Resumo
O artigo procura caracterizar a prática do ensaio e do poema-ensaio em Anne Carson a partir de uma investigação: de seus escritos e entrevistas sobre o tema; da forma de seus poemas-ensaios, em especial o “Ensaio sobre aquilo em que mais penso”; e da teoria do ensaio em autores como Montaigne, Theodor Adorno e Timothy Corrigan. Para tanto, o artigo mobiliza as categorias de erro, dúvida, amadorismo e prazer e se pergunta sobre a sua relação com a noção de especialidade, contra a qual a noção de ensaio emerge na contemporaneidade.
Palavras-chave:
Anne Carson; ensaio; poema-ensaio
Abstract
This article seeks to characterize the practice of both the essay and the essay poem in Anne Carson, based on an investigation of three elements: her writings and interviews on the subject; the form of her essay poem, especially the "Essay on What I think About Most"; and the theory of the essay in authors such as Montaigne, Theodor Adorno, and Timothy Corrigan. To this end, the article mobilizes the categories of error, doubt, amateurism and pleasure, and questions their relationship to the notion of specialization, against which the notion of the essay emerges in contemporary times.
Keywords:
Anne Carson; essay; poem-essay
Resumen
El artículo busca caracterizar la práctica del ensayo y el poema-ensayo en Anne Carson, basándose en una investigación de sus escritos y entrevistas sobre el tema; en la forma de sus poemas-ensayos, especialmente el "Ensayo sobre lo que más pienso"; y la teoría del ensayo en autores como Montaigne, Theodor Adorno y Timothy Corrigan. Para eso, el artículo moviliza las categorías de error, duda, amateurismo y placer, y cuestiona su relación con la noción de especialización, contra la cual emerge la noción de ensayo en la contemporaneidad.
Palabras clave:
Anne Carson; ensayo; poema-ensayo
As pessoas que decidem se debruçar sobre o trabalho de Anne Carson encontram imediatamente uma primeira questão de fundo que se interpõe a muitas outras questões em sua obra: a indeterminação genérica de seus escritos. Romance, poesia, diário, ensaio, tradução e outras formas se alternam e misturam em seus textos.
Helena Martins, por exemplo, alude ao fato de que a obra de Carson “é conhecida pelo singular transbordamento de fronteiras que promove, não apenas no que tange à tradução, mas também a outras formas de escrita ligadas às diferentes profissões que exerce” (Martins, 2018, p. 705MARTINS, Helena Franco. Escrever de volta: Anne Carson, Emily Dickinson. Remate de Males, v. 38, n. 2, p. 703-725, 2018.). Otávio Guimarães Tavares também alude à “mescla e desarticulação dos limites e fronteiras dos diversos gêneros” como “traço fundamental de sua poética”, de maneira a operar “entre diferentes formas literárias, com narrativas em verso, poemas ensaísticos, e obras que fogem a definições precisas” (Guimarães, 2020, p. 120GUIMARÃES, Otávio. Anne Carson tradutora de Antígona: performance e tradução de um grito. Anuário de Literatura, v. 25, n. 2, p. 119-138, 2020.).
Na introdução à coletânea de ensaios norte-americana chamada Anne Carson: Ecstatic Lyre, o organizador Joshua Marie Wilkinson coloca o mesmo problema em função da questão dos gêneros literários. Ele classifica quatro posições literárias a serem tomadas por quem escreve: (1) encaixar-se em um ou mais de um gênero; (2) tornar-se exemplar em um deles; (3) dobrá-los e misturá-los; e (4) obliterar um gênero de dentro para fora (Wilkinson, 2015, p. 1-9WILKINSON, Joshua M. (org.) Anne Carson: Ecstatic Lyre. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2015.). É nesta quarta posição que Wilkinson localiza o trabalho de Carson.
Em um artigo para o New York Times, Dinitia Smith atribui a Carson a frase “Homero é um poeta. Eu diria que eu faço [I make] coisas” (Smith, 2004SMITH, Dinitia. A Passion for the Classics and, Well, Passion. The New York Times. 2004. Disponível em: https://www.nytimes.com/2004/03/27/theater/a-passion-for-the-classics-and-well-passion.html. Acesso em: 05 de maio de 2023.
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).1
1
As citações extraídas diretamente de publicações em inglês foram traduzidas livremente pelo autor do artigo.
Para não repetir o que já foi dito por outros pesquisadores, escolho este outro ponto de partida para me aproximar dos textos da autora canadense. Certamente eu não seria a primeira pessoa a relembrar que a expressão “eu faço” (“I make”), remete ao verbo grego “poieín” (ποιεῖν), de onde surgiram os substantivos “poíesis” (ποίησις) e “poietés” (ποιητής). Eles servem de radical para as palavras em inglês e em português “poet”, “poeta”, e “poetry”, “poesia”.
Ora, em Grief Lessons, Carson alude ao trabalho do ator como sendo o da atuação (“to act”) no sentido da ação (action): “Não é por isso que eles são chamados de atores? Eles agem por você” (Carson, 2006, p. 7CARSON, Anne. Grief Lessons. Four plays by Euripides. Translated by Anne Carson. New York: New York Review of Books, 2006.). Em uma entrevista que concedeu a Alex Dueben para o website Suicide Girls, Carson afirma que “uma peça é (lembre-se da etimologia de “drama”, do grego DRAN “fazer ou agir”) uma coleção de ações e feitos” (Dueben, 2012DUEBEN, Alex. Anne Carson: Antigonick. Suicide Girls. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.suicidegirls.com/girls/sash/blog/2680448/anne-carson-antigonick/ . Acesso em: 26 out. 2020.
