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Open-access Palavras dos editores convidados. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: o experimento intermidiático e multiautoral de Oswald de Andrade (et al.)

Guest Editors’ Words. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: Intermedial and Multi-authored Experiment by Oswald de Andrade (et al.)

Decisivo ao modernismo (BRITO, 1987), “homenagem a uma cultura estética em declínio” (JACKSON, 1999a, p. 269), O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, “diário de garçonnière” intermidiático e multiautoral de Oswald de Andrade (& colaboradores), “antecipa a nova era moderna da sátira, fragmentação e colagem” (JACKSON, 1999a, p. 269). Posicionado “entre o banquete celebratório do fim-de-século e o modernismo desvairado de 1922, o volume documenta a fermentação de ideias e a experimentação estilística de um momento de modernização avant la lettre, que pretendia uma revisão de tudo” (JACKSON, 1999a, p. 270-271). Livro-de-artista, livro-objeto e antilivro - “antitexto sui generis, cheio de rebelião anarquista” (JACKSON, 2013, p. 150) -, ele baseia-se no uso combinado de colagens, bricolagens, desenhos, ilustrações, fotos, cartões, objetos, carimbos, ready-mades verbais, balões de HQ, trocadilhos e fragmentos de textos.

Sobre as datas precisas de sua realização, o próprio Oswald, em O homem sem profissão: sob as ordens de mamãe, afirma (1976, p. 105-106): “Alugo uma garçonnière, à rua Líbero Badaró, nos fundos de um terceiro andar. Estamos no ano de 17. Dessa época, do ano de 18 e até 19, componho com os frequentadores da garçonnière e com Deise, que se tornou minha amante, um caderno enorme que Nonê conserva”. Mario da Silva Brito, em um artigo pioneiro de 1968, estabelece um período, que vai de 30 de maio de 1918 a 12 de setembro de 1919. Em novo artigo, no ano seguinte (1969), ele revê a data de finalização, que passa a ser 12 de outubro de 1919. Haroldo de Campos (1987, p. XXI-XXII, nota 1), depois de “cuidadosa verificação do original e sua confrontação com os trechos correspondentes”, conclui:

O diário, todavia, apesar de trazer na frente da segunda guarda, a lápis, as datas 1918-1919, parece ter sido escrito ao longo exclusivamente do ano de 1918. À pág. 1, a data expressa de seu início é 30 de maio de 1918. O encerramento se dá em 12 de setembro do mesmo ano de 18. O mês e o dia estão expressos à última página do caderno; o ano resulta das informações contidas em UHSP, p. 209-211. No diário, na frente da penúltima guarda, ensinando a carta final de Deise, escrita em roxo, há um cartão postal, colado, com a data completa: 12.9.18. Desfeita a garçonnière, Oswald instala Deise “numa casa da rua Santa Madalena, no Paraíso” (UHSP, p. 214). As referências à Ciclone, que seguem em UHSP, não mais estão registradas no diário, já concluído. Neste, como acréscimos posteriores a 1918, podemos encontrar apenas: a) o recorte de jornal, noticiando o falecimento de Deise, colado na última guarda, com a data, à mão: 25.8.1919; b) a inscrição no verso da penúltima guarda, comentada na nota 3, abaixo (atribuição conjectural).

O diário é um caderno de contabilidade preto, de capa dura, 25x34cm, com 200 páginas numeradas, que vemos aqui acompanhado de uma sobrecapa (jacket) vermelha (Figura 1), em edição fac-símile da Editora Ex-Libris. Resultado de um projeto gráfico cuidadoso, que preserva detalhes como colagens e dobras, é uma versão fac-similada de 300 exemplares, publicada em dezembro de 1987, trabalho editorial de Frederico Nasser, com apoio do IMS.1 Para realizar esse projeto, “cujo insólito conteúdo -- grampos para cabelo, cartas, cartões, caricaturas, marcas de batom, histórias em quadrinhos -- tornava sua produção uma empresa, em princípio, irrealizável" (SCHWARTZ, 2014, p. 38), foram recriados todos os componentes, gráficos e materiais, incluindo um tratamento cromático especial de cada página.

