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Do animal que fui ao que um dia serei: diálogos com El animal sobre la piedra, de Daniela Tarazona

From the Animal I Was to the Animal One Day I Will Be: Dialogues with El animal sobre la piedra by Daniela Tarazona

Resumo

A narrativa de uma jovem mulher que, após experimentar dolorosas perdas em sua família, parte em uma viagem rumo ao desconhecido e lá passa a viver uma estranha mutação, vindo a se transformar em réptil, é o assunto do romance El animal sobre la piedra, de Daniela Tarazona, publicado originalmente em 2008. A metamorfose da protagonista provoca a discussão sobre monstruosidade e normalidade, cisão que marca a nossa cultura ocidental e que também é objeto das reflexões de Michel Foucault em Os anormais. O “monstro” constitui, para Foucault, a primeira das “figuras” ou “círculos” enquadrados no conceito de “anormais”, ideia que ganha uma configuração mais precisa no século XIX. Além de Foucault, interessam para a leitura proposta os conceitos de rostificação e de corpo vivo, desenvolvidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari, e de metamorfose, trabalhados por Emanuelle Coccia e Caroline Bynum. Para Emanuelle Coccia, a metamorfose é um fenômeno biológico que abarca os antecedentes tanto do humano como do não-humano. O corpo humano, em seu processo histórico, já foi o de um primata, e este, por sua vez, também viveu outras formas de vida anteriores. Desse modo, o presente estudo procura desarticular a oposição construída entre humanos e animais percebendo como a animalidade sempre constituiu uma tomada negativa no âmbito do antropoceno.

Palavras-chave:
monstro; normalidade; metamorfose; Estudos Críticos Animais; prosa contemporânea latino-americana

Abstract:

The narrative of a young woman who, after experiencing painful losses in her family, embarks on a journey into the unknown, where she undergoes a strange mutation, ultimately transforming into a reptile, is the subject of the novel El animal sobre la Piedra by Daniela Tarazona, originally published in 2008. The protagonist’s metamorphosis sparks a discussion about monstrosity and normality, a split that marks our Western culture and is also the object of Michel Foucault’s reflections in Abnormal. The "monster" is, for Foucault, the first of the "figures" or "circles" framed within the concept of "abnormality", an idea that gained a more precise configuration in the nineteenth century. In addition to Foucault, the concepts of facialization and living body, developed by Gilles Deleuze and Félix Guattari, and of metamorphosis, discussed by Emanuelle Coccia and Caroline Bynum, are of interest for the proposed reading. For Emanuelle Coccia, metamorphosis is a biological phenomenon that encompasses the antecedents of both the human and the non-human. The human body, in its historical process, was once that of a primate and this, in turn, also lived other previous life forms. Thus, the present study seeks to disarticulate the opposition constructed between humans and animals, perceiving how animality has always been a negative take on the Antropocene.

Keywords:
monster; normality; metamorphosis; Animal Critical Studies; Latin American contemporary prose

Resumen

La narrativa de una joven mujer que, después de experimentar dolorosas pérdidas en su familia, parte en un viaje hacia lo desconocido y allí pasa a vivir una extraña mutación, transformándose en reptil, es el asunto de la novela El animal sobre la Piedra, de Daniela Tarazona, publicado originalmente en 2008. La metamorfosis de la protagonista produce la discusión sobre la monstruosidad y la normalidad, escisión que marca nuestra cultura occidental y que también es objeto de las reflexiones de Michel Foucault en Los anormales. El "monstruo" constituye, para Foucault, la primera de las "figuras" o "círculos" enmarcados en el concepto de "anormales", idea que gana una configuración más precisa en el siglo XIX. Además de Foucault, interesan para la lectura propuesta los conceptos de rostificación y de cuerpo vivo, desarrollados por Gilles Deleuze y Félix Guattari, y de metamorfosis, trabajados por Emanuelle Coccia y Caroline Bynum. Para Emanuelle Coccia, la metamorfosis es un fenómeno biológico que cubre los antecedentes tanto del humano como del no humano. El cuerpo humano, en su proceso histórico, ya fue el de un primate y éste, a su vez, también vivió otras formas de vida anteriores. De ese modo, el presente estudio busca desarticular la oposición construida entre humanos y animales percibiendo como la animalidad siempre tuvo una inflexión negativa en el ámbito del Antropoceno.

Palabras clave:
monstruo; normalidad; metamorfosis; Estudios Críticos Animales; Prosa contemporánea latinoamericana

O “monstro” constitui, para Foucault, a primeira das “figuras” ou “círculos” enquadrados no conceito de “anormais”, ideia que ganha uma configuração mais precisa no século XIX, de acordo com o curso oferecido pelo teórico francês, entre os anos de 1974 e 1975, no Collège de France e reunidos com esse título (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.).

O “monstro”, ou o “monstro humano”, se articula no nível jurídico, “pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 69). Melhor dizendo, o seu domínio é o jurídico-biológico, visto que sua presença física desafia as categorias pré-fixadas que separam o homem do animal, por exemplo, ou o homem da mulher, no caso dos hermafroditas, ou a vida da morte. “Ele é o limite, o ponto de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção que só se encontra em casos extremos, precisamente. Digamos que o monstro é o que combina o impossível com o proibido.” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 70).

Diferentemente do monstro humano, com uma longa tradição anterior, o “indivíduo a ser corrigido” surge no século XVIII e se caracteriza como alguém à margem das instituições regulares. “O indivíduo a ser corrigido vai aparecer nesse jogo, nesse conflito, nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois, a escola, a oficina, a rua, o bairro, a paróquia, a igreja, a polícia etc.” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 72). Seu aparecimento é contemporâneo à instauração das técnicas de disciplina nos séculos XVII e XVIII e a profusão de instituições corretivas está ligada a esse fenômeno, como aquelas destinadas a “cegos”, “surdo-mudos”, “imbecis”, “retardados”, “nervosos”, “desequilibrados” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 416). Paradoxalmente, o indivíduo a ser corrigido é incorrigível. Fracassam com ele todas as técnicas, todos os procedimentos, todos os investimentos educativos.

O terceiro círculo é composto pela figura do onanista, que surge, em sua formulação, no final do século XVIII e está relacionado às novas formas de organização familiar. A cruzada contra a masturbação “coloca a sexualidade, ou pelo menos o uso sexual do corpo, na origem de uma série indefinida de distúrbios físicos que podem fazer sentir seus efeitos sob todas as formas e em todas as idades da vida” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 417).

Ainda no curso do século XVIII, observa-se a centralidade da figura do monstro. “O monstro é que é o problema, o monstro é que interroga tanto o sistema médico como o sistema judiciário.” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 78). O saber médico e judiciário voltam-se para os grandes crimes monstruosos, tentando identificar a anomalia de seus protagonistas. Depois, a ela sucede a figura mais discreta e modesta do masturbador ou do desviante sexual. “É ela que, no fim do século XIX, encobrirá as outras figuras e, no fim das contas, é ela que deterá o essencial dos problemas que giram em torno da anomalia.” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 78).

Para o presente estudo, interessa-nos particularmente a primeira figura, ou seja, a do monstro. El animal sobre la piedra, romance de Daniela Tarazona publicado em 2008, narra o percurso de uma jovem mulher marcada pela morte precoce e trágica da única irmã e, mais recentemente, pela perda da mãe. Desorientada, decide embarcar numa viagem sem bilhete de volta para um país, aparentemente, tropical e lá inicia um estranho processo de metamorfose que a levará à forma aproximada de um réptil.

