Resumo
Proponho, neste ensaio, uma comparação entre os “mitos de origem” associados ao ensaio e ao romance. A ideia é me aprofundar no exame da “atitude ensaística” que caracteriza o ensaio como prática, mais do que como gênero ou forma. O contraste entre essas “ficções fundacionais” me leva a propor dois “tipos ideais” de escritores: o romancista profissional (ideia que associo a Daniel Defoe e sua ética do trabalho) e o ensaísta aposentado (que associo a Montaigne e à antiga filosofia do ócio). O argumento que busco desenvolver aqui é o de que a “atitude ensaística” se desenvolve a partir do exercício da receptividade e da passividade, aspectos tão importantes para nossa existência como o trabalho e a “vida ativa”. Este movimento argumentativo é executado pela aproximação do ensaio com o ócio, do modo como foi concebida na Antiguidade por Cícero e Sêneca e retomada na época moderna por Montaigne.
Palavras-chave: ensaio; ensaísmo; ócio; Montaigne
Abstract
In this essay, I propose a comparison between the “myths of origin” associated with the essay and the novel. My goal is to examine the “essayistic attitude” that characterizes the essay as a practice, rather than as a genre or as a form. The contrast between these “foundational fictions” leads to the proposition of two “ideal types” of writers: the professional novelist (an idea associated to Daniel Defoe’s work ethics) and the retired essayist (idea that I link with Montaigne’s philosophy of leisure). The idea which I seek to develop here is that the “essayistic attitude” is necessarily connected with daily exercises of receptivity and passivity, aspects as important for our existence as the work and the “active life”. This movement is carried out by means of bringing together the essay and the leisure, as conceived in Antiquity by Cicero and Seneca and taken up in the modern era by Montaigne.
Keywords: essay; essayism; leisure; Montaigne
Resumen
En este ensayo propongo una comparación entre los “mitos de origen” asociados al ensayo y a la novela. Mi objetivo es examinar la “actitud ensayística”, que caracteriza el ensayo como práctica, más que como género o forma. El contraste entre esas “ficciones fundacionales” conduce a la proposición de “tipos ideales” de escritores: el novelista profesional (asociado a Daniel Defoe y su ética del trabajo) y el ensayista jubilado (que asocio con Montaigne y la filosofía del ocio). El argumento que pretendo desarrollar aquí es que la “actitud ensayística” se desarrolla a partir del ejercicio de la receptividad y de la pasividad, aspectos tan importantes en nuestra existencia como el trabajo y la “vida activa”. Este movimiento de argumentación se ejecuta debido a la proximidad del ensayo con el ocio, tal como fue concebida en la Antigüedad por Cicerón y Séneca, y como fue retomada en la época moderna por Montaigne.
Palabras clave: ensayo; ensayismo; ocio; Montaigne
Começo com duas histórias bem conhecidas.
A primeira é a do político e “homem de letras” francês que, perto de completar 40 anos, se isolou no seu castelo com a intenção de “passar em descanso” o restante dos seus dias. Seu plano era viver “em plena ociosidade”, depois de ter se dedicado por muitos anos às fadigas dos cargos públicos e do beletrismo (ele foi membro do parlamento da sua cidade, negociou com reis e ministros, e nas horas de folga traduzia um incompreensível tratado de teologia natural escrito por um filósofo catalão, apenas porque isso poderia render algum prestígio no futuro). Já deve ter ficado claro que estou me referindo a Michel de Montaigne.
Para um humanista do século XVI, ainda por cima um nobre, era difícil não se deixar seduzir pelas imagens do “ócio honrado” que povoavam a literatura da Antiguidade: os jardins amenos, as leituras ao ar livre, as caminhadas tranquilas e conversas despreocupadas que acabavam resvalando em debates filosóficos da maior seriedade (Charbel, 2010, p. 109-121). Era o ideal da “vida contemplativa”, quase sempre associado à fantasia de se retirar da vida pública: a pausa nos negócios, quaisquer que fossem eles, para se dedicar a si mesmo, à escrita, ou a não fazer absolutamente nada.