Foi necessário recriar todos os elementos originais: tingir o caderno de cor creme, pautá-lo com traço cinza, acertar os vários tons de tinta em que foi redigido o diário (violeta, verde, vermelho e lápis), fazer passar o papel até oito vezes pela impressora, reproduzir todas as collages que foram coladas no diário: cartas de diferentes tipos, cartões-postais, recortes de jornais, figurinhas para crianças, enfim, uma parafernália editorial que significou vários anos de trabalho. (SCHWARTZ, 2014, p. 38).

De difícil classificação (“álbum artístico-literário”, “texto-caderno”, “romance-receita” [JACKSON, 1999a, p. 271; JACKSON, 1999b, p. 279]; “desordenado-romance” [BRITO, 1987, p. XI]; “livro-álbum”, “livro-razão”, “livro-caixa-de-surpresas” [CAMPOS, 1987, p. XV]), ele é um livro-objeto, um livro-de-artista, e um antilivro. O volume, “destacado pelo experimentalismo estético e o desafio à norma social” (JACKSON, 1999a, p. 268), segue mal analisado quanto à sua estrutura intermidiática, multimodal (Figuras 2, 3), e colaborativa, de literatura expandida.

Quase totalmente ignorado pela crítica, até hoje, O perfeito cozinheiro ainda aparece ao leitor como uma “aventura de jovens doidos”, um experimento amador, fracamente submetido ao rígido controle do método (como uma “obra séria” deve ser), um diário “diletante”, e um “repositório espontâneo”. Como antilivro “participante”, ele é observado como uma preparação aos experimentos realmente sérios de Oswald -- nele estão “o clima e as personagens que vão gerar e povoar Os Condenados, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande” (BRITO, 1987, p. XII). As abordagens estão mais diretamente concentradas: (i) no enfrentamento à “verve parnaso-acadêmica” (CAMPOS, 1987, p. XVI) da época, (ii) na presença e personalidade de Daisy, Miss Cyclone -- “musa-polifônica”, “musa art nouveau da garçonnière miramarina”, “musa-palimpsesto”, (CAMPOS, 1987, p. XVI), (iii) no exercício experimental precursor dos romances-invenção Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte-Grande. Mas já há, a esta altura, muitas razões para considerá-lo um objeto autônomo, um “transgênero” autônomo, que para Schwartz é um romance cômico-trágico -- “além de sua extraordinária riqueza visual, que permitiria considerar O Perfeito Cozinheiro um objeto de arte praticamente autônomo, descobrimos nele todos os ingredientes necessários para a configuração de um romance. Não de um gênero tragicômico, senão cômico-trágico” (SCHWARTZ, 2014, p. 49).

Definido por Jackson (1999a, p. 268) como “um repositório particular de escritas aleatórias - grafias espontâneas de todos que frequentavam o ateliê - cujo propósito era deixar no livro, com engenho e arte, a própria vida que passava”, ele é também um “objeto”, ou um meta-objeto, como Julio Plaza (1982a, 1982b) teria sugerido. Sua “inutilização” como livro pode ser associada a um tipo de operação que Plaza (1982a, 1982b) relaciona a uma forma de colagem que ele chama de pragmática. Como um meta-objeto orientado à ação, da “vida em ação” no antilivro, “situado entre a vida e a arte, a história e a ficção” (JACKSON, 2013, p. 151).

O perfeito cozinheiro é nosso experimento mais radical de literatura expandida, do início do século XX, uma antecipação de procedimentos intermidiáticos (Figura 4) que se tornarão mais e mais usados, e, com frequência, menos ousados, décadas depois. O termo “expandido”, para definir práticas intermidiáticas do início do século XX, ganhou notoriedade na década de 1970. Ele aparece, seminalmente, no livro de Gene Youngblood, Expanded Cinema (1970). O próprio Youngblood (1970, p. XIV) atribui a criação do termo “expandido” ao cineasta experimental, pioneiro artista multimídia, Stan VanDerBeek, em 1966. Mas foi Youngblood o responsável por sua divulgação. “Foi Gene Youngblood quem colocou isso na capa de um livro, o encheu de combustível e o enviou zunindo pelo mundo da arte do final dos anos 1960, como um míssil teleguiado.”2Sculpture in the Expanded Field (1979), de Rosalind Krauss, é outro marco, amplamente mencionado. Krauss usa a noção de “campo expandido” para caracterizar “o que teria acontecido na escultura contemporânea a partir das experiências do minimalismo americano na década anterior” (GIORDANO, 2019, p. 3). O argumento de Kraus, sobre a expansão da escultura, baseia-se “no fato de que os objetos expandidos já não se parecem com o que durante muito tempo foi reconhecido como escultura ou arte” (AZEVEDO, 2016, p. 162); esculturas de ontologias híbridas, combinações de arquitetura, paisagem e objetos escultóricos. No campo dos estudos literários, o termo "literatura expandida" não possui uma data precisa de surgimento. Ele também descreve operações com ontologias híbridas, fenômenos multimodais, combinando processos visuais, gráficos, e tipográficos, ready-mades (verbais e visuais), objetos e sistemas colados, justapostos e superpostos.

