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Nadar a seco: modos de ler

Dry swimming: modes of reading

Resumo

Pensando junto com o poema “versos de circunstância”, de Laura Erber, este texto investiga a imagem do “professor de natação sem água” para refletir sobre o ensino de literatura e a teoria literária, aproximando historicamente a natação à leitura. Este ensaio também mobiliza o nadador que não sabe nadar de Kafka para pensar um modo de (des)conhecimento que desestabiliza a diferença entre professor e estudante.

Palavras-chave:
teoria literária; ensino de literatura, natação.

Abstract

Thinking alongside Laura Erber's poem “versos de circunstância”, this paper investigates the figure of the “swimming teacher without water” to reflect on the teaching of literature and literary theory, proposing historical similarities between swimming and reading. The paper also summons Kafka's swimmer who does not know how to swim to examine a mode of (un)knowing that destabilizes the boundaries between teacher and student.

Keywords:
Literary Theory; Teaching of Literature, Swimming.

Resumen

Pensando junto con el poema de Laura Erber “versos de circunstancia”, el texto investiga la imagen del “profesor de natación sin agua” para reflexionar sobre la enseñanza de la literatura y la teoría literaria, acercando históricamente la natación a la lectura. El ensayo también moviliza al nadador de Kafka que no sabe nadar para pensar en un modo de (des)conocimiento que desestabiliza la diferencia entre profesor y alumno.

Palabras clave:
Teoría Literaria; Enseñanza de Literatura, Natación.

No prólogo de Clases 1985: algunos problemas de teoría literaria, de Josefina Ludmer, Annick Louis escreve sobre a sua professora que “todo se nos explicó sin que hubiera saturación de la comprensión” (2015LUDMER, Josefina. Clases 1985: algunos problemas de teoría literaria. Buenos Aires: Paidós, 2015., p. 16). O curso de Ludmer, ministrado na Universidade de Buenos Aires em 1985, logo após o retorno da democracia na Argentina, estava interessado em injetar novo fôlego teórico ao campo dos estudos literários, que, assim como as humanidades em geral, havia sofrido enormemente com as demissões e renúncias em massa de seus docentes mais experimentais e combativos. Aqueles que permaneceram no país ministraram cursos livres em diversos espaços, sustentando um ambiente de debate e estudo que ficou conhecido como la universidad de las catacumbas. Na introdução do curso, que busca retomar o trabalho interrompido pela ditadura, Ludmer opõe modelos de leitura - largamente difundidas pelo semioticismo que dominou a paisagem intelectual dos anos 1960 - aos modos de ler, defendendo a teoria literária como um campo dedicado a compreender os distintos modos de leitura e os pressupostos a partir dos quais se conceitua a literatura. Os modos de ler constituíam ações, ao passo que os modelos de leitura sugeriam aplicações: “Demuestro lo que el modelo queria mostrar y punto” (Ludmer, 2015LUDMER, Josefina. Clases 1985: algunos problemas de teoría literaria. Buenos Aires: Paidós, 2015., p. 46). Em torno de 500 pessoas assistiam às aulas, nos conta Louis, sendo a grande maioria não matriculada - um verdadeiro evento público. No final da décima aula, reconhecendo a heterogeneidade da turma, Ludmer pede que os alunos comentem aquilo que não estão entendendo. Uma aluna diz que não está entendendo nada, ao que a professora responde com uma teoria pedagógica:

La cuestión es desacelerar. La idea es que ustedes con esto puedan leer los textos que hablan de esto; si hay clases que reemplazan la lectura yo creo que es una función mala, abusiva, del profesor; yo creo que simplemente la meta debe ser señalar, abrirles el camino de la lectura. (Ludmer, 2015LUDMER, Josefina. Clases 1985: algunos problemas de teoría literaria. Buenos Aires: Paidós, 2015., p. 199).

Em outras palavras, assim como a teoria literária (que talvez se distinga, então, de uma teoria da literatura), a aula não deveria oferecer modelos, mas alguns sinais de trânsito para a leitura. Na resposta à aluna, Ludmer diz que a existência da aula se justifica na medida em que algo acontece nela que é (e precisa ser) distinto do texto, sem prescindir dele; algo, portanto, que está para além da replicabilidade ou da paráfrase. A explicação que visa substituir a leitura do texto, ou que se apresenta como intercambiável com a leitura, parece esvaziar ambas as experiências, tanto da leitura quanto da sala de aula - aí reside o seu abuso.

