Resumos
No espaço e no tempo, da poesia ao infinito, Salvatore Martino caminha ao longo da estrada das palavras enigmáticas, criando um fascinante ritual de experiências.
Salvatore Martino; mito; poesia
Salvatore Martino treads the pathway of enigmatic words, in space and time, thus creating a fascinating ritual of manifold experiences.
Salvatore Martino; myth; poetry
Nello spazio e nel tempo, dalla poesia all'infinito, Salvatore Martino cammina attraverso la strada delle parole enigmatiche, creando un fascinante rituale di esperienze.
Salvatore Martino; mito; poesia
Para Salvatore Martino. Do mito e retorno
Fabio Pierangeli*
RESUMO
No espaço e no tempo, da poesia ao infinito, Salvatore Martino caminha ao longo da estrada das palavras enigmáticas, criando um fascinante ritual de experiências.
Palavras-chave: Salvatore Martino, mito, poesia
ABSTRACT
Salvatore Martino treads the pathway of enigmatic words, in space and time, thus creating a fascinating ritual of manifold experiences.
Key words: Salvatore Martino, myth, poetry
RIASSUNTO
Nello spazio e nel tempo, dalla poesia all'infinito, Salvatore Martino cammina attraverso la strada delle parole enigmatiche, creando un fascinante rituale di esperienze.
Parole chiave: Salvatore Martino, mito, poesia
Estou atormentado por demônios, por infernos. Assim, o poeta siciliano Salvatore Martino, nascido em 1940 nos arredores dos templos agrigentinos, mas já cidadão romano de longas datas, chegou à plena maturidade artística, em 2004, com Livro da renúncia [Libro della cancellazione], editado por Le Torri. No limiar, ele brinca. Não se resguarda do abismo, mas sim retém as faces e os vultos infernais, realiza e segura aquilo que se determina do fogo e da terra, do magma e do caos.
Com as palavras e a sensualidade, com a natureza e os polens na primavera, o poeta atravessou profundamente o caos no espaço e no tempo. Sua linguagem foi e é essa longa, atenta e complexa viagem da experimentação à cristalização sentenciosa da palavra. Do hermetismo da iluminação através de uma tensão onírica levada à afasia lembro do complexo e emblemático A fundação de Nínive [La fondazione di Ninive], de 1976, introdução de Ruggero Jacobbi, uma composição babélica de viagens e linguagens, torre e ilha desconhecidas1; da reflexão sobre o mito em As cidades possuídas pela lua [Le cittá possedute dalla luna], de 1978, e deste Livro da renúncia, no qual habitam palavras doadas pela sabedoria, musicalmente palpitantes de amor pela humanidade e pela natureza.
No longo percurso de Martino, os demônios da mente e do corpo, da sensualidade e da poesia, da ambição e da sedução da alma são eficazes condições gnoseológicas por estarem de acordo com a vida, com os seus fascinantes turbilhões contraditórios. O inferno que criamos em união à inveja, à ambição prevaricadora do poder, às escórias, às corrupções e aos falsos deuses, às paixões de plástico do consumismo, aos discursos terminais, ao poderoso esvaziamento das palavras que sofreram abusos, que foram torturadas, divididas, aviltadas, são, ao contrário, os demônios temíveis de que o poeta se afasta.
Neste último livro, no entanto, não há um sinal de lamento, talvez uma busca, uma emoção. Mas, antes de tudo, um desejo de apagar tais escórias e retornar o máximo possível a uma relação verdadeira com o mundo. De modo solene, mescla-se à poesia, a fim de não cair na fácil tentação da prédica e do moralismo, como aquele que julga os outros e permite a si próprio o lema: o fim justifica os meios. Não há sinais em Martino de tons sentenciosos, de púlpito ou de discursos pretensiosos.
Os demônios da palavra desapareceram depois de terem deixado páginas memoráveis, pausas, intrigas, labirintos. A partir de As cidades possuidas pela lua a Livro da renúnica, Salvatore Martino inicia outro caminho. Como profetizou seu caro amigo, cara memória aqui evocada, Libero De Libero:
Do meu estilo caótico falavas
Del mio stile caotico parlavi
Obscuro no mar de palavras
Oscuro nel mare di parole
Mas eu devia caminhar por aquela estrada
Ma io dovevo camminare quella strada
Para uma meta de simplicidade
Verso una metà di semplicità
Escutando o magma informe
Ascoltando il magma informato
que dentro dormia.
che dentro dormiva.