Mais do que um laboratório de processos intermidiáticos, multimodais, O perfeito cozinheiro é também um laboratório de experimentos metassemióticos, em diversas escalas de organização - macroscopicamente, relacionado a estratégias de “combinação” de diferentes mídias e sistemas, des-institucionalização da autoria, incorporação de dispositivos gráficos recém-inventados (por exemplo, os balões de diálogos das HQs), protocolos de colagem e bricolagem que se consolidaram no cubismo; microscopicamente, através do acúmulo de trocadilhos, e paralelismos de todos os tipos, performance dialógica dos pseudônimos, referências às estruturas e processos de composição (“Por que esse espaço em branco?”, Figuras 5 e 6), entre outros.

Não submetido a protocolos de reprodução, O perfeito cozinheiro “não se destinava à publicação nem se pautava como obra de Oswald de Andrade” (JACKSON, 2013, p. 151), ou de Cyclone, ou de qualquer frequentador da garçonière, e enfrentava, diretamente, a instituição da autoria. No limite difuso arte-vida, da “vida em ação”, O perfeito cozinheiro, é um meta-objeto orientado à ação. Realizado através da caligrafia de cada participante, que se converte em sua própria assinatura, meta-ironia, já que “os colaboradores não se utilizam de seus nomes. Valem-se de pseudônimos ou apelidos” (BRITO, 1987, p. IX) - entre outros, João de Barros é Pedro Rodrigues de Almeida; Ferrignac Jeroly e Ventania são Ignácio da Costa Ferreira; G., Garoa e Miramar3 são Oswald de Andrade; Foguinho, Viviano e Viruta são Edmundo Amaral; Bengala é Léo Vaz; Guy é Guilherme de Almeida; Ancylostomo e Frei Lupus4 são Monteiro Lobato. Daisy, Dasinha, Deise e Miss Cíclone5 são Maria de Lourdes Castro de Andrade; e, segundo Brito (1987, p. IX), “Sarti Prado pode ser identificado pelo seu latinório ou por sua ‘literatura bestíssima’ - como diz Oswaldo, literatura, em que fala a ‘Alameda do Sonho’, ‘o halo do passado’”. Em “uma ousadia de Cyclone” (cf. Rost, neste dossiê), e para radicalizar a liberdade performática, embaralha-se até a autoria de pseudônimos (“O disfarce teatralizado dos pseudônimos libertava para a performance textual”):

(Isso não é meu, é do Garôa)

Viruta

Isso não é meu, é do Ventania

Viruta

Alto lá! foi a Cyclone quem escreveu as coisas de cima

Ventania

Foi o Valente

Cyclone.

(ANDRADE, 1987, p. 93).

No intuito de explorar detalhadamente essa surpreendente obra do modernismo brasileiro, convocamos a este dossiê da Revista Alea que recolhesse leituras contemporâneas de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo.