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). Atores atuam; poetas “poetam” (ou fazem) coisas. Quando a escritora, ou fazedora Anne Carson, afirma, portanto, que, ao invés de ser poeta, ela faz coisas, o que se diz é que a sua atividade literária se esforça por resgatar um sentido mais originário da palavra “poeta”, que transcende, a princípio, o ofício da escrita em sentido estrito.
Se poeta é uma palavra que, para nós, remete a um ofício mais ou menos especializado num conjunto determinado de gêneros literários, a ideia de uma “fazedora” deve nos empurrar para longe da visão da escritora como especialista. A expressão “faço coisas” para se referir ao seu trabalho é genérica o suficiente para distanciar Carson da imagem moderna da poeta autoridade ou mestra em uma técnica - ou em um gênero.
Uma imagem pode apresentar a radicalidade dessa acepção. Se virmos alguém mexer em fiação elétrica, operar uma mesa de dissecação ou arrancar um dente ao mesmo tempo em que diz que não é eletricista, médica legista ou dentista, mas sim que é “alguém que faz coisas”, não temos uma impressão muito segura com relação à eficácia de seu trabalho. Não confiaríamos nessas pessoas como profissionais. Diríamos delas que são amadoras, deixando pairar sobre suas cabeças a nossa dúvida e o medo do erro.
A dúvida e o erro são duas peças-chave no motor do trabalho de Carson. A tese de doutorado de Jennifer Thorp (2015THORP, Jennifer R. Prowling the Meanings: Anne Carson's Doubtful Forms and The Traitor's Symphony. 2015. Dissertation (PhD in Philosophy) - University of Manchester, Manchester, 2015), por exemplo, sobre “As formas da dúvida e a sinfonia do traidor de Anne Carson”, avalia, justamente, a força de produção dessas categorias na sua obra. Ceticismo (dúvida) e empirismo (experimentação e errância) também são as bases para o surgimento de um gênero que, tradicionalmente, misturou todos os outros, borrou as suas fronteiras, testou os seus limites, insistentemente: o ensaio. E foi com o primeiro “fazedor” de ensaios que essa forma de escrita se distanciou do saber especializado. No ensaio “Dos livros”, Michel de Montaigne afirma que:
me ocorre não raro falar de coisas que são melhor e mais precisamente comentadas pelos mestres do ofício. [...] Quem busca sabedoria [ciência], que a busque onde se aloja; não tenho a pretensão de possuí-la. [...] Não se preste atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão somente à maneira por que as trato. E, no que tomo de empréstimo aos outros, vejam unicamente se soube escolher algo capaz de realçar ou apoiar a ideia que desenvolvo, a qual, sim, é sempre minha. (Montaigne, 2016, p. 418MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sergio Milliet. São Paulo: Editora 34, 2016.).
Para o autor dos Ensaios, escrever esses textos é exercício de amador e não de especialista. Não é de alguém que possui e domina sua ciência, mas de alguém que ama o saber, à maneira do Sócrates de Platão, que no Banquete se dirige eroticamente à verdade - isto é, não possuindo, mas reconhecendo em si a falta de saber que o impele por isso mesmo à sua busca (Platão, 2011, p. 153PLATÃO -. O Banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 2011.). “Nenhum dos deuses se dedica à filosofia nem deseja ficar sábio”, nos diz Diotima pela boca de Sócrates no diálogo de Platão (204a), “pois isso ele já é”. Ocupam-se da filosofia aqueles que não são sábios, como os deuses, nem ignorantes, mas que se encontram “entre uns e outros”: aqueles que sabem que não têm o saber (Platão, 2011, p. 153PLATÃO -. O Banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 2011.).
A busca erótica pela verdade conduz o amante filósofo de Platão à felicidade da geração (206c), “ou segundo o corpo ou segundo o espírito” (Platão, 2011, p. 159PLATÃO -. O Banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 2011.). Para Carson, não saber também a conduz à criação. Pelo menos é o que podemos ler em uma entrevista concedida a John D’Agata, e publicada em 1997, à mesma época em que ela trabalhava em seu romance em versos, Autobiografia do vermelho. Quando perguntada sobre seu processo criativo, a autora responde que pensar teoricamente sobre seu próprio trabalho “interrompe o processo de não saber o que se está fazendo” (D’Agata, 1997, p. 2D’AGATA, John. A___ with Anne Carson. Iowa Review, v. 27, n. 2, p. 1-22, 1997.). A pergunta imediata que vem ao entrevistador é: “é essa a forma do ensaio?” (D’Agata, 1997, p. 2D’AGATA, John. A___ with Anne Carson. Iowa Review, v. 27, n. 2, p. 1-22, 1997.).
