeta sustenta a hipótese de alguns etnógrafos de que as migrações já existiam mesmo antes da chegada dos europeus, estando associadas a um “modo de ser Guarani”, como propõe Hélène Clastres, bem como à figura dos grandes pajés que buscavam obstinadamente a Yvy marã’ey. De fato, o ensaio de Hélène Clastres, Terra sem Mal, o profetismo tupi-guarani, menciona uma migração imensa que ocorreu em 1539, quando dez mil índios partiram do Brasil, sendo que apenas trezentos chegaram ao Peru dez anos mais tarde. Segundo Clastres, a viagem, para os Guarani, seria um projeto já de saída destinado ao fracasso, no sentido de que não é a chegada a um lugar específico que estaria em jogo, e sim o próprio sentido do trajeto, repleto de perigos, cantos, danças e êxtase, marcado, portanto, pelo excesso e pela ascese.

A essa concepção de fim do mundo e da busca da “Terra sem mal”, onde os homens se tornariam deuses, Josely dedicou o belo poema “Guirá Nhandu” - consagrado também ao cacique Pablo Vera -, poema em que, como ressalta Dennis Radünz, “uma escatologia ancestral dos Mbyá encontra a cataclismologia do XXI.” (RADÜNZ, 2020, p. 93): “pode que a noite, hoje, se furte a amanhecer, a terra desmorone nos bordos do poente e outra vez o sol, como antes, não desponte. [...] quem sabe o paraíso que descrevem os antigos não esteja além do vasto nevoeiro e sargaço, mas no árduo percurso vencido passo a passo [...]”8. (BAPTISTA, 2005, s/p.). Esse poema reaparece no já mencionado Roça barroca, publicado em 2011, porém com outra diagramação. No livro de 2005, a poeta apresenta-o na forma de um longo verso que se inicia na página seguinte ao texto introdutório “Em busca do tempo dos longos sóis eternos”, percorre um total de quatorze páginas e termina na última página do livro, em que o texto reaparece inteiro numa única página, composto por cinco estrofes e trinta e nove versos. É interessante observar que a utilização desse recurso visual faz com que o próprio poema configure o longo percurso realizado pelos Guarani, transferindo também ao leitor essa experiência da caminhada, uma vez que a leitura não pode ser feita de uma só vez; o poema exige que o leitor “caminhe” ao longo dessas quatorze páginas para chegar ao seu fim. Esse sentido também é reiterado na última página do livro, em que a poeta sugere que os poemas são “trilhas”, caminhos a percorrer: “Terra sem Mal apresentando as trilhas Guirá Nandu / Moradas nômades / Canção tema do eterno viajante / A primeira Terra / Jaguaretê / Yvy marã’ey e alguns recantos e atalhos dispersos”. (BAPTISTA, 2005, s/p.). Já no livro Roça barroca, em que a diagramação é feita de forma tradicional, o aspecto verbivocovisual não pode ser mantido, mas, a despeito dessa perda, o poema não deixa de ser uma “trilha”, para retomar as palavras da poeta, e evoca com muita sutileza e acuidade esse traço tão intrigante da cultura guarani.

Por outro lado, a interpretação de Nimuendaju em torno da questão escatológica, elaborada muitas décadas antes da realizada por Hélène Clastres, aponta para um terrível pessimismo, como mencionamos anteriormente: “O verdadeiro fundamento da predileção dos Apapocúva por este tema [o cataclisma], e da ameaça que nele veem, está no pessimismo inconsolável desta tribo moribunda que, sem saber, há muito que se já entregou. [...] Os próprios Guaranis não creem mais em um futuro algum”. (NIMUENDAJU, 1987, p. 70/72).