Em “O amor ready-made. Diário, colagem e montagem em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, Eduardo Jorge de Oliveira pergunta: “Por que a forma ‘diário’ para o registro de tais encontros cujos pseudônimos representam máscaras para uma encenação que deveria estar inscrita no anonimato de uma grande cidade?” Resposta: “O diário, que é o espaço íntimo por excelência, destinado mesmo às confissões mais inconfessáveis, tornou-se uma cozinha experimental do modernismo.” O artigo dedica-se a alguns componentes da macroarquitetura do livro, protossurrealistas, e a procedimentos que mais tarde caracterizariam os romances-invenção de Oswald, “do entusiasmo de uma escrita telegráfica” à fragmentação estrutural de planos sintagmáticos, como vemos no Memórias sentimentais de João Miramar, e no Serafim Ponte Grande. Os conhecidos protocolos de bricolagem aparecem, como já explorado por muitos autores (Haroldo de Campos e outros), no Cozinheiro, na forma de “grampos para cabelo, cartas, cartões, caricaturas, marcas de batom, histórias em quadrinhos”, etc. (SCHWARTZ, 2014, p. 38). Mas este ensaio sugere, de modo muito revelador, uma surpreendente aproximação com seu maior inventor, e contemporâneo, Marcel Duchamp, com o núcleo mesmo de sua principal intervenção na arte moderna, o ready-made, e, ainda mais surpreendente, com o “Grande Vidro” (“O diário da garçonnière é uma espécie de Grande Vidro”), mesmo que ela, a aproximação, “se sustent[e] apenas no tempo em que a comparação é capaz de fascinar”. Oswald, como Duchamp, teria, através do ready-made, e de protocolos precisos de colagem e bricolagem (Figura 7), na “estrutura do jogo viril” do diário íntimo da garçonnière, “conduzido de quem cozinha quem, e quem come quem” à mimese da realidade “em um nível paródico e plagiotrópico” - “O diário da garçonnière é uma espécie de Grande Vidro, naquilo que ela tem em termos de estrutura de um jogo viril, na transparência da história, cujos corpos cifrados estão postos a nu, descobertos pela revelação deste objeto heterogêneo e erógeno, e pela inseparabilidade da vida-obra em Oswald de Andrade.” Os protocolos incluem, da reinvenção, através de uma “manobra técnica” de manipulação do carimbo “Amaral & Co” (Figura 8), para “contornar a linguagem burocrática que o carimbo representa” e “para reinventá-la a partir do amor que não teria nascido sem a contemplação do mar”, à diversidade caligráfica de pseudônimos, para exibir uma “estilística celibatária”, polifônica e multivocal. (É reveladora a identificação, neste ensaio, da manipulação do carimbo como uma “manobra técnica” caracteristicamente duchampiana.)

Para Amálio Pinheiro (“O Perfeito Cozinheiro: alegria, complexidade e finitude”), o diário é “uma espécie de almoxarifado de formas em extensão e expansão”. Ele é, ao mesmo tempo, “um conjunto móvel, múltiplo e simultâneo de sobras e recortes de linguagens”, e um “espaço aberto de experimentações e procedimentos, por aglomeração metonímica de materiais sonoros e sintáticos”. As noções de “série” e de “função construtiva”, de Yuri Tynianov, ao oferecerem uma “perspectiva interconectada e dinâmica da literatura, enfatizando sua natureza evolutiva e contextual”, funcionam, respectivamente, para descrever a “sequência contínua de obras” com as quais O Perfeito Cozinheiro está em interação, e para definir seu papel no interior da série. São notáveis os “procedimentos barroquizantes”, limítrofes ou “extremados”, numa relação direta com a noção de neobarroco, de Sarduy, do acúmulo da “variedade material em estado de mescla em andamento”, ao “excesso paródico-carnavalizante”. Não há, observando o diário, linearidade capaz de resistir a tantos procedimentos, tantas "reentrâncias e interstícios". Afirma Pinheiro, sobre uma das operações: “não há história retilínea que possa suportar tais superabundâncias metonímicas”. Sobre a própria garçonniere da rua Líbero Badaró, ela é descrita como um “ambiente de linguagem”, “para mobilizar modos de conhecimento não dualistas”. Pinheiro defende, para lidar com a “presença ativa de um rodízio de vozes nativas caboclo-interiorano-paulistanas que encadeia” em neologismos teóricos para descrever o fenômeno observado, uma “oralitura, ou melhor, vocotura. Vocotura, muito embora apoiada no escrito”. Ele afirma: “Ora, O Perfeito Cozinheiro é resto, rastro e traço em toda parte; escombros, rejeitos de falas buscando contaminação”. Tal polifonia, neobarroca e tropical, é construída “com um abuso descarado de brasileirismos, neologismos, neologismos e solecismos sonoramente ativos sob a luz solar”.