Mas acontece que, para Montaigne, o plano de se retirar em seu castelo para fazer o que bem entendesse não saiu como planejado. Não nos primeiros anos, pelo menos. Logo depois de se aposentar, Montaigne montou uma linda biblioteca com os livros que tinha herdado do pai e do amigo La Boétie e mandou gravar nas vigas de sustentação algumas citações inspiradoras. Numa das paredes, ele registrou um pequeno parágrafo que, de certo modo, é a certidão de nascimento de um novo gênero literário, o ensaio:
No ano de Nosso Senhor de 1571, aos trinta e oito anos, um dia antes das calendas de março, aniversário de seu nascimento, Michel de Montaigne, há muito cansado da corte e da servidão do Parlamento e dos cargos públicos, ainda no auge da sua vida, retirou-se para o seio das Virgens eruditas, onde, em descanso e segurança, passará os dias que lhe resta viver. Que o destino lhe permita completar esta habitação, este doce retiro dos seus antepassados, que dedicou à sua liberdade, à sua tranquilidade e ao seu lazer. (apudDesan, 2017, p. 197).1
Depois de longos meses arrumando seu novo espaço de leitura, tudo estava pronto. O cenário estava montado, era só começar. Mas acontece que Montaigne não tinha a menor ideia de como preencher seus dias ociosos. Pelo menos é o que podemos concluir da leitura de um dos primeiros ensaios que ele escreveu, Da ociosidade, muito curtinho, provavelmente de 1572. Montaigne compara a condição em que se encontra, isolado em seu castelo, às “terras ociosas” em que “vemos proliferar cem mil tipos de ervas selvagens e inúteis” (Montaigne, 2002, p. 44). Em vez de encontrar no isolamento a ambicionada paz de espírito, o ócio deixa Montaigne inquieto: ele não se sentiria pior se ainda fosse obrigado a pular freneticamente de um compromisso a outro. Uma frase de Marco Aneu Lucano, citada no pequeno texto, talvez traduzisse o estado de ânimo de Montaigne naqueles dias: “a ociosidade sempre dispersa a mente em todas as direções” (Montaigne, 2002, p. 45).
Sarah Bakewell (2012, p. 37) descreve alguns dos sintomas dessa síndrome de abstinência da vida ativa que Montaigne dava indícios de experimentar em 1572. Basicamente, esses sintomas tinham sido descritos por Sêneca 15 séculos antes, no diálogo Da tranquilidade da alma: “insatisfação, autodesprezo, medo, indecisão, letargia e melancolia”. Montaigne estava encenando sua frustração? Suas palavras não passavam de emulação retórica de uma autoridade antiga? Ou ele de fato se sentia dessa maneira? Difícil saber. O que importa é a ideia central, o argumento que ele toma de empréstimo de Sêneca: abrir mão do trabalho, das fadigas diárias, pode nos deixar mais suscetíveis a certos “males espirituais, especialmente se a pessoa adquire o hábito de ler livros demais - ou, pior ainda, de expor livros por mera ostentação e se vangloriar pelo arranjo” (Bakewell, 2012, p. 37).
É possível que Montaigne não se visse à altura do que Cícero, em um outro diálogo que circulou bastante entre os eruditos do Renascimento, Do Orador, definia como o modelo de uma vida ociosa: “o verdadeiro ócio é fruto da relaxação, e não das contendas da alma” (Cicero, 2001, II, 22). Na equação ciceroniana, o elemento definidor do “ócio com dignidade” não era estar à toa na vida, mas a plena disponibilidade de uma pessoa para ela mesma: a suspensão dos conflitos interiores que torna possível a fruição do inútil, assim como a observação direta, em alguma medida passiva, dos fenômenos do mundo, da forma exata como se apresentam aos olhos e aos ouvidos: “Não pode ser chamado de livre aquele que às vezes não está fazendo nada” (Cicero, 2001, II, 24).
