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Escritores, professores e intelectuais

Writers, Teachers and Intellectuals

Resumo

Estes fragmentos dialogam com a obra de raúl rodríguez freire, especialmente com seus livros La condición intelectual. Informe para una academia (Santiago de Chile, Mimesis, 2018); La universidad sin atributos (Santiago de Chile, Macul, 2020); La forma como ensayo. Crítica ficción teoría (Adrogué, La Cebra, 2020); Ficciones de la ley (Santiago de Chile, Mimesis, 2022) e La naturaleza de las humanidades. Para una vida bajo otro clima (Ed. raúl rodríguez freire, Santiago de Chile, Mimesis, 2022).

Palavras-chave:
Universidade; escritores; professores: intelectuais; mercadoria.

Abstract

These excerpts are in dialogue with the work of raúl rodríguez freire, especially with his books La condición intelectual. Informe para una academia (Santiago de Chile, Mimesis, 2018); La universidad sin atributos (Santiago de Chile, Macul, 2020); La forma como ensayo. Crítica ficción teoría (Adrogué, La Cebra, 2020); Ficciones de la ley (Santiago de Chile, Mimesis, 2022); La naturaleza de las humanidades. Para una vida bajo otro clima (Ed. raúl rodríguez freire, Santiago de Chile, Mimesis, 2022).

Keywords:
University; Writers; Professors; Intellectuals; Merchandise

Resumen

Estos fragmentos dialogan com la obra de raúl rodríguez freire, especialmente com sus libros La condición intelectual. Informe para una academia (Santiago de Chile, Mimesis, 2018); La universidad sin atributos (Santiago de Chile, Macul, 2020); La forma como ensayo. Crítica ficción teoría (Adrogué, La Cebra, 2020); Ficciones de la ley (Santiago de Chile, Mimesis, 2022); La naturaleza de las humanidades. Para una vida bajo otro clima (Ed. raúl rodríguez freire, Santiago de Chile, Mimesis, 2022).

Palabras-chave:
Universidad; escritores; profesores; intelectuales; mercancía.

Sou e não sou um acadêmico. Javier López Alós Homo postacademicus (manuscrito inédito)

No outono de 1971, a partir da tribuna da revista Tel Quel, Roland Barthes questionava suas próprias práticas a partir de uma tripla dependência como escritor, intelectual e professor. “Écrivains, intellectuels, professeurs” abria o número 47 de um volume dedicado a ele por uma revista de vanguarda que - tal como indicava seu subtítulo - intervinha simultaneamente em diversas frentes - literatura, filosofia, ciência e política -, fazendo-as comunicarem-se e friccionarem-se.

Essa tensão que percorria a obra de Barthes - e a de muitos escritores, professores e intelectuais não conformistas do final dos anos 1960 e princípios dos 1970 - foi intimamente abalada pelas transformações econômicas, políticas e sociais que durante essa década - e até hoje - deslocaram, junto com o avanço do neoliberalismo, as figuras do escritor e do intelectual, as quais, desde então, tenderam a ser substituídas pelas dos experts e do crítico de opinião. A pergunta que surge, voltando àquela intervenção de Barthes, é: quais são os espaços literários, intelectuais e acadêmicos que hoje habitamos, e como eles se comunicam entre si? Os nomes são os mesmos - porém o terreno em que pisamos é outro. O que é ser um escritor, um intelectual, um professor hoje em dia? O que ocorre quando falamos e apelamos a essas figuras? Quais são nossas condições materiais de trabalho, nossos modos de produção e os circuitos nos quais se insere nosso trabalho? São atividades compatíveis, complementares, suplementares? E como umas poderiam se deixar afetar pelas outras?

