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Vozes em camadas: o arquipélago em movimento

Layered Voices: The Archipelago in Motion

Resumo

A formação cultural do continente latino-americano amplia, em todos os graus e variantes, a presença da voz, das oralidades e da natureza, combinadas ou não às inúmeras séries e gêneros escritos. É necessário desdobrar os três níveis de linguagem em suas interações, constitutivas dos processos culturais da América Latina e Caribe, que se alimentam dos crisóis ibero-ameríndio e afro-árabe. É o entrelaçamento das camadas que fundamenta um Barroco múltiplo de saída. Não se pode compreender a presença barroca no continente sem a reviravolta intercultural em que as oralidades se matizam, em meio à superabundância da mestiçagem, com as séries acústicas. A partir desse conglomerado de variantes marginais, desenha-se o que temos chamado de arquipélago em palimpsesto semovente, no qual as formas casuais das excessivas periferias não cabem dentro dos esquemas lógico-interpretativos lineares e causais da tradição e razão ocidentais, visto que, entre outros procedimentos, radicalizam as figuras da proliferação metonímica e do oxímoron.

Palavras-chave:
Barroco; vozes; América Latina; multiplicidade; conhecimento

Resumen

La formación cultural de Latinoamérica dilata, en todos los niveles y variantes, la presencia de la voz, de las oralidades y la naturaleza, mezcladas o no a las inúmeras series y géneros escritos. Es necesario desplegar los tres niveles de lenguaje, constitutivos de los procesos culturales en Latinoamérica y Caribe, en interacción, los cuales se alimentan de los mestizajes iberoamerindio y afroarábigo. Es el encadenamiento de las capas que fundamenta este Barroco múltiple desde un principio. No se puede comprender la presencia barroca en el continente sin la reversión intercultural en la cual las oralidades se matizan, en medio de la superabundancia del mestizaje, con las series acústicas. Desde esa acumulación de variantes marginales se diseña lo que hemos llamado de archipiélago en palimpsesto semoviente, lugar en el cual las formas casuales de las excesivas periferias no caben en los programas lógico-hermenéuticos lineales y causales de la tradición y razón occidentales, porque, junto a otros procesos, llevan al límite las figuras de la expansión metonímica y del oxímoron.

Palabras clave:
barroco; voces; Latinoamérica; multiplicidad; conocimiento

Abstract

The cultural formation of the Latin American continent amplifies, in all degrees and variants, the presence of voices, oral traditions and nature, whether combined with countless written series and genres or not. It is important to unfold the three levels of language in their interactions, constitutive of the cultural processes of Latin America and the Caribbean, which draw from the Ibero-Amerindian and Afro-Arabic crucibles. It is the interweaving of that layers that underpins a multiple Baroque style from the start. The Baroque presence in the continent cannot be understood without the intercultural turn in which oral traditions are nuanced, amidst the superabundance of mestizaje, with their acoustic series. From this conglomerate of marginal variants emerges what we have called a self-moving palimpsest archipelago, where the casual forms of the excessive peripheries do not fit within the linear and causal logical-interpretive schemes of Western tradition and reason, since, among other procedures, they radicalize the figures of metonymic proliferation and oxymoron.

Keywords:
baroque; voices; Latin America; multiplicity; knowledge

Vozes do Barroco

A formação cultural do continente latino-americano não pode deixar de ressaltar, em todos os graus e variantes, a presença da voz e das oralidades, combinadas ou não às inúmeras séries e gêneros escritos. É necessário desdobrar pelo menos três níveis de linguagem em suas interações, constitutivas, antes e após a chegada de Cabral e Colombo, dos processos criativos e culturais do Brasil, da América Latina e do Caribe, que se alimentam dos crisóis ibero-ameríndios e afro-árabes. É o entrelaçamento das três camadas, exigindo análises micro e macroestruturais, que fundamenta o que aqui chamaremos de um Barroco de partida, isto é, enxertado à e pela natureza, plural e intercomplementar, não determinado pela oposição ao clássico ou ao prolongamento de esquemas composicionais iluministas, visto que os insere na montagem do conjunto. Seja o nome epocal que se der, não se pode compreender a presença barroca no continente sem a reviravolta multiplicante e intercultural, interno-externa, para o alto e para baixo, em que os jogos da voz, luz e som se matizam dentro da superabundância das formas da mestiçagem com a natureza.

A partir desse conglomerado de variantes marginais desenha-se o que temos chamado de arquipélago mestiço em palimpsesto semovente, em que as formas casuais das excessivas periferias migrante-imigrantes não cabem - pois se situam num aquém, num alhures - dentro dos conhecidos esquemas lógico-interpretativos lineares e causais, sempre de plantão em busca de leis gerais, com todos os travestimentos de praxe, provenientes da tradição e razão ocidentalizantes.