A tese radical de Isis Diana Rost (“Rastros do Modernismo: O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”): “floresce”, com Deise (Figura 9), uma agilidade que “acompanharia Oswald em Memórias sentimentais de João Miramar e no Manifesto Antropófago. A musa polifônica da garçonnière não é apenas a “autora-regente” de O perfeito cozinheiro (ANDRADE, 1992, p. XXII), mas sua grande ghost-writer (CAMPOS, 1987, p. XXI). Ela organiza o “agendário coletivo” (CAMPOS, 1987, p. XXI), e “traça os rumos que levarão Oswald, anos mais tarde, a reconsiderar sua precedência essencial na construção do que depois viria a ser a Filosofia Antropofágica (Antropotrágica também, nesse caso)”. “Moça moderna” (“A Cyclone é um desenho moderno”, [ANDRADE, 1987]) -, enigmática e transgressora, cujas ausências (“Decididamente, este covil sem a Cyclone é inútil como um gramofone sem discos” [ANDRADE, 1987, p. 44]), e presença (“Dasÿ é o pirão deste menu” [ANDRADE, 1987, p. 26]), estruturam o diário. O perfeito cozinheiro é um building-block do modernismo, em uma construção feita aos blocos. A “com-junção” “MiraCyclonica” é, para Rost, um “germe das posições radicais assumidas por Oswald nas décadas seguintes” - “Miramar precisa fazer a conferência. Tufãozinho o auxilia até uma hora, ante a lâmpada implacável, que ela barrou de vermelho, os dois fabricam a encomenda nacionalista” (ANDRADE, 2002, p. 181). Assumidamente sua precursora (“Se, nas minhas peregrinações, eu não tivesse perdido as suas ‘memórias’ inteiramente fantásticas, ela talvez tivesse sido a precursora” (...) [ANDRADE, 2002, p. 185]), ela é também sua “primeira” crítica: “Para que a Cyclone julgue: Minhas crias litterárias: ella em 1º lugar, Guy, Monteiro Lobato, Amadeu Amaral, etc, etc.” [Garoa / ANDRADE, 1987, p. 44]). Rost pergunta, ao final: “seria possível observar e reconstruir Oswald através de Cyclone?”

Lúcio Agra (“O Perfeito Cozinheiro da Antropofagia”) atribui ao Perfeito cozinheiro um papel categorial, ontológico-semiótico primitivo, de natureza icônica, que se “aperfeiçoa” ao longo da obra de Oswald. “Diria então que a Antropofagia estava em vista desde o descompromissado ajuntamento que é este álbum coletivo e segue se aperfeiçoando ao longo de toda a obra do nosso poeta.” Se, na fenomenologia do fundador do pragmatismo, C.S.Peirce, ou faneroscopia como ele preferiu chamá-la, as categorias são “departamentos irredutíveis”, suficientes e necessários, de atividades mentais (phaneron), a “devoração” tem esse papel, categorial e metassemiótico (“signo dos signos”), na obra Oswaldiana - “a ‘devoração’ é uma categoria de compreensão do mundo, portanto filosófica e semiótica. Faz parte da Fenomenologia (na acepção que lhe dá Charles Sanders Peirce) Oswaldiana”. A “devoração” é um ícone metassemiótico que atua como um “diagrama inaugural” da relação devorador-devorado (“quem come quem?”). Associado a formas abdutivas (criativas) de inferência (“O raciocínio diagramático é o único tipo realmente fértil de raciocínio”, Peirce [1903, CP 4.571]), o diagrama é um ícone de relações, mas um ícone especial. Ele possui um interpretante simbólico, legaliforme, que regula a relação entre as partes do signo, um análogo do arranjo estrutural de seu objeto (“nexo entre as existências”). Para Agra: “diagrama inaugural das relações, é aquilo que se traduz, no nível da Terceiridade, em seu argumento fundante: a devoração, para Oswald, é o nexo entre as existências e, portanto, talvez, senão seu interpretante final (ainda peirceanamente) pelo menos a dinâmica essencial da própria vida”. Este signo icônico (“O único modo de diretamente comunicar uma ideia é através de um ícone”, Peirce [CP 2.278]), a devoração, distribui-se, metassemioticamente, como uma trajetória, pela obra (e vida) de Oswald, como seu interpretante final. Em carta a Lady Welby (1909, SS110-1), Peirce afirma: “O Interpretante Final é o resultado interpretativo para o qual todo Intérprete está destinado a chegar se o Signo for suficientemente considerado”. A devoração como tendência e como destino na cozinha de Oswald.