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De uma universidade excelente. Em La condición intelectual (2018RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Condición Intelectual. Informe para una Academia. Santiago de Chile: Mimesis, 2018. ) e em La universidad sin atributos (2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. ), raúl rodríguez freire reconstruiu alguns dos elos pelos quais foram armados contemporaneamente os novos dispositivos de sujeição da vida acadêmica. O autor refere “a silenciosa, porém sustentada e imparável inscrição, de um discurso, de uma linguagem propriamente neoliberal e da qual não podemos abrir mão, pois provavelmente nos constituiu, pelo menos a maioria daqueles que habitamos a universidade, seja como investigadores, professores ou estudantes” (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 180). Noções como “qualidade”, “excelência”, “crédito”, “competências”, “inovação” ou “capital humano” - que formam parte dos discursos hegemônicos da universidade contemporânea - derivam de uma ratio econômica que atravessa os mais variados campos de nosso mundo e que, no caso do mercado da educação, estandardizam o saber como produto de consumo. A noção de “capital humano” é uma peça-chave desse andaime discursivo que, em nossos dias, se converteu em uma segunda natureza, e que faz do saber outro objeto de gestão.

O Plano Bolonha, assinado em 1999, foi um modo de fazer a gestão do sistema educacional através do sistema de créditos transferíveis (European Credit Transfer System, ECTS), o qual estandardiza e, portanto, torna computável o tempo de trabalho abstrato socialmente necessário para a produção de títulos e diplomas. O que muitas vezes se esquece é que esse sistema, ao mesmo tempo que fomenta a circulação de estudantes, professores e investigadores - construindo assim um mercado acadêmico global afetado por problemas análogos aos de outros mercados globais -, instaura uma ratio ligada à gestão de custos e benefícios.

O que se media então e se mede agora, não é o conhecimento, que resulta praticamente irrelevante frente ao tempo para produzir um sujeito que ao fim do semestre consiga aprovar não seus cursos, mas seus créditos. Entretanto, a suposta centralidade no tempo também oblitera o fundamental dessa tecnologia creditícia. O destaque está em estabelecer o “custo de produção da educação e da investigação [...] ‘de maneira similar à como se faz nas fábricas e industrias’”, com a finalidade de otimizar os recursos, homologando, por exemplo, um curso de poesia medieval à cadeira que usa o estudante quando assiste a suas aulas. (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 187).

Nossas práticas passam a ser modeladas e interpretadas a partir de uma lógica da avaliação que parte de um modelo produtivista e quantitativo de gestão aplicado de modo acrítico. Se percebemos o que ocorreu nas universidades no âmbito mais amplo das transformações de nossas sociedades com o auge e consolidação do neoliberalismo veremos que o que está em jogo é a promoção de um dispositivo de captura geral que submete a vida em seu conjunto a critérios empresariais. Talvez se possa driblar por algum tempo as normativas, os protocolos, as avaliações e a quantificação da docência e da pesquisa, mas tudo isso constitui, de modo articulado, um potente dispositivo de subjetivação que determina nossas práticas a partir de uma só ratio, de modo que a médio e a longo prazo a soma dessas pequenas transformações se converteu, na prática, em um potente dispositivo de controle do qual alguns, por acaso, poderemos nos salvar individualmente. Entretanto, ele constitui uma condenação coletiva para seus atuais membros e para aqueles corpos “porvir”.

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“...uma responsabilidade que temos apagado...”. Nos faltam os meios para pensar nossas próprias práticas e o lugar que ocupam na circulação do saber e do capital no mundo contemporâneo. A separação entre vida e pensamento que, pelo comum, afeta o que fazemos, hoje em dia não é consequência, como poderia pensar-se, de uma separação entre vida e trabalho, mas sim uma subsunção da primeira no segundo pela qual as lógicas e dispositivos do trabalho acabam moldando formas de vida baseadas no conformismo. A aversão à escritura e o tédio na sala de aula, nos congressos e na leitura formam parte de um circuito de produção - de um modo de habitá-lo - baseado na desconexão que dá conta da impossibilidade de habitar um presente do qual fomos expropriados. A que remete o tédio que sentimos tantas vezes ao escutar conferências, à indiferença ou a um desejo de alguma outra coisa, tal como se mostra - quando o tédio se converte em angústia - no momento em que temos que nos expor publicamente? A questão aí é como se colocar no jogo - pondo a cada vez as coisas em jogo - na leitura, na docência, nos encontros acadêmicos e na escritura.