A natureza, incrustada na cultura, seria como uma camada fundante. Os materiais botânicos nos ajudam e ensinam. Este Barroco de partida, que se configura ao modo de xaxim, trepadeira e arquipélago, fundamenta o que podemos chamar de uma poética do simultâneo inscrita nas séries da cultura. A forma do xaxim dá a matéria adligante (adligar-se: “fixar-se, por apêndices ou raízes, uma planta à outra”, conforme o dicionário Aurélio), que imbrica mesmo o que quer se desviar do mangue conexo e contínuo; a trepadeira fornece a sinuosidade helicoidal em espiral de filamentos e molas enroscantes; o arquipélago configura um certo conjunto móbil de grandes e pequenas entidades, sejam manguezais, ilhas ou plânctons, imersos/emersos, da mais variada extração, estrutura e consistência material, como pluralidades simultâneas exigindo múltiplas aptidões relacionais. Não podemos desde agora falar de um descentramento, ou do que seria excêntrico, visto que, justamente, a falta de um centro donde se partir ou guiar é centrífuga. “Essa espessura avassaladora do real” (Goddard, 2017GODDARD, Jean-Christophe. Brazuca negão e sebento. Prefácio e tradução de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: N-1 edições, 2017. , p. 58) começa com a densidade fônica de ritmos e ares pulmonares na passagem infinita e inumerável entre nomes e raízes, em que se articulam sem cessar as relações entre o mineral, o vegetal e o animal. Prévia fazedura e articulação antropofágica, misturança antes de haver gente. Enumeremos tais camadas sucintamente, num trajeto em vaivém dos enxertos das vozes da língua às da natureza.

As camadas em movimento: o excesso poliglota

A primeira camada se constitui do excesso de repertórios vocais ameríndio-luso-afro-arábigo-imigrantes, entrecruzados desde os tempos da Colônia, em contínuo e ininterrupto crisol mestiço. Este nível, por si só, dada a sua variação e multiplicidade, perturbaria a noção de identidade e a inteireza de um logos abstrato e racional, conteudista e platonizante, visto que a própria deriva abundante de significados impõe a presença dos significantes como corporeidade da língua. Exemplo: menino, garoto, moleque, infante, guri, piá, bacuri, curumim, etc. Isso se dá também dentro das mesmas variantes internas ao nheengatu (provenientes, como enxertos ornamentais da voz, das inúmeras combinatórias das famílias idiomáticas em estado de mescla permanente), que o dicionário e a memória, à saciedade, nos fornecem. A saber: uma “ave psitaciforme da família dos psitacídeos” (Aurélio) produz todas estas variantes corais, numa espécie de poética vocal de repertório expandido: chauã, chauá, jauá, acamatanga, acamutanga, acumutanga, camatanga, camutanga, cumatanga. Trata-se de um borbulhante burburinho de almoxarifados de poesia combinatória em estado dentro/fora de dicionário, de que poetas como Gregório de Matos, Juan del Valle y Caviedes e Sor Juana Inez de la Cruz se aproveitavam para estabelecer as fundações de uma poética barroca da paisagem. Uma bateria de vozes em bumerangue ou palíndromo na grafia que, quando pronunciadas, fazem emergir as placas tectônicas dos vozerios ocultos da paisagem sonora. As vozes formigando coisas como que saídas das fendas entre as letras. Ouçamos melhor com o Leminski (2012LEMINSKI, Paulo. Catatau. São Paulo: Iluminuras , 2012. p. 17) do Catatau, de 1975:

Aspirar estes fumos de ervas, encher os peitos nos hálitos deste mato, a essência, a cabeça quieta, ofício de ofídio. Cresce de salto o sol na árvore vhebehasu, que pode ser enviroçu, embiraçu, imbiroçu, aberaçu, aberraçu, inversu, inveraçu, inverossy, conforme as incertezas da fala destas plagas onde podres as palavras perdem sons, caindo em pedaços pelas bocas dos bugres, fala que fermenta. (...) Trazem bichos vivos na boca.

Poliglotismo e glossolalia desde sempre. Os exemplos poderiam vir também do quimbundo, do iorubá ou do banto: munganga, quizumba, macumba, quiabo, quitanda. Isto sem mencionar a grande contribuição de vocábulos proveniente dos idiomas ameríndios convizinhos, como o quíchua, o náuatle e quejandos; e mais todos aqueles, acaboclados, provenientes das ininterruptas levas (na verdade lavas de línguas) imigrantes. Todo um barroco frutal traz nomes em que fermentam canções e poemas.

Porém, atenção: não são os significados dos nomes que importam. As tonalidades rítmicas dessas interintralínguas é que contam, transmissoras dos “grandes movimientos animales” (Vallejo, 1978VALLEJO, César. El arte y la revolución. Barcelona: Laia, 1978., p. 79) e, “en las entrañas íntimas de la obra” (...), das “corrientes circulantes de carácter social y económico” (Vallejo, 1978VALLEJO, César. El arte y la revolución. Barcelona: Laia, 1978., p. 50-51). Já aqui estão presentes, sob forma de distribuição larval, em contínuo processo de morfose metamórfica, os elementos de composição e os procedimentos de construção, já constantes da fala ordinária, que serão usados na música popular, no cinema, na poesia etc.: diagramas gráfico-sonoros e visuais, aliterações e rimas em palíndromo, paronomásias (para dizer pouco). Isto não se reduz, de modo algum, a qualquer herança ancestral a ser mantida incólume e coagulada num princípio auroral em hipóstase, visto que são espécies de genes mítico-ancestrais da memória em movimento contínuo dentro das séries da cultura, da proliferação radical de contiguidades e do poliglotismo mestiço. Repare-se, na canção Zezé Sussuarana (de Heckel Tavares/Luiz Peixoto), a contaminação entre os elementos vocal-prosódicos e sonoro-tonais da fala popular, que irão desaguar na festa erótica em enumeração sinonímica crescente, com a oswaldiana (Andrade, 1978ANDRADE, Oswald de. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978., p. 5) “contribuição milionária de todos os erros”:

Faz três sumana
que na festa de Santana
o Zezé Sussuarana
me chamou pra conversar
(...)
Foi coisa feita,
foi mandinga, foi maleita,
que nunca mais indireita,
que nos botaro, é capaz...