O magma incandescente lança palavras, quase como a sensualidade. Na primavera, deseja disseminar o seu pólen e acusa os limites, as sufocações, as aventuras erradas, não por tê-las iniciadas, mas para os seus imprevistos êxitos de forças contrárias talvez com um idêntico peso de razão.
A simplicidade corresponde à sabedoria, à firmeza, a uma leve dor, mas não à resignação, à paralisia, à insensibilidade. Corresponde à palavra fluente e polissêmica, capaz de condensar entre muitos silêncios o destino último da viagem, do aportar, do salino que queima, do azul do mar. O obscuro oceano de palavras é então a tempestade repentina, a taxa paga na fronteira, o certo dos anos. É o ansiar pelo não saber na necessidade poética de comunicar. Intitula-se Acerca do que entendo por poesia [Intorno a quel che intendo per poesia] essa admirável lírica, impressa pela doce lembrança de De Libero, e que delineia, silenciosamente, os contornos de uma poética:
Buscar o vulto do enigma
Ricercare il volto dell'enigma
isto é para mim a poesia
questo è per me la poesia
a resposta que não podes encontrar
la risposta che non puoi trovare
a loucura do espelho
la follia dello specchio
a música o silêncio a harmonia
la musica il silenzio l'armonia
aquela capacidade de penetrar
quella capacità di penetrare
o palácio secreto
il palazzo segreto
de preencher a distância das estrelas
di colmare il distacco dalle stelle
a alegre inocência da lua.
la beata innocenza della luna
Mas como reconquistar o infinito? Seduzindo com beleza os próprios versos, forjando-a, atraindo novamente para os homens os seus olhos distantes, procurando doar um pedaço de céu, de lua remota. A força e o reflexo do enigma na poesia de Salvatore Martino consistem na viagem, na busca nunca adormecida, nos raros momentos de êxtase. E é vivendo na cidade possuída pela lua que se faz ressoar mais uma vez a utopia.
Eis o demônio, o anjo caído, o deus menor:
É o anjo caído a poesia
E' l'angelo caduto la poesia
mas possui o ouvido do Senhor
ma possiede l'orecchio del Signore
é o garoto que incendeia
è il fanciullo che incendia
a treva infinita
la tenebra infinita
É o guardião da viagem
E' il custode del viaggio
o farol circular
il faro circolare
aquela fatalidade profetizada
quella fatalità presagita
o raio da aurora
il lampo dell'aurora
é aquela enganadora estória
è quella ingannevole storia
que frivolamente e doce nos possui.
che vanamente e dolce ci possiede
Cair do alto, manter-se em equilíbrio no alto, na lama pedir para voltar. Isto prevê o anular-se, o não desdenhar os oxímoros, a feliz, mas não tranqüila contradição do mundo, tendo a coragem, como a fênix, de renascer e de novo morrer.
Martino se anulou no redemoinho das palavras, na experimentação, na criação de mundos e utopias alternativas para depois jovem amadurecido, desditoso cantor da sorte do mundo e vigoroso cantor de beleza e força voltar ao mundo da simplicidade, dos territórios encantados e impregnados de paixão pelo humano em que a poesia ainda consente seguir. Desta vez, esclarecendo a magmática palavra, assim como Orfeu sobe, mas ousa descer outra vez ao inferno.
Se for certamente poesia órfica, a cristalina pureza pagã se alinha à tração poética ocidental, que de cristã transmuta em gnóstica dos trovadores até Blake e Rilke. Esses modelos, os demônios, em busca do altar consagrado aos deuses, numa poesia afável, penetrante e, ao mesmo tempo, filosófica, de questões extremas e radicais, escondidas pela aparente facilidade da leitura. A poesia de Martino é insaciável de movimento, da Sicília ao México, por lugares fantásticos e reais. Todos os mares do mundo, locais eleitos e evocados que depois não são mais os mesmos, permanecem pelos versos, ondas sobre areia, rocha. Salvatore Martino é rambler2.