Luis Brandão (“A dedicatória e a garçonnière: Ambivalências de algumas imagens do modernismo brasileiro”) investiga a ambivalência que caracteriza a expressão “À margem da margem” (Augusto de Campos, 1989), de afastamento radical do centro a que pertence a margem, ao enfraquecimento deste movimento, “em direção ao lado oposto da margem”, ou ao centro, e no modo como a noção de margem aparece no discurso crítico e historiográfico. Seu ensaio, assumidamente experimental, é sobre a “crítica que ultrapassa os limites de sua circunscrição”; como uma metacrítica, “a crítica que busca conceber-se nas margens da crítica” (O perfeito cozinheiro que, ambivalentemente, propõe a validação de modos incomuns de atividade crítica não consolidadas).

Esse dossiê da Alea: Estudos Neolatinos ajuda a cumprir uma tarefa, histórica, de recolocar em circulação, no ano que sucede as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, ano em que se falou tanto de Oswald, mas tão pouco do Perfeito Cozinheiro, sua insubordinação seminal, intermidiática e multiautoral; laboratório de onde, “do avesso do avesso à margem da margem”, para retomar “equações pignatarianas”, “partem vozes insólitas capazes de perturbar a toada e o coro monótonos ouvidos à passagem dos autores mais acomodatícios e mais digeríveis” (Augusto de Campos, 1988, p. 9).

FIGURAS

Figura 1
Sobrecapa (jacket) de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo.

Figura 2
Páginas 126 e 127 (ver Anexos 1 e 2). Nestas páginas, a caligrafia é policromática (preto e verde). No canto superior da página 126, vemos dois desenhos intitulados "fig. I" e "fig. II". Abaixo, vemos uma colagem, seu contorno rasurado, e um esboço da bandeira norte-americana. Na página 127, escritos mediados por uma carta, colada, de autoria de Cyclone e endereçada a Miramar. Sobre as variações policromáticas, observadas nestas páginas, e em todo livro, a "tinta violeta da manuscritura de sua primeira centena de páginas (uma dominante grafocromática [é] depois substituída pelo verde, encre verte, a partir da página 112, e, sucessivamente, pelo vermelho, 'tinta encarnada', rubricas rubras, desde a página 149)". (CAMPOS, 1987, p. X)

Figura 3
Páginas 98 e 99 (Anexos 3 e 4). Há, nestas páginas, uma caricatura, desenhos, colagem de uma tira de quadrinhos e o uso de legendas, em espanhol. As páginas estão escritas em roxo (violeta).

Figura 4
Páginas 194 e 195 (Anexos 5 e 6). Estão combinados: caligrafias policromáticas (vermelho e preto), colagem de uma fotografia intitulada "almoço de Simão Urupê", caricatura a partir de recorte e complemento à caneta, e um adesivo colado no canto superior esquerdo.

Figuras 5 e 6.
Páginas 100 e 101 (ver Anexos 7 e 8). A multiautoria, nessas páginas, inclui: Oswald de Andrade, que assina como "Garôa" e "G.", Edmundo Amaral, o Viviano, que assina como "Vivi" e "V.", e Maria de Lourdes que assina como "Cyclone". Há outras duas assinaturas cujos autores não foram identificados, "Magistrado" e "X.".

Figura 7
Páginas 152 e 153 (Anexos 9 e 10). Na página 152, há trechos em vermelho e azul, em lápis de cor, e rasuras de um texto prévio. Há uma mancha, de algo que teria sido colado no canto inferior esquerdo. Na página 153, além de textos de V. e de Léo, há dois recortes colados: o primeiro de duas mulheres; o segundo de um casal se beijando. Entre as colagens há outra área rasurada, em vermelho.

Figura 8
Páginas 108 e 109 (Anexos 11 e 12). Na página 109, vemos a "manobra técnica" de manipulação do carimbo "Amaral & Co".

Figura 9
Página 29. Caricatura de Cyclone assinada por Jeroly.

ANEXOS DAS FIGURAS

Anexo 1
(referente à figura 2).

Anexo 2
(referente à figura 2).

Anexo 3
(referente à figura 3).

Anexo 4
(referente à figura 3).

Anexo 5
(referente à figura 4).

Anexo 6
(referente à figura 4).

Anexo 7
(referente à figura 5).

Anexo 8
(referente à figura 5).