O animal que fomos, somos e ainda seremos

Para o Direito Romano, que primeiramente tentou enquadrar a figura do monstro, havia duas categorias: uma com base na deformidade, no defeito, na enfermidade, a quem chamavam portentum ou ostentum, e o monstro propriamente dito. Segundo Foucault, o monstro que domina a tradição medieval até o século XVIII é um misto entre esses dois modelos:

É o misto de dois reinos, o reino animal e o reino humano: o homem com cabeça de boi, o homem com pés de ave - monstros. É a mistura de duas espécies, é o misto de duas espécies: o porco com cabeça de carneiro é um monstro. É o misto de dois indivíduos: o que tem duas cabeças e um corpo, o que tem dois corpos e uma cabeça é um monstro. É o misto de dois sexos: quem é ao mesmo tempo homem e mulher é um monstro. É um misto de vida e de morte: o feto que vem à luz com uma morfologia tal que não pode viver, mas que apesar dos pesares consegue sobreviver alguns minutos, ou alguns dias, é um monstro. Enfim, é um misto de formas: quem não tem braços nem pernas, como uma cobra, é um monstro. Transgressão, por conseguinte, dos limites naturais, transgressão das classificações, transgressão do quadro, transgressão da lei como quadro: é disso de fato que se trata, na monstruosidade. (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 79).

A monstruosidade, pressentida pela narradora desde sempre e à qual já estaria sujeita a linhagem materna de sua família se manifesta nela quando são rompidas as expectativas e demandas diante de seu futuro. “Minha irmã começava a se converter em outra coisa e quis evitá-lo.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 78, tradução nossa), ou “Minha mãe ou minha irmã apresentaram os mesmos sintomas. Sou daquela estirpe, embora tenha conseguido a fuga. Estou viva. Alcançarei a consagração através de meus atos.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 120, tradução nossa).1 1 “Mi hermana empezaba a convertirse en otra cosa y quiso evitarlo” (Tarazona, 2019, p. 78), ou “Mi madre y mi hermana presentaron los mismos sintomas. Soy de aquella estirpe, aunque he logrado la fuga. Estoy viva. Alcanzaré la consagración a través de mis actos.” (Tarazona, 2019, p. 120). Procurando fugir à melancolia que domina seus dias com a lembrança da mãe, recentemente falecida, e da irmã, morta ainda jovem provavelmente devido a distúrbios mentais, a protagonista decide partir com destino incerto em direção a um lugarejo junto ao mar. “A saída não é feita de pensamentos articulados, é o desejo em estado puro: correr como um animal perseguido.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 12, tradução nossa).2 2 “La salida no está hecha de pensamentos articulados, es el deseo en estado puro: correr como um animal perseguido.” (Tarazona, 2019, p. 12).

Antes disso, contudo, tem lugar uma anunciação, que, de forma paródica, inverte o episódio bíblico da Virgem Maria. Não um anjo, mas um gato cinza entra em seu quarto durante a madrugada e urina embaixo de sua cama. “Entrou enquanto arrumava as coisas e me olhou como se me conhecesse. Gritei-lhe que saísse e o coração me pulou dentro do peito. A sua presença obrigou-me a deixar o quarto. Observei-o desde a porta, estava sereno embora eu tremia.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 11, tradução nossa).3 3 “Entró mientras empacaba y me miró como si me conociese. Le grité que saliera y el corazón me brincó dentro del pecho. Su presencia me obligó a dejar el cuarto. Lo observé desde la puerta, estaba sereno aunque yo temblaba.” (Tarazona, 2019, p. 11).

A projeção do animal que ela vem a ser já se dá no sonho que preenche sua última noite antes da partida. “[...] no sonho me arrastava entre as varas, as folhas e o lodo do solo. O mais enigmático era que meu corpo se movia com mais rapidez do que a acostumada, ou bem, o ritmo de meus movimentos era diferente do comum.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 26, tradução nossa).4 4 “[...] en el sueño me arrastraba entre las varas, las hojas y el lodo del suelo. Lo más enigmático era que mi cuerpo se movía con mayor rapidez que la acostumbrada, o bien, el ritmo de mis movimentos era distinto al común.” (Tarazona, 2019, p. 26). Também sente que suas articulações estão mais flexíveis, a indolência durante o dia, maior, os olhos aumentados de tamanho. Características que, segundo ela, já anunciam o chamado do universo animal, enquanto um espaço amigável, que a invade (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 25 e p. 28).

Após uma longa viagem de avião e de outro trecho de trem, já acomodada em um hostal, delega aos instintos seus próximos passos, cada vez se sentindo mais alheada das pessoas e do burburinho ao redor. Quando desperta, percebe surpresa que, na cama, deixou o invólucro do seu corpo, como se houvesse trocado de pele, tal como ocorre com alguns animais. Dirige-se à praia e tem a impressão de haver alcançado o espaço pelo qual vinha ansiando sem saber: “Monto-me na pedra porque já é o único que anseio, me acomodo, tendo que este será meu lugar a partir de agora. O sol me aquece e as doenças do corpo se atenuam. Olho minhas mãos e noto que a pele engrossou nos pulsos” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 45, tradução nossa).5 5 Me monto en la piedra porque es ya lo único que anhelo, me acomodo, entendo que éste será mi sitio a partir de ahora. El sol me calienta y los malestares del cuerpo se atenúan. Miro mis manos y noto que la piel ha engrossado en las muñecas. (Tarazona, 2019, p. 45).

A estranheza da narrativa mediante às mudanças físicas da protagonista é adensada a partir do peculiar encontro com o homem que traz um tamanduá à coleira, à maneira de um animal de estimação. Com certeza, não se pode falar aqui de monstruosidade na simples figura de um animal silvestre. Contudo, o deslocamento provocado do seu habitat natural para a condição de pet cria um estranhamento ao mesmo tempo que coloca em discussão a linha que separa os animais domésticos dos não-domésticos. Se o convívio estreito com cães e gatos é tão normal e socialmente aceito, por que essa mesma relação não pode se dar com um tamanduá? Em particular, um tamanduá ferido e doente, que se afeiçoou ao humano e talvez não conseguisse mais viver na natureza. Dessa forma, o romance pontua a interrogação: como é definida a barreira que diferencia os animais que podem conviver com os humanos e aqueles proibidos de fazê-lo? E a partir disso, quais são os atos considerados humanos e desumanos, uma vez que o homem é vítima das recriminações dos passantes?

Além do mais, desenha-se uma situação parasitária dele para com o animal, uma vez que sendo vítima de uma anomalia física, o homem utiliza o mamífero como chamariz para minimizar a atenção dos outros para a sua própria figura.

Desterrada por sua vontade, a protagonista faz-se uma nômade e, sentindo-se débil e esfomeada, é recolhida pelo homem do tamanduá. O animal, Lisandro, único nomeado entre os três até então, forma com eles uma insólita família, conforme ajuíza a narradora: “É possível que nossa estampa assuste as pessoas. Eu perdi quilos e tenho uma nova cor na pele; meu companheiro não é gracioso e seu olhar inquieto; Lisandro, por sua vez, desperta reações de raiva quase sempre.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 59, tradução nossa).6 6 “Es posible que nuestra estampa assuste a las personas. Yo he perdido kilos y tengo un nuevo color en la piel; mi compañero no es grácil y su mirada inquieta; Lisandro, por su parte, despierta reacciones de enojo casi siempre. (Tarazona, 2019, p. 59).

