Open-access Também neste pântano aqui: Hans Magnus Enzensberger e as fronteiras da poesia

Including the Present Mire: Hans Magnus Enzensberger and the Boundaries of Poetry

Resumo

Partindo de uma reflexão inicial sobre as fronteiras da poesia e de outros gêneros de discurso verbal no ambiente contemporâneo, este artigo volta-se à obra do poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) para investigar como a sua poesia pode contribuir para recolocar e redimensionar algumas questões importantes sobre os limites entre o poético e não-poético. Para tal, o artigo se vale de uma interpretação minuciosa de seu poema “Homenagem a Gödel”.

Palavras-chave: poesia contemporânea; ensaio; filosofia; Hans Magnus Enzensberger

Abstract

Beginning with an initial reflection on the boundaries of poetry and other genres of verbal discourse in the contemporary environment, this article turns to the work of the German poet and essayist Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) to investigate how his poetry can contribute to repositioning and re-dimensioning some important issues about the boundaries between the poetic and the non-poetic. To do so, the article relies on a close reading of his poem “Homage to Gödel”.

Keywords: contemporary poetry; essay; philosophy; Hans Magnus Enzensberger

Resumen

A partir de una reflexión inicial sobre los límites de la poesía y otros géneros del discurso verbal en el entorno contemporáneo, el artículo aborda la obra del poeta y ensayista alemán Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) para investigar cómo su poesía puede contribuir a retomar y remodelar algunas cuestiones importantes sobre las fronteras entre lo poético y lo no-poético. Para ello, el artículo realiza una interpretación detallada de su poema “Homenaje a Gödel”.

Palabras clave: poesía contemporánea; ensayo; filosofía; Hans Magnus Enzensberger

I

Sabemos que a tentativa de delimitar as fronteiras da poesia é tão antiga quanto a própria reflexão teórica sobre ela. Evidentemente, o caso paradigmático aqui são as fronteiras entre poesia e filosofia tal como dadas pelo gesto platônico inaugural, segundo o qual a filosofia (assim como a matemática) se definiria em contraposição à poesia - ou, em todo caso, a uma certa modalidade de poesia. Até mesmo para contestar esse famoso gesto platônico, por exemplo, seria preciso recorrer criticamente a essa contraposição. Afinal de contas, mesmo para propor um imbricamento essencial entre poesia e filosofia, por exemplo, seria necessário delimitá-las de alguma forma. Isso talvez valha também para outros binômios análogos nos quais figura a poesia: não apenas poesia e filosofia e poesia e matemática, mas também poesia e ciência, poesia e pensamento, poesia e ensaio, e assim por diante. O fato de que essa questão seja há séculos recolocada em novos termos - eis nossa hipótese de saída - não é necessariamente índice de seu esgotamento ou de sua ociosidade. Ao contrário, esse fato parece apontar para a natureza essencial e incontornável desse questionamento para a reflexão e o exercício de diferentes modalidades de discurso.

Disso se depreende que a delimitação das fronteiras da poesia não se deixa estabelecer de maneira estanque e definitiva. Antes, ela parece se recolocar como questão sempre que o uso da linguagem apresenta o potencial de instabilizar as linhas demarcatórias pregressas (seja lá quais forem elas) entre o poético e o não-poético. Evidentemente, isso parece ocorrer sobretudo em decorrência de eventos histórico-estéticos de ampla envergadura, como é o caso, digamos, da invenção e desenvolvimento de novos gêneros textuais fronteiriços (como o ensaio), de novas formas poéticas ou de novos procedimentos e dispositivos técnico-formais (como os geralmente agrupados sob a irradiação das vanguardas históricas). O que está em jogo em todos esses casos é, não por último, uma renegociação das fronteiras entre o poético e o não-poético. Se assim é, então será possível afirmar que a antiga questão acerca da demarcação das fronteiras da poesia não é uma questão de ontologia do poético, mas do que Peter Osborne caracterizou como “ontologia histórica” do poético (Osborne, 2013). Ela se repõe com cada ocorrência de um novo evento histórico-estético.

Mas talvez seja defensável a hipótese de que a renegociação dessas fronteiras está em jogo não apenas em decorrência desses grandes eventos histórico-estéticos de grande envergadura, mas em virtualmente cada texto, cada poema. Cada poema tem o potencial (ou a exigência) de projetar a partir de si um determinado horizonte de demarcação dessas fronteiras, o que é o mesmo que dizer que cada poema precisa construir imanentemente (e falivelmente) o seu próprio estatuto de poema. Esse estatuto nunca é dado a priori - menos ainda no contexto contemporâneo, em que assistimos ao que Theodor W. Adorno caracterizou como nominalismo estético, isto é, uma progressiva dissolução do caráter vinculante dos gêneros e formas artísticas tradicionais e da radical singularização de cada obra em sua potencial incomensurabilidade com outras obras (Adorno, 1970a, p. 296).