Exemplo característico está em Juó Bananére, nascido Alexandre Machado, como bem mostra Fonseca (2001FONSECA, Cristina. Juó Bananére: o abuso em blague. São Paulo: Editora 34, 2001.), na algaravia macarrônica do seu La divina increnca, de 1915, em quem na garganta poética confluem, num pré-modernismo mordaz e álacre, prosódias ítalo-paulistanas caboclas e caipiras do ambiente citadino da crônica cotidiana, incrustadas pelas entonações italianizantes. As oralidades e as junturas da voz são levadas ao excesso pelo gume das locuções crítico-paródicas às figuras de projeção política e poética: “Ri Barbosa!”; ou então: “Che scuitá strella, né meia strella!”. Na esteira de Bananére estão, sempre dentro dos mecanismos expansivos da paródia e da mestiçagem, cada um a seu modo e época, Oswald de Andrade e Adoniram Barbosa.

Já aqui, também, a unidimensionalidade dos idiomas flexionais é deslocada e parodiada pelo caráter aglutinante do tupi, do quimbundo e de todas as colaborações migrante-imigrantes, de tal modo que a linearidade sequencial é desviada pela potência progressivo-regressiva, não digital, da performance rítmico-sonora. Nesse caso, as sonoridades da voz/ambiente/natureza têm valor poético-político, visto que dispersam os conteúdos lineares e rígidos com que todo sistema de poder homogeneíza para dominar, através da repetição conformadora do Mesmo, os descuidados ou ingênuos falantes. Vale demasiado e cabalmente para nós o que Lozano, citando Lotman, aponta como um rigoroso aumento da complexidade dos sistemas culturais “que nasceram como uma criollización”. Tudo adquire muito peso e complexidade relacional desde os seus inícios, tendo-se em mente que a mencionada criollización atua forte e profundamente não apenas no plano lexical, mas especial e conjuntamente nos planos sintático e prosódico. Além do que, arremata Lozano, a partir de Lotman e do plurilinguismo da materialidade mestiça:

Do mesmo modo, este enfoque permitiu uma reconsideração do conceito de cultura de massas, visto não já como um todo homogêneo, mas como um sistema complexo de intersecções e contaminação de diferentes culturas, de diferentes códigos de leitura dos modelos oferecidos pelos meios de comunicação de massas que produzem comportamentos e sistemas de opiniões (Lozano, 1979LOZANO, Jorge. Introducción a Lotman y la Escuela de Tartu. In: LOTMAN, Jurij M.; TARTU, Escuela de. Semiótica de la cultura. Tradução de Nievez Méndez. Madri: Cátedra , 1979. p. 09-37., p. 35-36).

As camadas em movimento: as fiorituras da voz

A segunda camada é formada pela abundância de palavras em que a junção onomatopaica e melismática é dominante com relação ao significado, tendo em vista a contribuição do nheengatu, do banto, do quimbundo, etc., que invade não só o dicionário, mas toda a prosódia e sintaxe. O conteúdo abstrato, linear e digital dos vocábulos é abalroado pelo significante vocal e rítmico-musical: as onomatopeias se aproximam sonoramente das coisas da paisagem e os melismas marchetam as sílabas com dobras e sinuosidades ornamentais (jururu, murundu, tiririca etc.). Isso mostra, junto à presença do corpo na voz, a relação entre as entranhas da fala (boca, garganta, pulmão, todo o sistema nervoso e muscular do aparelho de fonação) e o ambiente onde sujeitos e paisagem cultural se situam. Esses fonogramas embebidos de natureza/cultura não permitem a elevação logocêntrica do significado, isolado abstrata e digitalmente do significante, nem a separação entre signos e “referentes” estabelecida conforme a tradição ocidental de Platão a Saussure. Não se trata, desnecessário dizer, da exclusão dos conteúdos: mas de libertá-los da doxa das oposições pela variação da múltipla vozearia conexa mediadora e semovente. Como o fez Guimarães Rosa no título luso-tupi “Sagarana”, ou como nas expressões populares, recriadas em todas as épocas e lugares, tais como “sanduba” “traíra”, “piaba” e tantas outras em que a vinculação oral/corporal entre voz e vogal dissemina e confere potência rítmica ao conteúdo, que passa a ser acossado pela força vocal.