Mesmo sem ter o que fazer, ou justamente por esse motivo, a cabeça de Montaigne não parava quieta: ela seguia trabalhando num ziguezague maníaco, flutuando entre “quimeras e monstros fantásticos” (Montaigne, 2002, p. 46). É para dar ordem aos pensamentos soltos e para examinar a estranheza dessas ideias fixas que Montaigne resolve se dedicar à escrita livre, sem amarras ou ordem pré-definida, e mesmo sem um público leitor no horizonte.2 É o momento em que, de acordo como André Tournon (2004, p. 53), Montaigne define para si mesmo uma tarefa: “Em vez de mobiliar artificialmente seu vazio interior, Montaigne ‘registra’ seus pensamentos à deriva, fixa sua inconstância em escritos, para deles se reapropriar”.
Ainda não se trata do ensaio propriamente, mas de um ensaio do ensaio, de esboços sem um propósito definido, ou talvez com uma única finalidade em vista: a de arrumar seus pensamentos, realizar uma faxina interior. O que Montaigne busca com os esboços de 1572 e 1573 é inventar uma dignidade para seu ócio. Ele modela a si mesmo por escrito, de um jeito que pouco tem a ver com os exercícios retóricos em que havia se engajado nos seus anos de formação humanista. E, no entanto, Montaigne ainda está longe de estabelecer o autorretrato como procedimento ensaístico, algo que ele só vai fazer na advertência ao leitor de 1580: “quero que me vejam aqui em minha maneira simples, natural e habitual, sem apuro e artifício: pois é a mim que pinto” (Montaigne, 2002, p. 4). Nos primeiros tempos em sua nova biblioteca, Montaigne escreve para se conhecer, escrever para si mesmo, para organizar as próprias ideias - mais ou menos o que as pessoas vão começar a fazer cento e poucos anos depois, com a febre dos diários íntimos.3 Funciona, e por quase 10 anos Montaigne não demonstra nos seus escritos sentir falta dos leitores que não tem, e talvez nem espere ter um dia.
Passo à segunda história. O ano é 1719. Daniel Defoe está perto de completar 60 anos e não dá indícios de flertar com a aposentadoria. A julgar pelo relato que publica nesse mesmo ano - e por suas alegações de que a história daquele náufrago era a alegoria da existência de quem punha o nome na capa do livro (Backscheider, 1989, p. 414) -, as promessas do ócio filosófico não deviam parecer tão sedutoras. Escreve Ian Watt em A ascensão do romance: “Para Robinson Crusoé, ficar parado era a ‘pior coisa da vida’. O lazer era quase tão ruim” (Watt, 1990, p. 64).
Defoe passou a vida adulta vendendo o almoço para pagar o jantar, sempre às voltas com as complicações associadas aos empreendimentos nada promissores em que ele tinha se envolvido quando jovem, e que o levaram duas vezes à prisão (a primeira delas por dívidas). Antes de se tornar um escritor profissional, Defoe foi dono de uma fábrica de roupas, emprestou e pegou dinheiro emprestado, arriscou o que tinha na exploração de navios encalhados para faturar com a descoberta de tesouros (Backscheider, 1989). Ele era um homem de negócios - e o romance acabou se revelando o mais lucrativo de todos eles. Da maneira como o conhecemos hoje, com seus personagens que se assemelham a pessoas reais e a situações da vida concreta, o romance foi a invenção de um mercador falido. Surgiu da ética do trabalho duro, do esforço de quem preenche muitas páginas todos os dias para aplacar a ira dos credores.
Essas duas histórias são episódios dos “mitos de fundação” que, ao longo dos séculos, foram sendo construídos em torno do ensaio e do romance. O que me parece é que o contraste entre esses mitos fundacionais pode ajudar na compreensão de algo meio obscuro, difícil de examinar, mas que está na base do ensaio e de certo modo o antecede. Estou me referindo ao ethos ensaístico.4 Ele é a marca do ensaio como prática, mais do que como gênero ou forma: “as virtudes associadas ao ensaio transcendem a forma, como se flutuassem acima dela” (Atkins, 2005, p. 5). Esse ethos tem a ver com uma “atitude mental”: certo modo de encarar a vida e de se relacionar com o mundo que pode até resultar na composição de textos, mas que não necessariamente precisa ir tão longe.