Obviamente, desde as vanguardas históricas é fato notório que não basta ao poema recorrer aos expedientes técnico-formais tradicionais do poético (métrica e rima, por exemplo) para construir sua natureza de poema; correlativamente, cada poema pode se afirmar como poema na sua completa indiscernibilidade em relação a textos e procedimentos de qualquer outro gênero discursivo, como o ensaio. Dissolveu-se o critério de demarcação do poema e do poético a partir de suas marcas exteriores. É claro que isso torna infinitamente complexa e infinitamente problemática a questão da delimitação de suas fronteiras, mas não menos importante. Assim, sob a égide da atual ontologia histórica do poético, é possível que a fronteira entre o poético e o não-poético não mais seja uma fronteira binária qualitativa, mas quantitativa ou intensiva. O poético talvez não seja um limite a transpor, mas uma intensidade a conquistar.

II

Tomemos como objeto um poema de Hans Magnus Enzensberger publicado em 1971 (Enzensberger, 1971, 168s; Enzensberger, 2024, p. 66s):1

Homenagem a Gödel I 1 O teorema de Münchhausen: cavalo, pântano, cabelo, 2 é encantador, mas não se esqueça: 3 Münchhausen era um mentiroso. II 4 O teorema de Gödel parece, à primeira vista, 5 pouco notável, mas veja: 6 Gödel tem razão. III 7 Em cada sistema suficientemente rico 8 podem ser formuladas sentenças 9 que de dentro do sistema não são 10 nem demonstráveis nem refutáveis, 11 a não ser que o sistema seja 12 ele próprio inconsistente. IV 13 Você pode descrever sua língua 14 na sua própria língua: 15 mas não totalmente. 16 Você pode investigar seu cérebro 17 com seu próprio cérebro: 18 mas não totalmente 19 etc. V 20 Para se justificar 21 todo sistema pensável 22 deve se transcender, 23 isto é, se destruir. VI 24 “Suficientemente rico” ou não: 25 ausência de contradição 26 é sintoma de um déficit 27 ou uma contradição. VII 28 (Certeza = inconsistência). VIII 29 Todo cavaleiro pensável, 30 isto é, também Münchhausen, 31 isto é, também você, é um subsistema 32 de um pântano suficientemente rico. IX 33 E um subsistema desse subsistema 34 é o próprio cabelo, 35 esse guindaste 36 para reformistas e mentirosos. X 37 Em todo sistema suficientemente rico 38 isto é, também neste pântano aqui, 39 podem ser formuladas sentenças que de dentro do sistema 40 não são nem demonstráveis nem refutáveis. XI 41 Pegue essas sentenças na mão 42 e puxe!

Trata-se de um poema particularmente interessante para os nossos propósitos pela sua orientação interdisciplinar e metapoética. Com efeito, “Homenagem a Gödel” é um exemplar paradigmático da interface entre poesia e matemática, ou entre literatura e filosofia, que é tão comum na produção poética e ensaística de Enzensberger. De fato, por caracterizar sua poesia como um discurso verbal fundamentalmente onívoro, ela se compreende como radicalmente aberta a disciplinas, campos do saber e experiências variadas - e não raro insólitas. Com isso, como se vê, seu próprio regime linguístico com frequência tangencia outras modalidades de discursividade, como a matemática e a ensaística. Além disso, é possível dizer que se trata aí de um poema que tem como objeto a própria natureza da poesia e as possibilidades do poético no contexto contemporâneo. Como tentaremos demonstrar a seguir, tanto sua natureza metapoética quanto essa orientação programática concernem muito especialmente as relações entre o poético e o não-poético. Por todas essas razões, o poema pode ser considerado como um espaço privilegiado para investigar também as suas fronteiras. Infelizmente, “Homenagem a Gödel” não goza de uma fortuna crítica particularmente rica - não apenas no contexto brasileiro, mas também no internacional.2 Talvez sua recepção mais notável tenha sido sua utilização como texto-base do “Concerto para Violino Nº 2”, de Hans Werner Henze, também de 1971.

Antes de passar à análise do poema, convém apresentar brevemente os dois personagens mobilizados por ele: Münchhausen e Gödel.

Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen, o famoso Barão de Münchhausen, foi um militar e senhor de terras nascido no então Eleitorado de Brunswick-Lüneburg, no centro-norte do atual território alemão, em 1720, e falecido em 1797. Conforme mandava a tradição aristocrática a que pertencia, Münchhausen seguiu carreira militar desde cedo, servindo primeiramente como pajem do Duque de Braunschweig e posteriormente nomeado alferes, tenente e capitão de cavalaria, patente na qual se retirou do exército ainda em 1750. Durante sua carreira, Münchhausen serviu na Guerra Russo-Austríaca contra o Império Otomano (1736-9) e na Guerra Russo-Sueca (1741-3). Embora sua carreira militar não tenha sido especialmente bem-sucedida em função de uma série de infortúnios, Münchhausen logo se revelou um prodigioso contador de histórias - histórias, em geral, espetaculosas e inverossímeis que supostamente envolviam suas próprias aventuras durante as missões. Sua fama de exímio contador de histórias - e mentiroso inveterado - rapidamente circulou pelo território germânico até que Rudolf Erich Raspe, um bibliotecário de Kassel, compilou seus relatos com boa dose de inventividade no que veio a se tornar o livro As surpreendentes aventuras do Barão de Münchhausen (Raspe, 2014). Dentre elas, sem dúvidas a mais célebre é aquela segundo a qual o barão teria logrado arrancar a si e a seu cavalo para fora de um pântano puxando-se pelos próprios cabelos. A história, que Enzensberger converte no “teorema de Münchhausen” e sintetiza em três palavras (“cavalo, pântano, cabelo” - verso 1), serviu também a vários outros teóricos. Dela provêm o “Trilema de Münchhausen”, de Hans Albert (Albert, 1968); Nietzsche se vale da narrativa em Além de bem e mal para criticar a ideia moderna do sujeito como causa sui, que supostamente arrancaria “a si mesmo pelos cabelos do pântano do nada em direção à existência” (Nietzsche, 2013, §21); e Adorno a utiliza repetidamente para tematizar certos paradoxos da fenomenologia (Adorno, 1970b, p. 192).

Kurt Gödel (1906-1978), por sua vez, foi um dos maiores matemáticos e lógicos do século XX. Em 1931, aos 25 anos, Gödel publicou um importante artigo intitulado “Sobre sentenças formalmente indecidíveis dos Principia mathematica e sistemas relacionados”, no qual ele parte da célebre obra Os princípios da matemática, ou Principia mathematica, de Bertrand Russell e Alfred N. Whitehead, publicada em três volumes entre 1910 e 1913, para desenvolver seu trabalho. O empreendimento teórico de Russell e Whitehead, possivelmente a mais ambiciosa tentativa, à época, de oferecer uma ampla fundamentação lógico-filosófica da matemática, era uma tentativa de solução da assim chamada “crise fundacional da matemática”. Seu propósito era não apenas o de sistematizar virtualmente a totalidade das ideias e métodos da lógica matemática com o menor número possível de axiomas e regras de inferência, mas também traduzir as proposições matemáticas na mais avançada notação simbólica e resolver os paradoxos aparentemente insolúveis que assolavam os sistemas axiomáticos utilizados para a fundamentação da matemática, como a teoria dos conjuntos. Dentre esses paradoxos, mencione-se o famoso paradoxo de Epimênides, ou “paradoxo do mentiroso”, uma espécie de antinomia que emerge com declarações autorreferenciais e autocontraditórias do tipo “Estou mentindo neste momento” ou “Esta sentença é falsa”. Trata-se aí de um paradoxo porque, posto que a sentença seja verdadeira, então procede o que ela afirma, a saber, que ela é falsa, então se a sentença for verdadeira, ela será falsa; correlativamente, posto que a sentença seja falsa, então não procede o que ela afirma, a saber, que ela é falsa, então se a sentença for falsa, ela será verdadeira, e assim por diante. Tais sentenças, classificadas como “formalmente indecidíveis” porque não são nem demonstráveis nem refutáveis, têm o potencial, quando formalizadas, de instabilizar os sistemas axiomáticos mais poderosos utilizados para fundamentação da matemática. Em Principia mathematica, Russell e Whitehead propõem o desenvolvimento da assim chamada “teoria dos tipos”, alternativa à teoria dos conjuntos, para superar esse tipo de paradoxo.

Em seu trabalho de 1931, Gödel, insatisfeito com a solução de seus colegas britânicos, parte justamente da formalização lógico-matemática de tais sentenças indecidíveis para demonstrar o que ficou conhecido como seu “primeiro teorema da incompletude”, a saber: que em todo e qualquer sistema axiomático, posto que ele seja consistente e suficientemente poderoso para fundamentar a aritmética (ou parte dela), haverá sempre sentenças indecidíveis que, como tais, não poderão ser demonstradas nem refutadas internamente ao próprio sistema. Como corolário a esse primeiro teorema, Gödel demonstrou, ainda, em seu “segundo teorema da incompletude”, que a consistência de um dado sistema axiomático não pode ser deduzido do próprio sistema. Com esses teoremas, entre outras coisas, Gödel demonstrou que é terminantemente impossível demonstrar com recursos lógicos finitos a consistência da matemática (Branquinho; Murcho; Gomes, 2006, p. 623ss). Disso não resulta necessariamente que Gödel era um cético em relação às capacidades da racionalidade. Ao contrário, tudo indica que ele propugnava um modelo de transição entre diferentes modelos de sistematicidade, ora mais abrangentes, ora complementares, para se aferir a consistência dos sistemas, contra um sistema unitário de fundamentação.3

A partir de meados do século XX, o pensamento de Gödel começou a encontrar aplicações e interpretações fora do terreno estrito da matemática, inclusive no campo da filosofia e da arte. Destaca-se, nesse particular, o livro de popularização científica e artística interdisciplinar de Douglas Hofstadter, Gödel, Escher, Bach, publicado em 1979 e ganhador do Prêmio Pulitzer (Hofstadter, 2001). Enzensberger, por sua vez, era fascinado pelo pensamento e pela pessoa de Gödel desde sua juventude. Ainda em 1957, data da publicação de seu primeiro livro de poemas, o jovem poeta solicitou ao matemático um encontro:

Dear Professor Gödel, não sou matemático, mas um escritor muito interessado pelo que acontece na ciência e particularmente nas ciências puras. Seu instituto me parece ser um modelo de como podem ser alcançadas grandes realizações nessa área. Portanto, não é por mera curiosidade que perturbo a sua paz, mas para mostrar ao público alemão como funciona o seu instituto e o que se realiza aí. (Sigmund, 2006).