O processo pode ser levado às maiores consequências na poesia, como nos “fonemas negroides” de Nicolás Guillén em “Sóngoro Cosongo”, em que os fonogramas captam, via o arredondamento sinuoso e sensual das vogais, os requebros físicos da dança e canto do “son” cubano e do bongô afroarabigoantilhano que dão ritmo ao ambiente urbano. As oralidades, mesmo e apesar do escrito que as tenta conter e enquadrar na moldura da palavra (que teria a função de um pedestal separando a escultura do ambiente), não recobrem obedientes os dígitos dos vocábulos, mas desencadeiam ritmos e vozes noutras direções.

La Habana, con sus caderas
sonoras
y sus ojeras moradas
todas las horas.

A cidade toda requebra nos quadris felizes dessas vogais arredondadas no mar do Caribe, nesse impulso vocal/dançante das quebras rítmicas de dois versos heptassilábicos da tradição hispânica para a obrigatória ginga alternante dos versos acentuados na segunda e quarta sílabas dos segundo e quarto versos, num corte em cavalgamento que se aproveita do espaço em branco da página. Não se pode aqui tentar resolver pela interpretação essa potência afetivo-corporal que embute mutuamente, por um processo de transmutação químico-física que levanta e delineia ritmicamente o corpo do metro e da estrofe, as vogais cantantes/a cidade de Havana/o feminino/a geografia marinha/o son cubano/os bongôs, tons e ritmos. Não se pode falar aqui facilmente de separação entre signos e referentes.

Trata-se aí do que Zumthor chamou de “culturas em ritmo rápido”, em que há “um predomínio geral dos ritmos” (1982ZUMTHOR, Paul. Le discours de la poésie orale. Paris: Éditions du Seuil, 1982., p. 394-396) derivados da poesia oral e suas vocalidades/gestualidades multiplamente matizadas, sob forma de “agregados provisórios”, que dispersam a unidade de sentido clássica. O que importa agora é o nomadismo dos corpos. As dualidades conceptistas se espreguiçam, se percutem e se enovelam ao som do bongô. Paul Zumthor (1982ZUMTHOR, Paul. Le discours de la poésie orale. Paris: Éditions du Seuil, 1982., p. 516) consegue resumir muito bem tal convergência entre a cabeça e os pés:

As manifestações até aqui repertoriadas de uma poesia destinada à transmissão oral (mesmo quando repousam sobre um texto escrito) implicam uma primazia do ritmo sobre o sentido, da ação sobre a representação, da atitude sobre o conceito: tendem, em última instância, à identificação da poesia e da dança.

As camadas em movimento: a paisagem na voz

A terceira camada refere-se à potência acústica na natureza/cultura que se encadeia, se incrusta e se enxerta nas linguagens com todos os rumores da paisagem cultural. Esta capacidade nunca é apenas geral ou panorâmica, mas tem de ver com os modos específicos a partir dos quais os códigos universais são trabalhados, miudamente, na relação com a paisagem e com os objetos de um determinado ambiente, e estes na relação com suas séries e arredores da cultura. Visto que “as línguas têm uma sensibilidade em relação à experiência acústica do ambiente” (Cavarero, 2011CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 177), isso se dá em muito maior grau naquelas em que o elemento onomatopaico e melismático, que represa a natureza, predomina sobre o flexional/digital. A mesma Adriana Cavarero, citando o poeta criollo-caribenho Edward Kamau Brathwaite, mostra como se interligam as camadas aqui mencionadas: “Esse fenômeno, observa Brathwaite, não diz respeito apenas à contaminação dinâmica de línguas diversas, mas também ao problema que as vincula aos diferentes universos sonoros do ambiente natural em que nascem e se desenvolvem” (Cavarero, 2011CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 177).

A exuberância de tal magnífico problema reside em que os signos são, digamos, nessas circunstâncias culturais, de um lado forçados para baixo, de outro a própria natureza invade os signos com suas espirais em trepadeira; o logos se dessemantiza e as linguagens adquirem um vasto âmbito de práticas e ressonâncias rítmicas e prosódicas do escutar e dizer-- aquém dos, apesar dos e em conjunto com os signos. É premente reforçar aqui que tais camadas, pela superabundância de suas mesclas, contestam a leitura sujeito-predicado, causal-linear, portanto, discreta dos signos - tendo em vista a invasão massiva dos traços ditos supra-segmentais e prosódico-entonacionais. Ressaltam, portanto, enfaticamente, uma materialidade produtiva “heterogênea a todo representável” (Ducrot; Todorov, 1988DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988., p. 323), que arranca, em estado de garganta, de antes do signo, via o vozerio de matos, ventos, bairros (aí onde se formam os mitos), para incrustar-se nas falas/escrituras - arquipélago em palimpsesto gozoso a respeito do qual não cabe a busca de um sentido lógico-unificador. Nesse lugar barroquizante, no qual a permanência se alimenta do movimento impermanente, de armazenamento ocasional e mestiço-periférico, aguça-se o curto-circuito entre práticas criativas nas linguagens e na cultura, de um lado, e as imposições das políticas sociais da história, de outro. Nas primeiras o gozo movente da voz, nas últimas, interpretações lógico-retilíneas.