Contudo, para Foucault, a monstruosidade, com algumas exceções, tais como o pensamento medieval, não se constitui somente por ser uma infração da “lei natural”:

Para que haja monstruosidade, essa transgressão do limite natural, essa transgressão da lei-quadro tem de ser tal que se refira a, ou em todo caso questione certa suspensão da lei civil, religiosa ou divina. Só há monstruosidade onde a desordem da lei natural vem tocar, abalar, inquietar o direito civil, o direito canônico ou o direito religioso. (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 79).

Desse modo, a monstruosidade se diferencia da enfermidade, visto que a última é incluída no Direito Civil e no Direito Canônico:

O enfermo pode não ser conforme à natureza, mas é de certa forma previsto pelo direito. Em compensação, a monstruosidade é essa irregularidade natural que, quando aparece, o direito é questionado, o direito não consegue funcionar. O direito é obrigado a se interrogar sobre seus próprios fundamentos, ou sobre suas práticas, ou a se calar, ou a renunciar, ou a apelar para outro sistema de referência, ou a inventar uma casuística. No fundo, o monstro é a casuística necessária que a desordem da natureza chama no direito. (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 80).

Para concluir, em seguida: “[...] ele só é monstro porque também é um labirinto jurídico, uma violação e um embaraço da lei, uma transgressão e uma indecibilidade no nível do direito. O monstro é, no século XVIII, um complexo jurídico-natural” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 82).

Ainda que não se possa qualificar de monstruoso, o tratamento de Lisandro como um cachorro cruza algumas linhas estabelecidas até do ponto de vista jurídico. Enquanto a legislação de boa parte dos países vem apresentando como pauta o bem-estar dos animais domésticos, conferindo-lhes cada vez mais direitos equiparados aos animais humanos, aos outros animais resta um território aberto, como pondera Greg Garrard: “Raramente somos instados a impedir o sofrimento dos animais selvagens porque nossa responsabilidade moral aplica-se principalmente aos animais que usamos como alimento, como meio de transporte e como companhia” (Garrard, 2006GARRARD, Greg. Ecocrítica. Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: UnB, 2006., p. 210).

A própria terminologia “animal selvagem” está carregada de pré-juízos, associando-os a possível ferocidade em vez de relacioná-los ao seu meio ambiente. A legislação vigente em muitos países acerca dos animais selvagens ou silvestres tem em mira a punição aos mecanismos de sua comercialização e não exatamente o seu bem-estar.

O drama que nos coloca a imagem de um tamanduá preso a uma coleira deslocando-se por um espaço urbano7 7 Vale lembrar aqui a icônica foto do artista surrealista Salvador Dalí carregando um tamanduá pelas ruas de Paris, em 1969. é semelhante àquele da protagonista convertida num réptil, habitando o mesmo espaço que ele. Do ponto de vista jurídico, Lisandro é um animal selvagem ou doméstico? E ela? Um animal humano ou não-humano?

Ainda de acordo com Foucault, o que está por detrás da “indecibilidade no nível do direito” é a pressuposição de que o ser monstruoso é fruto de uma relação sexual entre genitores de reinos diferentes: um homem e um animal não-humano ou uma mulher e um animal não-humano. Coloca-se assim o problema legal de “saber se é ou não necessário batizar um indivíduo que tem um corpo humano e uma cabeça de animal, ou um corpo de animal e uma cabeça humana” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 80-81).

O romance de Daniela Tarazona dá curso a tais explanações quando a protagonista, já em fase avançada da mutação, engravida do companheiro. A concepção, a exemplo da anunciação, efetiva-se diferentemente do esperado. Primeiro, ela percebe a perda do seu aparelho sexual, que vem a se cobrir com uma pele mais grossa a esconder um orifício. Na praia deserta, após um banho de mar, o companheiro masturba-se ao seu lado enquanto ela está incapacitada por uma paralisia, própria da sua nova espécie:

Faz isso por alguns minutos, aumentando a força e a velocidade de sua mão. Levanta-se e deixa sobre a areia uma mancha de sêmen. O instinto me leva a sentar em cima, nua, e colar meu novo sexo a essa mancha de sêmen sobre a areia. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 69, tradução nossa).8 8 “Lo hace durante unos minutos, incrementando la fuerza y la velocidad de su mano. Se levanta y deja sobre la arena uma mancha de semen. El instinto me lleva a sentarme encima, desnuda, y pego mi nuevo sexo a esa mancha de sêmen sobre la arena.” (Tarazona, 2019, p. 69).

Da inusitada inseminação, e após uma hibernação de dois meses, começa a crescer um ser indefinido em seu interior:

Quero explicar mais coisas, por exemplo, a certeza das minhas vísceras: sinto que tenho interior. As tripas roçam as paredes do meu abdômen, o coração se recarrega sobre os pulmões de uma maneira suave. Não o imagine jamais, nunca pensei que em minha condição tivesse essas sensações. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 73, tradução nossa).9 9 “Quiero explicar más cosas, por ejemplo, la certeza de mis vísceras: siento que tengo interior. Las tripas rozan las paredes de mi abdomen, el corazón se recarga sobre los pulmones de una manera suave. No lo imagine jamás, nunca pensé que en mi condición tuviera esas sensaciones.” (Tarazona, 2019, p. 73).

À semelhança da Virgem, ela é avisada por uma estranha presença de que se encontra grávida. De acordo com a autora, o título aventado para o livro era La fábula del huevo, o que vem a testemunhar, além dos capítulos nomeados como “Anunciação”, “Morte”, “O ovo” e “Animalidade”, a centralidade da discussão sobre metamorfose e mutação.

A paródia com a história cristã não se limita à mera provocação. O processo porque passa a protagonista, de animal humano para não-humano, vem a perturbar a lógica que instaurou o homem no centro da criação divina. Nesse domínio do antropoceno, o humano subjuga e dita as regras do mundo, sujeitando todos os outros seres a sua vontade como se fora isso o designo de Deus. A passagem para o “outro lado”, o animal não-humano, colocado pela trama do livro, obriga a que se pense natureza e cultura sob um novo prisma, em que o animal não-humano está no mesmo plano; de que tudo não passa de uma transformação entre corpos e espécies, como nos lembra o filósofo Emanuelle Coccia:

Nossa humanidade tampouco é um produto originário e autônomo. Ela também é um prolongamento e uma metamorfose de uma vida anterior. Ela é, mais precisamente, uma invenção que os primatas - uma outra forma de vida - souberam extrair de seus próprios corpos - do seu sopro, do seu DNA, da sua maneira de viver - para fazer existir de forma diferente a vida que os habitava e os animava. Foram eles que nos transmitiram essa forma - e, através da forma de vida humana, são eles que continuam a viver em nós. Aliás, os próprios primatas são apenas uma experimentação e uma aposta feita por outras espécies, outras formas de vida. A evolução é uma mascarada que acontece no tempo e não no espaço. Ela permite que toda espécie, de era em era, use uma nova máscara diante daquela que a gerou, e, aos filhos e filhas, que não se deixem reconhecer e não reconheçam mais seus pais. E, no entanto, apesar da troca da máscara, “espécies-mães” e “espécies-filhas” são uma metamorfose da mesma vida. (Coccia, 2020COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad. Rio de Janeiro: Dantes, 2020., p. 14).