Em 1974, após a publicação de seu poema-homenagem, portanto, Enzensberger tentou de novo, agora com outra estratégia:

Não sou matemático, mas poeta. Reconheço que não me interesso apenas pelo seu trabalho, mas também pela sua pessoa, que é surpreendentemente pouco conhecida no mundo exterior. Bem sei que um interesse desse tipo costuma ser visto como um incômodo a cientistas e eruditos. Posso dizer, no entanto, que não sou jornalista nem espalho fofocas. Se o senhor pudesse me conceder uma hora de seu tempo, eu ficaria feliz de ir a Princeton a qualquer hora que lhe for conveniente. Se não, peço ao senhor que simplesmente desconsidere esta carta e não se dê ao trabalho de respondê-la, pois a simples ideia de incomodá-lo de alguma forma é abominável para mim. (Sigmund, 2006).

Gödel chegou a redigir uma singela resposta nunca enviada a Enzensberger, encontrada em seu espólio (“Dear Dr. Enzensberger, ficarei feliz em recebê-lo no meu gabinete. Very truly yours, Kurt Gödel” - Sigmund, 2006), que só chegou às mãos do poeta quase 50 anos depois, mais de duas décadas após a morte do matemático. O encontro nunca ocorreu.

Já em 2006, por ocasião do centenário de nascimento do matemático, Enzensberger enfatiza no catálogo da exposição “O século de Gödel”, ocorrida em Viena, sua importância filosófica e cultural em termos abrangentes:

Não reside aí o que há de fascinante na sua ciência? E não é indício da grandeza de Gödel o fato de que suas ideias tenham penetrado na cultura filosófica universal? É inevitável que isso conduza a imprecisões metodológicas, a mal-entendidos, a interpretações divergentes. Darwin e Einstein tampouco foram poupados de tais consequências. Não há ciência sem riscos e efeitos colaterais. (Sigmund, 2006).

Por fim, em 2009, o escritor se ocupou novamente do pensamento gödeliano - dessa vez num ensaio intitulado “Sobre os caprichos metafísicos da matemática” (Enzensberger, 2009, p. 47ss). Como se depreende de seu título, o texto se volta à interface entre matemática e filosofia, particularmente aos problemas e paradoxos metafísicos da matemática, abordando o pensamento de cientistas e matemáticos que atuaram desde a Antiguidade até o presente. É claro que Gödel possui, no ensaio, um lugar de destaque.

III

Feita essa apresentação inicial dos dois personagens, passemos então à análise e interpretação do poema. Em primeiro lugar, é importante sublinhar que o próprio uso da linguagem no poema mimetiza, em seu essencial, um discurso demonstrativo típico das disciplinas lógico-matemáticas. Esse mimetismo se expressa não apenas em função de seus elementos exteriores, como o uso de conceitos e categorias técnicas dessas disciplinas (teorema, sistema, demonstração, refutação, equivalência e assim por diante, que, como sabemos, foram amplamente incorporadas também em certa ensaística filosófica a partir do século XVII), mas sobretudo em virtude de seu próprio padrão de discursividade dedutivamente encadeado, demonstrativo e (auto)referencial. Para retomar os termos clássicos da contraposição platônica entre poesia e filosofia (e matemática), trata-se da mimetização de um uso majoritariamente dianoético da linguagem típico das matemáticas e dos padrões de discursividade que lhe são subsidiários, em oposição ao uso sonoro-imagético preponderante na concepção convencional da linguagem poética. É evidente que o poema não abandona inteiramente os aspectos sonoro-imagéticos da linguagem, mas eles se encontram como que enquadrados em uma estrutura discursiva dianoética. Em certo sentido, é possível afirmar que essa disposição da linguagem é uma constante na produção poética de Enzensberger desse período, situada como que no cruzamento entre poéticas de orientação mais claramente imagética, como a de Gottfried Benn, e tendências contemporâneas não impressionistas, concretas ou mesmo antipoéticas (Mizerová, 2020, p. 93). Em “Homenagem a Gödel”, no entanto, essa configuração poética dialoga diretamente com o teor do poema.