Sei que “atitude mental” é um termo vago, amplo demais, quase vetusto. É uma noção que costumava aparecer em ensaios sobre o ensaio publicados em meados do século XX.5 Por exemplo, na introdução de Lúcia Miguel Pereira a uma antologia de ensaístas ingleses. No texto, ela se refere à “nova atitude mental” que Montaigne teria inaugurado, “uma nova posição espiritual, que aliava a humildade diante dos fatos e da natureza […] ao orgulho de quem se descobria capaz de decifrar-lhe os enigmas; a curiosidade alvissareira ao ânimo crítico; a gratuita vontade de indagar, de compreender, a uma certa tendência julgadora e, portanto, moralista” (Miguel Pereira, 2018, p. 48). Antes dela, Silvio Lima, na década de 1940, já tinha se referido a essa “atitude mental” que antecede a própria compreensão do ensaio como gênero:
Pergunto: que é o ensaio? Um gênero literário - como o são a epopeia, a tragédia, a égloga, a elegia, o soneto, a comédia - ou uma atitude mental, de determinadas características e tendência? Ou uma coisa e outra? (Lima, 1946, p. 7).
Abel Barros Baptista (2010, p. 11) reconhece que, apesar de ter envelhecido mal em uma série de aspectos, “o pequeno livro de Sílvio Lima persiste enfrentando no epílogo o problema ainda atual: o ensaio é um gênero ou uma atitude?”. É uma coisa e outra. A atitude ensaística não chega a se configurar como traço formal do ensaio, marca historicamente localizável que permite distinguir essa modalidade de escrita de outras, até porque, quando o que está em jogo é o ensaio, o esforço de encontrar traços formais recorrentes, plenamente identificáveis, é quase sempre infrutífero (romances realistas costumam ter diálogos, personagens, flutuações de pontos de vista, mas e o ensaio? que aspectos asseguram a ele uma fisionomia própria, uma aparência inconfundível?).
Falar em atitude ensaística é um modo possível de realçar alguns traços distintivos do ensaio, que, no entanto, não chegam a se sedimentar numa “aparência” facilmente distinguível. É o caso da sondagem interior; da convocação de origem ao experimento e à experiência; do valor conferido por ensaístas à atenção, aos sentidos; do exame escrupuloso de quaisquer fenômenos do mundo, mesmo os mais simples; da contínua “pesagem” das próprias impressões; do elogio da inconstância (Starobinski, 2018). Esses são alguns modos de “pôr à prova” as convicções mais entranhadas que construímos sobre o mundo, algumas certezas que a atitude ensaística é capaz de derrubar num sopro, se for o caso. Falar em atitude ensaística pressupõe uma espécie de permanência na inconstância: ela é o modo encontrado por ensaístas para abrir espaço na mata fechada da realidade, sem o risco de ter de abandonar a almejada disponibilidade do eu para si mesmo. Ela é uma exploração que só pode ter a experiência como bússola (Sève, 2007, p. 127).
Volto aos mitos de fundação. O romance como nós o conhecemos foi a criação de um mercador falido que, por conta das urgências da vida, acabou se convertendo no protótipo do escritor profissional. Alguém que escrevia para satisfazer as demandas do mais abastado, e também o mais caprichoso, dos patronos que existem no modo de produção capitalista: o respeitável público. A ficção fundacional do romance é, ela mesma, um relato romanesco de superação, marcado desde o começo pela ética puritana do trabalho árduo, que Defoe incorporava melhor do que outros escritores de sua época: o suor de cada dia, as conquistas lentas, o esforço de quem administra a própria escrita como quem cuida de uma fábrica de tecidos (e no fim das contas é sempre disso que se trata quando escrevemos, de administrar uma fábrica de tecidos). No século XIX, dois escritores franceses vão encarnar com perfeição o ethos do escritor profissional, ainda que de maneiras contrastantes: de um lado o hiperprodutivo Balzac, grande devedor, e do outro o rico e meticuloso Flaubert, alguém que podia proporcionar a si mesmo certos luxos, como a lentidão.
