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Todo parecía. Poesia cubana contemporânea de temas gays e lésbicos (Seleção)1 1 Seleção e tradução de Ary Pimentel para Alea de textos poéticos da antologia Todo parecía: poesia cubana contemporánea de temas gays y lésbicos. BARQUET, Jesús J. & LEMUS, Virgilio López (Org.), Nuevo México: Ed. La Mirada, 2015.

Alberto Acosta-Pérez

O QUE FAZER QUANDO A GENTE NÃO É IGUAL AO OUTRO,quando não se tem o mesmo gosto que ele pelo vermelho
ou pelo álcool ou pelo sexo,
se não se sabe o que fazer com o revólver que ao nascer
puseram na tua mão,
com a máscara que penduraram sobre a tua face.
que decisão resta,
só apagar-se?

Achy Obejas

LEGADOSNa primeira vez que me achei dentro de uma mulher,
me confundi.
Não a reconheci, nem a ela nem a mim mesma.
Pensava que nadava, mas no ar.
Talvez voava, sob a água.
Há segredos que só o corpo cede,
como a vibração,
e o beijo, um acidente feliz
entre duas mulheres
que já esgotaram a palavra.

Alina Galliano

OS DIAS QUE TENHO AGORA53
Não se cansam as coisas e os objetos de sentir-me a vida
de emprestar-me paisagens famintas de sons
e tampouco se cansam de escrever-me os olhos com água de chuva
ou de pintar-me as veias com um azul marinho
que fulmina em sua fúria os portos
onde pessoas ou espaços desejam repousar e tornar-se fixos
como podem ser fixos galos cata-vento que giram nos tetos
junto dos ninhos das cegonhas e dos relâmpagos
pretendendo ser esse movimento no começo de uma viagem
na qual crescem e se escrevem cartas que não esperam respostas
mas que cruzam a longa distância das pálpebras
por momentos beijam sem pressa as palmas de umas mãos
ou repousam sobre as escrivaninhas e as caixas de seda
para que os que desconhecem migrações
emigrem por instantes e toquem outros céus,
outros mutismos onde a percussão é um sabor exato
despertando a vontade que habita os tornozelos
ou te esmaga a testa da mesma forma que uma moenda.
Há dias em que só sou possível comigo e minha luxúria,
dias em que não quero que minhas amantes me degustem,
me molhem, me abram como uma fruta entre seus lábios ou seus dedos
pintando-me com suas umidades a cara, a vagina, as costas, as costelas,
mulheres que me concedem de modo generoso geografias ao vivo
para que eu me arrebate até a decadência
ao sentir meus pulmões configurando oxigênio.
Mas há dias que apenas sou de Alina, com intenção de ser isso mesmo,
dias em que meu corpo enfrenta um radical de espelhos
o esquerdo do osso temporal e o lóbulo.

Frank Padrón

SE O VISSES (JACOB E O ANJO)Se tu o visses amando-me
se recebesses essas mãos de pedreiro levantando castelos na minha pele
se escutasses sua voz de homem maduro que não fez 30
anos dizendo como um menino que me ama
se sentisses sua língua fervendo enquanto injeta o céu em minha saliva
se tu o visses, ah,
se o contemplasses olhando com ternura a foto de seus dois
filhos homens enquanto vira um
novelo em meu sexo que não tem gerado filhos como se
fosse meu filho
se me sentisses tremendo quando suas costas imensas me vestem e me desnudam
Ah, se o visses amando-me
se o visses vibrando na frente da minha boca faminta
se observasses só por um instante como me amanhece antes que amanheça
se o visses rasgando o manequim de sua virilidade diante dos
lados escuros e luminosos de meu ser andrógino
se ele te contasse um dia ainda que fosse com suas pobres palavras
que tampouco necessita porque fala
demais com todas suas peles e todos seus feitiços
se o sentisses por alguns minutos virando de um golpe o
Zero Místico, o que não se pode
achar que nele se encontra, feito um e milhões:
demiurgo homem mulher anjo deus e
sempre homem (ou seja, mulher, anjo, deus...)
se tu o visses, ah,
te daria vergonha não amar-me
me daria vergonha te amar
assim.