No que concerne a sua estrutura, o poema pode ser dividido em quatro blocos. O primeiro bloco abriga as duas primeiras estrofes de três versos cada (1-6), nas quais se postula uma oposição de saída entre Münchhausen e Gödel, ou de seus respectivos “teoremas”. Essa oposição se explicita a partir da secular contraposição entre o estético e o epistêmico, sendo o primeiro o terreno da mentira (ou da ilusão) e o segundo da verdade: com efeito, ao passo que o teorema de Münchhausen seria encantador, mas obra de um mentiroso, o teorema de Gödel, embora pouco notável à primeira vista, seria verdadeiro. Os atributos estéticos e epistêmicos de ambos os teoremas são frontalmente contrapostos em favor, note-se, não da estética, mas da verdade. Como nota Mizerová (2020), no entanto, o fato de que a narrativa de Münchhausen seja convertida em um teorema contradiz essa oposição, tendo em vista que, por definição, um teorema é uma proposição demonstrável “derivada a partir de resultados e processos de inferência previamente admissíveis em um domínio teórico particular” (Branquinho; Murcho; Gomes, 2006, p. 729). Ou seja, para todos os efeitos, trata-se de uma proposição tida como verdadeira, cujos processos demonstrativos são aceitos de outro âmbito teórico. Assim, instala-se já na primeira estrofe do poema um paradoxo análogo ao paradoxo do mentiroso, cujos termos são indecidíveis, isto é, “nem demonstráveis nem refutáveis” (10), conforme afirma o próprio teorema de Gödel a que o poema presta homenagem.

Outro componente poético crucial desses primeiros versos é a interpelação ao leitor - “mas não se esqueça” (2), “mas veja” (4) -, que será reiterada por todo o poema e que, como tal, o torna autorreflexivo de saída. Com isso, em seus primeiros versos, adensando o paradoxo que eles abrigam, o poema também se volta reflexivamente para si próprio como poema e, ao se posicionar contra Münchhausen e a favor de Gödel, ele também se volta mediatamente contra si próprio como poema, contra sua própria natureza de objeto estético em sentido convencional. Em outros termos, trata-se de uma injunção à precaução do leitor contra as ilusões da aparência estética e em benefício de um tipo de raciocínio matemático dedutivamente encadeado - precaução que, paradoxalmente, pode por certo ser aplicada também ao próprio poema que enuncia essa injunção.

O segundo bloco abarca da terceira à sétima estrofes e se dedica à apresentação e elucidação do teorema de Gödel propriamente dito. Primeiramente, na terceira estrofe (7-12), o poema oferece uma definição do teorema. Embora se valha das aspas de citação e de uma linguagem medianamente técnica, trata-se aí de uma paráfrase livre que combina elementos dos dois teoremas da incompletude de Gödel, tanto do primeiro (7-10) quanto do segundo (11-12). As quatro estrofes subsequentes deste bloco desdobram de diferentes maneiras e em linguagem consideravelmente mais intuitiva os diferentes componentes do teorema apresentado. Com efeito, a quarta estrofe estende o âmbito de aplicação do conceito gödeliano de incompletude para fora do terreno estrito da matemática e da metamatemática e o leva aos “sistemas” da “língua”, do “cérebro” e “etc” (19), reiterando também aqui a interpelação ao leitor (“você pode”, “sua língua”, “seu cérebro” - 13 e 16). A incompletude consiste no fato de que a investigação de sistemas recursivos como a linguagem e a racionalidade não pode se dar de maneira exaustiva por meio dos instrumentos desse próprio sistema. Com isso, não apenas é afirmada a grande abrangência do teorema; também a natureza autorreflexiva do poema é adensada, cujo meio - a língua - é pela primeira vez enunciado como um “sistema” ao qual o teorema se aplica.

Se a quarta estrofe se ocupou do conceito gödeliano de incompletude, a quinta, a sexta e a sétima estrofes, por sua vez, explicitam e desdobram diferentes aspectos do conceito de inconsistência, quais sejam: o fato de que ele se aplica universalmente (“todo sistema pensável”, 21); que dele se depreende que a justificação de um determinado sistema só pode ser feita de fora dele, o que redunda na sua transcendência (ou destruição) como sistema fechado (22-23); a afirmação de que sistemas que revelam uma pretensão à completude são autocontraditórios, ou inconsistentes (25-27), o que implica em uma redefinição do conceito de contradição, cuja ausência passa a ser sintoma de um déficit sistemático, e do conceito de certeza, que passa a equivaler a inconsistência (28). Em outros termos, contradição e incerteza passam a ser compreendidos como valores epistêmico positivos. Note-se que esses conceitos, agora redefinidos, são tradicionalmente atribuídos também aos objetos poéticos como índice do que seria sua precariedade de um ponto de vista epistêmico. Ao redefini-los, temos mediatamente também uma reavaliação positiva do estatuto dos próprios objetos poéticos que os incorporam.