Jerusa: as inscrições das oralidades

Um dos autores que, entre nós, melhor expõe as camadas moleculares da cultura expressas dos processos múltiplos e convergentes de palimpsestos textuais (que podem sempre vir a rebrotar aqui e acolá, nos desvios da história, em novas conjunções, se bem escavados e raspados), é Jerusa Pires Ferreira. No seu livro exemplar sobre o “Tereza Batista”, de Jorge Amado (Ferreira, 2006FERREIRA, Jerusa Pires. Tereza Batista - texto e imagem: Um livro de exemplos. Salvador: Casa de Palavras, 2006. , p. 61-62), por exemplo, diz:

Uma coisa se apoia na outra, independendo de prioridades. Fundamenta-se (...), no autor baiano, e de longa data, a tese de uma narrativa praticada e transmitida não apenas literária mas oralmente, e que, segundo Pabst, é de origem hispano-portuguesa, a teoria do narrar com “buena gracia”. Esta é uma tendência que se confirma no romance de Jorge Amado. Tratando-se de um complexo narrativo que reúne características diversas, do cordel ao folhetim, ao romance sentimental, tendo em vista determinados aspectos da literatura de massas, é aí que compete meditar e observar até onde o autor se entrega deliberadamente ao seu projeto, ou se deixa conduzir instintivamente pela força de uma tradição que se associa aos impulsos mais imediatos do contador de estórias.

Importante aqui sublinhar que as várias séries mencionadas entram em um rodízio de participação e interferência em alto grau de traduzibilidade entre os gêneros orais e escritos, que não cessam de inscrever-se uns nos outros. No dizer da própria Jerusa, “uma narrativa multímoda mas convergente, [...] ao empreender a intromissão do maximário no cerco dos episódios, ou seja, na alternância entre as narrativas e suas contranarrativas” (Ferreira, 2006FERREIRA, Jerusa Pires. Tereza Batista - texto e imagem: Um livro de exemplos. Salvador: Casa de Palavras, 2006. , p. 64-65).

Digno de nota aqui o aproveitamento pertinente que a autora faz do McLuhan de A Galáxia de Gutemberg e das análises rosianas de Luís Costa Lima, para constatar a manutenção e vigor dos provérbios na América Latina como vertentes das oralidades da sabedoria arcaico-popular prenhe de elementos míticos e cósmicos ainda isentos da instrumentação tecnológica - risco recorrente sempre que esta se descola perigosamente dos processos da cultura (Ferreira, 2006FERREIRA, Jerusa Pires. Tereza Batista - texto e imagem: Um livro de exemplos. Salvador: Casa de Palavras, 2006. , p. 18-22). As falas com tonalidade aforismática parecem brotar diretamente de um ambiente em que as forças da natureza e das linguagens avultam em suas relações e são traduzidas vocalmente, porém com a necessária buena gracia. Tal vezo físico-social só se mostra pela intensidade de relação com o ambiente e sua paisagem sonora, que, ponhamos, entra pela garganta adentro, ao mesmo tempo que as palavras.

As periferias como formas do imprevisível

Cabe agora, portanto, uma pequena e fundante digressão, a partir das posições dos “formalistas” e semioticistas russos Iuri Tinianov e Iuri Lotman. O segundo, em Sobre el papel de los factores casuales en la historia de la cultura (Lotman, 1996LOTMAN, Iuri. Sobre el papel de los factores casuales en la historia de la cultura. In: NAVARRO, Desiderio (org.). La Semiosfera I. Madri: Cátedra, 1996. p. 157-163., p. 237) cita o primeiro, num trecho básico para o entendimento dos movimentos de previsibilidade/imprevisibilidade dos textos e da cultura: “Na época da decomposição deste ou daquele gênero, este se traslada do centro à periferia, e no seu lugar, a partir das miudezas da literatura, dos seus territórios incultos e baixios, emerge no centro um novo fenômeno”.

Tinianov já mostra o que iria aprofundar em outros ensaios: as séries culturais mais abandonadas são as mais prolíficas para a busca dos princípios construtivos que deslocam o sistema em cada época e para as análises dos procedimentos que escapam de uma noção linear-evolutiva da história. O pesquisador russo estava montando um quadro em vaivém atemporal que Lotman (1996LOTMAN, Iuri. Sobre el papel de los factores casuales en la historia de la cultura. In: NAVARRO, Desiderio (org.). La Semiosfera I. Madri: Cátedra, 1996. p. 157-163., p. 241) viria a desenvolver mais tarde: as periferias da cultura, pelo seu especial dinamismo, acolhem melhor os arredores casuais, os ruídos e as precariedades constitutivas dos lugares e situações que fermentam mesclas intertextuais:

[...] as esferas da cultura em que os fatores casuais desempenham um papel mais considerável são, ao mesmo tempo, os setores mais dinâmicos da mesma. É totalmente evidente que o terreno do surgimento ativo de textos casuais está situado na periferia, nos gêneros marginais, “nos gêneros mais jovens” e nos domínios estruturais fronteiriços. Aqui precisamente têm lugar os mais ativos processos geradores de sentido e de estruturas.

