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Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro

Against the Canon: Contemporary Art in a World Without a Center

GIUNTA, Andrea. Contra o cânone. : arte contemporânea em um mundo sem centro. Frenkel, Eleonora. Florianópolis: Editora Nave, 2022

O livro da escritora, professora e curadora argentina Andrea Giunta, Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro, publicado no Brasil com tradução de Frenkel Eleonora, organiza em oito capítulos um complexo panorama sobre as artes do presente. A partir dos artistas concretos do pós-Guerra em Buenos Aires, passando pela apropriação de Piet Mondrian pelo neoconcretismo brasileiro e pela cena abstrata mexicana, Giunta arma uma plataforma de lançamento para dar conta de uma sucessão de cenários: o indigenismo abstrato e as metáforas de enraizamento em Xul Solar e Torres García; as antecipações que Lygia Clark promove com relação aos trabalhos posteriores de artistas como Robert Morris e Richard Serra; os contatos possíveis entre Antonio Berni e Jean-Luc Godard pela via dos atravessamentos entre moral e violência nas representações da prostituição nos anos 1960; a sempre tensa relação entre tecnologia e produção artística, com a comunicação - definida por Giunta como happening global - surgindo em primeiro plano, oscilando entre conexão e resistência.

O projeto de Giunta se organiza ao redor de três linhas de força principais, que funcionam como catalisadoras de energias históricas e conceitos teóricos que operam de forma transversal. Essas três linhas de força estão presentes já no título: em primeiro lugar, a autora estabelece uma argumentação que leva em conta uma crítica (que é, ao mesmo tempo, uma redescrição comprometida) do cânone, ou seja, das narrativas de seleção (e descarte) dos artefatos artísticos; em segundo lugar, está posta a questão do contemporâneo e da contemporaneidade, pensada não como etiqueta pacífica para o que se dá na ordem da cronologia e da organização epocal, e sim a partir de uma ideia de tempo que possa dar conta de anacronismos, sobreposições, resgates e vetores heterogêneos; em terceiro lugar, a questão do mundo sem centro, que se desdobra em um leque de considerações (de ordem econômica, simbólica, estética e ética) que vão para além da categoria simplificadora de “globalização”.

Trata-se de uma investigação que corre em paralelo com aquelas realizadas, por exemplo, por Georges Didi-Huberman em Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens (2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2017), por Hal Foster em O retorno do real: a vanguarda no final do século XX (2014FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014.) e por Benjamin Buchloh em Neovanguarda e indústria cultural (2000BUCHLOH, Benjamin H. D. Neo-Avantgarde and Culture Industry. Essays on European and American Art from 1955 to 1975.Cambridge: The MIT Press/OCTOBER, 2000.), ou seja, trabalhos que visam dar conta de um contexto heterogêneo no qual as diferentes artes estão em permanente diálogo e, mais importante, em permanente estado de questionamento diante dos processos alheios. A obra de Giunta está localizada em um panorama de trabalhos que visam renovar o conjunto de ferramentas utilizadas, em distintos campos das ciências humanas, para dar conta de um contexto de transformação frenética de valores e paradigmas. Como aponta Raul Antelo no prefácio ao livro, “Giunta afasta-se, deliberadamente, de modelos de modernização ou transculturação”, tais como as “culturas híbridas” de Nestor García Canclini, ou as “ideias fora do lugar” de Roberto Schwarz, preferindo falar “de ‘vanguardas simultâneas’, tomando o simultâneo nem como simultaneità futurista nem como simultanéisme cubista, mas como ‘áreas de contato’, através de viagens, correspondências, revistas, exposições” (Antelo, 2022ANTELO, Raul. Contra a violência administrada: o método de Andrea Giunta. In: GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Florianópolis: Editora Nave, 2022. p. 15-23., p. 20).