Refletir sobre as formas da vida intelectual contemporânea - como propõe raúl rodríguez freire em La condición intelectual (2018RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Condición Intelectual. Informe para una Academia. Santiago de Chile: Mimesis, 2018. ) e em La universidad sin atributos (2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. ) - pode contribuir para a compreensão da potência e dos limites de nossas próprias práticas, assim como possibilita imaginar outras formas de vida ligadas à escritura, à leitura e à docência. Através desse gesto se faz possível apelar a “uma responsabilidade que temos apagado” (Rodríguez, 2022bRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. (ed.) La Naturaleza de las Humanidades. Para una vida bajo otro clima. Santiago de Chile: Mimesis , 2022b, p. 23) - a uma responsabilidade enquanto possibilidade de responder, de desinibir-se frente ao meio. Responsabilidade, em um primeiro momento, para com os outros e nós mesmos; mas também, e de modo radical, para com as coisas e o resto dos viventes. Essa multiplicidade de povos humanos e não humanos obriga a uma revisão das humanidades e, com elas, a um questionamento do conceito de humanismo que as sustenta.

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Expropriados. Temos à mão aulas nas quais pensar em comum? Colegas com quem dialogar? Revistas em que imaginar arquipélagos de pensamento? Editoras a partir das quais experimentar? No fluxo de demandas periodicamente renovado de nossas ocupações cotidianas, o que resta de nossas energias após serem capturadas pela máquina das finanças e seu insaciável vocabulário religioso ligado ao crédito? Além da sobrevivência individual nesse meio, será possível fazer habitável novamente alguns desses espaços ao mesmo tempo que lutamos, sur place, contra as lógicas que os colonizaram?

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Nossos corpos-universitários. A universidade se sustenta em grande medida em nossos corpos. Corpos crescentemente precarizados, na sua maioria intercambiáveis, prescindíveis de modo individual. Porém, essas determinações são certeiras, pois o dispositivo acadêmico encontra nos corpos um ponto de ancoragem fundamental sem o qual não poderiam circular nem os saberes, nem as mercadorias, nem os estudantes, e no qual não seria possível nem a elaboração de projetos, nem a publicação de revistas, nem os processos de avaliação e certificação de seus membros. Sem eles tampouco poderia acontecer a docência, que, por mais invisibilizada que esteja, continua sendo - como bem sabe Analía Gerbaudo - uma das principais promessas da educação, na qual se produz algo da ordem da transmissão - transmissão não somente nem principalmente de um saber, senão de alguns discursos e, em termos finais, de formas de vida.

Formas do conformismo

Nossos livros, nossos textos, os que publicamos, os que produzimos, transformam ou reforçam a forma de trabalho imposta pelo capitalismo (acadêmico) contemporâneo? (Rodríguez, 2018RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Condición Intelectual. Informe para una Academia. Santiago de Chile: Mimesis, 2018. , p. 45),

O pensamento acadêmico circula hoje em dia através de uma forma dominante “que tende a expulsar a escritura que não a reverencie” (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p.15). A exclusão de uma forma de escritura é, como Adorno bem sabia, censura de uma forma de pensamento. O modelo único de paper impõe, a priori, um modo de pensamento baseado na interpretação técnica do pensar (Heidegger, apudRodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 19). Quer dizer, um pensamento que não se pensa a si mesmo e que desaloja, desse modo, a possibilidade de pensar seus limites e fundamentos. Um pensamento que trabalha com objetos e não com problemas; com a história e não com a historicidade; um pensamento monárquico e universal - vale dizer, baseado em um único princípio e uma só dimensão -, que submete a linguagem - e a materialidade que lhe dá suporte - a um uso meramente instrumental e, portanto, domesticado. Por tudo isso, cabe chamar a atenção sobre a estandardização das formas e modos de circulação dos textos acadêmicos.