O terceiro bloco corresponde às três estrofes seguintes (29-40), nas quais o poema refere o teorema de Gödel não apenas ao teorema de Münchhausen, mas a si mesmo, isto é, ao poema e também a seu leitor. Pela primeira vez desde a primeira estrofe ambos teoremas são referidos conjuntamente, e compatibilizados. Aqui, explicitamente, ao passo que o próprio poema é apresentado como um sistema recursivo (“também neste pântano aqui” [38], cuja definição, aliás, reforça o caráter antipoético do poema), são referidos como subsistemas recursivos suficientemente ricos “qualquer cavaleiro pensável”, “Münchhausen” e “também você” (29-31). “O próprio cabelo”, por sua vez, se converte em um “subsistema desse subsistema”,4 um “guindaste” que serve não apenas a mentirosos como Münchhausen, mas também a “reformistas” (36).5 A todos eles, em suma, sistemas, subsistemas e subsistemas de subsistemas aplicam-se os teoremas gödelianos: eles admitem sentenças que não podem ser demonstradas nem refutadas com os meios do próprio sistema (37-40), a não ser que o próprio sistema seja inconsistente. De fato, já vimos que o próprio poema “Homenagem a Gödel” abriga tais sentenças indecidíveis desde seus primeiros versos sob a forma, sobretudo, de paradoxos autorreferenciais, o que ao mesmo tempo determina sua “consistência” em sentido gödeliano. Porque ele abriga tais paradoxos, portanto, ele passa a ser consistente enquanto poema.

O quarto e último bloco abarca a estrofe final (41-42), na qual o poema interpela o leitor uma última vez com uma injunção construída a partir de uma espécie de síntese de ambos os teoremas: “Pegue essas sentenças na mão / e puxe!”. Formalmente, se é que a separação entre forma e conteúdo é possível, a injunção se apoia fundamentalmente no teorema de Münchhausen; do ponto de vista do conteúdo, ela se vale da interpretação do teorema de Gödel levada a cabo no decurso do poema, particularmente nas estrofes VIII a X. Trata-se aqui, em suma, do que poderíamos denominar o “teorema de Gödel-Münchhausen”. Aqui se revela o sentido último da conversão da narrativa do mentiroso Münchhausen em um “teorema”: ela não apenas é paradoxalmente tida como verdadeira desde o início, mas também é formalmente empregada na injunção final ao leitor. Essa injunção, é claro, ultrapassa os termos do teorema de Gödel, pois é Münchhausen que postula a transcendência de um dado sistema por seus próprios meios. Em mais um adensamento do paradoxo instalado no poema, essa exortação converte “Homenagem a Gödel” também numa “Homenagem a Münchhausen”, sendo que os dois haviam sido apresentados como antípodas - nisso, o poema passa a abrigar em seu interior ainda mais indecidibilidade, tornando-se mais “consistente” em sentido gödeliano. De fato, não se trata aí de uma grande homenagem?

Evidentemente, pegar essas sentenças na mão e puxá-las é um gesto que conduz para fora do sistema em questão - seja esse sistema o pântano de Münchhausen, o próprio leitor ou o poema. Lembremos que não são quaisquer sentenças que podem ser puxadas, mas justamente as sentenças indecidíveis de seus respectivos sistemas. No caso “deste pântano aqui”, isto é, do próprio poema, vimos como elas estão dispersas desde o princípio: desde a instauração do paradoxo autorreferencial no início até a sintética (e também paradoxal) injunção final, passando pela recorrente interpelação crítica ao leitor, pela afirmação, no interior de um objeto estético, de valores epistêmicos em contraposição aos valores estéticos convencionais, e assim por diante. Tais sentenças podem ser compreendidas, em suma, como instâncias em que a linguagem como que se dobra sobre si, se objetifica, se esgarça, revela seus limites enquanto linguagem e possibilita certa articulação discursiva desses limites. Para além dos exemplos dispersos pelo próprio poema, no entanto, certamente há outras instâncias e procedimentos alternativos que conduzam a resultados análogos: essa é a investigação do poeta. De qualquer maneira, quanto mais essas instâncias são ativadas, tanto mais consistente se torna o poema, isto é, tanto mais intensamente o poético é conquistado - e, correlativamente, quanto mais intensamente ele é conquistado, tanto mais ele aponta, como ensina o teorema de Gödel-Münchhausen, para o que está fora dele.

Correlativamente, não são quaisquer sistemas que podem abrigar tais sentenças, mas tão somente os sistemas que atendam aos critérios do teorema de Gödel: eles devem ser suficientemente ricos e consistentes. Diferentemente da interpretação de Ulrich Nortmann (2010), portanto, o poema não parece propugnar o puro e simples abandono do pensamento sistemático em prol de uma “lógica anárquica”, avessa a qualquer princípio e a qualquer sistematicidade. Ao contrário, ao construir o teorema de Gödel-Münchhausen, é possível dizer que o poema propõe de forma aparentemente paradoxal um adensamento da riqueza e da consistência dos sistemas justamente como pré-requisito de sua superação. Trata-se, em suma, de uma dinâmica singular entre sistema e antissistema. Nesse processo, segundo o próprio teorema de Gödel-Münchhausen, o poema radicaliza a um só tempo sua riqueza e consistência como poema e também, paradoxalmente, a sua possibilidade de abertura ao exterior, ao não-poético. E aqui voltamos à nossa questão inicial.