Encenar a criação do Éden, agora pela perspectiva de uma convivência igualitária entre humanos e não-humanos, é o desafio colocado pela narrativa. Nele, o réptil, antes desvalorizado e até demonizado na forma da serpente bíblica, que rasteja eternamente sobre a terra, retorna com todo o simbolismo de sua ancestralidade primitiva, conforme recorda o companheiro: “Você é um animal pré-histórico e está vendo passar o tempo que ninguém mais vê” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 66, tradução nossa).10 10 “eres un animal prehistórico y estás viendo transcurrir el tiempo que nadie más ve.” (Tarazona, 2019, p. 66).

Deste modo, a família composta de forma provisória em El animal sobre la piedra compõe-se de uma mulher-réptil; um animal não-humano e um animal humano com uma limitação física, abalando o conceito normativo da família patriarcal. Além do formato singular, seus integrantes, com exceção justamente do animal não-humano, não são nomeados até meados da narrativa, como a refutar um processo de subjetivação. Quando o faz, a narradora opta por escrever seu nome, Irma, em lugar de pronunciá-lo, resguardando o possível efeito da animação da “coisa” pela sua nomeação, conforme o pensamento presente em muitas culturas. É o caso do livro do Gênesis, por exemplo, em que o universo toma vida a partir da ordem de Deus: faz-se e, assim, se fez.

Diferente dessa atribuição fixa, a perspectiva metamórfica trabalha com o provisório, com o mutante, com aquilo que não se define e que está em processo de devir (Deleuze; Guattari, 1996DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Vol. 3. Tradução de Aurélio Neto et al. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.), aquilo que tem muitos nomes ou então nenhum. Ainda em consonância com Emanuelle Coccia:

Toda metamorfose é a evidência de uma relação entre formas díspares que define o “ser” de tudo aquilo que é vivo. Essa relação não está fora de nossos corpos. Trata-se de sua própria fisiologia. Somos, simultaneamente, lagarta e borboleta. Nenhuma silhueta, nenhum ethos, nenhum mundo poderá resumir nossas vidas. Todo ser vivo é a contração e o desdobramento de uma biodiversidade anatômica, ética e ecológica cuja metamorfose é a condição de possibilidade e história. (Coccia, 2020COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad. Rio de Janeiro: Dantes, 2020., p. 179).

Aqui valeria um reparo em relação aos conceitos utilizados de metamorfose e de hibridismo. Para Caroline Walker Bynum, não se trata de termos sinônimos. Enquanto o híbrido expressa um mundo resistente à mudança, a metamorfose insere-se no mundo do fluxo e da transformação. “O híbrido expressa um mundo de naturezas, essências ou substâncias (muitas vezes diversas ou contraditórias entre si), encontrado através do paradoxo; resiste à mudança. A metamorfose expressa um mundo instável do fluxo e da transformação, encontrado através da história.” (Bynum, 2001BYNUM, Caroline Walker. Metamophosis and Identity. New York: Zone Books, 2005. , p. 30, tradução nossa).11 11 “The hybrid express a world of natures, essences, or substances (often diverse or contradictory to each other), encountered through paradox; it resists change. Metamorphosis express a labile world of flux and transformation, encountered through story.” (Bynum, 2001, p. 30). Enquanto o híbrido aponta para o visual e o espacial, a metamorfose diz respeito ao tempo, porque é um processo (Bynum, 2001BYNUM, Caroline Walker. Metamophosis and Identity. New York: Zone Books, 2005. , p. 30).

A concordar com as definições da medievalista, poderíamos dizer que a leitura de El animal sobre la piedra nos transporta de um mundo fundado no hibridismo para uma abertura ao pensamento metamórfico. Ainda que tenha como ponto de chegada a metamorfose, a narrativa focaliza-se no processo de mutação, em que o híbrido acaba predominando. A transformação é lenta e, enquanto leitores, acompanhamos justamente a condição híbrida de um corpo feminino que vai ganhando características alheias a sua espécie. Prevalece nessa fase a imagem de anormalidade e de monstruosidade associada ao seu corpo.

A ideia de monstruosidade funda-se justamente no receio do que o híbrido possa representar. Como nos lembra Foucault, o monstro mistura dois reinos, duas espécies, dois gêneros ou dois estados do ser. O monstro é o que nos desafia. Não parece aleatório que o animal escolhido seja um anfíbio, capaz de viver em dois meios diferentes.

A aceitação por parte de Irma de seu processo mutante dá origem a uma outra apreensão, caracterizada pela imagem do fluxo de que fala Caroline Bynum. Assim, a perspectiva monstruosa também deixa de ter sentido para a protagonista:

Sei que viemos de matérias que queimaram. Esqueci-me disso na minha vida humana, agora o recupero. Pertenço a uma espécie com as faculdades para acompanhar o fogo. Tenho comprovado a resistência da minha pele ao calor e, mais ainda, sei das bondades do sol parado sobre meu contorno; em minha pele ganhou a seca, nunca mais voltei a suar. Estou feita para isto, como um animal do início dos tempos: encontro-me adequada e perfeita, fui feita para me converter em mim. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 126, tradução nossa).12 12 “Sé que venimos de matérias que ardieron. Lo olvidé en mi vida humana, ahora lo recupero. Pertenezco a una espécie con las faculdades para acompañar el fuego. He comprovado la resistencia de mi piel al calor y, más aún, sé de las bondades del sol detenido sobre mi contorno; en mi piel ha ganado la sequía, nunca más he vuelto a sudar. Estoy hecha para esto, como un animal del principio de los tempos: me encuentro adecuada y perfecta, he sido hecha para convertirme em mí.” (Tarazona, 2019, p. 126).

Se as personagens são fluidas nesse novo espaço, a história também não pode ser única. Começa a se delinear uma outra possível trama. Nela, Irma não teria se transformado num réptil, mas estaria encarcerada numa instituição psiquiátrica. É o que ela pressente em dado momento ao constatar as marcas pegajosas de uma pulseira no braço e ao se recordar, por meio de flashes, da presença assídua de uma gentil enfermeira. Como inferências possíveis, o leitor passa a desconfiar da versão anteriormente narrada ou, então, acreditar, como sugerem as novas pistas, que, entre o lapso de sua chegada à cidade e a vida na cabana do companheiro, ela esteve internada e conseguiu escapar dali.

Nesse último caso, Irma teria experimentado uma outra forma de monstruosidade, não aquela que a associa a um misto de animal e de humano, mas a monstruosidade convertida dentro da própria espécie humana, que transforma semelhantes em inimigos. Na condição de andarilha, sem rumos ao fugir do hospital, Irma passa a viver como uma indigente, transformando-se em pária social. De comum ao animal não-humano, guarda as características primitivas do homem antes de sua “civilização”, como o cheiro:

Depois de alguns minutos, algo novo no meu corpo tomou a minha atenção, primeiro eu pensei que era o lixo acumulado nessa rua, as pilhas de sacos que suavam sob o sol, depois eu testemunhei que o cheiro fétido vinha da minha própria pele: levei o antebraço ao nariz e cheirei a minha pele rugosa com uma inalação profunda. O cheiro ficou em minhas narinas, era o cheiro de um animal morto. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 108, tradução nossa).13 13 “Después de unos minutos, algo nuevo en mi cuerpo ocupó mi atención, primero creí que se tratava de la basura acumulada en esa calle, los montones de bolsas que sudaban bajo el sol, después atestigüé que el olor fétido venía de mi propria piel: me llevé el antebrazo a la nariz y olí mi piel rugosa con una inhalación profunda. El olor se quedó en mis narinas, era el olor de un animal muerto.” (Tarazona, 2019, p. 108).