No encalço dessa entrevista, uma das primeiras caracterizações da obra de Carson como fundamentalmente ensaística vem de Robert Stanton, que em seu ensaio sobre a “Errância” de Carson alude à mobilidade e à elasticidade do ensaio em seus escritos:
Carson se dedica à forma ensaio: seu livro Plainwater tem como subtítulo Ensaios e Poesia, mesmo que o seu conteúdo possa ser descrito como poesia sem grandes controvérsias; The Beauty of the Husband é um “ensaio ficcional”; Glass, Irony and God e Men in the Off Hours, teoricamente coletâneas de poesia, contêm, ambos, ensaios; e Eros the Bittersweet, seu primeiro livro (...) tem como subtítulo Um ensaio. (Stanton, 2003, p. 36STANTON, Robert. “I am Writing This to Be as Wrong as Possible To You”: Anne Carson’s Errancy. Canadian Literature, v. 176, p. 28-43, 2003.).
E aponta como centro de seu trabalho uma questão fundamental: uma vez que a dúvida e o erro compõem as bases do trabalho de Carson, como pode a forma do ensaio dar ensejo também à vocação acadêmica de “informar verdades”? Essa pista de leitura é seguida também na tese de doutorado de Julia Raiz, que percebe na autora canadense não apenas uma proximidade com o filósofo francês, mas também com Virginia Woolf. Se Carson partilha com Montaigne a contaminação da escrita pela experiência da perda, da melancolia, da morte e da doença (Nascimento, 2022, p. 53NASCIMENTO, Julia Raiz. Que tipo de withness comtitude seria essa? Traduzindo os ensaios de Anne Carson. 2022. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.), e se ambos têm em comum errância e dúvida, é em Woolf que Raiz percebe uma maior influência ensaística formal, teorética e política (Nascimento, 2022, p. 47-61NASCIMENTO, Julia Raiz. Que tipo de withness comtitude seria essa? Traduzindo os ensaios de Anne Carson. 2022. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.).
Na própria entrevista a D’Agata, Carson se posiciona diante de um aspecto da investigação ensaística de Michel de Montaigne: o da escrita de si, o impulso de autorretrato e autoexperimentação do eu. O autor dos Ensaios afirma nos seus escritos: “é a mim mesmo que pinto”, “sou eu mesmo a matéria deste livro” (Montaigne, 2016, p. 39-40MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sergio Milliet. São Paulo: Editora 34, 2016.). Anne Carson vai na contramão da famosa nota ao leitor de Montaigne: “Acho essa ideia do ensaio como uma investigação de si meio assustadora” (D’Agata, 1997, p. 17D’AGATA, John. A___ with Anne Carson. Iowa Review, v. 27, n. 2, p. 1-22, 1997.). Ela prefere pensar que a matéria do ensaio está fora de si: é uma dádiva, “a gift”, no sentido de um presente, de um dom e de uma graça, “a grace”. Essa dádiva lhe é dada para que seja passada adiante. A citação é longa, mas vale a pena.
Quando você escreve um ensaio você está dando uma dádiva [gift], me parece. Você está dando essa graça [grace], como diriam os antigos. Uma dádiva [gift] não deve dar meia volta para dentro do eu e ficar ali. É por isso que os fatos são tão importantes, porque um fato é algo já dado [given]. É uma dádiva [gift] do mundo ou de onde você a encontrou. E então você pega essa dádiva [gift] e faz algo com ela, e você dá [give] de novo para o mundo ou para alguma pessoa, e isso continua. É difícil falar sobre essas coisas porque percebo, enquanto falo sobre elas, que a maneira como penso sobre isso vem da maneira como os antigos falam e pensam sobre a linguagem, que é diferente da maneira como nós pensamos. Porque eles têm esta palavra para graça, charis, que significa graça [grace] no sentido recíproco de ir e vir. Trata-se tanto de uma dádiva dada [gift given] quanto de uma dádiva recebida [gift received]. Os gregos usavam essa palavra para a graça [grace] de um poema, o encanto [charm] que o torna um poema e faz você querer se lembrar dele. Então para eles fazer um poema é fazer algo tão encantador [charming] que se tornará uma dádiva [gift] que o mundo vai querer receber [receive] e retribuir [give back] justamente porque é tão bom. E essa reciprocidade continua e faz com que a cultura tenha substância, um ir e vir. Memórias que remontam a mim não contribuem em nada para essa troca. Essas coisas que as pessoas estão escrevendo hoje em dia me parecem girar autorreferentes [self-circling]. Uma forma de terapia. É uma forma de escrever sem os fatos, então também é algo preguiçoso. Mas desrespeitoso, principalmente, o que é mais grave do que preguiçoso, porque para se concentrar apenas em si mesmo, você realmente precisa ignorar muito o mundo. O mundo está constantemente dando [giving] coisas para você que você poderia estar devolvendo [giving back]. (D’Agata, 1997, p. 17-18D’AGATA, John. A___ with Anne Carson. Iowa Review, v. 27, n. 2, p. 1-22, 1997.).
Carson rejeita o ensaio como escrita de si. E, paradoxalmente, ao mesmo tempo ela parece falar sobre si mesma em inúmeras situações. A escrita de si que ela rejeita é a do tipo “self-circling”, que gira em torno de si mesma, sem ter de lidar com “os fatos”. O mundo nos entrega dádivas a todo o momento. Sua forma de ensaiar é recebê-las e devolvê-las.