Tratando-se, pelo menos, da América Latina, Caribe e da África meridional, a permanência ativa das culturas e ritmos das oralidades mestiças, em vários graus de composição com séries próximas e distantes (Tinianov, 1976TINIANOV, Iuri. Da evolução literária. In: TODOROV, Tzvetan (org.) Prefácio: Roman Jakobson. São Paulo: UNESP, 1976. p. 137-156.), é inegável e crucial. Ocorre, na ligação entre, de um lado, voz e natureza e, de outro, o vasto território polilingue, uma alteração dos códigos, cujos vocemas (unidades significantes da voz) assimilam as culturas, paisagens e ambiente dentro do próprio ato vivo da fonação. (Ao cantar uma canção como “Jamburana”, Dona Onete capta nas cordas vocais e no ritmo corporal o balanço coletivo das águas de mares e rios do Pará, sem precisar repetir “que respeita a Amazônia” - lugar-comum de exposição publicitária que desdiz, pela agonia linear da própria locução, a afirmação automatizada previsível. Ao entrelaçar nas suas entonações rascantes os jargões e refrões de vozes luso-ítalo-caipiras dos ambientes paulistanos, Adoniran Barbosa repõe, na música popular, os “vanguardismos” do Juó Bananére de “La divina increnca” (1915) ao Oswald de Andrade da “contribuição milionária de todos os erros”.) Rompe-se aí também a sequencialidade que cimenta, na sua base, os totalitarismos cotidianos, pela reverência implícita aos idiomas flexionais. Conforme já tentei formular em outro lugar:

Num livro oportunamente traduzido por Jerusa, “Poética do traduzir”, Meschonnic (2010: 58) vale-se do viajante, e também pesquisador amazônico, irmão de Alexander, Wilhelm: “Na medida em que a poética se funda como uma crítica do signo, esta crítica começa saindo do modelo indo-europeu das línguas, tal com o faz Wilhelm von Humboldt” (ibid., 2010: 58). Portanto é preciso que nos liberemos de um pensamento do signo vinculado à separação e descontinuidade sequencial das línguas flexionais, “característica da procura do contínuo visto a partir da norma e do hábito do descontínuo” (ibid., p.59), o que, diga-se de passagem, reproduz o comum equívoco de buscar o interdisciplinar a partir de “disciplinas” já pretensamente constituídas desde a República francesa e desvinculadas de nossa paisagem cultural.

A presença ativa dos dinamismos de periferia, que carreiam cargas lúdico-rítmicas e afetivo-políticas de imprevisibilidade, provenientes de regiões abandonadas e em ebulição na cultura/natureza, para dentro dos sistemas graduais e previsíveis, e, portanto, remontando, em interações inauditas, textos, séries e sistemas, são fundantes e intrínsecas, em toda parte, na criação de textos hiper complexos no continente e nas Antilhas: vejam-se os múltiplos usos e acentos das oralidades em César Vallejo e Guimarães Rosa, por exemplo. Acresça-se o fato de que as Américas Latinas são periferias de periferias, margens de margens, dobras de dobras, posto que Portugal e Espanha (esta última ainda anexou Portugal e, portanto, também colonizou o Brasil, durante sessenta anos) eram consideradas periferias menores da Europa central: o que veio a exagerar a potência ativa de composição de relações a partir das vozes sonoro-solares em ramificação espiralada.

As oralidades como permanência

Daí que as Américas Latinas, o Caribe e a África, onde se desdobraram sociedades de oralidade mista com a escritura, a saber, onde as escrituras adquirem e entranham in vivo as marcas do oral em inúmeros tons e modulações (Zumthor, 1979ZUMTHOR, Paul. Pour une poétique de la voix. Paris: Éditions du Seuil , 1979.), signifiquem um nó górdio e um deslocamento em face de afirmações tais quais a seguinte de Lotman (1999LOTMAN, Yuri. El momento de la imprevisibilidad. In: LOTMAN, Yuri. Cultura y explosión. Prólogo: Jorge Lozano. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 170-180., p. 179), no texto El momento de la imprevisibilidad:

Nas sociedades de cultura oral se conservavam e transmitiam, de geração a geração, imensos estratos de informação que se apoiavam tanto sobre uma refinada cultura coletiva, como sobre cada “gen” da memória. A escritura tornou supérflua uma parte considerável de tal cultura. De maneira particular ela se manifestou na cultura epistolar-diarística. Já em tempos relativamente recentes, o progresso das formas orais de comunicação - o telefone e o rádio - provocou a decadência da cultura epistolar. Assim como a dinâmica na difusão dos periódicos e do rádio simplifica e conduz à decadência de campos completos da cultura tradicional.

Guimarães Rosa (2021LORENZ, Günther. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1983 p. 62-97.), em importante entrevista a seu tradutor alemão Günter Lorenz, em Gênova, janeiro de 1965, mostra como entre nós, ao contrário, a escritura pode aprofundar as interações entre as narrativas orais e o gesto gráfico da escrita, já impregnado este da vozearia (bichos, florestas, águas, gentes) circundante:

Veja você, Lorenz, nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que correm por nossas veias e penetram em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. (...) Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia.