Viajando até a paisagem lunar, verossímil e fantástica, com a qual quis empoeirar, leve forma de distância em cidades geográficas distantes e existencialmente próximas, o seu mundo poético em seu último livro editado, o já mencionado As cidades possuídas pela lua. Em perfeito equilíbrio, o múltiplo geográfico e o unitário poético se encontram no estilo seco e essencial, ainda mais lírico. Intimista e brutal com o mundo. Diante do seu lugar único (os campos romanos fora da cidade, próxima do Soratte declamado pelos poetas), ponto mágico onde converge um conhecimento do mundo, em equilíbrio entre muita amargura e um pequeno aceno de esperança. Dignamente atento à voz interior, em meio a tanta algazarra de idiotices, na qual Martino se sente estranho não por esnobismo, mas eventualmente por amor, ocioso dolorosamente exilado. Nesse exílio, nasce Livro da renúncia. Em um turbilhão poético ressecado, como pelo capim à beira de um barranco, não de renúncia definitiva, mas talvez de derrota resignada. Um velocista, na linha de partida, à espera do tiro que o leve a uma nova existência, mas, enquanto isso, preso e cansado, aflito no espasmo de um nervo tenso, de uma cãibra. A viagem chega a um alto valor poético, em que revive um colóquio debilitado com mestres de vida e poesia, de uma humanidade recente. Tais diálogos são pérolas luminosas, memória de luz, como do túnel de uma brusca noite se entrevê, muito longe, um murmúrio de claridade.
A simplicidade dramática e tensa é um trabalho assíduo de espoliação do banal, estilístico e existencial, um tormento vital e corajoso, uma digna autocensura. Não posso esquecer outro compromisso de Salvatore Martino: o teatro, com uma longa carreira "nas costas" e muitos projetos no futuro. Um traço essencial, felizmente paradoxal, que une as duas experiências artísticas nesse período. Nas prisões, Salvatore está levando, rambler pela Itália, um espetáculo seu sobre o texto de Hugo, O último dia de um condenado à morte [L'ultimo giorno di un condannato a morte], em que cria uma impressionante cumplicidade com os detentos com os quais ensaiou durante a montagem (fui testemunha disso no cárcere romano Regina Coeli).
O teatro, a ação livre do corpo sobre um texto escrito e improvisado de qualquer modo, sempre diferente e o cárcere, a noção estrutural e simbólica, além de real, da reclusão, a comoção da caridade para com o homem também são elementos de seu poetizar dessas líricas reunidas (o texto recita exatamente as últimas palavras de um condenado à morte).
Subtrai e aprisiona diante da escuridão das guerras presentes, da incivilidade e barbárie, sofística, dos poderosos das imagens. Renuncia. Renuncia-se. Aprisiona-se, até desaparecer do mundo. E esse nada grita tão alto que nos faz amar e saborear a liberdade. É um belíssimo jogo de paradoxos, é exatamente cárcere, aspiração ao sublime numa sociedade anti-sublime ("se o cárcere obsessivo/ do prazer da harmonia do belo"*1), está no centro da meditação da sintética lírica epônima do livro. O errar de Martino termina com imagens de graça cotidiana, "a escada esquecida contra a árvore"*2, percorrida pelo fogo inextinguível das questões eternas: "Quem somos me pergunto? Qual sorte nos guia?"*3
Faz-se sentir o tremor gentil e nobre de uma última aparição de liberdade, a poesia cultivada naquela amizade de verdadeira humanidade com personagens da cultura italiana e estrangeira. Como na lírica epônima, "Livro da renúncia":
Pergunto-me às vezes
Mi chiedo a volte
Quando do rio sobem os vapores
quando dal fiume salgono i vapori
e a paisagem assume
e il paesaggio assume
as cores tonais do despertar
i colori tonali del risveglio
Pergunto-me às vezes
mi chiedo a volte
onde se dispersa a vereda marcada
dove si disperde il sentiero fissato
se o cárcere obsessivo
se il carcere ossessivo
do prazer da harmonia do belo
del piacere dell'armonia del bello
pode exorcizar
possa esorcizzare
este coágulo de signos
questo aggrumo di segni
este habitar dentro da ferida
questo abitare dentro la ferita
Quem somos, me pergunto?