*

Foi em uma tese sobre Josefina Ludmer, defendida em 2023 por Vinícius Rodrigues Ximenes, na UFF, chamada Ler a extração, ler na extração: estudos com Josefina Ludmer (Argentina-Brasil, 1966-2016) [ou: Pedagogias da leitura, poesia e impasse na América Latina], que descobri o poema que é, digamos, o eixo principal deste ensaio. O poema aparece nos prólogos de seu texto, quando Ximenes reflete sobre o entre-lugar do doutorando que cumpre seus estágios de docência, em um lugar ilocalizável entre professor e aluno. Pensando sobre as pedagogias da leitura na universidade pública brasileira e as tensões que emergem diante da mudança do perfil do corpo docente na última década - que trazem e exigem outras disposições epistemológicas -, Ximenes se pergunta se seria possível “configurar um corpo capaz de sustentar um tensionamento permanente entre letramentos” (Ximenes, 2023XIMENES, Vinícius Rodrigues. Ler a extração, ler na extração: estudos com Josefina Ludmer (Argentina-Brasil, 1966-2016) [ou: Pedagogias da leitura, poesia e impasse na América Latina]. 2023. Tese (Doutorado em Estudos da Literatura) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2023, p. 12). A questão é boa, e nos suscita a pensar naquilo que é transmitido entre distintas gerações universitárias, como uma espécie de repositório básico do conhecimento - a formação -, em tensão com aquilo que ousa interromper certo automatismo programático, questionando seus pressupostos e ritos. Uma tensão entre herança e imaginação, como já propus em outro texto.1 1 Ver Ruggieri, M. “Os fins da Universidade: herança e imaginação”. Alea: Estudos Neolatinos, vol.22, núm. 3, setembro-dezembro de 2020.

O poema “versos de circunstância”, de Laura Erber (2021ERBER, Laura. Versos de circunstância. Revista Gueto. 19 de janeiro de 2021. Disponível em: https://revistagueto.com/2021/01/19/tres-poemas-ineditos-de-laura-erber/. Acesso em:
https://revistagueto.com/2021/01/19/tres...
), que foi professora na Unirio entre 2012 e 2019, me parece, nos indica algumas dessas modificações do espaço universitário, que parecem transformar, também, o próprio andamento da aula, a sua cadência, por assim dizer:

gosto quando nas aulas
alunas desatentas
despertam do profundo cansaço
como deidades muito antigas
em ondas de sobrevivência
a vida numa certa idade se parece um pouco ao cansaço mítico
- um comboio comprido passando depressa
mas devagar demais depressa -
e dizem de uma só vez toda a verdade
sobre os textos que não leram
(uma amiga diz que
coisas mágicas acontecem
em sala de aula
mas também coisas súbitas
como pessoas
pedindo licença ajuda
mostrando cicatrizes
receitas
e depois sumindo
para sempre)
gosto quando nas aulas
alunos muito atentos
fazem as perguntas
que mais gosto de fingir
saber responder
o que é anacronismo?
o que significa signo?
gosto quando nas variações da vida
que são as aulas
me perco no meio de uma frase
perco todas as palavras
peço ajuda às alunas cansadas
distantes em seus comboios
infinitos vagarosos porém frenéticos
e ninguém ousa dizer
professora não temos a vida toda
ande com essa frase precisamos dormir
fazer xerox sofrer
transar e outras coisas
menos palpáveis
voluptuosas
ande com isso que não temos
a menor ideia da sua ideia
de frase
às vezes me salvam dos lapsos
às vezes me jogam dentro deles
um pouco mais
profundamente
às vezes não quero ser salva
há dias - todos os dias - em que sei que sou
o professor de natação
sem água.