Lilliam Moro

EXPEDIENTENasci de pais patríssimos
boas gentes, briguentos, mal dados
e divórcio pra não perder o costume.
Me chamo com um nome que me deu minha tia.
Nasci com as sobrancelhas estranhas. Prenunciava
ser filha amantíssima, casamento suculento
e três ou quatro filhos – era só o que faltava –.
Mas nasci com o mal do estômago
que me faz vomitar palavras e poeminhas
de uma Storni kafkiana.
Finalmente, também inventei para mim o amor
duas ou três vezes. Tive
minhas pequenas desgraças, várias tentativas de suicídio
e um mal alcoólico. Agora
sou professora.

Luiz Manuel Pérez Boitel

IDENTIDADESNo palácio de governo de México DF, na salinha do palácio
Onde espero, no próprio palácio de governo, alguém me exige que indique
em uma ficha, marcando sempre com uma cruz,
o sexo, a mesma identidade que antes pediam em dois quadrinhos
que delatam as possíveis opções. Os quadrinhos possíveis
para os que não viram o sexo numa cruz distante,
melhor dizendo, entre quadradinhos. Olho nos olhos daquele que me desafia,
como se fosse um ato de estranhamento, e ele assente com o olhar.
No palácio de governo, nos quadrinhos do próprio palácio,
o que está de guarda nesse momento mantém o silêncio, atrás do vidro
para marcar a diferença, a cruz da diferença, no palácio de governo
de México DF, marquei meu sexo com toda a condição pontual do ato.
Depois saímos para a zona rosa.

Norge Espinosa

VESTIDO DE NOIVAPor isso não levanto minha voz, velho Walt Whitman,
contra o menino que escreve
o nome de menina em seu travesseiro,
nem contra o rapaz que se veste de noiva
na escuridão do armário.
Federico García Lorca
Com que espelhos
com que olhos
vai olhar-se este rapaz de mão azuis
com que sombrinha vai atrever-se a cruzar o aguaceiro
e a trilha do barco em direção à lua
Como vai poder
como vai poder assim vestido de noiva
se vazio de seios está seu coração
se não tem as unhas pintadas se tem apenas um leque de libélulas
como vai poder abrir a porta sem afetação
para cumprimentar a amiga que o esperou sob a amendoeira
sem saber que a amendoeira raptou a sua amiga o deixou só
ah onde poderá ir assim tão loiro e azul tão pálido
a contar os pássaros a marcar encontros por telefones quebrados
se tem apenas uma metade de si a outra metade pertence à mãe
de quem a quem terá roubado esse gesto essa veleidade
essas pálpebras amarelas essa voz que algum dia foi das sereias
Quem
lhe vai apagar a luz sob a cama e lhe pintará os seios com que sonha
quem comporá as asas desse mal anjo feito para as zoações
se as suas asas foram condenadas pelo vento e gemem
quem quem o vai desvestir sobre que grama ou lenço
para esbofetear-lhe o ventre para cuspir as pernas
desse rapaz de cabelo crescido assim vestido de noiva
Com que espelhos
com que olhos
vai retocar suas pupilas esse rapaz que algum dia quis se chamar de Alicia
que se justifica e lança a culpa nas estrelas
com que estrelas com que astros poderá amanhã adornar-se as coxas
com que alfinetes vai prendê-los
com que pena vai escrever sua confissão ah esse rapaz
vestido de noiva na escuridão é amargo e não quer sair não se atreve
não sabe a qual de seus musgos escapou a confiança
não sabe quem o acariciará desde algum outro parque
quem lhe vai dar um nome
com que possa vir e sossegar as pombas
matá-las assim que paguem seus insultos
com que espelhos ah com que olhos
vai poder assustar-se consigo mesmo esse rapaz
que não quis aprender nem um único assobio para as estudantes
as estudantes que riem ele não pode matá-las
assim vestido de noiva amordaçado pelos grilhões
sempre do outro lado da ponte sempre do outro lado do aguaceiro
sempre em um telefone errado não sabe o número
tampouco ele se sabe
Está perdido em uma renda e não tem tesouras
assim vestido de noiva como em um pacto perante o amanhecer
Com que espelhos
Com que olhos.