A poesia contemporânea, no entanto, parece sugerir outros caminhos e nisso vai ao encontro do pensamento de Viveiros de Castro, responsável pelo prefácio que abre a edição brasileira do livro de Nimuendaju, propondo uma alternativa ao diagnóstico tão pessimista do etnógrafo em relação aos Guarani:

Se Nimuendaju estava certo em seu diagnóstico sobre a melancolia e o desespero inerentes ao pensamento Guarani, este é um problema em aberto; talvez ele, e os outros que o seguiram, tenham confundido o que nos parece ser uma concepção trágica do mundo com seu simulacro e contrafação, o pessimismo; talvez, depois de a ter magistralmente analisado, não tenha Nimuendaju percebido que a cataclismologia Guarani tenha atrás de si uma mistura muito sutil de esperança e desânimo, paixão e ação, e que sua aparência negadora oculta uma poderosa força afirmativa: em meio à miséria, os homens são deuses. (VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. xxiv)

De fato, mais de cem anos depois, eles resistem ainda. A duras penas, mas resistem. O livro de Josely trata não apenas dessa resistência; ele nos faz ver, como numa escavação arqueológica, todo o substrato que compõe o território em que vivemos hoje, suas múltiplas linhas de força que ficaram invisibilizadas ao longo do tempo. Como ressalta Celia Pedrosa, a poética de Josely “produz assim um movimento poético, tradutório e histórico que hibridiza forças e rastros de dominação e de sobrevivência, e aponta para uma releitura do significado de habitação da terra americana [...]”. (PEDROSA, 2018, p. 98). Nesse caso, parece-me fundamental ressignificarmos nosso modo de habitar a terra, uma vez que não podemos nos esquivar, mais uma vez, de refletir acerca do fim do mundo, agora numa concepção estendida a todos nós, habitantes da terra.

Essa concepção trágica do mundo, à qual Viveiros de Castro alude, pode ser recuperada em outra “trilha” de Josely. Trata-se do poema intitulado “Inscrições solares”9 (BAPTISTA, 2005, p. 12), no qual o tema da caminhada também se faz presente e se desdobra em uma série de imagens que evocam a decomposição da matéria - “lodo”, “restolho” -, o esvaecimento da vida - “antúrios murchos” -, ou até mesmo o sofrimento físico “na sola / os talhos”; todos esses elementos remetem, de uma forma ou de outra, ao solo, o chão sobre o qual se caminha, assim como a uma espécie de força que puxa para baixo e tende a desfazer a organização dos seres viventes, reorganizando-os em outros registros da matéria. No entanto, o “lodo” que configura essa matéria em decomposição ecoará na última palavra do poema - “alado” -, que introduz a ideia de um movimento para cima. Esse movimento paradoxal de descida e, ao mesmo tempo, subida aponta para a concepção de um ciclo metamórfico de destruição e recomposição entre o vivo e o não vivo. Como observa Emanuele Coccia no livro Metamorfoses, “toda morte é uma continuação da vida sob outros rostos” (2020, p. 117). Uma concepção trágica, portanto, na medida em que o sofrimento se faz necessário à transformação:

passo após passo: antúrios murchos no basalto lodo ou folhedo sobre o restolho couro vermelho dos pedregulhos na sola os talhos o solo árduo - mas alado

Como assinalei anteriormente, a busca da “Terra sem mal” - esse processo pelo qual os homens se tornam deuses -, bem como a escatologia que lhe é inerente, estende-se, ainda, em outras direções na poesia contemporânea. A imanência do divino no humano é um tema central da poética de Waldo Motta, poeta que tem se dedicado ao estudo de religiões e cosmologias as mais diversas possíveis, pondo lado a lado referências ao mundo judaico-cristão, hinduísta, indígena e africano, temperadas com altas doses de erotismo e, no caso do livro que comentarei, com muito deboche. Vale ressaltar que o deboche é reforçado pela linguagem coloquial utilizada no poema, bem como pela métrica dos versos, que oscila entre heroicos quebrados e redondilhas maiores, sendo esta última a forma mais popular da lírica portuguesa, empregada, inclusive, em muitos versos satíricos.