É por conta desse movimento em direção a “áreas de contato” que o livro de Andrea Giunta se mostra pertinente também ao campo da literatura, da teoria literária, dos estudos literários de forma geral. Curadores, artistas visuais, escritores, fotógrafos, professores, intelectuais: essas são algumas das categorias que entram em contato quando se postula, como faz Giunta, um “mundo sem centro”, ou seja, um mundo de referências e estímulos que não opera mais em um registro de hierarquização, mas sim em um registro de intensidades e disponibilidades. Parte da força argumentativa de Giunta está no modo como ela parte de questões problemáticas e das respostas multifacetadas geradas por tais questões. Ao falar sobre as diferenças entre povo, massa e multidão, por exemplo, partindo de uma análise de Terra em transe, de Glauber Rocha (1967), em contato com o quadro icônico de Antonio Berni, Manifestação (1934), a autora postula uma arte que “constrói uma aproximação multifocal para interrogar, ao mesmo tempo, o povo, a multidão e aqueles que procuram submetê-la”; a partir disso, surge o diagnóstico de uma “turbulência” das imagens (poéticas, fotográficas, pictóricas), que “conforma um registro das tensões nas quais a ação conjunta pode modificar um estado de coisas” (Giunta, 2022GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Tradução de Eleonora Frenkel . Florianópolis: Editora Nave , 2022. , p. 174).

Um dos pontos altos da argumentação de Giunta está na aproximação que realiza entre o pensamento artístico latino-americano e certa deriva “paranoica” ou “exagerada” na reflexão sobre o poder das instituições. Trata-se de uma “metodologia do complô”, como escreve a autora a partir de uma ideia de Ricardo Piglia (2007PIGLIA, Ricardo. Teoría del complot. Buenos Aires: Mate, 2007. ), que amplia e refina em direção a uma análise de como a criatividade artística é potencializada por meio do traço paranoico. Embora Giunta faça referência apenas a Ricardo Piglia, é possível estabelecer uma série de relações com outras manifestações literárias que, na segunda metade do século XX, aprofundam e complexificam esse paradigma do “traço paranoico”, que poderia ser encarado como uma sorte de rebote negativo da ideia de um “mundo sem centro”. Nesse campo específico, é possível destacar o trabalho ficcional de escritores como Thomas Pynchon, Don DeLillo, Kathy Acker e Philip K. Dick. A articulação entre complô, paranoia e literatura foi desenvolvida por muitos estudiosos, como Leo Bersani - em artigo pioneiro publicado em 1989BERSANI, Leo. Pynchon, paranoia, and literature. Representations, n. 25, p. 99-118, 1989. (“Pynchon, Paranoia, and Literature”) - e o trabalho conjunto de Giuseppe Panella e Riccardo Gramantieri, de 2012PANELLA, Giuseppe; GRAMANTIERI, Riccardo. Ipotesi di complotto. Paranoia e delirio narrativo nella letteratura americana del Novecento. Chieti: Solfanelli, 2012. , intitulado Ipotesi di complotto. Paranoia e delirio narrativo nella letteratura americana del Novecento.

“O nó da questão não reside”, escreve Giunta a respeito da hipótese do complô (2022GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Tradução de Eleonora Frenkel . Florianópolis: Editora Nave , 2022. , p. 198), “na intenção de distorcer a história, tal como esta pode ser prevista, mas sim na narração e na atuação das operações necessárias para transformá-la”. Por conta disso, a autora pode relacionar o complô à noção de vanguarda, que visa a instauração de um contrapoder, de uma força (discursiva e social) que possa se colocar em paralelo com relação ao poder estabelecido. Essa dinâmica é traduzida, em termos artísticos, pela proliferação de estratégias que visam uma redescrição do mundo privilegiando seus momentos de titubeio e vacilação: é o que está em jogo em obras como “Visão da pintura ocidental”, de 2002, de Fernando Bryce, ou “A civilização ocidental e cristã”, de 1965, de León Ferrari, ou as “Pinturas da insurreição”, de 1973, de Diana Dowek, todos esses exemplos analisados por Giunta em seu livro. No campo artístico, o complô visaria “mudar os padrões do legítimo, do aceito, transtorná-lo pela erosão antes que por uma aberta conflagração” (Giunta, 2022GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Tradução de Eleonora Frenkel . Florianópolis: Editora Nave , 2022. , p. 200).