IV

Dizíamos que, no ambiente contemporâneo, cada poema precisa conquistar a partir de si mesmo seu próprio índice de poeticidade sem padrões dados a priori, o que redunda no fato de que a fronteira entre o poético e não-poético historicamente se esboroou a ponto de não mais ser uma fronteira binária a transpor, mas uma intensidade a conquistar. Talvez seja possível sustentar que “Homenagem a Gödel” oferece uma imagem não apenas da poética do próprio Enzensberger, mas também da ontologia histórica do poético nesse contexto. Pois, em primeiro lugar, o critério de constituição do poético que o poema apresenta - em síntese, a instauração de instâncias-limite da linguagem, agrupadas sob a categoria lógica das sentenças indecidíveis cujo paradigma, aqui, são os paradoxos autorreferenciais - é um critério intensivo. Essa instauração nunca é dada a priori, mas se revela sempre como exercício processual de pesquisa da linguagem no contexto de cada poema; e quanto mais intensivamente ela se dá, tanto mais consistente será o objeto poético. Essa consistência, em segundo lugar, ao passo que torna possível a constituição do poema como objeto linguístico sui generis, também permite sua abertura à exterioridade. É como se o poema postulasse um duplo movimento aparentemente paradoxal: de um lado, radicalizar a pesquisa das instâncias-limite da linguagem, para que o poético se faça; de outro lado, tão logo o poema se constitua como tal, lançá-lo novamente para fora de si. Assim, a fronteira entre o poético e o não-poético permanece porosa e é negociada e explicitada no próprio poema.

O que parece mais enigmático e mais interessante nesse movimento é a remissão do poema (e do poético) à exterioridade. Creio que é possível interpretá-la pelo menos de dois modos até certo ponto complementares - todos eles adequados à atual ontologia histórica do poético. Em primeiro lugar, trata-se da saída para o que poderíamos considerar o enriquecimento material do poema, para que ele possa respirar o “ar sujo de tudo”, na bela expressão de Sebastião Uchôa Leite. Essa acepção também se coaduna ao modo como o poema se vale do teorema de Gödel-Münchhausen, na nossa interpretação: não para o abandono completo de qualquer horizonte de consistência sistemático-formal do poema, mas como dinâmica entre sistematicidade e antissistematicidade, fechamento e abertura visando o enriquecimento e complexificação de seus próprios parâmetros. Reside aqui, inclusive, a possibilidade de sua interface com outros gêneros fronteiriços, como o ensaio.

Em segundo lugar, é possível interpretar a remissão à exterioridade propugnada pelo poema como uma crítica a conceitos rígidos de autonomia estética e do poético, como aqueles tributários do formalismo. Segundo o teorema de Gödel-Münchhausen, o movimento de autonomização formalista do objeto poético a partir da imersão nos seus parâmetros materiais deveria ser complementado por um segundo movimento. Esse segundo movimento, de ruptura com cristalização formalista do poético, revelaria o pertencimento de seus parâmetros à exterioridade - ou, se quisermos, a contaminação do estético e do poético por esferas necessariamente extraestéticas, como a epistêmica e a política, sem simplesmente imiscui-las de modo indistinto.

Temos aqui, afinal, uma boa imagem do que seria o onivorismo da poesia, segundo a posição defendida pelo próprio Enzensberger. Mas talvez tenhamos também uma imagem programática do fazer poético num momento de sua ontologia histórica, que, justamente ao colocar em questão sua vinculação a seus parâmetros distintivos convencionais, também confere à poesia uma possibilidade de abertura radical.