Barthes sustentava, em 1968, que a universidade francesa encontrava sua identidade através de uma obrigação: se tratava de falar da literatura usando certa linguagem. “Esta linguagem”, continuava, “que poderíamos chamar a escritura universitária, se baseia na censura generalizada”. Essa escritura que ele criticava naquele momento se transformou historicamente, porém a censura que então denunciava seguiria estando vigente sob novas formas em nossos tempos. Sucede que, por ser tão comum, sequer imaginamos que poderíamos escrever de outras maneiras. Dar-nos essa oportunidade, e enviar seu resultado a uma revista acadêmica, seria um modo de solicitar a segurança de seus editores - um modo de os interpelar, dando-nos e dando-lhes a possibilidade de estabelecer uma relação, pelo menos um contato, mais além da gestão - e, no caso de ser recusada, de traçar um perímetro, de registrar uma fronteira, abrindo uma margem ao existente. Por que não nos dar a possibilidade de experimentar, de dar lugar a textos e a escrituras que muitas vezes não são solicitadas (e, portanto, não acontecem) e nem encontram seu lugar (e, ainda que aconteçam, não circulam) e, desse modo, dar-nos a possibilidade de escrevê-las e dá-las a ler?

Demonstrando a impossibilidade de escindir o modo no qual algo se enuncia daquilo do que efetivamente se fala, raúl rodríguez freire mostra, ao referir-se à pa[u]perização do saber (Rodríguez, 2018RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Condición Intelectual. Informe para una Academia. Santiago de Chile: Mimesis, 2018. , p. 43), que a condição intelectual também é uma questão de dicção. O modelo quantitativo do paper vem associado pelo comum a uma retórica expositivo-informativa sustentada no “ideologema” da claridade, o qual encontra na filosofia analítica escrita em Globish (Barbara Cassin) seu exemplo mais bem resolvido. Essa forma da escritura se põe a serviço da circulação universal das mercadorias, em um espaço no qual qualquer irrupção da opacidade ou conjectura da equivocidade da linguagem é vista como um acidente que precisaria ser reparado. Portanto, como relembra raúl rodríguez freire, “o conteúdo jamais abolirá uma forma” (Rodríguez, 2020bRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Forma como Ensayo. Crítica Ficción Teoría. Adrogué: La Cebra, 2020b. , p. 16). Se escreve. Se fala.

A aquiescência, a resignação, a colaboração ou o entusiasmo diante as formas acadêmicas e pedagógicas do passado ou implementadas nos últimos anos participam de um mesmo espectro de práticas que cabe agrupar como formas do conformismo. Com o conformismo, só se pode romper de modo efetivo coletivamente; o que parece que está por inventar-se são os modos de existência das comunidades que façam possível essa ruptura.

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Em que momento as revistas de crítica universitárias deixaram de ser críticas e começaram a ser apenas universitárias, perdendo em diversidade estilística e discursiva, o que ganharam com a estandardização e irrelevância? (Rodríguez, 2020bRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Forma como Ensayo. Crítica Ficción Teoría. Adrogué: La Cebra, 2020b. , p. 15).

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De um saber isomorfo e formatado. O discurso acadêmico é imediatamente reconhecível para aquele que está já familiarizado com ele mediante uma retórica que, acima de tudo, nos indica que estamos em um âmbito específico. Portanto, além do discurso - no qual, como destacava Foucault, está em jogo previamente à verdade e à mentira dos enunciados, a possibilidade de reconhecê-los como formando parte de certo discurso ou como excluídos dele -, o gênero acadêmico contemporâneo implica um formato baseado na estandardização. Na era digital, a estandardização da imprensa - que, como demonstrou Walter J. Ong, permitia fechar o espaço da página - se transforma em OJS e encontra seu lugar ideal no doi.