Lina de Feria

ABSOLVIÇÃO DO AMOR (III)Para onde terá fugido o fulgor visionário?
Onde estão agora, a glória e o sonho?
William Wordsworth
agora tua ansiedade menina minha
não tem beiradas perigosas
porque te amei para que soubesses
a vergonha que dão as vestes
com que nos envolvem
desde que a luz bate na pupila mínima.
te mostro minha nudez e você comovida
como se tivesse visto Deus
põe as tuas mãos em meu queixo jovem
e as duas inventamos
como a singular estrela do pátio de Belém
porém mais que isso, nos enroupamos
de peles sexo e sonho porque no grito
só encontrarei a magia de ter culminado tudo
como se ascendêssemos
para o desenho estelar:
você na plenitude máxima
eu na plenitude de mostrar-te a vida
do jeito que a sonharam
os românticos ingleses
assim puro Coleridge
dando outra etapa à tua sapiência.
você viu como soou
o canhonaço das nove horas?
éramos o mar remoto
e entre almofadas de soie
ganhamos uma história para o memorável.
amor meu
menina das ocupações mornas
sempre uma codorna nos está esperando
para sobreviver-nos como asas.

Magali Alabau

ELECTRA, CLITEMNESTRA(...) O vento soa profundo.
O mar de Micenas silencia sua rouquidão
é um vulcão contido.
Medusa anda pelas colinas,
suas serpentes se inflam
e se inflam.
O muro escuro que tudo cobre
está olhando,
rindo às gargalhadas.
Medusa mostra suas garras e as crava na areia.
Medusa abre e fecha as pestanas.
Sua boca é um cordão amplo para a guerra.
Ao quarto vai,
para inundar a fortaleza.
Abre a porta
e rebola e rebola.
Fúria, cratera,
morde os móveis, o piso
como uma pantera com audácia.
Os olhos vão pra cima,
vão pros lados,
vão pra todas as partes.
Esfrega seu lombo, sua crista em cada gume.
O quarto é um fogo gigante,
e no trono de solidão
Clitemnestra se senta.
Sente a língua de Medusa nos pés,
nos seios.
Seus mamilos se tornam fontes.
O prazer entra.
Medusa a desnuda,
a sacode e a levanta.
Monta no seu pescoço,
lambuza-lhe a cara.
Língua com língua,
espuma vermelha, espessa.
Os lábios queimam, ardem as orelhas.
Tantas serpentes em um clitóris,
tanta brandura forte, sedenta.
Os rostos se lambem;
os olhos se enquadram.
As duas feras se olham.
Jogam-se em uma ampla cama.
Medusa monta um cavalo demorado
e o teto as esmaga
e se unem
e se amam.
Medusa lhe entra pela boca,
pelas costas, e grita.
Cada serpente ocupa um orifício.
Clitemnestra late.
Seus braços atados à grande cabeça dessangram.
Duas mulheres vibram, amoldam-se,
morrem abraçadas,
e já não há feridas nem crateras.
Micenas renasce.
O sol aponta e crava seu fogo em uma cama molhada.
Ruínas de união descem pelas portas
como uma capa espessa escapando para fora.
As escadas gemem e riem, rangem,
o prazer as desmorona.
O leite das duas se junta em uma só
e desce em direção ao mar.
Clitemnestra entregou seus seios duros
Clitemnestra recebeu mãos e mãos
e carne nos lábios.
Sua boca está seca, a cintura fina.
Em meio à perfeição vira a cabeça
para dar o último beijo da noite
e vê Electra. (...)

Seleção e tradução Ary Pimentel
Universidade Federal do Rio de Janeiro

  • 1
    Seleção e tradução de Ary Pimentel para Alea de textos poéticos da antologia Todo parecía: poesia cubana contemporánea de temas gays y lésbicos. BARQUET, Jesús J. & LEMUS, Virgilio López (Org.), Nuevo México: Ed. La Mirada, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2016
  • Aceito
    30 Jan 2016
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com