A questão social que atravessa a linha que divide humanos de não-humanos é levada em conta por Daniela Tarazona. Irma, mesmo antes de sua mutação, ao dar curso a essa vida errante, é desqualificada das insígnias que atestam uma normalidade, seja pela condição de andarilha, sem uma casa fixa, que a levam a uma condição próxima ao que se entende por viver como um animal, seja pela suspeita da loucura que a afeta.

Portanto, não se trata apenas de isolar o animal não-humano, mas também o “animal” que se crê viver em nós e que se desvenda no preconceito social estabelecido entre normais e anormais, entre monstros e homens.

É sobejamente conhecida a formulação do teórico camaronês Achille Mbembe acerca da necropolítica, no esteio do que Foucault pensou sobre a biopolítica. Não basta possuir as credenciais humanas para se colocar acima dos demais seres vivos, é preciso participar de um grupo seleto que dita as ordens sobre a vida e a morte na nossa sociedade, porque muitos corpos estão já fadados ao sacrifício desde que nascem, mediante a sua cor, o seu gênero ou a sua latitude, que dividiu o mundo colonizado e suas metrópoles:

[...] o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra nas colônias. Lá, o soberano pode matar em qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é uma atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça constantemente com fantasias geradas colonialmente, caracterizadas por terras selvagens, morte e ficções para criar um efeito de real. (Mbembe, 2016MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-151, dez. 2016., p. 134).

A par de Irma, que trafega como uma indigente e chega a sentir em seu corpo o mesmo odor de um animal morto, outra personagem cruza mais de uma vez o seu caminho. É o caso do mendigo sem pernas. O encontro com ele evoca aquelas situações cotidianas e ao mesmo tempo insólitas, capazes de produzir um vendaval em nossa vida, como aquelas narradas por Clarice Lispector, de quem a autora é leitora14 14 Daniela Tarazona publicou um livro de ensaios sobre a escritora brasileira intitulado Clarice Lispector: La mirada en el jardín (2020). e que aparece também como epígrafe do romance. O mendigo a quem a narradora dá sua única moeda aparece depois olhando-a tão intensamente como a descobrir a sua própria pele. A mirada incômoda se reveste, mais tarde, no compartilhamento de experiência análoga.

Ambos são, ao fim e ao cabo, o material excludente do mesmo sistema que os gerou. Trata-se de uma situação que se distingue da fase pós-mutação, quando Irma e seu companheiro, a fim de combater o frio que tomou lugar na cidade praieira, tentam em vão comprar lenha com outros moradores até que encontram uma casinha muito precária, levantada com o alumínio de latas de conserva. Seu habitante se dispõe a repartir sua reserva sem nada cobrar, ao que Irma reflete: “Não estranhei porque minha nova condição também aceitava a possibilidade de que existissem, no mesmo mundo que nós, homens que oferecem seus bens” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 118, tradução nossa).15 15 “No me extrañé porque mi nueva condición también aceptaba la posibilidad de que existiesen, en el mismo mundo que nosotros, hombres que regalan sus bienes.” (Tarazona, 2019, p. 118).

A princípio, Irma luta pelo desejo de normalidade, como quando sente os primeiros sintomas da sua rejeição: “As pessoas a minha volta desejavam escutar frases lúcidas e saber que sua companheira de viagem era uma pessoa normal” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 104, tradução nossa).16 16 “Las personas a mi alrededor deseaban escuchar frases lúcidas y saber que su compañera de viaje era uma persona normal.” (Tarazona, 2019, p. 104). Ou ainda, na fala do médico que a atende: “Assegura que é assombrosa a minha recuperação e que, salvo pelas deformações das minhas mãos e pés, posso considerar-me uma mulher normal [...]” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 92, tradução nossa).17 17 “Asegura que es assombrosa mi recuperación y que, salvo por las deformaciones de mis manos y pies, puedo considerarme una mujer normal [...]” (Tarazona, 2019, p. 92). Ao mergulhar na experiência de mutação, contudo, advém a aceitação e a curiosidade por sua nova condição.

Apesar do espanto causado por cada nova descoberta, a protagonista passa a entender a sua metamorfose como um processo natural e talvez até necessário, assim como são as tormentas do mar, mesmo aquela que destrói parte da vila onde está hospedada:

A tempestade ensinou-me o sentido das minhas mutações. A naturalização não tem falhas, suas manifestações são sinais de adaptação [...] Como esta costa, eu precisei perder meus antigos atributos. Além do acaso, ou das condições que não fui capaz de prever, na mutação que vivo intervém minha origem. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 120, tradução nossa).18 18 “La tormenta me enseño el sentido de mis mutaciones. La naturaliza no tiene fallas, sus manifestaciones son signos de adaptación [...] Como esta costa, yo necesité perder mis antiguos atributos. Además del azar, o de las condiciones que no he sido capaz de prever, en la mutación que vivo interviene mi origen.” (Tarazona, 2019, p. 120).

El animal sobre la piedra vale-se de intenso simbolismo. Além da tormenta, a caverna ocupa um lugar de relevo no período transformista porque passa Irma. Vagando pelas ruas, indiferente ao destino da normalidade da cidade, esfomeada e exaurida, ela encontra junto ao mar uma falésia, em lugar ermo devido ao aumento súbito da maré. No costado, depara-se com uma pequena caverna que lhe serve de abrigo e a partir da qual assumirá sua nova vida animal. Essa caverna dissimula uma outra, nomeada no capítulo anterior com o título “A caverna” e que parece fazer referência, essa sim, ao mundo descrito por Platão das formas pensadas como reais, mas que são meras projeções imagísticas; mundo em que as pessoas necessitam atestar a sua normalidade.

A própria memória passa a ser objeto de questionamento na sua nova condição animal-réptil. O que parece de início ao leitor como uma comprovação da falta de lucidez da personagem ou até de seu estado psíquico, ao embaralhar fatos e datas e fornecer relatos distintos não atestam eles mesmos a sua mutação e a aquisição de um estado para o qual a memória pode não ter os mesmos papéis que lhe delegamos? Que memórias guardariam os animais não-humanos? Ao levantar essa dúvida acerca de Lisandro e da possível saudade do animal por uma vida livre no passado, ela arremata: “Mas sua normalidade é a certeza de seu corpo. Ele usa-o, sabe que está vivo e que é capaz de enfrentar a sua cisão, daí deriva o seu orgulho” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 65, tradução nossa).19 19 “Pero su normalidad es la certeza de su cuerpo. Él lo usa, sabe que está vivo y que es capaz de afrontar su ciscunstancia, de eso deriva su orgullo.” (Tarazona, 2019, p. 65). Assim, a produção de memórias, em particular as monumentais (Le Goff, 2003LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. ), que contribuíram para o primado do antropoceno, não faria sentido nessa nova forma de vida. De acordo com seu companheiro, se ela viesse a perder a alma humana, perderia a seguir a linguagem e a “mente só poderia formular imagens do deserto ou da selva, dependendo do local que habitasse” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 125, tradução nossa),20 20 “mente sólo podría formular imágenes del desierto o la selva, dependiendo del sitio que habitara” (Tarazona, 2019, p. 125). o que, por sua vez, comprometeria a escrita do testemunho em composição.