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De um saber estatístico a outro conjectural. Zaid afirmava, em Los demasiados libros, que há mais poetas que leitores de poesia. Cabe conjecturar o mesmo, e com mais razão, dos artigos acadêmicos: haveria mais produtores que leitores. A biblioteca de Babel, nisso que se converteu contemporaneamente o ciberespaço - alimentado materialmente por enormes computadores armazenados ocasionalmente debaixo da terra ou refrigerados por água para evitar a explosão dos circuitos - é um lugar sem lugar no qual os artigos estão à espera de seu leitor. Por casualidade, alguns deles fabulam em silêncio constelações anacrônicas, escavando no arquivo de uma biblioteca fraturada, animados pelo desejo de um leitor “porvir”. Outros simplesmente estão aí, computando-se a si mesmos, conforme a função que o dispositivo neoliberal lhes assignou, ao serviço das agências de certificação, de agências Elsevier e Clarivate Analytics e - mais humildemente - da sobrevivência individual.

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Ficções financeiras como lei. raúl rodríguez freire se perguntou, a partir do estudo da ficção literária, pela ficção jurídica e financeira, desembocando contemporaneamente em uma pergunta ecológica pela cosmopolítica na época do Antropoceno. raúl rodríguez freire tem demonstrado como essas ficções se dobram sobre si e o modo em que o sistema universitário atual está atravessado de cabo a rabo - e nós com ele - pelo aparato de circulação capitalista e pela ficção financeira (Rodríguez, 2018RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Condición Intelectual. Informe para una Academia. Santiago de Chile: Mimesis, 2018. , p.36).

Na Espanha a universidade pública não está apartada disso. Se pensamos o público em termos kantianos, caberá assinalar que a lógica da universidade pública espanhola esteve regida tradicionalmente, muitas vezes, por critérios ligados ao preconceito, à vassalagem e ao clientelismo - princípios que ficam distantes do livre uso da razão. Habermas já estudou como a esfera pública crítica - que punha em crise a ordem representativa e se articulava com um espaço de intimidade no qual tinha relevância o sabor do saber na língua - foi rapidamente submetida à privatização. Portanto, além dessas análises (e da própria distinção entre público e privado, que hoje em dia se tornou praticamente obsoleta), a universidade pública atual está afetada, em suas próprias práticas e a partir de seus próprios fundamentos, por modos de funcionamento ligados à gestão. E, através dela, instituições que nominalmente continuam públicas têm assistido à transformação de seus modos de funcionamento, regidos hoje em dia pela lógica das finanças. A isso, raúl rodríguez freire se refere deste modo: “já não há universidade moderna, já não há professores, tampouco estudantes, unicamente empresas e trabalhadores, e cuja reunião em um só corpo hoje se chama empreendimento e a seus agentes empreendedores” (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 93). Neste contexto, o capital humano, que faz de cada sujeito um empreendedor, é um dos dispositivos fundamentais da racionalidade neoliberal (Rodríguez, 2022aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. Ficciones de la Ley. Santiago de Chile: Mimesis , 2022a. p. 97). Pela lógica do capital humano se fomenta a conversão de cada trabalhador em um empresário de si mesmo. Essa estratégia, que transformará tanto a ideia de educação como a de trabalho, fará da primeira um investimento através do qual competirão tanto estudantes - convertidos ao mesmo tempo em clientes e trabalhadores - quanto universidades em “o nascente mercado do saber” (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 101).

Cada um se torna assim responsável - e, potencialmente, culpado - de suas eleições - pensadas em termos de investimento - num espaço de competição universal no qual cada agente pode apostar seus capitais partir de um cálculo de custos e benefícios.