A cena da aula descrita por Erber em tudo difere das austeridades formais que caracterizavam as aulas magistrais de outrora, em que perguntas e comentários viriam idealmente ao final da exposição, e das quais as clases de Ludmer são apenas um exemplo (ainda que, talvez seja importante mencionar, o ensino de outrora parecesse ser menos movido por resultados - estudantes de primeiro ano que já querem publicar artigos, por exemplo). A aula parece se constituir mais pelo desvio imprevisto do que por aquilo que foi planejado de antemão, e as irrupções - os lapsos - se transformam em uma espécie de norma que desfaz a hierarquia sobre quem deve ocupar o espaço sonoro. Os estudantes dormem, não leem, parecem recusar os protocolos básicos da aula e, no entanto, algo acontece: fazem uso da palavra, comentam textos que não leram e falam sobre outras coisas, externas ao texto e à aula - cicatrizes, receitas. Apesar da modificação dos ritos - não mais solenes -, a aula ainda se configura como um espaço outro, que precisa encontrar seu término para que outras atividades possam ser retomadas: o xerox, o sofrimento, a vida amorosa. Tudo isso configura uma cena afetiva: a voz enunciativa do poema não reclama, ela também não entende tão bem aquelas que seriam as unidades conceituais básicas do conhecimento do campo - signo, anacronismo -, ela não quer ser salva, não quer um retorno à pedagogia como ordem, mas parece preferir permanecer em estado de suspensão, com a palavra na ponta da língua.

Fred Moten e Stefano Harney, em The Undercommons (2013HARNEY, Stefano; MOTEN, Fred. The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study. New York: Minor Compositions, 2013.), refletem sobre a recusa em realizar um chamado à ordem, de chamar os outros à ordem, de resistir à interpelação da lei e de interpelar os outros como agentes da lei. Quando entramos em uma sala de aula, eles dizem, as conversas em andamento dos estudantes indicam que o estudo já começou, antes mesmo da presença do professor. Como reconhecer que a aula já está em andamento, juntando-se a ela, negando a diferença entre ruído e música, entre buchicho e conhecimento, em vez de demarcar o seu início? Para Moten e Harney, a recusa em realizar um chamado à ordem é também a recusa em se transformar em um agente da governança.

Mas também não seria um equívoco pensar que essas transformações na paisagem universitária brasileira não se dão de forma homogênea. Nas universidades centrais - que narram e projetam a si mesmas dentro do paradigma da excelência, atentando-se menos para as ambivalências de conformar-se como uma política pública, a aula ainda pode conservar algo de seus aspectos hierárquicos, e o silêncio dos estudantes, frequentemente calculado como apatia, permanece sendo tema de conversas de corredores entre professores. Também parece importante considerar que um mesmo espaço pode conter dinâmicas muito distintas, a depender do turno do curso: se diurno ou noturno. Realizo essa reflexão porque o poema de Laura Erber chegou até mim quando iniciava minha docência efetiva na Universidade Federal do Ceará, em duas turmas de primeiro ano do período noturno dos cursos de Letras-Inglês e Letras-Espanhol. Guardei o poema em uma gaveta imaginária para lê-lo para os estudantes no encerramento do curso de Teoria da Literatura II. Como eu havia dado no semestre anterior, para as mesmas turmas, Teoria da Literatura I, a leitura do poema na última aula do ano serviria também como uma espécie de balanço do ano letivo - e um agradecimento pelos lapsos provocados. Eu também não queria ser salva: em segurança, mas não em terra firme, a sala de aula sempre me pareceu ser um bote salva-vidas à deriva. Não queria ser polícia - que, como nos lembra Rancière, em inúmeros textos, é o oposto da política -, mas também não queria ser da guarda costeira. Antes, imaginava a todos nós em uma espécie de navio pirata.

*

O poema me interessava sobretudo pela descrição do espaço da sala de aula, tão semelhante à minha. Por isso, em minhas leituras solitárias, dei menos atenção ao final do poema. Na aula, no entanto, os estudantes se sentiram imediatamente intrigados por ele - o professor de natação sem água. A imagem, que tem algo de cômico e melancólico como o clown, parecia condensar, para os alunos, o segredo da perspectiva docente, como se ali estivesse a senha da mensagem supostamente cifrada que eu transmitia a eles por intermédio do poema. Para os estudantes não era suficiente saber que eu não queria ser salva, eles queriam desdobrar os sentidos da figura desse professor diante daquilo que se compreendeu, na primeira turma, como uma falta. Durante a discussão, a imagem do professor de natação sem água foi compreendida nos termos dos severos problemas de infraestrutura que enfrentamos em nosso instituto: a ausência de equipamentos como computador e projetor ou de internet na sala de aula. A atenção à precariedade material do espaço em que ocorre a aula - e que, portanto, não pode ser dissociada dela - abriu caminho para ainda outra questão, e que também aparece brevemente no poema: os alunos que desaparecem para sempre. E então, como se me devolvessem um poema, foram listados os nomes dos estudantes que haviam desistido do curso não porque descobriram sua vocação em outros campos do conhecimento, mas por causa da falência dos mecanismos de permanência - como se a dizer, no encerramento do curso: nem todos chegamos até aqui, ainda nos faltam alguns. A leitura coletiva, ruidosa, acabou por produzir um silêncio ativo, uma espécie de homenagem.