É possível notar que vários poemas evocam explicitamente o tema da “Terra sem mal”, tais como “Reflexão do pajé”, “Invocação de Tupã”, “Assim fala o pajé” e “Assim disse o trovão”, no qual me deterei brevemente. Nesse poema, que sucede os dois primeiros títulos que mencionei, um Tupã jocoso responde às angústias e inquietações do pajé que foram formuladas nos poemas anteriores: “dizei-nos, ó grande Pai / onde se encontra, afinal, / essa terra que anelamos, / a nossa sonhada terra, / a nossa Terra sem mal?” (MOTTA, 2015, p. 28). Surpreendentemente, a resposta de Tupã indicará o abandono da problemática em torno da migração, deslocando a busca desse lugar exterior para um lugar interior, onde parece existir algum encontro possível:

[...] Não adianta insistir Nessa andança lelé Do Oiapoque ao Chuí. Não adianta buscar Qualquer paraíso ou céu Longe ou fora de vós. [...] Será que não tem mais fim Essa andança boçal, Essa procura insana, Essa busca literal, Aqui, ali, acolá, De vossa sonhada terra, De vossa Terra Sem Mal? Eis o que vos diz Rudá: Meu querido Kwaí, Chega de andar atrás Do que está atrás de ti. E assim fala Tupã, Sendo esta a resposta: As montanhas do poente Acham-se em tuas costas. Buscais a Terra Sem Mal, Quereis a Terra Sem Mal, A terra dos ancestrais, De vossos pais e avós, O reino celestial Da alegria e da paz? Buscai-o dentro de vós. Ó meu caro Kwaí, Solitária é a jornada, E não há aonde ir. A Terra Sem Mal que buscas, O paraíso que sonhas Sempre esteve em ti mesmo, Está em tuas entranhas. [...]

E assim o poema continua, cada vez mais jocoso, e também cada vez mais explícito, deixando claro que esse lugar místico é também um lugar erótico, o centro do corpo, centro também do universo, e esse lugar é nada mais nada menos do que o próprio cu. Raul Antelo, num ensaio publicado em 1998, já apontava para essa problemática na obra de Waldo Motta, especificamente no livro Bundo e outros poemas, de 1996. A descoberta desse lugar implica no abandono das grandes utopias, daí talvez o tom jocoso, irônico, que atravessa o livro do início ao fim, pois não caberia ali nenhum registro grandiloquente. Nesse sentido, gostaria de citar um trecho de uma entrevista de Motta já reproduzido no ensaio de Raul Antelo, mas que não seria demais relembrar, sobretudo pelo tema da escatologia para o qual ele aponta, ainda que naquele momento o poeta não tenha feito nenhuma alusão específica ao povo Guarani:

Retransmito em minha poesia uma noção de fim de ciclo histórico, que pode perfeitamente coincidir com o fim dos tempos preconizados pelo cristianismo e profetas bíblicos. Mas minha poesia é escatológica também porque está ligada à fecalidade. Ela é uma poesia terminal, fala de nossas entranhas, daquele lugar onde todas as coisas têm início e onde, no final das contas, todas as coisas vão parar... O cu. Entendo que o cu é realmente o epicentro de todos os fenômenos. (MOTTA apud. ANTELO, 1998, p.39).

Como diz também Ademir Demarchi no prefácio de Terra sem mal - um mistério bufante e deleitoso, na poética de Waldo Motta o cu é o “lugar da redenção de todos os homens e mulheres [...], ou seja, o lugar da transformação do ser humano em deus” (2005, sp.). Mas o que seria essa proposta da transformação do ser humano em deus quando associada não ao horizonte cultural dos Guarani, e sim ao nosso? Segundo creio, ela implica no abandono das utopias e na ressignificação de nossa própria sensibilidade. De fato, não é que os humanos possam se transformar em deuses, mas que eles devam se transformar em outra qualidade de humanos. Se os revolucionários da época de Sophia nada encontraram, talvez tenha sido porque procuraram esse lugar - ou país - exterior que, afinal, não está situado em parte alguma, quando o único encontro possível seria aquele movido por uma experiência interior que exige a reconstrução dos nossos valores mais sedimentados.