Neste contexto, a dívida se converte em um dispositivo de controle. A dívida original - que os estados transferem a seus cidadãos, e com a que se faz, como afirmava Calderón de la Barca, que “o delito maior / do homem é haver nascido” -, se redobra, no campo educativo, com os créditos que muitos estudantes, por exemplo, nos Estados Unidos, são obrigados a solicitar para ingressar em suas carreiras universitárias. A dívida que surge disso - e que implica, como assinala raúl rodríguez freire, “a naturalização do mercado” (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 117) - determinará no futuro o comportamento desses sujeitos, que respondem a ela, em últimos termos, com seus corpos. Portanto, esse dispositivo, longe de afetar tão somente a alguns estudantes que podem pedir créditos (econômicos) para pagar seus créditos (universitários), na atualidade, afeta o conjunto da instituição universitária. Assim como os estudantes estão submetidos à lógica financeira do crédito, também professores, revistas acadêmicas, estudos, faculdades e universidades estão expostos ao controle e avaliação das agências estatais e autonômicas de qualidade. Essas agências - com o argumento da objetividade, da gestão e da promoção da excelência - efetuam uma captura da força de trabalho e, em último caso, sujeitam os corpos universitários, os quais são assim governados - e veem dirigida e limitada sua potência -, ficando compelidos às prisões de uma vida indexada, pa[u]perizada e predominantemente precária e desacreditada em um momento histórico no qual o interior e o exterior da universidade perderam seus contornos, no sentido em que grande parte de seus trabalhadores, convertidos em empregados, exercem seu trabalho formalmente em tempo parcial (ainda que, na prática, trabalhem a mesma quantidade de horas ou mais que seus colegas contratados em tempo integral), com contratos precários e de duração limitada. A partir disso, se percebe como a excelência e a precariedade não somente não estão em disputa, senão que muitas vezes estão de mãos dadas.

Desse modo, há que se entender a tese segundo a qual o financiamento da educação é a forma pela qual se adquire controle do mercado (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 11) também no sentido de uma economia das subjetividades e das formas de vida. O mercado controla nossas práticas e inclusive nossas formas de vida através de dispositivos financeiros que, longe de exercerem-se externamente, temos interiorizado. As agências de qualificação são encarregadas de referendar esse estado de coisas. Se somos capazes de interromper a rotina produtiva na qual estamos imersos e o conformismo que a sustenta, talvez sintamos a miséria que os discursos do crédito e da excelência nutrem e quiçá possamos nos dar a possibilidade de abrir processos de dessubjetivação e ressubjetivação à margem desses dispositivos de controle. Pois - além do já dito - há algo que esses discursos omitem de modo sistemático: o fato de que, com o desmantelamento da universidade moderna, o homo academicus, produzido por ela mesma, já é uma coisa do passado. Aquilo que Javier López Alós chamou, com agudeza, o homo pós-academicus, remete às condições materiais dos trabalhadores acadêmicos - e, de modo mais amplo, às formas contemporâneas do trabalho intelectual - em tempos de precariedade. Essa precariedade não aparece como um momento mais ou menos efêmero da carreira acadêmica que afetaria a uma porcentagem relativamente pequena de trabalhadores, mas se constitui como condição estrutural do funcionamento normal das universidades públicas credenciadas com excelência e consideradas de qualidade. O que não é nenhuma contradição, pois como assinala raúl rodríguez freire, o dispositivo da gestão funciona como um meio para rentabilizar a produção - barateando custos e maximizando benefícios - e uniformizar e controlar o mercado.

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Montagens. Se a maioria dos livros e artigos acadêmicos chama a atenção pela sua forma - até o ponto de que deixamos de percebê-los, um livro como La condición intelectual - publicado pela editora Mimesis -, de raúl rodríguez freire -, um autor que assina com letras minúsculas - desautomatiza esse dispositivo, abrindo-se até a dimensão sensível e material da leitura: a montagem de fragmentos em diferentes tipos e tamanhos, na qual também se combinam imagens, e em cujo colofão se informa sobre a materialidade do livro.