A ideia de tempo, da qual deriva o conceito de memória, sofre um golpe com a abolição de tudo que não seja o momento presente: “Sou exatamente o que mais desejei e, por isso, minha vivência é certeira. Não há ordem no tempo por essa mesma causa: a minha sublimação sustenta-se na firme convicção de viver em plenitude” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 132, tradução nossa).21 21 “Soy exatamente lo que más deseé y, por eso, mi vivencia es certera. No hay orden en el tempo por esa misma causa: mi sublimación se sostiene en la firme convicción de vivir con plenitud.” (Tarazona, 2019, p. 132).

Sua percepção ou ordenamento do espaço também se altera sensivelmente. Em lugar dos contornos dos objetos isolados, seu olhar réptil capta uma superfície emaranhada como uma rede, à semelhança de um plano rizomático:

As coisas exteriores não são como as sabia. Os objetos são transparentes, como se fossem feitos de ar, sua consistência não é a que conhecia. Por exemplo: as cadeiras estão presas no vácuo. Não há nos objetos um começo e um final, se encontram unidos sem que possa definir um sem outro. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 132, tradução nossa).22 22 “Las cosas exteriores no son como las sabía. Los objetos son transparentes, como si fuesen hechos de aire, su consistencia no es la que conocía. Por ejemplo: las sillas están detenidas en el vacío. No hay en los objetos un comienzo y un final, se encuentran unidos sin que pueda definir uno sin otro.” (Tarazona, 2019, p. 132).

Além das modificações no corpo, a mutação causou outras desordens, como o hábito de buscar o sol durante horas por dia ou o seu paladar, que já assimila insetos, aranhas, baratas, carne crua e até a corpo de seus semelhantes, mortos em combate. Aceitar o canibalismo próprio da sua espécie constituiu o ponto de limite da mutação de Irma, causando a fuga de seu companheiro e de Lisandro, ao se saberem ameaçados pelos instintos do réptil que tomou conta de seu corpo.

Sozinha em casa, Irma volta sua atenção para o nascimento próximo da filha:

Meu instinto agora desenha um futuro de animal consagrado. Irei em alguns dias procurar o lugar para dar à luz. Andarei pelos cantos da casa, mas minha filha nascerá Fora. Onde colocarei o ovo? Quero que seja um lugar quente, escondido, para que não corra perigo. Quando nascer terei que deixá-la - uma vez que consiga tirar o ovo de dentro, irei. Não há crueldade em meu desejo, é o que toca. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 153-154, tradução nossa).23 23 “Mi instinto ahora dibuja um porvenir de animal consagrado. Iré en unos días a buscar el sitio para dar a luz. Andaré por los rincones de la casa, pero mi hija nacerá Afuera. ¿En qué sitio pondré el huevo? Quiero que sea un lugar caliente, escondido, para que no peligre. Cuando nazca tendré que dejarla - una vez que logre sacar el huevo de mi interior, me iré. No hay crueldade en mi deseo, es lo que toca.” (Tarazona, 2019, p. 153-154).

O ovo que expele ou que julga ter expelido faz parte do jogo entre o sonhado e o vivido. O último capítulo, em que Irma aparece sendo cuidada pela enfermeira em um quarto de hospital psiquiátrico, volta a alimentar a dúvida sobre a imagem de um ovo, já vazio, sob a sua cama, indicando que havia sido chocado e cujo seu conteúdo teria sobrevivido. Outra hipótese se formula: a transmutação de seu corpo, diferentemente do pensado, não teria se dado na praia, mas sim no próprio hospital, oportunizando sua fuga na forma de um pequeno réptil, conforme nos faz supor a passagem da perspectiva do animal:

No dia seguinte, pensei que o meu quarto tinha crescido. Estava confortada pelo sono e me senti capaz de sobreviver o tempo necessário no confinamento. Inventei uma rotina de movimentos corporais que melhorariam minha saúde; percorri o quarto a gatas e me senti alegre ante a nova visão dos móveis desde abaixo. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 170, tradução nossa).24 24 “Al día seguinte creí que mi cuarto había aumentado de tamaño. Estaba reconfortada por el sueño y me sentí capaz de sobrevivir el tiempo necessário en el encierro. Inventé una rutina de movimientos corporales que mejorarían mi salud; recorrí el cuarto a gatas y me sentí alegre ante la novedosa visión de los muebles desde abajo.” (Tarazona, 2019, p. 170).

Considerações finais

Conforme pondera José Ezcurdia, a propósito do pensamento de Deleuze, o Cristianismo, com sua veia platônica, constituiu o fator mais significativo para a emergência do processo de rostificação:

O cristianismo, enquanto projeto civilizatório, constitui-se a partir da estratificação do corpo e da consciência em função da sua sujeição a um modelo exterior ou transcendente, que faz de toda figura diferencial uma forma que em última instância deve ser reduzida aos marcos de um modelo. O caráter universal e monoteísta do cristianismo assegura a desvalorização e a negação da cultura dos povos primitivos, ancorada no cultivo do corpo ou o inconsciente mesmo como plexo de imagens que se revelam como forças ativas: a Igreja constitui-se como um aparelho de captura que, cada vez que sujeita e organiza os corpos vivos sob o regime da heterenomia moral, apaga qualquer vestígio de uma experiência arcaizante do real, em que o corpo vivo manifeste as intensidades que o percorrem interiormente, dando lugar a formas de cultura fundadas precisamente numa produção inconsciente. (Ezcurdia, 2018EZCURDIA, José. Cuerpo y amor frente a la modernidad capitalista: a propósito de Spinoza, Bergson, Deleuze y Negri. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México; Editorial Itaca, 2018., p. 141, tradução nossa).25 25 “El cristianismo, en tanto proyecto civilizatório, se constituye a partir de la estratificación del cuerpo y la consciencia en función de su sujeción a un modelo exterior o transcendente, que hace de toda figura diferencial una forma que en última instancia debe ser reducida a los marcos de un modelo. El carácter universal y monoteísta del cristianismo assegura la desvalorización y la negación de la cultura de los pueblos primitivos, anclada en el cultivo del cuerpo o el inconsciente mismo en tanto plexo de imágenes que se revelan como fuerzas activas: la Iglesia se constituye como un aparato de captura que, toda vez sujeta y organiza los cuerpos vivos bajo el régimen de la heterenomía moral, borra toda huella de una experiencia arcaizante de lo real, en la que el cuerpo vivo manifieste las intensidades que lo recorren interiormente, dando lugar a formas de cultura fundadas precisamente en una produción inconsciente.” (Ezcurdia, 2018, p. 141).

Os rostos, para Deleuze, “não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 29). Ou seja, o rosto inscreve-se no campo do poder. Cristo é o modelo principal da rostidade e, por extensão, o homem branco, europeu.

“A fábula do ovo”, como pressupunha a primeira proposta do nome do livro, desconstrói os sentidos postos em marcha pela rostificação, responsável por tantos preconceitos e sectarismos. Ao simular um nascimento de um ovo a partir do ventre de uma mulher com insígnias semelhantes àquelas vividas pela Virgem Maria, como a anunciação, e de parodiar um percurso marcado como aquele, pelas dificuldades e pela carência econômica, El animal sobre la piedra rompe com a oposição entre homens e animais, alimentada por aquele primado. Ao estabelecer figurações de seres que escapam ao regime da rostificação, tais como uma mulher-réptil, um homem descapacitado e um animal selvagem, compondo um modelo familiar, o livro desestabiliza as premissas da organização social fundada pela modernidade e tenta desarticular a figura molar que tem Cristo como modelo.