Essa via de leitura permite que identifiquemos uma proposta não tão jocosa - a despeito da linguagem coloquial e, por vezes, chula -, no livro de Motta, que corre subterrânea em meio à temática erótica. Para evocarmos, mais uma vez, o tema do fim do mundo, penso que a chave para essa transformação dos valores esteja no abandono dos inúmeros projetos desenvolvimentistas e extrativistas que há séculos impulsionam o pensamento ocidental. Lembremos, inclusive, que Bruno Latour, em sua quarta conferência, retoma o conceito de estética, recuperando o seu sentido original como “capacidade de perceber e de se importar”10 (LATOUR, 2017, p. 145). Mais do que nunca, talvez a poesia possa nos auxiliar nessa complexa tarefa, na medida em que ela nos chama a atenção para a necessidade de percebermos o mundo à nossa volta e de nos importarmos com ele, de forma a reinventarmos o nosso modo de habitar a terra.

Referências

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  • 1
    Como explica Nimuendaju, “Marãé palavra que não mais se utiliza no dialeto Apapocúva, em Guarani antigo significa ‘doença’, ‘maldade’, ‘calúnia’, ‘luto-tristeza’, etc.Yvýsignifica ‘terra’, eeyé a negação ‘sem’.” (NIMUENDAJU, 1987, p. 38) (grifos do autor).
  • 2
    Cito esse termo pensando num registro fundamental para a cultura guarani, o Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá. Esses cantos sagrados, registrados e traduzidos pelo antropólogo paraguaio Léon Cadogán na década de 1940, narram, entre outros acontecimentos, o aparecimento da divindade suprema, a origem da linguagem humana, a criação da primeira terra e sua posterior destruição, e a criação de uma nova terra.
  • 3
    Neste ensaio, tentarei me ater especificamente à visão de mundo Guarani, buscando evitar as possíveis generalizações em torno de um questionável paralelismo entre os povos Tupi e Guarani, como salientam alguns autores.
  • 4
    Uma importante referência contemporânea acerca dessa temática da “destruição do mundo” para os povos indígenas é o livro de Kaká Werá Jecupé, Todas as vezes que dissemos adeus (2002). O livro conta, inclusive, com um capítulo intitulado “A busca da terra sem males”, no qual Kaká relata a expulsão dos habitantes da aldeia em que ele morava com seus familiares, na zona sul de São Paulo.
  • 5
    Essa problemática também não é consensual entre os diferentes antropólogos que se dedicam à cultura Guarani, uma vez que as migrações, sobretudo quando se trata de compreender o comportamento dos Guarani do século XVI, por vezes são associadas à dinâmica da colonização. Para um maior aprofundamento sobre o tema, cf. Pompa, 2004.
  • 6
    O livro de Josely Vianna Baptista consiste, de fato, num projeto editorial muito elaborado, com inúmeras imagens que apresentam uma iconografia da época da colonização, somadas a fotografias recentes e a uma diagramação inovadora.
  • 7
    O segundo canto presente no Ayvu Rapyta é precisamente o que se debruça sobre os fundamentos da linguagem humana, ou “A fonte da fala”, segundo a tradução de Josely. A poeta traduziu os três primeiros cantos no livro Roça barroca, incluindo também a nota de Léon Cadogan, que acompanhava o texto, assim como os seus próprios comentários: “O fundamento da linguagem humana, a fonte da fala, é a palavra-alma originária, aquela que Nossos Primeiros Pais repartiriam com seus numerosos filhos ao enviá-los à morada terrena para se erguerem [nascerem]”, conforme relato do cacique Pablo Vera num encontro com Cadogan. Na versão do mburuvicha Kachirito, de Paso Jovái, “a fonte da fala foi criada por Nosso Primeiro Pai, que a fez parte de sua divindade, para medula da palavra-alma” (Ayvu, 42). Aliás, foi a descoberta intrigante e instigante de que ayvu (linguagem humana), ñe´êy (palavra) e e (dizer) contêm o duplo conceito de “expressar ideias” e “porção divina da alma” que levou Cadogan a debruçar-se, anos a fio, no estudo da religião guarani (BAPTISTA, 2011, p. 69).
  • 8
    Não transcreverei todo o poema, pois já o comentei em outra ocasião. Cf. Leal, 2017.
  • 9
    Em Roça barroca, o poema reaparece sem título e ligeiramente modificado.
  • 10
    No original: capacity to “perceive” and to be “concerned”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2020
  • Aceito
    19 Dez 2020
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