Há letras humanistas, como há letras grotescas, computacionais ou comerciais, um riquíssimo reservatório que não temos aproveitado, ao assumir de modo “natural” um reduzido número de fontes, como se estas constituíssem o único que temos à mão (no computador) para escrever. Cada tipo constitui uma determinada forma de inscrever o pensamento sobre um suporte (incluindo a extremamente real página virtual), o que faz da tipografia um meio para corroborar a mutabilidade das ideias e das formas. A tipografia é antiplatônica. Que geralmente escrevamos com Times New Roman, quiçá a mais empregada no mundo acadêmico (junto com Arial e a Calibri), se deva a que vem codificada (“por defeito”) pela maioria dos softwares, em geral já instalados no momento de comprar um aparelho. Foi desenhada no início dos anos de 1930 por solicitação do londrinense The Times, que a vendeu a Monotype, que a vendeu, por sua vez, a Microsoft. Em seu número14, é a letra oficial da diplomacia estadunidense. As tipografias têm sua história [...]. Seus usos carregam rastros. (Rodríguez, 2020bRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Forma como Ensayo. Crítica Ficción Teoría. Adrogué: La Cebra, 2020b. , p. 31).

La condición intelectual, que estuda o processo de uniformização e estandardização da universidade contemporânea e dos modos de escritura praticados pelos sujeitos a ela sujeitados, resiste ao mesmo através de uma imaginação crítica que encontra na materialidade do livro um modo privilegiado de dar corpo à potência do pensamento. Em nosso contexto, livros como esse permitem, a partir de uma interrupção, sonhar no presente um horizonte para nossas práticas e para um mundo no qual seja possível, de novo, o pensamento comum.

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O fora. Tanto a leitura como a escritura poderiam ser modos de estabelecer conexões com o fora. raúl rodríguez freire dá uma explicação a respeito da questão do digital ao recordar-nos que as plataformas digitais são somente úteis quando se conectam e articulam com lutas e encontros que têm lugar fora da rede, em outra parte (Rodríguez, 2018RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Condición Intelectual. Informe para una Academia. Santiago de Chile: Mimesis, 2018. , p. 25). A pergunta para quem escrevemos - e, sobretudo, quando não há um público prévio nem uma comunidade pré-existente a que se dirija a escritura - não deixa de ser pertinente, pois se trata de “uma preocupação que faz da escritura uma experimentação que, como tal, politiza nosso trabalho, abrindo-o às múltiplas possibilidades de criar outro mundo a partir das lutas que hoje se jogam” (Rodríguez, 2020aRODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos. Santiago de Chile: Macul, 2020a. , p. 48).

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O incomensurável. O lugar que em uma época ocupou o inconcebível - aquilo que, por resistir a ser reduzido a conceito e a deixar-se compreender, não tinha direito à existência, porém podia transformá-la - hoje poderia ocupá-lo o incomensurável: aquilo que não se deixa mensurar e que se subtrai à quantificação, seja por ser insignificante (o que não deixa de ser uma forma do não-ser), seja por ser desprezível (no sentido quantitativo e valorativo da palavra). Incomensurável é o que pode passar em uma hora e meia de tempo vazio destinada a uma aula; o que sucede com o escrito quando o leitor o percorre silenciosamente; o que pode ocorrer - na distância entre uma ideia e sua conformação, além de um plano prévio - na escritura; o que se pode escutar ou tramar em um congresso universitário, à margem dos tempos previstos para as intervenções e da entrega dos certificados de participação; o que pode emergir de um diálogo espontâneo em um bar ou, pacientemente, nos meses de retiro em uma residência de escritura, em um arquivo ou em uma biblioteca. Falo de mundos e de práticas heterogêneas que, no entanto, a universidade põe em contato. E falo de formas da potência. Portanto, os conceitos de “qualidade” ou “excelência” apenas produzem o vazio sobre o qual caem e não dão conta de mundo algum; neles o Futuro já está escrito -, instaurando sobre as geografias mais diversas o deserto da gestão. Por isso a lição, os estudos ou o diálogo podem se converter de modo desapercebido em formas do desvio, do extravio ou inclusive do desvario. Por isso - porque inclusive dentro do trabalho nos abrem à folgança - contêm em si mesmos uma promessa de felicidade.