Chi siamo mi domando?
Qual sorte nos guia?
Quale fato ci guida?
Tornam-se respostas as perguntas
Diventano risposta le domande
Sem nunca sê-lo
senza mai esserlo
o que importa?
che importa?
Talvez sejamos aquele fogo imaginário
Forse siamo quel fuoco immaginario
A montanha coberta de geleiras
la montagna coperta di ghiacciai
A escada esquecida contra a árvore
la scala dimenticata contro l'albero
A tormenta e a lua
la tormenta e la luna
Somos os depositários do absurdo
Siamo i depositari dell'assurdo
O viandante emerso da argila
il viandante emerso dalle crete
O vazio de um adeus
il vuoto di un addio
A areia que purifica os pecados
la sabbia che purifica i peccati
O farol entrevisto de longe
il faro intravisto di lontano
Somos a água do rio dos danados
Siamo l'acqua del fiume dei dannati
A crônica infinita das lutas
la cronaca infinita delle lotte
O arbítrio e o esquecimento
l'arbitrio e la dimenticanza
Somos a ilha já desabitada
siamo l'isola ormai disabitata
Somos a estrada alada
siamo la strada alata
A renúncia
la cancellazione
É uma percepção ultimamente positiva da natureza, animada, rica de presença. Cuida-se dela como daquele jardim real e simbólico, labirinto de alma e lugar de escrita. Um outro tema central, além da renúncia e da viagem, acompanha o longuíssimo e premiado itinerário de Salvatore Martino:
AQUELA PARTIDA QUE NÃO SABES JOGAR
QUELLA PARTIDA CHE NON SAI GIOCARE
Quem sabe? São os deuses
Chissà? Sono gli dèi
a mover o branco e preto
a muovere il bianco e il nero
da nossa partida?
della nostra partita?
ou talvez sejam os homens a sonhar
O forse sono gli uomini a sognare
os movimentos do tabuleiro
i movimenti della scacchiera
esta batalha com a sorte
questa battaglia con la sorte
Os jogadores seguem o movimento
I giocatori inseguono la mossa
inventam aqueles sucessivos
inventano quelle successive
não conhecem o vulto
non conoscono il volto
o frio a eficiência o medo
il freddo l'efficienza la paura
do adversário cego
dell'avversario cieco
do outro lado do quadrado
dalla parte opposta del quadrato
Tentam mexer torres bispos
Tentano di spostare torri alfieri
atacar o rei com as peças
di attaccare il re con le pedine
oferecem os flancos aos cavalos
prestano il fianco ai cavalli
armam cilada para a rainha
tendono l'agguato alla regina
um jogo de pequenas trapaças
un gioco di piccoli raggiri
sobre plano fatalmente em duas cores
sul piano fatalmente in due colori
Somos as peças de marfim?
Siamo i pezzi d'avorio?
Ou os homens? Ou os deuses?
O gli uomini? O gli dei?
Todos engaiolados
Tutti ingabbiati
Todos sem saída
tutti senza uscita
Quem sabe se Deus joga a partida?
Chissà se Dio la gioca la partita?
Se distraído nos move com pensamento?
Se distratto ci muove col pensiero?
Ou ele também é movido
O anch'Egli è mosso
por uma peça mais distante?
da una pedina ancora più lontana?
Como se torna estranha esta estória
Come diventa strana questa storia
um cálculo e condiciona
un calcolo e condiziona
todo o jogo.
tutto il gioco.
eu o queria encontrar
Io lo vorrei incontrare
este fogo
questo fuoco
este divino conhecimento
questa divina conoscenza
em uma estação de periferia
in una stazione di periferia
no hall de um hotel em ruínas
nella hall di un albergo fatiscente
em uma louca corrida numa auto-estrada
in una folle corsa in autostrada
Mas realmente nasceu
Ma è veramente nata
essa tola disputa que vivemos?
questa sciocca contesa che viviamo?