Referências

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  • BRANQUINHO, João; MURCHO, Desidério; GOMES, Nelson Gonçalves. Enciclopédia de termos lógico-filosóficos São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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  • ENZENSBERGER, Hans Magnus. Fortuna und Kalkül. Zwei mathematische Belustigungen Frankfurt am Main: Suhrkamp , 2009.
  • ENZENSBERGER, Hans Magnus. Gedichte 1955-1970 . Frankfurt am Main: Suhrkamp , 1971.
  • HOFSTADTER, Douglas. Gödel, Escher, Bach: Um entrelaçamento de gênios brilhantes. Tradução de José Viegas Filho. Brasília: Editora da UnB, 2001.
  • MIZEROVÁ, Nikola. Hans Magnus Enzensberger a teorém bezespornosti. Word and Sense: A Journal of Interdisciplinary Theory and Criticism in Czech Studies v. XVII, n. 33, 2020.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Para além de bem e mal Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhias das Letras, 2013.
  • NORTMANN, Ulrich: Anarcho-Logik? Von der Mathematik zur Systemkritik. In: PETERSDORFF, Dirk von (ed.): Hans Magnus Enzensberger und die Ideengeschichte der Bundesrepublik Heidelberg: Winter-Verlag, 2010. p. 103-111.
  • OSBORNE, Peter. Anywhere or Not At All: Philosophy of Contemporary Art. London; New York: Verso, 2013.
  • RASPE, Rudolf Erich. As surpreendentes aventuras do Barão de Münchhausen Em XXXIV Capítulos. Tradução de Cláudio Alves Marcondes. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • SIGMUND, Karl. Post von Gödel. Die Zeit, n. 18, 2006. Disponível em: https://www.zeit.de/2006/18/N-G_del_xml Acesso em: 15/05/2024.
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  • 1
    Os algarismos romanos correspondem à numeração das estrofes, e os arábicos ao número do verso. Texto original: Münchhausens Theorem, Pferd, Sumpf und Schopf, / ist bezaubernd, aber vergiss nicht: / Münchhausen war ein Lügner. // Gödels Theorem wirkt auf den ersten Blick / Etwas unscheinbar, doch bedenk: / Gödel hat recht. // In jedem genügend reichhaltigen System / lassen sich Sätze formulieren, / die innerhalb des Systems / weder beweis- noch widerlegbar sind, / es sei denn das System / wäre selber inkonsistent. // Du kannst deine eigene Sprache / in deiner eigenen Sprache beschreiben: / aber nicht ganz. / Du kannst dein eigenes Gehirn / mit deinem eigenen Gehirn erforschen: / aber nicht ganz / Usw. // Um sich zu rechtfertigen / muss jedes denkbare System / sich transzendieren, / d.h. zerstoeren. // “Genügend reichhaltig” oder nicht: / Widerspruchsfreiheit / ist eine Mangelerscheinung / oder ein Widerspruch. // (Gewissheit = Inkonsistenz) / Jeder denkbare Reiter, / also auch Münchhausen, / also auch du bist ein Subsystem / eines genügend reichhaltigen Sumpfes. // Und ein Subsystem dieses Subsystems / Ist der eigene Schopf, / dieses Hebezeug / für Reformisten und Lügner. // In jedem genügend reichhaltigen System / also auch in diesem Sumpf hier, / lassen sich Saetze formulieren, / die innerhalb des Systems / weder beweis- noch widerlegbar sind. // Diese Sätze nimm in die Hand / Und zieh! (Enzensberger, 1971, p. 168s).
  • 2
    Até onde me consta, o filósofo Ulrich Nortmann e a germanista Nikola Mizerová são os únicos teóricos que se debruçaram extensivamente sobre o poema. Até certo ponto, suas interpretações são complementares. Com efeito, Ulrich Nortmann interpreta o poema como elogio de um pensamento anárquico inconciliável com o pensamento sistemático e principiológico em suas grandes linhas - uma espécie de reação de Enzensberger ao contexto desencantado e ultrapragmático do pós-1968 europeu, no qual o poema foi publicado (Nortmann, 2010, p. 112s). De outro lado, Nikola Mizerová o interpreta como um elogio ao pensamento crítico, por meio do qual o sujeito adquire distanciamento e autoconsciência em relação a si mesmo e a seu contexto de atuação (Mizerová, 2020, p. 92). À diferença de Nortmann, Mizerová também reconhece o potencial metapoético e programático de “Homenagem a Gödel”.
  • 3
    “O ceticismo de Gödel em relação a princípios é um ceticismo em relação a uma limitação do pensamento, isto é, a uma limitação do pensamento científico aos princípios axiomáticos de um único sistema teórico. Para o modelo de Gödel, a superação dessa limitação deve ocorrer por meio de transições para sistemas de argumentação estendidos e racionalmente justificáveis, sem sacrificar o compromisso com o rigor lógico-matemático e a valorização da agudeza intelectual. Isto é diferente do anti-intelectualismo e da rejeição geral do sistema. Seu lema seria antes: Esteja preparado para transcender constantemente o sistema de forma criativa, para mudar o sistema ou para enriquecer substancialmente o sistema.” (Nortmann, 2010, p. 10).
  • 4
    Do ponto de vista estritamente lógico, não há diferença de princípio entre sistemas, subsistemas, subsistemas de subsistemas e assim por diante.
  • 5
    No que concerne ao uso do vocábulo “reformistas”, é certo que ele tem grande relevância sobretudo por se tratar da única referência manifestadamente política do poema. Embora não se possa dizer que ela converta “Homenagem a Gödel” diretamente num poema político, o uso do vocábulo explicita o fato de que todos os sistemas que caem sob o teorema de Gödel (inclusive, claro, o próprio poema) se deixam interpretar também politicamente. O reformismo, evidentemente, figura aqui em sua clássica oposição à revolução: trata-se da pretensão de transformação social por meio de reformas consecutivas, e não através de sua substituição in toto pela via revolucionária. Por se valer de meios internos ao sistema para evadir ao sistema, isto é, na medida em que puxa os próprios cabelos para se alçar para fora do pântano, Münchhausen é caracterizado como reformista.
  • Declaração de Financiamento
    Este artigo se beneficiou do apoio da Bolsa de Incentivo à Pesquisa (BIPDT) da FAPEMIG - Processo BIP-00174-23
  • Parecer Final dos Editores
    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2024
  • Aceito
    26 Jun 2024
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