Na segunda turma, o professor de natação sem água se transformou em uma possibilidade criativa: é a literatura que cria, a cada aula, a água, disseram os estudantes. Eles lembraram do texto “A literatura e a vida”, de Deleuze, em que o filósofo diz que a literatura inventa o povo que falta, assim como de um poema de June Jordan que eu havia mostrado para ilustrar a ideia do “povo que falta”, chamado “APELO A TODAS AS MINORIAS SILENCIOSAS”, que diz

EI!
VAMOS
SAIAM CÁ PARA FORA
ONDE QUER QUE ESTEJAM
PRECISAMOS NOS REUNIR
DEBAIXO DESTA ÁRVORE
MESMO QUE ELA
AINDA NÃO TENHA SIDO PLANTADA.

A ausência de água foi proposta como evento para a fabulação, em uma formulação muito próxima àquilo que Spivak diz sobre a função do ensino da literatura: o treino da imaginação para reconfigurações epistemológicas. O interessante, me parece, dessas duas leituras construídas nas distintas turmas, é que elas não são opostas, mas complementares, como se uma fosse o forro do avesso da outra. E embora eu tenha algumas hipóteses sobre os motivos pelos quais as turmas divergiram em suas leituras, a primeira mobilizando um arquivo de vivências (que não deixa de ser uma leitura) e a outra mobilizando um arquivo de leituras (que não deixa de ser uma vivência), prefiro voltar à piscina.

*

A proximidade entre a leitura e a natação não é tão inusual como pode parecer à primeira vista. No livro III de As leis, de Platão, a relação entre as duas atividades é mencionada em referência a um provérbio comum à época: sobre as pessoas incultas, dizia-se que não sabiam “nem ler, nem nadar”. No diálogo platônico em questão, no entanto, saber ler e nadar não constituía propriamente a sabedoria necessária para estar à frente do governo. O provérbio, de todo modo, indica que a prática da natação, como a leitura, pertencia a um estrato social específico, sobretudo por tratar-se de uma prática estrangeira. Em Shifting Currents: A World History of Swimming, Karen Eva Carr demonstra como o ato de nadar foi esquecido duas vezes pela parcela da população humana que vivia naquilo que se convencionou chamar de Europa: primeiro na Era do Gelo e depois na Idade Média. Os gregos e os romanos aprenderam a nadar (assim como aprenderam o alfabeto) com os cartaginenses, e o crawl pode ser visto sendo praticado já em inúmeras de suas cerâmicas, bem como dos egípcios, ao passo que nas imagens greco-romanas o nado é sempre realizado com a cabeça para fora da água, sem o uso alternado dos braços. No Ocidente, nadar parecia tratar-se muito mais de não se afogar do que de deslizar-se com a leveza dos peixes. Após a Idade Média, quando a água passou a conter, sobretudo, os sentidos da enfermidade e da monstruosidade (basta pensar nos monstros marinhos), foram os povos indígenas que ensinaram os europeus a nadar, introduzindo novamente o crawl, já que os europeus que nadavam geralmente o faziam utilizando o nado peito, ou um nado lateral, e mantinham, como seus antepassados, suas cabeças invariavelmente fora da água.2 2 Olga Kempinska, em “Natação como metáfora da leitura” (2018), propõe a imagem da natação como uma metáfora para um tipo de leitura em que não é possível manter uma distância estética. Sobre a natação com a cabeça dentro da água, ela diz, “Com efeito, aprender a respirar para nadar é uma tarefa paradoxal no qual se desaprende e reaprende aquilo que é considerado como mais natural. Nadar é praticar uma forma de ‘respiração estrangeira’, tal como se pratica uma língua estrangeira”. Quando dois homens Ojibwa do Lago Superior, na América do Norte, foram levados à Inglaterra em 1840 para demonstrar suas técnicas de natação, o jornal The Times, embora reconhecesse a velocidade possibilitada pela técnica, a julgou grotesca e pouco-civilizada, “un-European”. Marcel Mauss, em sua “A noção de técnica do corpo”, de 1934, notou essa modificação de modo:

Por outro lado, nossa geração, aqui, assistiu a uma mudança completa de técnica: vimos o nado a braçadas e com a cabeça fora d’água ser substituído pelas diferentes espécies de crawl. Além disso, perdeu-se o costume de engolir água e de cuspi-la. Pois os nadadores se consideravam, em meu tempo, como espécies de barcos a vapor. (Mauss, 2003MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003., p. 402).