A ideia de que o mundo lhe dá coisas, como dádivas, se aproxima do ensaio tal como ele foi pensado no século XX por outra tradição teórica. “Em vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa”, diz Adorno em seu Ensaio como forma, os esforços do ensaio “ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram” (Adorno, 2023, p. 16). É talvez a algo dessa natureza, algo de já “pré-formado”, que Carson se refere quando alude às dádivas que o mundo dá à ensaísta.
Que o mundo dá à ensaista? Ou à poeta. A entrevista era conduzida na direção do ensaio, e a resposta da “fazedora” Anne Carson vem como uma fala sobre fazer poemas. É claro: na sua carreira de “fazedora”, embora seja autora de inúmeros ensaios escritos em prosa, a forma do poema-ensaio foi uma das mais experimentadas por Carson. Examinemos de perto, então, ensaios e poemas-ensaio que nos mostram como Anne Carson interpreta os papéis de amadora, errante e duvidosa.
A erudita amadora
Carson se apresenta à cena pública dos ensaístas com o texto Eros o doce-amargo. (2022CARSON, Anne. Eros o doce-amargo. Tradução de Julia Raiz. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.) Há, na introdução a esse ensaio, um pequeno prefácio, de menos de uma página, em que ela se refere ao filósofo do conto O pião, de Kafka. Conhecemos a história. O filósofo fica sempre à espreita de crianças que estão brincando de jogar pião. Ele tem a convicção de um ensaísta: o conhecimento de qualquer insignificância equivale ao conhecimento do geral. Por isso se ocupa apenas do mistério do giro dos piões, de sua beleza fugaz. Quando elas arremessam o brinquedo, o filósofo tenta agarrá-lo na esperança de compreendê-lo, mas ao agarrá-lo, arremessa o pedaço de madeira no chão, desapontado (Kafka, 2002KAFKA, Franz. Narrativas do espólio: 1914-1924. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.).
O conto tem caráter de fábula. Kafka está falando de uma relação com o saber e com a aparência. Carson o insere em um ensaio sobre o desejo. E para quê? Para colocar o problema da pessoa amada ao lado do problema do conhecimento. Para Carson, é nítido que a filosofia é um exercício erótico diante do saber. Um filósofo não tem o saber; se o tem entre as mãos, já não é filósofo (é, talvez, um especialista?) (Carson, 2022, p. 15-16CARSON, Anne. Eros o doce-amargo. Tradução de Julia Raiz. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.).
É difícil, no entanto, aceitar de bom grado que Carson não seja, de fato, uma erudita. Especializou-se em Estudos Clássicos, sobre o que deu aula durante muitos anos no Ensino Superior. A autora vive a tecer comentários filológicos de reconhecido valor pela comunidade acadêmica e se move com muita desenvoltura entre os arquivos da tradição grega arcaica, escrevendo sobre poetas mélicos, épicos e dramáticos. O ensaio, então, não poderia ser meramente um exercício de seu não-saber. Como, então, ela aparece sob a máscara de uma amadora? Apesar de si mesma.
Carson lança mão de diversos recursos para expor que o seu não-saber insiste apesar de seu saber. Essa exposição, ou antes, essa atuação, envolve alguns dispositivos recorrentes. Um deles consiste em anexar uma frase como “não sei” imediatamente colada à demonstração de erudição. Um bom exemplo se refere, justamente, à questão com a qual ela inicia sua trajetória como pensadora, à questão do desejo.
Carson é conhecida por pensar o desejo desde os poetas mélicos arcaicos (como Safo ou Anacreonte) até o modo como figura em pensadores e pensadoras contemporâneas (como Sartre ou Virgínia Woolf). Em um ensaio bastante estranho, em que ela atua como Eurípides, ela tenta explicar, falando em nome do próprio dramaturgo, “Por que escrevi duas peças sobre Fedra”. Esse ensaio é o posfácio no volume Grief Lessons, no qual figuram quatro traduções que a autora fez de peças de Eurípedes - uma delas, Hipólito, justamente uma das duas tragédias sobre Fedra. Por ora, não interessa tanto o conteúdo da peça nem do ensaio de Carson que a prefacia. Mas importa, isto sim, o que Carson faz com sua erudição. Ela coloca “na boca” de Eurípedes, à propósito de suas peças sobre Fedra, uma longa reflexão sobre o desejo. A certa altura, ela afirma: “qual é a questão do desejo? Eu não sei” (Carson, 2006, p. 311CARSON, Anne. Grief Lessons. Four plays by Euripides. Translated by Anne Carson. New York: New York Review of Books, 2006.). Temos aqui uma autora que escreveu exaustivamente sobre o desejo na literatura grega e que traduziu Eurípedes, performando um não-saber duplicado nela mesma e no dramaturgo que escreveu uma peça baseada no desejo da madrasta Fedra por seu enteado Hipólito.