E quanto ao ensaio? Na sua ficção fundacional, o papel de desbravador cabe a um grande proprietário de terras que, sem saber que uso dar ao tempo livre, se dedica à excentricidade de escrever de modo honesto sobre si mesmo, e retratar as flutuações do seu humor e as variações do próprio pensamento ao ritmo das leituras que faz. O ensaio é a invenção de um aposentado: um sujeito com a vida ganha, que dispensa os bicos e as encomendas e dá de ombros para o respeitável público. Se a escrita, para os romancistas, se confunde com a constância e o labor diário, o ensaio é a forma adequada aos ociosos, aos que preferem não, a quem só se põe a escrever em último caso, na última hora, quando sente que guarda dentro de si algo que vale a pena ser dito: um modo de escrita que convém aos que querem se expressar com o mínimo de palavras. O ensaio como gênero magro, em oposição ao romance, forma gorda, em que quase tudo é excesso.
O romancista profissional e o ensaísta aposentado. As ousadias formais de Montaigne e Defoe sedimentaram modos distintos de existir, duas atitudes diante da vida, visões de mundo quase antagônicas. No caso de Montaigne, é digno de nota que um dos primeiros esboços que ele escreve depois de se retirar para suas terras trate das dificuldades, para ele inesperadas, de uma existência ociosa. O que torna este ensaio de poucas páginas tão significativo é o fato de que o terreno do ócio filosófico já tinha sido bastante pisado pela filosofia da época.6 Ao revisitar um dos temas mais debatidos pelos humanistas do seu tempo, Montaigne consegue encontrar um novo ângulo para a questão: abordar as vicissitudes de um aristocrata entediado, que achava difícil, quase impossível, se ajustar às prescrições morais dos antigos, a tantas exigências, tantos rigores.
Montaigne percebe que não está ao seu alcance encarar a disponibilidade total das horas do dia ao modo de Cícero ou Sêneca. Ele não se vê em condições de fazer o que eles fariam se estivessem no seu lugar: tratar o ócio como recolhimento contemplativo e preparação para o retorno triunfal aos assuntos públicos está além das suas forças. Antes de dar qualquer passo, de realizar um movimento mais significativo na direção de uma escrita que possa chamar de sua, Montaigne toma a decisão de examinar suas contradições, e de fazer isso por escrito. É um modo de começar. Ele se sente inquieto no conforto da sua biblioteca, se sente inquieto em qualquer lugar. E escreve sobre isso. Como viver? Não do jeito que Cícero e Sêneca viveriam. O que escrever? Não o que escreveriam se estivessem no seu lugar. Para Montaigne, só é possível viver e escrever como se fosse Montaigne - e o que ele percebe ao se ocupar dos seus esboços é que está bom assim, que ser Montaigne não é de todo mau.