Mestamente abandono
Mestamente abbandono
os quadrados perfeitos
i quadrati perfetti
onde as fileiras se defrontam
dove le schiere si fronteggiano
em cromática fuga
in cromatica fuga
sobre leito fatalmente em duas cores
sul letto fatalmente in due colori
o engano
l'inganno
o fingimento
la finzione
na aurora e do sonho recompostos).
nell'alba e dal sogno ricomposti.
Torna-se pungente o pedido de beleza, entendida como um universo em que se podem encontrar os deuses nas variadas formas da natureza e da criatividade humana. Com uma dupla suspeita: que estes não sejam nada mais que o cenário fictício de um evento ou de eventos esperados no futuro, e que talvez tenham alegrado o mundo em tempos de origens douradas ou, ao contrário, que a vida seja tão sutil de razões, tornando-se, na sua totalidade, ilusão.
Todavia o grito, a força, momento central e talvez único do livro, não pára de ecoar, de desejar: "Eu o queria encontrar/ este fogo/ este divino conhecimento/ em uma estação de periferia"*4. É necessário abandonar os quadrados fixados, o lugar determinado, exonerar-se do mundo da legislação pactuada, mesmo que nos primeiros momentos isso provoque tristezas e melancolias. A glória mundana provavelmente não alegrará o poeta verdadeiro, sozinho consigo mesmo em meditação. A não ser em oração, secularmente no limiar da aurora, como se fosse o início de todas as coisas em uma posição de escuta originária:
ORAÇÃO NO LIMIAR DA AURORA
PREGHIERA AL LIMITAR DELL'ALBA
Elevou-se a deturpar
Salito a deturpare
com a luz o engano
con la luce l'inganno
astro que pensa a noite
astro che ragiona della notte
a magia da nostalgia
la magia del rimpianto
aquela solar da renúncia
quella solare della cancellazione
O deus não fala
Il dio non parla
na ambígua morada
nell'ambigua dimora
cada vingança sua é uma esperança
ogni vendetta sua è una speranza
cada minha rebelião um obedecer
ogni mia ribellione un obbedire
Réstia de neve liquefeita
Treccia di neve liquefatta
me chames do oráculo perdido
mi chiami dall'oracolo perduto
para qual signo me arrastas?
a quale segno mi trascini?
Como desenganar a traição?
Come vanificare il tradimento?
Vazio artifício
Vuoto artificio
que socorres os náufragos
che soccorri i naufraghi
astro gelado das manhãs
astro gelato dei mattini
crucífero da ânsia
crocifero dell'ansia
Com tua manta escondes o medo
col tuo mantello celi la paura
na voz segura florescem
nella voce sicura fioriscono
todos os juramentos
tutti i giuramenti
Quando poderemos transpor o mito?
Quando potremo sconfinare il mito?
e consagrar ao vento a saliva
e consacrare al vento la saliva
como uma cantilena de silêncios?
come una cantilena di silenzi?
Venha confundir as mentes
Vieni a confondere le menti
demônio branco
dèmone bianco
a rondar os passos da saída.
a circondare i passi dell'uscita.
Eis divino, venha. Na sua própria imagem, ilumine os contrastes: demônio, mas branco, como um anjo. Fogo e gelo em versos memoráveis, entre a audácia da criação, saturação do tédio, consciência do limite. Todos condensados numa fórmula antiguíssima que se coloca agora como pergunta crucial que persegue Martino da aurora de seu caos: mas existem ou nunca existiram esses demônios, e esses deuses, do bem e do mal, adorados e adoradores dos destinos do belo?
Nessas luminosas encarnações, no altar do belo e do justo, convergem os versos do poeta. Eles são o fim da viagem, como sugestivamente escreve Sergio Campailla, que viajou longamente com Martino na estrepitosa introdução do livro: "A sua inconsciente paixão pela derrota se transformou, pela sabedoria de um deus alquimista, numa esplêndida vitória lírica [...] a própria viagem é uma iniciação para o absoluto. Basta, na bagagem, um moeda de ferro, o óbolo para o condutor. E eis o hino a Hermes, a divindade dos segredos, o guia cúmplice".