Outro exemplo se encontra no mesmo volume, no prefácio que Carson escreveu para outra peça que traduziu, Hécuba. O ensaio tem dois temas: é uma pequena reflexão sobre “o desprazer” em Eurípedes, ao mesmo tempo em que reflete sobre a principal questão da rainha de Troia, heroína da peça: a vingança. “Vingança é uma forma de desejo”, afirma Carson, “está do lado das coisas vivas” (Carson, 2006, p. 96CARSON, Anne. Grief Lessons. Four plays by Euripides. Translated by Anne Carson. New York: New York Review of Books, 2006.). Estamos novamente no âmbito de sua “especialidade”. E, no entanto, ela continua: “Que tipo de desejo é a vingança? é uma questão que fica sem resolução para mim. Depois de estudar essa peça, o que é em si um estudo do que é a vingança, eu não sei se Eurípedes quer que pensemos nela como boa ou má(...). Talvez ele mesmo não o saiba” (Carson, 2006, p. 96CARSON, Anne. Grief Lessons. Four plays by Euripides. Translated by Anne Carson. New York: New York Review of Books, 2006.). O ensaio termina com uma busca por “vingança” no Google, quer dizer, com essa performance de amadorismo apesar da erudição da autora. Ela ensaia uma resposta à questão da vingança citando três websites “amadores”:
Se você jogar “vingança” [revenge] no google, você encontrará muitas coisas consideráveis, incluindo o Avenger’s Front Page, um manual tático de pegadinhas e caos “completo com instruções sobre como transformar a vida profissional de um local com 7 a 11 profissionais em um pesadelo, e que talvez se aplique a outros estabelecimentos.” Você também encontrará RevengeLady.com, que “usando a antiga arte da vingança para trazer humor e felicidade de volta à sua vida” oferece a você um Quiz da Vingança para descobrir se isso é para você. Primeira questão: “Vingança pode ser melhor descrita como: a) infantil b) degradante c) doentia d) uma tradição antiga e honorável que pode ajudar a aliviar o estresse e restaurar o equilíbrio.” E finalmente você encontrará o Revenge Unlimited, uma tela preta e vazia que diz simplesmente “novo site e carrinho de compras em breve.” Talvez o último item seja o mais revelador. (Carson, 2006, p. 96CARSON, Anne. Grief Lessons. Four plays by Euripides. Translated by Anne Carson. New York: New York Review of Books, 2006.).
Performar uma pergunta sem resolução é um dispositivo ensaístico em Carson. Ocorre com alguma frequência em sua obra. Como acontece num texto recente em que a autora comenta o trabalho de Cy Twombly. Como ela decide escrever sobre o pintor expressionista abstrato? A partir de sua erudição. Comparando-o a Catulo. Para isso, recorre a uma tela de Twombly chamada Sem título (Diga adeus Catulo às Praias da Ásia menor). “Já que eu não sou uma especialista em arte”, nos diz Carson no início de seu ensaio, “ainda que eu tenha estudado os clássicos, quero tentar pensar Twombly através dos poemas de Catulo” (Carson, 2020). Algumas linhas mais adiante, no entanto, Carson afirma: “Eu não sei realmente o que Catulo significava para Twombly” (Carson, 2020CARSON, Anne. The sheer velocity and ephemerality of Cy Twombly. Lithub. 2020. Disponível em: Disponível em: https://lithub.com/anne-carson-the-sheer-velocity-and-ephemerality-of-cy-twombly/ . Acesso em: 06/08/2024
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). Saber e não-saber são performados em sua escrita.
Mas é nos seus poemas-ensaio que essa performance encontra as consequências mais decisivas e radicais de sua experimentação enquanto ensaísta.
Errância e metáfora
Comecemos pontuando que Anne Carson não inventa a forma poema-ensaio. Já em 1981, por exemplo, Ana Hatherly tentava pensar em algumas “Notas para uma teoria do poema-ensaio” (Hatherly, 2001, p. 327-333HATHERLY, Ana. Um calculador de improbabilidades. Coimbra: Quimera edições, 2001.). No entanto, não são tão abundantes os trabalhos que tentam compreender a gênese do gênero. É certo que poemas-ensaio podem ser chamados também apenas de “ensaios”, na medida em que o ensaio, tomado como forma interna, não se restringe à sua prática em prosa ou a uma “fôrma” específica. No entanto, a caracterização do gênero se justifica quando estamos diante do encontro do ensaio com as tradições do fazer lírico. Não tanto para criar características descritivas, quanto para reconhecer em sua manifestação a presença de uma história formal. Quer dizer, ao mesmo tempo em que um poema-ensaio é um ensaio (isto é, é uma forma, e não um gênero), ele nasce dentro de uma tradição formal enquanto um gênero específico e uma tradição “técnica”.
Trata-se de uma questão similar àquela que verificamos no cinema com os filmes-ensaio. Um dos primeiros a usar o termo foi André Bazin, num pequeno texto publicado no mesmo ano que O ensaio como forma, de Theodor Adorno, a propósito de “Carta da Sibéria”, de Chris Marker (também de 1958) (Bazin, 2017, p. 102-103BAZIN, André. Bazin on Marker. In: ALTER, Nora M.; CORRIGAN, Timothy (org.). Essays on the Essay Film. Tradução de David Kehr. Nova York: Columbia University Press, 2017. p. 102-103.). O crítico percebe, no filme de Marker, um tipo de produção cinematográfica que não é exatamente ficção, nem apenas experimentação formal, nem somente documentário - mas um pouco de tudo isso e algo mais. A esse propósito, Timothy Corrigan afirma, em sua obra The Essay Film, que o filme-ensaio em cineastas como Marker, Varda ou Godard derivam do encontro de três tradições fílmicas. Em primeiro lugar, a tradição da experimentação das vanguardas (o que no ensaio em geral coincide com a experimentação formal); em segundo lugar, a tradição dos filmes documentários (que falam de objetos e fazem experiências no mundo “real”, o que honra a tradição de empirismo do ensaio); e, por fim, a tradição dos filmes domésticos (que equivalem à “escrita de si” de Montaigne) (Corrigan, 2011CORRIGAN, Timothy. The Essay Film: From Montaigne, After Marker. Oxford: Oxford University Press, 2011.).