Essa promessa de felicidade - intimamente ligada à experiência artística, segundo Adorno, e associada até pouco a uma promessa de emancipação - é que fica sepultada, junto com os bens da vida, no atual dispositivo de controle, que implica sempre planificação, investimento e cálculo. Como poderia a derrota da navegação responder aos imperativos prévios do plano docente? Esse mecanismo de captura é, inicialmente, um dispositivo de governo de nossas vidas, no qual não importa o que façamos, nem como, mas que sempre nos conformemos a ele. Cabe perguntar-se, pois, por tudo o que deixamos de fazer para cumprir esse imperativo. Que outras escrituras poderíamos ter imaginado se não houvéssemos destinado nossos esforços a publicar, mimetizando uma certa retórica quase sem nos dar conta, em revista indexadas? Que outras comunidades poderiam ter sido tramadas? Que outras conjunções ou conjurações poderíamos ter inventado ou poderiam ter surgido em nossas derivas? O que deixamos de lado (e não cessamos de deixar de lado a cada momento) ao aceitar preencher os aplicativos, publicar em revistas indexadas, manter atualizado nossos diversos currículos, participar daqueles congressos dos quais participamos, etc.? Por que propor essas perguntas no passado e não no presente? Se pensamos nessas questões, veremos como se converte em muito tênue a distinção entre “vida” e “vida intelectual”, confirmando que o que se transmite na aula - e nos espaços (pós)acadêmicos - não é tanto um saber (uma questão de conteúdos) como um saber-fazer (em última instância, uma forma de vida).

Aí existe toda uma ética da docência - e da vida (pós)acadêmica - que está em jogo. Pois o tempo da ação - suponhamos, a hora e meia de tempo vazio que se costuma destinar a uma aula - abriga uma potência incomensurável. Nesse tempo, que se subtrai ao dispositivo de captura, um professor ainda pode ensinar o que não sabe a alguns estudantes que podem aprender o que este não lhes ensina para, desse modo, ensiná-lo. Cultivar e cuidar do incomensurável quer dizer prestar atenção à multiplicidade de mundos que há no mundo, suspendendo o imperativo teológico de uma ratio neoliberal que se quer fazer passar como única razão possível e faz da guerra permanente (guerra com os outros e conosco mesmos) o único modo de estar juntos. Esse cuidado que nos abre para o heterogêneo nos permite ir além dos nossos próprios tempo e espaço, de nossa própria posição, nos permite voltar sobre o negado e o esquecido, sobre aqueles que se apartaram do caminho ou que não se conformaram ao seu tempo..., porém, também sobre aquilo que fazemos aqui e agora, e que quase sempre passamos por alto. Blanchot, 2020BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. Tradução de Sara Belo. Coimbra: Edições Sr. Teste, 2020.

Referências

  • BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte Tradução de Sara Belo. Coimbra: Edições Sr. Teste, 2020.
  • RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Condición Intelectual Informe para una Academia. Santiago de Chile: Mimesis, 2018.
  • RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La universidad sin atributos Santiago de Chile: Macul, 2020a.
  • RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. La Forma como Ensayo Crítica Ficción Teoría. Adrogué: La Cebra, 2020b.
  • RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. Ficciones de la Ley Santiago de Chile: Mimesis , 2022a.
  • RODRÍGUEZ FREIRE, Raúl. (ed.) La Naturaleza de las Humanidades Para una vida bajo otro clima. Santiago de Chile: Mimesis , 2022b
  • Tradução de

    Susana Scramim ORCID 0000-0002-0316-0582. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2023
  • Aceito
    20 Fev 2024
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