Desde pelo menos o século XVI, a reintrodução da natação na cultura europeia, retomando a antiguidade clássica, pretendeu ser colocada em termos científicos; termos opostos, portanto, à forma supostamente natural - e animalesca - em que outros povos nadavam.3 3 Uma perspectiva similar era mobilizada pelo norte da China em relação à região costeira do sul, em que os modos de nadar distintos também foram atribuídos a tonalidades distintas de pele. Ver: Carr (2022, p. 287). Em 1587, Everard Digby publicou seu De Arte Natandi, um manual de boas práticas aquáticas para nadar em segurança e dominar essa arte - i.e. técnica, em oposição a algo como o instinto - que, se respeitada, “não diferia muito das outras ciências liberais”. Entre os inúmeros manuais que seguiram, o título O homem que flutua, ou a arte racional da natação, publicado na Itália em 1794, demonstrava o desejo de defender a prática como um elemento da modernidade instruída, cujo maior distintivo era o uso da razão. Em 1820, um viajante russo observou o momento de lazer de alguns armeiros em um rio ao sul da Rússia, relatando que:

Eles passam quase todo o tempo na fábrica, nas oficinas, ou na frente de fornalhas quentes, e nos dias quentes de verão, eles passam o tempo livre nadando. É impossível não questionar sua ousadia quando eles se jogam de cabeça no rio de dez metros de altura. Na água, eles possuem bastante confiança e utilizam quase todos os estilos de natação conhecidos... embora eles não aprendam pelas regras e nem saibam que existam regras e escolas de natação. (Gaglolev apudCarr, 2022CARR, Karen Eva. Shifting Currents: A World History of Swimming. Londres: Reaktion Books, 2022., p. 286).

À medida que piscinas públicas eram inauguradas e a prática da natação, removida de seu ambiente natural, se popularizava entre a classe média europeia, inúmeras charges em jornais e revistas começaram a ironizar as classes mais populares e os seus meios de aprendizado. Honoré Daumier publicou, em 1847, a charge “Madame Rabourdeau à sa première leçon”, em que vemos uma mulher gorda e de meia-idade amarrada por uma corda a seu instrutor de natação. O humor, supõe-se, deveria vir do fato de que se tratava de um corpo inapto, segundo a perspectiva do autor, para uma prática associada à beleza dos corpos apolíneos. Alguns anos antes, em 1841, o mesmo autor havia publicado outra charge, intitulada “La leçon à sec” (Figura 1). Nela, um homem semivestido está em um quarto e é observado por seu professor enquanto pratica o que parece ser o nado peito, suspenso no ar por uma corda. Sua roupa, jogada sobre um banco, é elegante; não sabemos se o homem é membro de uma burguesia ascendente ou se é um cocheiro ou um mordomo. A natação a seco, aqui, acena para o ridículo, e talvez diga algo sobre as modas (Carr menciona os inúmeros acessórios e vestimentas que surgiram em torno da prática da natação),4 4 Carr menciona como a associação entre nudez e promiscuidade produz uma série de técnicas de ocultamento do corpo, como a “máquina de banho” (bathing machine), que consistia em uma cabine sobre rodas nas quais as pessoas poderiam se trocar e serem levadas até a água. Simultaneamente, os trajes de banho se tornavam cada vez mais fechados, longos e volumosos. como também sobre a proliferação de técnicas que pretendiam ser transmitidas sem um vínculo com o meio: não uma experiência, mas um experimento realizado dentro dos protocolos controlados de um laboratório. Mas há também algo de engenhoso: sem acesso a uma piscina ou a um corpo d’água, a aula a seco quase se converte em uma modalidade de voo assistido. O aprendizado se dá pela via prostética e, ao mesmo tempo que reforça a técnica, isolando-a como elemento desconexo, parece subvertê-la, produzindo incômodo em quem a detém, digamos, em sua plenitude normativa. Aqui me lembro também do que disse Marcos Natali, em entrevista à Anita Martins Rodrigues de Moraes, sobre a figura do “estudante neófito” - “os estudantes negros de economia política” e “os siameses de Oxford” -, na Minima Moralia de Adorno, para quem a verdadeira disposição crítica, que pressupõe a experiência prévia da tradição, se difere do tipo de aprendizado artificial do recém-chegado:

Desenvolver o raciocínio da Minima Moralia levaria à conclusão de que, no contexto educacional, o ato político-pedagógico mais responsável é fomentar a interiorização da tradição nas alunas e nos alunos, esses eternos recém-chegados. Depois, no momento certo, poderão vir a odiá-la adequadamente, com um ódio imanente, não um ódio que venha de fora da Europa. (Natali; Moraes, 2022NATALI, Marcos; MORAES, Anita Martins Rodrigues. Entrevista com Marcos Natali: a literatura em questão. Gragoatá, v. 27, n. 59, 2022., p.18).

Figura 1 -
“La leçon à sec”, de Honoré Daumier.

Indo um pouco mais longe nas semelhanças entre leitura e natação, não seria uma questão menor pensar que, se os europeus aprenderam (duas vezes!) a nadar com seus subalternos, são hoje esses mesmos corpos racializados como antinormativos que se veem, muitas vezes, impossibilitados de nadar, tanto pelo esquecimento imposto pela escravidão - escravizados que sabiam nadar poderiam fugir mais facilmente -, quanto pela expropriação de seus corpos d’água, roubados, exauridos e poluídos pela razão técnica, além da disparidade de acesso a piscinas.

*

Após escutar os estudantes, comentei que, para mim, o professor de natação sem água de Erber também tinha algo a ver com o O grande nadador, de Kafka, que havíamos lido no semestre anterior. Não foi a melhor aula, os estudantes haviam se frustrado com o fato de que não haviam entendido o conto, acharam tudo confuso e esperavam que a confusão do conto fosse resolvida em sala, em um exercício de revelação de algum segredo oculto, para o qual eu possuiria a chave. No curtíssimo texto de Kafka, um homem chega das Olimpíadas ao seu país natal após obter um recorde mundial de natação. A promessa de celebração do início começa a se desestabilizar pelo fato do nadador não entender a língua dos supostos conterrâneos que o recebem e culmina no fato do nadador vitorioso sequer saber nadar: “Mas como foi então que fui mandado por minha pátria às olimpíadas? Esta é justamente a questão que também me ocupa” (Kafka, 2018KAFKA, Franz. O grande nadador. Caderno Illustríssima, Folha de São Paulo. Tradução de Marcelo Backes, 27 de janeiro de 2018.). A recepção, que deveria marcar o reconhecimento do atleta, se configura como aquilo que é absolutamente irreconhecível: além da língua estranha dos conterrâneos, estão mulheres que se sentam ao contrário nas cadeiras e o discurso comemorativo do ministro parece terrivelmente triste - procurando enxugar seu suor, acaba por enxugar lágrimas. A ilegibilidade que constitui toda leitura, assim como o inexplicável que constitui toda explicação: era justamente sobre isso a aula, a convivência com a alteridade radical contida na possibilidade de se chegar a um sentido imprevisto - em oposição à decifração. O nadador que não sabia nadar, demandado a falar de seu feito diante de todos me fazia pensar em uma professora à qual se solicitava explicar o que não podia ser explicado: nenhum dos dois era uma fraude, mas pareciam encontrar-se diante de um impasse. Em um dos textos de Formas breves (2000PIGLIA, Ricardo. Los sujetos trágicos (Literatura y psicoanális). Formas breves. Barcelona: Anagrama, 2000.), Ricardo Piglia mobiliza a imagem da natação para pensar a relação entre literatura e psicanálise: o artista, ele diz, é aquele que nunca sabe se vai poder nadar novamente no mar da linguagem após tê-lo feito uma vez. A psicanálise, por sua vez, tenta manter em flutuação aquele que está sempre na iminência de afogar-se na linguagem. Ambas seriam “artes da natação”, mas de modos distintos. Piglia chega a essa conclusão retomando uma anedota segundo a qual Joyce, levando os escritos da filha a Jung para provar que ambos escreviam da mesma maneira (ao modo onírico do fragmento) e que a filha, portanto, estava bem, teria ouvido do psicanalista: “Mas ali onde você nada, ela afunda”.