Talvez haja, aí, um paralelo com a emergência do poema-ensaio. Porque também ele deriva do encontro de três tradições líricas: por um lado, a da experimentação poética formal das vanguardas do século XX (pense aqui em Mallarmé, por exemplo); por outro, a da escrita que Ezra Pound chamaria de “logopaica” (Pound, 2006POUND, Ezra. O ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.) em outras palavras, ligada a como o poema opera o lógos em sua retórica, numa espécie de dança das ideias (certos poemas de Pessoa ou dos irmãos Campos); por fim, a essas tradições soma-se a influência da tradição de escrita amadora de poesia, a tradição anônima da poesia confessional íntima e secreta dos cadernos dos adolescentes.
Experimentação formal, pensamento e escrita de si acompanham também o trabalho de Carson enquanto uma poeta-ensaísta. Mas como ela se situa na história do poema-ensaio? De que maneira sua obra também se configura como algo de único e inclassificável nesse conjunto de inclassificáveis que se aglomeram sob o mesmo nome? Mobilizando o erro como método.
Analisemos um de seus poemas-ensaio mais icônicos. Publicado em 1999 e depois republicado em 2000, Men in the off hours é uma espécie de comentário a um poema do período arcaico da Grécia Antiga, o fragmento 20 de Álcman. Veremos mais adiante como esse poema tem dois temas. Mas em seu início, ele enuncia um deles rapidamente:
O erro.
E suas emoções.
Na iminência do erro, uma condição para o medo.
No meio do erro, um estado de tolice e derrota.
A percepção de termos errado traz vergonha e remorso.
Ou não?
(Carson, 2023, p. 83CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023.).
A primeira estrofe começa com uma resposta ao título. Aquilo em que a poeta mais pensa é o erro. A escrita, aqui, se torna quase confessional. É Carson quem sente as emoções listadas como associadas ao medo. O poema é uma tentativa de experimentar o evento do erro sob outros pontos de vista.
Em inglês, a palavra que enuncia o objeto de seu pensamento não é o usual “mistake”, que deriva do antigo nórdico “mistaka”, mas “error”, que deriva do latim “errare”. Errare denota uma oposição ao verbo “acertar”, mas também pode significar um caminhar a esmo, um desvio, uma andança à toa. O que a primeira estrofe faz é evocar o erro em sua dupla acepção, formulando para ele tanto questões de juízo (isto é, de acerto e precisão) quanto de método (de caminho para a verdade).
Muita gente, por exemplo Aristóteles, acha que o erro
é um acontecimento mental interessante e valioso.
Na discussão sobre metáforas de sua Retórica
Aristóteles diz que há três tipos de palavras.
As estranhas, as comuns e as metafóricas.
“As palavras estranhas simplesmente nos confundem;
as palavras comuns transmitem o que já sabemos;
mas com metáforas podemos alcançar algo novo e fresco”
(Retórica, 1410b10-3)
No que consiste o frescor da metáfora?
Aristóteles diz que a metáfora faz com que a mente sinta a si mesma
no ato de se enganar.
Ele visualiza a mente seguindo pela superfície plana
da língua comum quando de repente
a superfície se rompe ou se complica.
Surge o inesperado.
Primeiro parece estranho, contraditório ou uma coisa errada.
E então faz sentido.
É neste momento que, segundo Aristóteles,
a mente vira para si mesma e diz:
“É tão verdadeiro, e ainda assim eu me enganei!”
Com os enganos verdadeiros da metáfora, pode-se aprender uma lição.
Não só que as coisas não são o que parecem,
e por isso nos enganamos sobre elas,
mas que também esse engano é valioso.
Aferre-se a isso, diz Aristóteles,
há muito o que ver e sentir por aqui.
As metáforas ensinam a mente
a gostar do erro
e a aprender
com a justaposição do que vem e o que não vem ao caso.
(Carson, 2023, p. 83-84CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023.).
O poema performa o próprio erro já na segunda estrofe. Ele desvia do erro para a metáfora, bem como do discurso direto para o indireto. Olhemos para o que disse Aristóteles sobre o caso, diz Anne Carson. E o que Aristóteles faz não é analisar o erro, mas o que faz uma metáfora ao embaralhar os sentidos literal e figurativo da linguagem. Esse desvio prepara o poema para enunciar, mais adiante, seu “objeto”. Pois, como afirmei, ele é também um comentário crítico sobre um fragmento de Álcman. Mas ele prepara também um outro assunto: como a erudita Anne Carson pode escrever amadoramente - submetendo-se ao erro -, apesar de sua trajetória acadêmica.