É nesse ponto da argumentação de Contra o cânone que converge com força total o eixo de articulação entre literatura e artes visuais. Esses dois campos amplos são tomados a partir de sua potência de intervenção discursiva sobre a realidade, algo que a noção de “complô” ajuda a esclarecer, muito por conta de sua insistência na interdependência das várias instâncias envolvidas (“literatura” e “artes visuais”, mas também “poder” e “contrapoder”). Giunta (2022GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Tradução de Eleonora Frenkel . Florianópolis: Editora Nave , 2022. , p. 201), por exemplo, fala de uma “densidade épica” no experimentalismo dos anos 1960, enfatizando também a “fricção poética com as instituições” notada nesse período. Em certo sentido, a autora busca analisar a construção de certa sintaxe na movimentação das estratégias das artes visuais ao longo do século XX e início do século XXI. Ao traçar um paralelo entre o registro do “complô” nos anos 1960 e aquele mais maleável e brando que se consolida a partir dos anos 1990, a autora escreve: “Trata-se de um encadeamento poético no qual as imagens são tão importantes quanto o espaço que as contém ou como os circuitos administrativos que regulam o funcionamento institucional”, acrescentando que, nas últimas décadas, “as instituições dialogam positivamente com a desacomodação que pretendem algumas obras”, uma vez que “a insubordinação que aspirava a conquistar o poder foi deslocada por um sofisticado jogo de intercâmbios entre o artista, o curador e, em nome deste, a instituição” (Giunta, 2022GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Tradução de Eleonora Frenkel . Florianópolis: Editora Nave , 2022. , p. 201).

Um dos principais pontos argumentativos de Giunta está na ideia de que a força das instituições gera um conjunto heterogêneo de representações e narrativas, sejam visuais, escritas ou performáticas. Os vários exemplos mobilizados pela autora mostram que a avaliação do poder do museu e de seus mecanismos (que são sempre instrumentalizados visando a manutenção do referido poder) alimenta o imaginário da conspiração e do complô. Em sua conclusão, Giunta (2022GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Tradução de Eleonora Frenkel . Florianópolis: Editora Nave , 2022. , p. 219), afirma que “o segredo e a ação encadeada são dispositivos eficazes para perfurar e subverter sua lógica, ampliar seus limites, transtornar seus padrões”, apontando, ainda, que “a crítica institucional” faz parte “das linguagens da arte contemporânea”. A tônica de Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro está em sua insistência nesse caráter de coparticipação da crítica no âmbito da arte: o discurso da crítica detém a mobilidade necessária para articular campos como aqueles da história da arte e da história da literatura, visando a consolidação de uma leitura crítica do mundo sem centro.

Referências

  • ANTELO, Raul. Contra a violência administrada: o método de Andrea Giunta. In: GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Florianópolis: Editora Nave, 2022. p. 15-23.
  • BERSANI, Leo. Pynchon, paranoia, and literature. Representations, n. 25, p. 99-118, 1989.
  • BUCHLOH, Benjamin H. D. Neo-Avantgarde and Culture Industry Essays on European and American Art from 1955 to 1975.Cambridge: The MIT Press/OCTOBER, 2000.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2017
  • FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • GIUNTA, Andrea . Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro. Tradução de Eleonora Frenkel . Florianópolis: Editora Nave , 2022.
  • PANELLA, Giuseppe; GRAMANTIERI, Riccardo. Ipotesi di complotto Paranoia e delirio narrativo nella letteratura americana del Novecento. Chieti: Solfanelli, 2012.
  • PIGLIA, Ricardo. Teoría del complot Buenos Aires: Mate, 2007.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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