Aaron Schuster, em “Kafka Swims: The Champion of the Impossible”, retoma uma anotação de um dos cadernos de Kafka para pensar a relação entre saber e não saber: “Posso nadar como os outros. Apenas tenho uma memória melhor que os outros. Não esqueci minha inabilidade pregressa de nadar. Mas já que não esqueci, poder nadar não me ajuda; e, então, ao fim, não sei nadar” (Kafka apud Schuster, 2020SCHUSTER, Aaron. Kafka Swims: The Champion of the Impossible. Cabinet Magazine. 28 de maio de 2020. Disponível em: https://www.cabinetmagazine.org/kiosk/schuster_aaron_28_may_2020.php. Acesso em:
https://www.cabinetmagazine.org/kiosk/sc...
). Nadar sem saber nadar, será que esse paradoxo soaria melhor na boca de um filósofo?, se pergunta Schuster, evocando o “só sei que nada sei” socrático.

É por isso que o humor kafkiano (o nadador que não sabe nadar) é mais radical que a ironia socrática (o filósofo que não sabe). Apesar do gesto provocativo de Sócrates, o conhecimento que é desconhecido está salvaguardado em algum lugar, e é isso que está especificado na teoria platônica da memória. De acordo com a doutrina da anamnese, a alma é agraciada com uma plenitude de conhecimento que é apagada ao nascer, de modo que o processo de aprendizagem consiste em desfazer a amnésia (an-amnesis), em lembrar do conhecimento que se possuía anteriormente e que foi esquecido. A memória de Kafka funciona exatamente de modo oposto: é uma memória paradoxal da amnésia. Há uma prioridade do não saber sobre o saber, a incapacidade sobre a capacidade, da impossibilidade sobre a possibilidade, que o conhecimento, a técnica e a força nunca podem derrotar. (Schuster, 2020SCHUSTER, Aaron. Kafka Swims: The Champion of the Impossible. Cabinet Magazine. 28 de maio de 2020. Disponível em: https://www.cabinetmagazine.org/kiosk/schuster_aaron_28_may_2020.php. Acesso em:
https://www.cabinetmagazine.org/kiosk/sc...
).

Ler o poema de Laura Erber à luz do nadador que não sabe nadar seria algo como, ao falar diante de dezenas de estudantes, conservar a memória dessa posição de aluno - constituir um corpo, portanto, que seja, ao mesmo tempo, docente e discente: o não saber como destino e não origem. Talvez poucas disciplinas se prestem a essa forma radical de (des)conhecimento como o ensino da literatura, que parece depender de verificar a inverificabilidade. O professor de natação sem água, então, tem a difícil missão de transmitir um modo de (des)conhecer, de produzir sentido a partir daquilo cujo sentido não está dado de antemão. Rancière, em uma entrevista sobre O mestre ignoranteRANCIÈRE, Jacques; BENVENUTO, Andrea et al. Atualidade de “O mestre ignorante”. Tradução de Lílian do Valle. Educação Social, v. 24, n. 83, abril de 2003., opõe Jacotot à Sócrates: o primeiro ignora, sobretudo, a desigualdade de saberes, ao passo que o segundo a mobiliza em prol de um método maiêutico que apenas encena a ignorância. No Livro 5 de A república, Platão parece assinalar um limite ao seu método. Antecipando as objeções que viriam de seus críticos, ele compara sua defesa a uma natação que visa, acima de tudo, evitar o naufrágio do corpo. Mas não sendo, talvez, o melhor dos nadadores - e, portanto, não o melhor debatedor e nem o melhor professor - desejará a vinda de um outro: “também nós temos de nadar e tentar salvar-nos nessa discussão, ou na esperança de que um golfinho nos leve, ou de qualquer outra salvação difícil de conseguir!” (Platão, Rep., V, 217dPLATÃO, -. A república. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.). Esse breve lapso, em que mestre e discípulo são igualmente ignorantes, no entanto, é rapidamente preenchido: é Sócrates mesmo que produzirá o golfinho e, assim como o nadador de Kafka, que, após sua confissão, termina o conto dizendo “Mas voltemos para o meu recorde mundial”, retomando os protocolos da celebração, o filósofo retoma seu método, “Vejamos então se encontramos uma saída”.