A derrota, inicialmente, era mitigada pelo protesto das palavras, agora é catarse e hino, pergunta e invectiva. Os deuses não existiam, eram presenças cobiçadas de sombra escura na potente caótica descrição da primeira viagem em A fundação de Nínive. O respeitável prefaciador, ele também companheiro e mestre de Martino, Ruggiero Jacobbi: "Martino é, literariamente, de família grega: o seu simbolismo se inclina para o alexandrino, o seu surrealismo tem um fundamento clássico. Ele sabe muito bem que 'O deus não volta', e este é o sentido da história; mas sabe também que não tem resposta".
"Aqui não se vence mais", continuava o grande crítico, citando um verso emblemático de Nínive e estigmatizando depois como nesse sentido de morte Martino encontra uma saída, o caminho da salvação em um novo labirinto, aquele do sexo: "Todo contato carnal é 'condenação', mas ao mesmo tempo contém o início e o impacto da verdade. Desta passagem sensual, nunca negligenciando a carne e os seus reflexos misteriosos, Martino se encaminha no signo de uma humilde e altiva busca, até encontrá-los, nas últimas coletâneas, aqueles deuses pelo menos em forma de suspeita e de pergunta, paralelamente ao caminho que foi dito anteriormente: da renúncia estilística e do pensamento, da maturidade adquirida. Estes estão dentro do poeta que está em nós e precisam ser redescobertos numa imagem do homem, suprimidos os detritos que ainda pesam, olhando para fora a natureza e as suas incessantes metamorfoses".
Dessa forma, nasce um livro de sabedoria absoluta, poesia leve e filosófica, em equilíbrio admirável, onde o protagonista é o puer em busca da alma. Que precisa se anular do outro mundo, aquele feroz, materialista, da luta e dos desejos perturbados, dos sonhos nunca tidos ou interditos. Sacrificar-se, renunciar-se, para obter dentro de si mesmo a volta dos deuses, da poesia verdadeira. É renúncia ou compromisso para o humano? Talvez só Ceronetti e, de modo bem diverso, Testori tenham tentado uma poesia tão agudamente ética, sem limites no moralismo, ensinando a beleza da carne e da alma, como de longe, sem impor, impondo-se respeitavelmente lá onde se encontra o leitor, o outro pronto para colher a mensagem, a cumprir a mesma obra de renúncia.
Com certeza, é um movimento de poucos e Martino o sabe bem, e não consegue se livrar das garras da angústia e da tristeza da sorte do mundo. Assim o renunciar-se permanece um movimento duplo: do mundo e de si mesmo, em busca de uma verdade urgente para comunicar, mas destinada a poucos, aos livres.
Na lírica em que mais atormentada e urgente se constitui a questão da vida dos deuses, ou seja, da alma carnal, nós o compreendemos, com seus conteúdos irracionais, de luz, sombra e inconsciência, Martino pode concluir, oferecendo-nos a chave da viagem, da próxima viagem poética, o absoluto:
Aconteceram de verdade estas coisas?
Accaddero davvero queste cose?
Em qual tempo de nossa memória?
In quale tempo della nostra memoria?
São o reflexo de um pensamento
Sono il riflesso di un pensiero
de uma ânsia de um fado de um delírio?
di un'ansia di un fato di un delirio?
A nota abandonada
La nota abbandonata
sobre um teclado que não toca mais?
sopra una tastiera che non suona più?
Talvez sejam pesadelos do mar
Forse sono l'incubo del mare
A invisível pegada sobre a areia
l'invisibile orma sulla rena
Aquela água
quell'acqua
Que nos envolve e nos perde
che ci avvolge e ci perde
Nos transporta
ci tramanda
Intactos para o absoluto.
intatti all'assoluto
Isso nos envolve, nos perde, nos transporta formidável terna. Na inefável esperança, viajar intactos no último limiar, até o último limiar, o absoluto. No espaço e no tempo.
Recebido em 15/10/2005
Aprovado em 23/12/2005
Tradução Júlio César Carvalho [UNESA]
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Maio 2007 -
Data do Fascículo
Jan 2006
Histórico
-
Aceito
23 Dez 2005 -
Recebido
15 Out 2005