Ora, a permanência ativa das culturas orais na América Ibérica, nas Antilhas e na África (com todas as inúmeras diferenças a serem minuciosamente mapeadas sob tais designações fáceis e generalizantes), em junção com os excessos periféricos expostos a casualidades em alto grau de imprevisibilidade, aciona e põe em andamento novos modos lúdico-festivos, não-lineares e assimétricos, de comportamento criativo diante da vida e da morte - refratários, no seu cerne, a uma concepção alfabético-cronológica das linguagens e do tempo e aos modelos indo-europeus, descontínuos, sequenciais e não aglutinantes, das línguas. Por isso que Mignolo (1997MIGNOLO, Walter. Escribir la oralidad: la obra de Juan Rulfo en el contexto de las literaturas del “tercer mundo”. In: RULFO, Juan. Toda la obra. Madri: ALLCA XX / Scipione Cultural, 1997. p. 531-548., p. 532), ao comparar o nigeriano Amos Tutuola de The Palm-Wine Drinkard (1952) com o mexicano Juan Rulfo de Pedro Páramo (1955), pode certeiramente fazer esta aproximação decisiva: “El efecto de extrañeza en la primera lectura de la obra de los dos autores, no se explicaría tanto por una estrategia literaria como por el encuentro de la lógica causal y lineal del pensamiento escriturario-alfabético con la lógica no-causal y aleatoria de culturas primariamente orales”.

Decisivo encontro: a lógica não-causal, ao invés de mutilar-se buscando soluções terminológico-conteudistas da lógica mental e formal da retórica colonizante, tornando-se, portanto, cópia amortecida desta última, incorpora e desmembra o causal dentro do manancial autóctone, recriando outras lógicas noutros lugares, em que os elementos antes colonizantes passam a partícipes ativos não excluídos da múltipla pertença. A descolonização, já aqui auto colonização selvagem e alegre-mortal, dado que o riso alegre conta com a sombra da morte para existir legitimamente (Rosset, 1989ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989., p. 7-9), é um encadeamento de inúmeras alteridades em estado de marchetaria, em que vigora a possível lógica de muitos terceiros incluídos, através das vozes da natureza em espiral e trepadeira. Conforme muito bem reforçou Haroldo de Campos, via o Catatau de Leminski: “essa desmesura não geometrizável das formas vegetais e animais (...) Mestiçagem. Miscigenação de corpos e línguas” (Campos, 2015CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskíada barrocodélica. In: LEMINSKI, Paulo. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2015. p. 208-213., p. 236-237).

Vallejo Barroco

Tudo isso é levado a seu ápice nos hiper barroquismos que César Vallejo entalha, em blocos compactos, no livro Trilce (1922) e, sem dúvida, em sua tradução laboratorial expandida, os contos de Escalas Melografiadas (1923) essa espécie maior de almoxarifado trílcico. Variados outros textos do poeta peruano, de artigos a sueltos, dão a medida do campo vibrátil dessa poética intrigante (essa estranheza sem saída) de situações, ambientes e sensações de toda ordem, em que formigam jargões de alegria oximoresca em ziguezague e tauxia - o modo como os códigos poéticos interligam por compressão arquivos de conhecimento animal, vegetal e mineral da região andina, já imersos foneticamente nos tons e cores matizadíssimos sob o sol incaico. Aproveito uma expressão de Serguilha (2022SERGUILHA, Luís. Obra Poética I. Recife: Cubsac; Curitiba: Kotter, 2022., p. 615), “O animal-poema advém de uma invasão vibratória de arquivos disjuntivos”, que Vallejo dobra e prensa em incrustação conjuntiva. Por isso, dos seus oxímorons geologicamente espremidos podem, por extrusão, de suas fendas, espocar lavas orgásticas, quais aparas ou limalhas de fonemas em espiral: “Oh, escándalo de miel de los crepúsculos! / Oh estruendo mudo. // Odumodneurtse!”(T. XIII). Trata-se de uma geotectônica do idioma, que passa a ser físsil.

Daí ser bastante emblemático que tenha nomeado Cuneiformes aos primeiros relatos de Escalas, indicando a pista de um procedimento de composição em que as letras, palavras e frases foram embutidas, entranhadas e, ponhamos, arrebitadas, a dedo, uma a uma, com cunha, cunhas melografiadas. Esse processo molecular de tradução permite que o poliglotismo plurilingue passe a americanismo universalizante. Assim: “... tintóreos espejuelos de los jueces”, do miniconto Muro Noroeste (1980VALLEJO, César. Escalas melografiadas; Fabla salvaje; Hacia el reino de los sciris; Cuentos cortos. Barcelona: Laia , 1980., p. 15), é um decassílabo que poderia estar encravado em algum verso de Trilce. Trata-se de um continuum interminável: soletre-se “Yo la encontré al viento el velo lila (…)” (Vallejo, 1980VALLEJO, César. Escalas melografiadas; Fabla salvaje; Hacia el reino de los sciris; Cuentos cortos. Barcelona: Laia , 1980., p. 70), de Mirtho, e reencontraremos palatalmente, em sacudidelas acentuais de dança, muitos dos versos de Trilce.