A própria ideia de metamorfose vai na contramão desse processo de engessamento, conforme sugere o devir-animal pensado por Deleuze e Guattari:

O corpo primitivo, se bem que seja objeto do exercício do poder a partir de semióticas corporais polívocas, possui a faculdade de variar seus regimes de experiência, precipitando uma intuição que se caracteriza como involução criadora: o devir animal dos povos primitivos, neste sentido, liberta forças germinativas inconscientes que nutrem o destacamento da própria consciência como afirmação da matéria viva, ao contrário do único processo de rostificação, que a encerra nas estreitas margens disciplinares da subjetivação e da significação. (Ezcurdia, 2018EZCURDIA, José. Cuerpo y amor frente a la modernidad capitalista: a propósito de Spinoza, Bergson, Deleuze y Negri. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México; Editorial Itaca, 2018., p. 133, tradução nossa).26 26 “El cuerpo primitivo, si bien es objeto del ejercicio del poder a partir de semióticas corporales polívocas, posee la faculdade de variar sus regímenes de experiencia, precipitando uma intuición que se caracteriza como involución creadora: el devenir animal de los pueblos primitivos, en este sentido, libera fuerzas germinativas inconscientes que nutren el despiegle de la conciencia misma en tanto afirmación de la materia viva, a diferencia del solo processo de rostrificación, que la encierra en los estrechos márgenes disciplinares de la subjetivación y la significación.” (Ezcurdia, 2018, p. 133).

De forma semelhante, Irma reflete sobre o processo experimentado de desterritorialização: “Quando saio na rua, uso um chapéu de palma que engana os outros. Faço-o também para quebrar a certeza dos outros. Eu não sou o que você vê” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 113, tradução nossa).27 27 “Cuando salgo a la calle llevo un sombrero de palma que engaña a los demás. Lo hago también para quebrantar la certeza de los otros. No soy lo que ven.” (Tarazona, 2019, p. 113).

Trata-se, em última medida, de liberar o corpo vivo, imanente, exilado do discurso bíblico, por exemplo, daí também a ênfase nos processos de reprodução, fecundação, nascimento e morte:

O afeto, como efetivação da própria potência na qual se constitui o corpo vivo, é o material para construir uma linha de fuga e um território que planta face aos dispositivos de dominação da axiomática capitalista. A produção afetiva é capital na construção de figuras menores ou minoritárias que se constituem como frentes de Libertação, enquanto expressão de uma multidão que reclama para si uma autonomia ética-política e cultural em sentido amplo. (Ezcurdia, 2018EZCURDIA, José. Cuerpo y amor frente a la modernidad capitalista: a propósito de Spinoza, Bergson, Deleuze y Negri. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México; Editorial Itaca, 2018., p. 147, tradução nossa).28 28 “El afecto, como efectuación de la própria potencia en la que se constituye el cuerpo vivo, es el material para construir una línea de fuga y un território que planta cara a los dispositivos de dominación de la axiomática capitalista. La producción afectiva es capital en la construcción de figuras menores o minoritárias que se constituyen como frentes de Liberación, en tanto expresión de una multitud que reclama para sí una autonomia ética-política y cultural en un sentido amplio.” (Excurdia, 2018, p. 147).

Se o corpo é a fonte principal em que se funda a ideia de anormalidade e de monstruosidade, o mesmo corpo pode surgir como instrumento de resistência, ainda que no caso de El animal sobre la piedra não saibamos ao certo em que nível ela se dá, no sonho ou na realidade. Contudo, como concluído pela própria narradora: “Se a realidade se desfaz em um sonho, o sonho é absoluto” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 154, tradução nossa).29 29 “Si la realidade se deshace en un sueño, el sueño es absoluto.” (Tarazona, 2019, p. 154).

É fato que caímos no dilema do mestre taoísta Chuang Tzu que, na narrativa zen budista “O sábio e a borboleta”, torna-se incapaz de distinguir se ele era o homem que sonhou ser uma borboleta ou se foi a borboleta que sonhou ser o homem que agora desperta nele. No entanto, também experimentamos com a trama de El animal sobre la piedra o caráter provisório da vida, ao tempo que abalamos as certezas de um sistema que nos dividiu entre homens e monstros.