As torções de pensamento que Montaigne executa ao vasculhar a matéria-prima da própria vida dão prova de que o ensaio nasce com um viés autorreflexivo: ele é o principal, talvez o único responsável por pensar a si mesmo, como sugere Abel Barros Baptista (2010) em “O desaparecimento do ensaio”. Ainda que Montaigne não tenha dado o título “Do ensaio” a nenhum dos seus textos, seu hábito de refletir sobre o que estava fazendo enquanto escrevia - ele faz isso em “Da amizade” e “Do arrependimento”, e também em outras ocasiões - serviu de modelo para quem veio depois. A seguir, menciono algumas definições, maravilhosamente vagas, que ensaístas de várias épocas deram sobre a própria atividade, definições que posicionam a atitude ensaística nas cercanias do ócio, da errância, da procrastinação:
O ensaio como elogio da inconstância (Montaigne em “Do arrependimento”: “se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em prova”).7
O ensaio como enaltecimento da superficialidade (Doutor Johnson: “o escritor de ensaios evita muitos dos aborrecimentos a que um trabalho volumoso o teria exposto; ele raramente atormenta sua razão com longas conclusões, não queima as pestanas com a leitura minuciosa de volumes antiquados, nem acumula em sua memória grandes conhecimentos preparatórios”).8
O ensaio como apologia da leveza (William Dawson e Coningsby Dawson: “se o verso lírico pode ser descrito como o voo de andorinha da canção, o ensaio pode, do mesmo modo, ser descrito como o voo de andorinha da prosa”).9
O ensaio como sondagem do desconhecido, um mergulho no escuro (Chesterton: “o ensaio é a única forma literária que confessa, no seu próprio nome, que o ato impulsivo conhecido como escrita é um salto na escuridão”).10
Em oposição ao romance, à literatura em geral, o ensaio como um modo mais puro de escrita (Virginia Woolf: “puro como água ou puro como o vinho, mas puro, sem monotonia, torpor nem depósitos de material irrelevante”).11
O ensaio como um tipo de texto que se escreve sozinho, de forma quase autônoma: “obra literária que se escreve antes de ser escrita”, segundo Cesar Aira.12
O ensaio como jogo, o “movimento de uma mente livre quando brinca”, de acordo com Cynthia Ozick.13
O ensaio como a melhor “desculpa para nunca se comprometer com um projeto, uma carreira de vida inteira”, nas palavras de Brian Dillon.14
São definições que, como disse antes, aproximam o ensaio de um ócio não muito filosófico, de uma atitude diante da vida que beira a vagabundagem. Cito Isabelle Eberhardt (2022, p. 87), viajante obstinada e autora de ensaios brevíssimos, ao modo dos primeiros que Montaigne escreveu: “um direito que apenas poucos intelectuais se empenham em reivindicar é o direito à errância, à vagabundagem”. O ensaio, aliás, é breve mesmo quando tem páginas demais, por não ter a ambição de esgotar um assunto sem o risco de se transformar em outra coisa, de deixar de ser ensaio para se tornar tratado filosófico, artigo científico, ou o que seria ainda pior: um romance experimental. O ensaio é a forma justa da preguiça: eu, por exemplo, já teria terminado este texto se não tivesse que cumprir com a exigência de um número mínimo de caracteres. Sendo assim, vou em frente, mas sinto que ainda tenho algo a dizer.
Cataloguei essas definições de ensaio, as que acabo de mencionar, sem muito empenho. Apenas abri o caderninho que mantenho há pouco mais de um ano - e que etiquetei como O ensaísta aposentado - e transcrevi algumas das citações que passei a colecionar nesse período. Este procedimento é uma das infinitas formas que a “atitude ensaística” pode assumir no cotidiano: ler como quem caminha ao ar livre, sem rumo, e tomar notas como quem tira fotos de algo interessante, sem uma finalidade imediata ou um propósito claro. Agir dessa maneira é um modo de estar disponível para si mesmo, para o mundo, ainda que só por uns instantes a cada dia. E isso não é simples. Pelo contrário: essa disponibilidade é cada vez mais difícil numa lógica de organização das horas que põe toda a ênfase no suor, no esforço, no cansaço, mesmo se o que está em jogo é o pensamento e a escrita, que jamais deveriam ser vistos como atividades pesadas.
O predomínio da ética do trabalho, de que Defoe foi um típico representante, fez com que o tema do ócio fosse relegado, nos últimos séculos, às margens da filosofia, em detrimento de um conjunto de reflexões que, de Adam Smith a Marx, desaguando em Hannah Arendt, realçavam, mesmo que em um viés crítico, o caráter de “animal laboral” como traço definidor do humano. Isso chega a tal ponto que, em meados do século XX, o filósofo Josef Pieper, especialista em filosofia antiga e medieval, entende ser necessário abrir um texto que trata do ócio filosófico com uma advertência aos leitores, quase um pedido de desculpas por abordar um assunto tão excêntrico, quase um despropósito: “não parece ser a época adequada para falar em ócio. Afinal, estamos construindo uma casa; estamos cheios de trabalho. O que importa até a casa ficar pronta não é, por acaso, dedicar a essa tarefa todas as forças?” (Pieper, 2020, p. 41).