*

Na linha evolutiva, os mamíferos aquáticos descendem de mamíferos terrestres. Nossos parentes aquáticos pregressos são, portanto, outros, de outra classe. A memória dessa amnésia, curiosamente, se dá em um lapso. Sempre que soluçamos, é o anfíbio em nós que se anuncia, o soluço um vestígio do tempo em que a água poderia ir parar nos pulmões. Poderíamos dizer, então, que estamos sempre nadando sem água. Os estudantes me olham perplexos: teria ido longe demais?

Referências

  • CARR, Karen Eva. Shifting Currents: A World History of Swimming. Londres: Reaktion Books, 2022.
  • ERBER, Laura. Versos de circunstância. Revista Gueto 19 de janeiro de 2021. Disponível em: https://revistagueto.com/2021/01/19/tres-poemas-ineditos-de-laura-erber/ Acesso em:
    » https://revistagueto.com/2021/01/19/tres-poemas-ineditos-de-laura-erber/
  • HARNEY, Stefano; MOTEN, Fred. The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study. New York: Minor Compositions, 2013.
  • KAFKA, Franz. O grande nadador. Caderno Illustríssima, Folha de São Paulo Tradução de Marcelo Backes, 27 de janeiro de 2018.
  • KEMPINSKA, Olga Donata Guerizoli. Natação como metáfora da leitura. Leitura: Teoria & Prática, v. 36, n. 72, 2018.
  • LUDMER, Josefina. Clases 1985: algunos problemas de teoría literaria. Buenos Aires: Paidós, 2015.
  • NATALI, Marcos; MORAES, Anita Martins Rodrigues. Entrevista com Marcos Natali: a literatura em questão. Gragoatá, v. 27, n. 59, 2022.
  • MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
  • PIGLIA, Ricardo. Los sujetos trágicos (Literatura y psicoanális). Formas breves Barcelona: Anagrama, 2000.
  • PLATÃO, -. A república Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
  • RANCIÈRE, Jacques; BENVENUTO, Andrea et al Atualidade de “O mestre ignorante”. Tradução de Lílian do Valle. Educação Social, v. 24, n. 83, abril de 2003.
  • SCHUSTER, Aaron. Kafka Swims: The Champion of the Impossible. Cabinet Magazine 28 de maio de 2020. Disponível em: https://www.cabinetmagazine.org/kiosk/schuster_aaron_28_may_2020.php Acesso em:
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  • XIMENES, Vinícius Rodrigues. Ler a extração, ler na extração: estudos com Josefina Ludmer (Argentina-Brasil, 1966-2016) [ou: Pedagogias da leitura, poesia e impasse na América Latina]. 2023. Tese (Doutorado em Estudos da Literatura) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2023
  • 1
    Ver Ruggieri, M. “Os fins da Universidade: herança e imaginação”. Alea: Estudos Neolatinos, vol.22, núm. 3, setembro-dezembro de 2020.
  • 2
    Olga Kempinska, em “Natação como metáfora da leitura” (2018KEMPINSKA, Olga Donata Guerizoli. Natação como metáfora da leitura. Leitura: Teoria & Prática, v. 36, n. 72, 2018.), propõe a imagem da natação como uma metáfora para um tipo de leitura em que não é possível manter uma distância estética. Sobre a natação com a cabeça dentro da água, ela diz, “Com efeito, aprender a respirar para nadar é uma tarefa paradoxal no qual se desaprende e reaprende aquilo que é considerado como mais natural. Nadar é praticar uma forma de ‘respiração estrangeira’, tal como se pratica uma língua estrangeira”.
  • 3
    Uma perspectiva similar era mobilizada pelo norte da China em relação à região costeira do sul, em que os modos de nadar distintos também foram atribuídos a tonalidades distintas de pele. Ver: Carr (2022CARR, Karen Eva. Shifting Currents: A World History of Swimming. Londres: Reaktion Books, 2022., p. 287).
  • 4
    Carr menciona como a associação entre nudez e promiscuidade produz uma série de técnicas de ocultamento do corpo, como a “máquina de banho” (bathing machine), que consistia em uma cabine sobre rodas nas quais as pessoas poderiam se trocar e serem levadas até a água. Simultaneamente, os trajes de banho se tornavam cada vez mais fechados, longos e volumosos.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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