A isso, a esse abandono, ainda que momentâneo, da especialidade e do acerto, Carson atribui uma qualidade de novidade, de frescor. A mente, ao se desviar do caminho correto para a verdade, pode aprender com “o que vem e o que não vem ao caso”. Seus ensaios frequentemente incorporam esse desvio por meio da metáfora. Num ensaio sobre Hipólito, Carson compara a questão do livre-arbítrio e do determinismo a um ovo cozido (Carson, 2006, p. 168). Em outro ensaio, “Variações sobre o direito de permanecer calado”, a tradução é pensada também a partir de um desvio para os autos de inquisição envolvendo o processo de Joana D’Arc (Carson, 2023, p. 153-183). O referido ensaio sobre o desejo inclui inúmeras errâncias pela literatura moderna, pelo surgimento da linguagem escrita, pelas primeiras ações dos bebês.
O frescor da metáfora se associa ao “inesperado”, ou, no original, “unexpectedness”. Unexpectedness também pode significar a “inesperaridade” ela mesma, desprendida daquilo que era de fato inesperado (como a felicidade pode ser sentida não apenas num objeto ou evento feliz). É esse sentimento que Carson associa ao erro - e, por extensão, ao ensaio. O ensaio, essa forma que pensa também por metáforas (por imagens, poderíamos dizer com Walter Benjamin), pode ser visto aqui como a arte do erro, da criação deliberada do erro no ato do pensamento.
Você pode notar que Carson acrescenta, a partir de Aristóteles, que é possível, com isso, gostar do erro. Ela se refere, então, a um modo de pensar que se aproxima do que Adorno descreveu, em O ensaio como forma, como “princípio de prazer” do pensamento, tão próprio do ensaio (Carson, 2023, p. 42CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023.).
Mas voltemos ao poema. A certa altura, ela introduz seu objeto.
uma pincelada não faz dois caracteres.
E ainda assim,
é exatamente isso que faz um bom engano.
Aqui vai um exemplo.
É um fragmento de um antigo poema grego
que contém um erro de aritmética.
O poeta parece não saber
que 2+2=4.
Álcaman fragmento 20:
[?] fez três estações, verão
e inverno e a terceira, outono,
e a quarta, primavera, quando
tudo floresce mas de comer o bastante não há.
Álcman viveu em Esparta no século VII a.C.
Ora, Esparta era um lugar pobre
e é pouco provável
que Álcman levasse uma vida opulenta ou saciada.
Este fato é o pano de fundo de suas observações
que levam à fome.
A fome sempre
parece um engano.
Álcman nos faz sentir esse engano
com ele
através do emprego eficaz de um erro de cálculo.
Para um espartano pobre cuja
despensa está vazia
ao fim do inverno -
a primavera chega, enfim,
como uma reflexão tardia da economia natural,
quarto elemento de uma série de três,
tornando instável sua aritmética.
(Carson, 2023CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023., p. 84-85).
O erro computacional de Álcman (quatro estações numa lista de três) é lido por Carson como uma forma de transmissão da sensação da fome. Não há o suficiente para comer por quatro estações, então a quarta aparece como algo de errado diante do racionamento do poeta. A seguir, a poeta comenta como a própria métrica de Álcman se desestrutura com o evento da fome: o fragmento “se interrompe a meio do caminho de um pé iâmbico”, nos oferecendo a sensação de que a contagem e os números “não nos ajudam / a melhor controlar o real” (Carson, 2023, p. 85CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023.). O acerto aqui, então, seria um erro. Estamos diante de palavras enganosas e que, no entanto, dizem alguma verdade. A fome é sempre um engano - a aritmética não vem ao seu auxílio.
César Aira defendeu, em certa ocasião, que o ensaio é sempre o encontro entre dois temas. Se isso fosse verdade, o que não acredito, poderíamos dizer que os dois temas do ensaio de Carson são o erro e a mimesis. Temas antigos na história da reflexão sobre a poesia. Eles estão em jogo nas reflexões não apenas de Aristóteles, como também de Platão. A expulsão dos poetas no livro X da República se deve também ao fato de que a poesia engana. Os poetas que participam da pedagogia das pessoas na Grécia Antiga induzem ao erro e, portanto, devem ser desacreditados como autoridade de saber. Quando escreve o diálogo Íon, a conversa de Sócrates com o rapsodo que dá nome ao diálogo gira em torno do não-saber de Íon.
O que Carson está fazendo é reafirmar e negar a mimesis como um afastamento da verdade. Esse afastamento, ele é apenas um desvio, nos diz Carson. Você pode confiar que esse desvio chegará a um outro aspecto da verdade que o discurso retilíneo do lógos não pode, sozinho, alcançar. De volta ao poema de Álcman, é a partir de seu erro - uma série de três com quatro elementos - que Carson cria propositadamente o seu próprio erro computacional, mimetizando Álcman. Ela listará, em seu poema-ensaio, que gosta de três elementos em Álcman, mas termina por descrever quatro.