No livro, Pieper comenta o rebaixamento do ócio na modernidade. No seu entendimento, a expressão máxima dessa desvalorização é uma categoria que usamos o tempo todo, quase sem pensar: o oxímoro “trabalho intelectual”. O pensamento e a escrita, para que alcancem um reconhecimento mínimo em nossa sociedade - para que se convertam em forma legítima de sustento -, passam a se ancorar no começo do século XVIII numa ética da “sobrevalorização do esforço”, algo que Defoe, escritor profissional, percebeu desde cedo. Três séculos atrás, os ocidentais passaram a desconfiar de tudo o que não era obtido com firmeza do espírito, constância, com muita dor e, ai... resiliência. Mas acontece que, “mesmo admitindo que a aquisição do conhecimento, e de modo especial o conhecimento filosófico”, não pode se realizar sem fadiga, é preciso reconhecer, como sugere Pieper (2020, p. 53), que a atividade intelectual contém algo que essencialmente “não é trabalho”.
O ensaio sempre fez jus a esse reconhecimento: nem tudo que podemos fazer de melhor é fruto do esforço. Boa parte do que pensamos ou escrevemos não é resultado do suor, não exclusivamente. Muitos ensaios costumam ter início com uma percepção repentina, que passa por um gesto de se abrir ao mundo: alguma situação que não tínhamos notado antes e de repente nos parece óbvia, algo que vem de fora e se acomoda dentro, que faz residência em nossa mente, nos inquieta e nos põe para escrever. No ensaio, propõe César Aira (2018, p. 235), “tudo se transporta ao dia antes de escrever, quando se escolhe o tema; se a escolha é acertada, o ensaio já está escrito antes de ser escrito”. Escrever sem ter o trabalho de escrever: eis o ideal ensaístico por excelência.
Para que isso seja possível, para que a atitude ensaística possa ganhar terreno sobre a ética do trabalho duro, é preciso se dedicar um pouco a exercitar a receptividade e a passividade, aspectos que são tão centrais à existência quanto a ação e a “vida ativa”. Pode parecer que me contradigo quando associo as palavras “passividade” e “exercício”, mas é isso mesmo: nos desacostumamos a ficar parados, a nos mantermos quietos no nosso canto. É preciso reaprender. “Os verbos ver, fitar, olhar”, sugere Pieper (2020, p. 48), “querem dizer abrir os olhos para receber nesse ato as coisas que, oferecendo-se ao olhar, entram em nós, sem que se faça necessário um esforço apoderante”. A “atitude ensaística” só pode ter lugar quando existe alguma disponibilidade ao acaso, uma abertura ao mundo. Em contraste com as fantasias de autossustentabilidade tão comuns entre romancistas, a imagem de um “ensaísta profissional” parece absurda, provoca risadas. Um sindicato de ensaístas está fora de cogitação. Nenhum ensaio é urgente ou necessário. Desde Montaigne, sua única lei é a do menor esforço.
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“L’an du Christ 1571, âgé de trente-huit ans, la veille des calendes de mars, anniversaire de sa naissance, Michel de Montaigne, las depuis longtemps déjà de l’esclavage de la vie de cour et des charges publiques, en pleines forces encore, se retira dans le sein des doctes vierges, où en repos et sécurité, il passera les jours qui lui restent à vivre. Puisse le destin lui permettre de parfaire cette habitation, ces douces retraites de ses ancêtres qu’il a consacrées à sa liberté, à sa tranquillité, à ses loisirs.”