Referências

  • BYNUM, Caroline Walker. Metamophosis and Identity New York: Zone Books, 2005.
  • COCCIA, Emanuele. Metamorfoses Tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad. Rio de Janeiro: Dantes, 2020.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs Vol. 3. Tradução de Aurélio Neto et al Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
  • EZCURDIA, José. Cuerpo y amor frente a la modernidad capitalista: a propósito de Spinoza, Bergson, Deleuze y Negri. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México; Editorial Itaca, 2018.
  • FOUCAULT, Michel. Os anormais Curso no Collège de France (1974-1975). Edição estabelecida sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana, por Valerio Marchetti e Antonella Salomoni. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • GARRARD, Greg. Ecocrítica Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: UnB, 2006.
  • LE GOFF, Jacques. História e memória Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-151, dez. 2016.
  • TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra Cidade do México: Almadia, 2019.
  • 1
    “Mi hermana empezaba a convertirse en otra cosa y quiso evitarlo” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 78), ou “Mi madre y mi hermana presentaron los mismos sintomas. Soy de aquella estirpe, aunque he logrado la fuga. Estoy viva. Alcanzaré la consagración a través de mis actos.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 120).
  • 2
    “La salida no está hecha de pensamentos articulados, es el deseo en estado puro: correr como um animal perseguido.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 12).
  • 3
    “Entró mientras empacaba y me miró como si me conociese. Le grité que saliera y el corazón me brincó dentro del pecho. Su presencia me obligó a dejar el cuarto. Lo observé desde la puerta, estaba sereno aunque yo temblaba.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 11).
  • 4
    “[...] en el sueño me arrastraba entre las varas, las hojas y el lodo del suelo. Lo más enigmático era que mi cuerpo se movía con mayor rapidez que la acostumbrada, o bien, el ritmo de mis movimentos era distinto al común.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 26).
  • 5
    Me monto en la piedra porque es ya lo único que anhelo, me acomodo, entendo que éste será mi sitio a partir de ahora. El sol me calienta y los malestares del cuerpo se atenúan. Miro mis manos y noto que la piel ha engrossado en las muñecas. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 45).
  • 6
    “Es posible que nuestra estampa assuste a las personas. Yo he perdido kilos y tengo un nuevo color en la piel; mi compañero no es grácil y su mirada inquieta; Lisandro, por su parte, despierta reacciones de enojo casi siempre. (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 59).
  • 7
    Vale lembrar aqui a icônica foto do artista surrealista Salvador Dalí carregando um tamanduá pelas ruas de Paris, em 1969.
  • 8
    “Lo hace durante unos minutos, incrementando la fuerza y la velocidad de su mano. Se levanta y deja sobre la arena uma mancha de semen. El instinto me lleva a sentarme encima, desnuda, y pego mi nuevo sexo a esa mancha de sêmen sobre la arena.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 69).
  • 9
    “Quiero explicar más cosas, por ejemplo, la certeza de mis vísceras: siento que tengo interior. Las tripas rozan las paredes de mi abdomen, el corazón se recarga sobre los pulmones de una manera suave. No lo imagine jamás, nunca pensé que en mi condición tuviera esas sensaciones.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 73).
  • 10
    “eres un animal prehistórico y estás viendo transcurrir el tiempo que nadie más ve.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 66).
  • 11
    “The hybrid express a world of natures, essences, or substances (often diverse or contradictory to each other), encountered through paradox; it resists change. Metamorphosis express a labile world of flux and transformation, encountered through story.” (Bynum, 2001BYNUM, Caroline Walker. Metamophosis and Identity. New York: Zone Books, 2005. , p. 30).
  • 12
    “Sé que venimos de matérias que ardieron. Lo olvidé en mi vida humana, ahora lo recupero. Pertenezco a una espécie con las faculdades para acompañar el fuego. He comprovado la resistencia de mi piel al calor y, más aún, sé de las bondades del sol detenido sobre mi contorno; en mi piel ha ganado la sequía, nunca más he vuelto a sudar. Estoy hecha para esto, como un animal del principio de los tempos: me encuentro adecuada y perfecta, he sido hecha para convertirme em mí.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 126).
  • 13
    “Después de unos minutos, algo nuevo en mi cuerpo ocupó mi atención, primero creí que se tratava de la basura acumulada en esa calle, los montones de bolsas que sudaban bajo el sol, después atestigüé que el olor fétido venía de mi propria piel: me llevé el antebrazo a la nariz y olí mi piel rugosa con una inhalación profunda. El olor se quedó en mis narinas, era el olor de un animal muerto.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 108).
  • 14
    Daniela Tarazona publicou um livro de ensaios sobre a escritora brasileira intitulado Clarice Lispector: La mirada en el jardín (2020).
  • 15
    “No me extrañé porque mi nueva condición también aceptaba la posibilidad de que existiesen, en el mismo mundo que nosotros, hombres que regalan sus bienes.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 118).
  • 16
    “Las personas a mi alrededor deseaban escuchar frases lúcidas y saber que su compañera de viaje era uma persona normal.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 104).
  • 17
    “Asegura que es assombrosa mi recuperación y que, salvo por las deformaciones de mis manos y pies, puedo considerarme una mujer normal [...]” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 92).
  • 18
    “La tormenta me enseño el sentido de mis mutaciones. La naturaliza no tiene fallas, sus manifestaciones son signos de adaptación [...] Como esta costa, yo necesité perder mis antiguos atributos. Además del azar, o de las condiciones que no he sido capaz de prever, en la mutación que vivo interviene mi origen.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 120).
  • 19
    “Pero su normalidad es la certeza de su cuerpo. Él lo usa, sabe que está vivo y que es capaz de afrontar su ciscunstancia, de eso deriva su orgullo.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 65).
  • 20
    “mente sólo podría formular imágenes del desierto o la selva, dependiendo del sitio que habitara” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 125).
  • 21
    “Soy exatamente lo que más deseé y, por eso, mi vivencia es certera. No hay orden en el tempo por esa misma causa: mi sublimación se sostiene en la firme convicción de vivir con plenitud.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 132).
  • 22
    “Las cosas exteriores no son como las sabía. Los objetos son transparentes, como si fuesen hechos de aire, su consistencia no es la que conocía. Por ejemplo: las sillas están detenidas en el vacío. No hay en los objetos un comienzo y un final, se encuentran unidos sin que pueda definir uno sin otro.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 132).
  • 23
    “Mi instinto ahora dibuja um porvenir de animal consagrado. Iré en unos días a buscar el sitio para dar a luz. Andaré por los rincones de la casa, pero mi hija nacerá Afuera. ¿En qué sitio pondré el huevo? Quiero que sea un lugar caliente, escondido, para que no peligre. Cuando nazca tendré que dejarla - una vez que logre sacar el huevo de mi interior, me iré. No hay crueldade en mi deseo, es lo que toca.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 153-154).
  • 24
    “Al día seguinte creí que mi cuarto había aumentado de tamaño. Estaba reconfortada por el sueño y me sentí capaz de sobrevivir el tiempo necessário en el encierro. Inventé una rutina de movimientos corporales que mejorarían mi salud; recorrí el cuarto a gatas y me sentí alegre ante la novedosa visión de los muebles desde abajo.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 170).
  • 25
    “El cristianismo, en tanto proyecto civilizatório, se constituye a partir de la estratificación del cuerpo y la consciencia en función de su sujeción a un modelo exterior o transcendente, que hace de toda figura diferencial una forma que en última instancia debe ser reducida a los marcos de un modelo. El carácter universal y monoteísta del cristianismo assegura la desvalorización y la negación de la cultura de los pueblos primitivos, anclada en el cultivo del cuerpo o el inconsciente mismo en tanto plexo de imágenes que se revelan como fuerzas activas: la Iglesia se constituye como un aparato de captura que, toda vez sujeta y organiza los cuerpos vivos bajo el régimen de la heterenomía moral, borra toda huella de una experiencia arcaizante de lo real, en la que el cuerpo vivo manifieste las intensidades que lo recorren interiormente, dando lugar a formas de cultura fundadas precisamente en una produción inconsciente.” (Ezcurdia, 2018EZCURDIA, José. Cuerpo y amor frente a la modernidad capitalista: a propósito de Spinoza, Bergson, Deleuze y Negri. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México; Editorial Itaca, 2018., p. 141).
  • 26
    “El cuerpo primitivo, si bien es objeto del ejercicio del poder a partir de semióticas corporales polívocas, posee la faculdade de variar sus regímenes de experiencia, precipitando uma intuición que se caracteriza como involución creadora: el devenir animal de los pueblos primitivos, en este sentido, libera fuerzas germinativas inconscientes que nutren el despiegle de la conciencia misma en tanto afirmación de la materia viva, a diferencia del solo processo de rostrificación, que la encierra en los estrechos márgenes disciplinares de la subjetivación y la significación.” (Ezcurdia, 2018EZCURDIA, José. Cuerpo y amor frente a la modernidad capitalista: a propósito de Spinoza, Bergson, Deleuze y Negri. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México; Editorial Itaca, 2018., p. 133).
  • 27
    “Cuando salgo a la calle llevo un sombrero de palma que engaña a los demás. Lo hago también para quebrantar la certeza de los otros. No soy lo que ven.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 113).
  • 28
    “El afecto, como efectuación de la própria potencia en la que se constituye el cuerpo vivo, es el material para construir una línea de fuga y un território que planta cara a los dispositivos de dominación de la axiomática capitalista. La producción afectiva es capital en la construcción de figuras menores o minoritárias que se constituyen como frentes de Liberación, en tanto expresión de una multitud que reclama para sí una autonomia ética-política y cultural en un sentido amplio.” (Excurdia, 2018EZCURDIA, José. Cuerpo y amor frente a la modernidad capitalista: a propósito de Spinoza, Bergson, Deleuze y Negri. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma do México; Editorial Itaca, 2018., p. 147).
  • 29
    “Si la realidade se deshace en un sueño, el sueño es absoluto.” (Tarazona, 2019TARAZONA, Daniela. El animal sobre la piedra. Cidade do México: Almadia, 2019., p. 154).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2023
  • Aceito
    20 Fev 2024
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