Isso se dá seguidamente. Já em Escalas Melografiadas, na desmedida atenção aos mínimos elementos silábico-tonais do conto Liberación: “Las notas se cruzan, se iteran, patalean, chirrían, vuelven a iterarse, destrozan tímidos biseles” (Vallejo, 1980VALLEJO, César. Escalas melografiadas; Fabla salvaje; Hacia el reino de los sciris; Cuentos cortos. Barcelona: Laia , 1980., p. 44). O processo se renova na análise da fala de personagens, como em Los Caynas: “Luís Urquizo habla y se arrebata (...). Trepida; guillotina sílabas, suelda y enciende adjetivos; hace de jinete, depone algunas fintas; conifica em álgidas interjecciones las más anchas sugerencias de su voz, gesticula, iza el brazo, ríe (…)” (Vallejo, 1980VALLEJO, César. Escalas melografiadas; Fabla salvaje; Hacia el reino de los sciris; Cuentos cortos. Barcelona: Laia , 1980., p. 59-60). Dissecação de palavras e truncamentos oral-silábicos encadeiam-se aos surtos frasais de um plurilinguismo estropiado, elevando ao grau máximo aquilo que Tinianov chamou, pela compacidade e dinamismo, de “uma superabundância de energia métrica” (1975TINIANOV, Iuri. O problema da linguagem poética II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975., p. 40).

Por isso que Vallejo busca, rigorosamente, com sua “caprichosa jerga políglota” (...), os “contagios elocutivos” (...), certa “simpatía semántica” (...) e “una suerte de vagos materiales léxicos” (1973VALLEJO, César. Contra el secreto profesional. 1. ed. Lima: Mosca Azul, 1973., p. 53-58). O Cholo se dedica a cinzelar, no seu laboratório físico-alquímico de “descomposición o vivisección del proceso de creación de un poema” (Vallejo, 1973VALLEJO, César. Contra el secreto profesional. 1. ed. Lima: Mosca Azul, 1973., p. 97), como numa acupuntura neurovocal, as regiões silábicas que redesenham e agitam os órgãos da fonação, trazendo à tona vocemas e pictogramas abandonados ou desconhecidos, de antes dos signos, falas da natureza independentes de sujeitos encravadas em fonemas. Nos 77 poemas do livro Trilce, a luminosa heteroglossia mestiça esculpe, para gáudio de uma escansão trágico-contente (T. I: “el guano, la simple calabrina tesórea”), com relevo cenográfico e teatralizante, essa palavra-coisa como matéria bruta com suas comissuras primordiais e como torrente musical, em miniaturas larvares, dessa condição vegetal e animal, sacolejante e múltipla, do amante coração. Por exemplo, em T. V:

Grupo dicotiledón. Oberturan
desde él petreles, propensiones de trinidad,
finales que comienzan, ohs de ayes
creyérase avaloriados de heterogeneidad.
Grupo de los dos cotiledones!
(…)
Ah grupo bicardíaco.

Essa algazarra de matérias-primas, aves, plantas e vocalidades num recitativo de pregões e estribilhos como de feiras livres, em expansão e excesso oximorônicos, com seus avelórios variadíssimos (contas de miçanga sonora incrustadas), dentro de um batimento rítmico-numérico em rodízio insolúvel, dão a medida da conjuntura afetivo-política que as composições mestiço-barrocas do continente constituem e exportam para o mundo. O oxímoron aqui não é só uma figura de linguagem: ele se constitui como genes relacionais da cultura e da natureza.

Referências

  • ANDRADE, Oswald de. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
  • CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskíada barrocodélica. In: LEMINSKI, Paulo. Catatau São Paulo: Iluminuras, 2015. p. 208-213.
  • CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem São Paulo: Perspectiva, 1988.
  • GODDARD, Jean-Christophe. Brazuca negão e sebento Prefácio e tradução de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: N-1 edições, 2017.
  • FERREIRA, Jerusa Pires. Tereza Batista - texto e imagem: Um livro de exemplos. Salvador: Casa de Palavras, 2006.
  • FONSECA, Cristina. Juó Bananére: o abuso em blague. São Paulo: Editora 34, 2001.
  • LEMINSKI, Paulo. Catatau São Paulo: Iluminuras , 2012.
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  • LOTMAN, Iuri. Sobre el papel de los factores casuales en la historia de la cultura. In: NAVARRO, Desiderio (org.). La Semiosfera I Madri: Cátedra, 1996. p. 157-163.
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  • LOZANO, Jorge. Introducción a Lotman y la Escuela de Tartu. In: LOTMAN, Jurij M.; TARTU, Escuela de. Semiótica de la cultura Tradução de Nievez Méndez. Madri: Cátedra , 1979. p. 09-37.
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  • ROSSET, Clément. Lógica do pior Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
  • SERGUILHA, Luís. Obra Poética I. Recife: Cubsac; Curitiba: Kotter, 2022.
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  • VALLEJO, César. Contra el secreto profesional 1. ed. Lima: Mosca Azul, 1973.
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  • VALLEJO, César. Escalas melografiadas; Fabla salvaje; Hacia el reino de los sciris; Cuentos cortos Barcelona: Laia , 1980.
  • ZUMTHOR, Paul. Le discours de la poésie orale Paris: Éditions du Seuil, 1982.
  • ZUMTHOR, Paul. Pour une poétique de la voix Paris: Éditions du Seuil , 1979.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2023
  • Aceito
    20 Fev 2024
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