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Sobre o público potencial dos ensaios no momento em que Montaigne fazia suas primeiras tentativas de se autorretratar por escrito, conferir o ensaio “O escritor Montaigne”, de Erich Auerbach (2017, p. 149), que depois de tanto tempo de publicação ainda oferece pistas valiosas: “O público dos Ensaios de Montaigne não existia, e ele não podia supor que existisse. Não escrevia nem para a corte nem para o povo, nem para os católicos nem para os protestantes, nem para os humanistas nem para alguma outra coletividade já existente. Escrevia para uma coletividade que parecia não existir, para os homens vivos em geral que, como leigos, possuíam uma certa cultura e queriam compreender sua própria existência, isto é, para o grupo que mais tarde veio a se chamar se público culto”.
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Penso a automodelagem de Montaigne a partir dos termos propostos por Stephen Greenblatt (1980) em Renaissance Self-fashioning: não uma construção autônoma, mas tensa, o “eu” como espaço em que a autonomia é almejada e cancelada pela autoridade das formas instituídas de poder, como o Estado, a Igreja ou a Retórica. Em relação ao processo de ascensão dos diários íntimos - gênero que, aliás, costuma ser ligado à prática do ensaio em Montaigne - conferir Le journal intime, de Béatrice Didier (1976).
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DeniseGigante (2008, p. XVII), no texto de apresentação à antologia The Great Age of the English Essay, destaca a importância do ethos para a compreensão das peculiaridades do ensaio, forma em que a personalidade de quem escreve é decisiva, se impondo no texto. “In The Art of Rhetoric, Aristotle stressed the importance of the personality behind the speaking voice […]. The adoption of a pose or persona was a necessary opening gambit in the British periodical essay”. A relevância da personalidade é apontada, também, num dos mais influentes ensaios sobre o ensaio já escritos, a carta a Leo Popper de Lukács: “a personagem do ensaio viveu em alguma época, sua vida, portanto, precisa ser representada; acontece que essa vida existe tão dentro da obra como tudo mais na poesia” (Lukács, 2015, p. 44).
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Em Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta, Luís Augusto Fischer (2009, p. 147) faz referência a um conjunto de termos comumente mobilizados em definições do ensaio, e que podem, num primeiro momento, parecer excessivamente escorregadios, vagos, mas que ainda assim ajudam a delimitar um campo de especificidades para o gênero. “Já por duas ou três vezes este trabalho mencionou conceitos e impressões dominantes acerca do gênero ensaio. Praticamente todos e todas estamparam algumas noções difusas, mas consistentes: que ensaio é antes caráter do que semblante; que é mais alma do que corpo; que é ‘antes atitude mental do que propriamente gênero literário’, segundo Lúcia Miguel Pereira. Ensaio provém de uma inteligência que se examina e se expõe, por escrito, em texto organizado livremente”.
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Uma das análises sobre o ócio com maior circulação na época de Montaigne foi a de Petrarca, que escreveu sobre o tema em Secretum, De vita solitaria e De otio religioso. Petrarca via dignidade tanto no ócio religioso como no ócio dos leigos, tanto na retirada completa dos monges como na retirada eventual para o descanso, a escrita ou para a contemplação filosófica. Conferir: Tateo (2005).
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Montaigne (2001, p. 28).
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“The writer of essays escapes many embarrassments to which a large work would have exposed him; he seldom harasses his reason with long trains of consequences, dims his eyes with the perusal of antiquated volumes, or burthens his memory with great accumulation of preparatory knowledge” (Johnson, 2012, p. 13).
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Dawson e Dawson (2016, p. 101).
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“The essay is the only literary form which confess, in its very name, that the rash act known as writing is really a leap in the dark” (Chesterton, 2012, p. 57).
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Woolf (2014, p. 24).
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Aira (2018, p. 237).
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Ozick (2018, p. 225).
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Dillon (2017, p. 40). “Is that what the essay is, what the essay allows: an excuse for never being able to commit to a lifelong, career-long, project?”.
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Parecer Final dos Editores Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
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Recebido
10 Maio 2024 -
Aceito
26 Jun 2024