Anexo 9
(referente à figura 7).

Anexo 10
(referente à figura 7).

Anexo 11
(referente à figura 8).

Anexo 12
(referente à figura 8).

Referências

  • ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe 2ª edição. São Paulo: Globo, 2002.
  • ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Globo, 1992.
  • ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo Edição fac-símile. São Paulo: Editora Ex Libris, 1987.
  • ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
  • BRITO, Mário da Silva. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo Edição fac-símile. São Paulo: Ex Libris, 1987: IX-XII.
  • BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1972.
  • BRITO, Mário da Silva. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. Ângulo e Horizonte. São Paulo: Martins, 1969.
  • BRITO, Mário da Silva. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. O Estado de São Paulo - Suplemento Literário, São Paulo: 1968.
  • CAMPOS, Haroldo de. Réquiem para Miss Cyclone, Musa Dialógica da Pré-história Textual Oswaldiana. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo Edição fac-símile. São Paulo: Editora Ex Libris, 1987: XV-XXII.
  • JACKSON, Kenneth David. Oswald de Andrade e André Breton paixões loucas, loucos textos; ou uma negativa do artista como jovem canibal; ou inscrições rituais; ou memórias criptográficas; ou uma curiosa gastronomia; ou receitas apaixonantes; ou um texto louco. Remate de Males São Paulo: Campinas, n. 33, 2013: 149-168.
  • JACKSON, Kenneth David. Entre o banquete e a devoração: a paulicéia e o texto louco. In: Wentzlaff-Eggbert, Harald (ed.). Naciendo el hombre nuevo. Fundir literatura, artes y vida como práctica de las vanguardias en el mundo ibérico Frankfurt am Main: Vervuert, 1999a: 267-276.
  • JACKSON, Kenneth David. Novas receitas da cozinha canibal: O manifesto antropófago nos anos 90. Nuevo Texto Crítico, año XII, n. 23/24, 1999b: 273-280.
  • KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado (Sculpture in the expanded field). Revista semestral do curso de especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, n. 1, v. 1, 1984.
  • PEIRCE, Charles Sanders. The collected papers of Charles Sanders Peirce [C. Hartshorne, CP Weiss Eds. Cambridge-MA: Harvard University Press, 1931-1935], v. VII-VIII [AW Burks Ed. same publisher, 1958]; v. I-VI. Charlottesville: Intelex Corporation (citado como CP, seguido de volume e parágrafo.), 1931-1935.
  • PEIRCE, Charles Sanders. Semiotics and significs: the correspondence between Charles S. Peirce and Victoria Lady Welby (ed.) C.S. Hardwick. Indiana University Press. (citado como SS, seguido da página.), 1977.
  • PLAZA, Julio. O livro como forma de arte (I) São Paulo: Arte em São Paulo, 1982a.
  • PLAZA, Julio. O livro como forma de arte (I) São Paulo: Arte em São Paulo, 1982b.
  • SCHWARTZ, Jorge. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: diário ou ficção? In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Globo, 2014: 37-58.
  • YOUNGBLOOD, Gene. Expanded cinema New York: Dutton Paperback, 1970.
  • 1
    Ver https://blogdoims.com.br/o-perfeito-cozinheiro-das-almas-deste-mundo-oswald-de-andrade/. Acesso em 15 de junho de 2023.
  • 2
    Artigo completo disponível em: <https://www.artforum.com/news/gene-youngblood-1942-2021-85439>. Acesso em 15 de junho de 2023.
  • 3
    O pseudônimo Miramar, de Oswald de Andrade, tem diversas variações: Vira-mar, M., Miramarido, Mirador, A Zul Mira Mar, Mimi Ramar, etc.
  • 4
    Monteiro Lobato é Conselheiro Acácio, Chico das moças, Lob, Clone, Tutu, Lambari, Cuscuz, Rowita, Constante leitor, Zé Catarro.
  • 5
    Deise, “musa art nouveau da garçonnière miramarina” também é “Miss Cíclone, Miss Tufão, Tufãozinho, Miss Terremoto” (CAMPOS, 1987, p. VXI).
  • Declaração de Financiamento
    Ana Luiza Fernandes agradece à FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) pela bolsa concedida através do programa de pós-doutorado nota 10 - PDR10, processo SEI E-26/205.643/2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023
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Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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