Entre essas coisas das quais gosta no poema, ela menciona como terceira a maneira como “ele consegue pôr em jogo / grandes questões metafísicas / (como Quem fez o mundo) / sem análises patentes. / Vocês viram que o verbo “fez” no primeiro verso / não tem sujeito: [?]” Por que isso interessa a Carson? Porque esse é um erro básico de gramática. Por esse motivo, é incomum que em grego encontremos um verbo sem sujeito.
que esse erro é apenas um acidente da transmissão,
que o poema tal como nos chegou
é certamente um fragmento
de um texto maior,
e que Álcman, muito provavelmente,
nomeou, sim, o agente da criação
nos versos que precedem estes que temos.
Pois é bem possível.
Mas vocês bem sabem que o objetivo maior da filologia
é reduzir todo prazer textual
a um acidente histórico.
(Carson, 2023CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023., p. 86).
Se o erro corresponde a um “princípio de prazer” do pensamento, a correção filológica, que restabelece hipoteticamente o restante do fragmento ao invés de pensá-lo exatamente como ele chegou elimina também a interpretação amadora disso que nos parece um erro. Ao abandonar a filologia, que Carson conhece e pratica bem, a poeta escreve a contrapelo de si mesma. Para quê? Para gostar de escrever. Para escrever errando.
é um inventor exímio -
ou o que Aristóteles chamaria de “imitador”
da realidade.
Imitação (mimesis em grego)
é o nome genérico que Aristóteles dá
aos enganos verdadeiros da poesia.
O que eu gosto nesse termo
é a facilidade com que ele aceita
que aquilo a que nos prestamos quando fazemos poemas é erro,
a criação obstinada do erro,
as deliberadas difusão e complicação de enganos,
a partir das quais poderá surgir
o inesperado [unexpectedness].
(Carson, 2023CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023., p. 87).
Por que a ensaísta Anne Carson escreve um poema-ensaio e não um ensaio em prosa? Bem, há algumas razões para isso. Em primeiro lugar, essa forma permite que ela mobilize os dispositivos da poesia (como o ritmo, o recomeçar do verso, a dimensão confessional da escrita lírica, etc.) em favor do pensamento. Em segundo lugar, porque o verso, que interrompe seu fôlego, favorece, com isso, a criação dos desvios. A divisão não apenas em versos como também em estrofes permite maior mobilidade ao seu pensamento (não que isso não possa ser feito em prosa, é claro - trata-se de uma questão de ênfase). Em terceiro lugar, porque isso possibilita que ela cole a sua imagem, enquanto pensadora, à imagem da poeta, inventora de erros e enganos a partir dos quais pode surgir a “inesperaridade”.
Por outro lado, a forma do poema-ensaio permite que Carson recupere para a poesia o seu quinhão de direito de cidadania entre as formas do saber. Não é à toa que ela introduz algumas de suas traduções de tragédias antigas com poemas-ensaio. Como a carta para a heroína da Antígona, de Sófocles (intitulada “A tarefa da tradutora de Antígona”), ou a nota “Eu queria ser dois cachorros assim eu poderia brincar comigo mesma”, que acrescenta à guisa de introdução das Bacantes, de Eurípedes. É em versos que ela pensa essas tragédias. Misturando dispositivos dos especialistas (comentários filológicos, contextualização histórica, releitura da recepção histórica das peças etc.) com dispositivos amadores - ou ainda, dispositivos que se dirigem com amor (eroticamente) aos seus objetos. Isso permite que ela não “domine” seus objetos, mas se relacione com eles.
Adorno parece ser um pano de fundo secreto dessas observações. Se os procedimentos da poesia, como a metáfora, permitem chegar a algo novo e fresco, à inesperaridade, é porque, como diz o filósofo, “o objeto do ensaio é, porém, o novo como novidade, que não pode ser traduzido de volta ao antigo das formas estabelecidas” (Adorno, 2003, p. 42ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.). A estrutura em versos favorece o movimento do ensaio de não operar apenas com a lógica do discurso: “o ensaio se aproxima da lógica musical, na arte rigorosa, mas sem conceitos da transição, para conferir à linguagem falada algo que ela perdeu sob o domínio da lógica discursiva” (Adorno, 2003, p. 43). Não que o ensaio abandone de todo a lógica discursiva. Como diz Adorno, “ele não é desprovido de lógica”, mas “o ensaio desenvolve os pensamentos de um modo diferente (...) coordena os elementos, em vez de subordiná-los” (Adorno, 2003, p. 43ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.).
Tendo ou não Adorno como subtexto de suas práticas, fato é que a indeterminação genérica dos escritos de Anne Carson se deve à presença do ensaio como forma interna de seus escritos. Em verso ou em prosa, eles se dirigem para aquela região do pensamento onde liberdade, amabilidade e prazer se confundem. Essa região corre seus riscos. O erro é sempre uma iminência. Mas não parece que vergonha, tolice, derrota ou qualquer outro sentimento do tipo sejam os que emergem desse aglomerado de desvios.
Referências
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- CARSON, Anne. Sobre aquilo em que mais penso: ensaios. Tradução de Sofia Nestrovski. São Paulo: Editora 34, 2023.
- CARSON, Anne. Eros o doce-amargo Tradução de Julia Raiz. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
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As citações extraídas diretamente de publicações em inglês foram traduzidas livremente pelo autor do artigo.
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Declaração de Financiamento:
Este estudo foi financiado pela FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Processo SEI 260003/000203/2024. -
Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
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Recebido
12 Maio 2024 -
Aceito
26 Jun 2024