Resumo
O presente artigo trata das relações entre o ensaio e a poesia na obra da autora argentina Tamara Kamenszain. A partir de uma leitura da materialidade do texto poético e ensaístico da autora, mas também de entrevistas importantes para o tema concedidas por ela, procuraremos refletir sobre os deslizamentos entre esses dois modos de fazer da obra de Tamara. Nossa leitura se centrará nos últimos títulos publicados pela autora em vida: Libros chiquitos (2020) e Chicas en tiempos suspendidos (2021), ainda que outras obras também sejam analisadas mais pontualmente. Neles, serão privilegiados o movimento ensaístico, no poema, de retomada do termo “poetisa” e a estratégia poética dos estribilhos, no ensaio.
Palavras chaves: Tamara Kamenszain; ensaio; poesia; deslizamento
Abstract
This article deals with the relationship between essay and poetry in the work of Argentinian author Tamara Kamenszain. Through an examination of the materiality of Kamenszain’s poetic and essayistic texts, as well as important interviews she has given on the subject, we seek to examine the intersections between these two modes of creation in her work. Our analysis will focus on Kamenszain’s latest works published during her lifetime: Libros chiquitos (2020) and Chicas en tiempos suspendidos (2021), although other works by the author will also be examined selectively. Within these texts, particular attention will be given to the essayistic movement in the poems attempting to reclaim the term “poetess,” and the poetic strategy of using refrains in the essays.
Keyword: Tamara Kamenszain; essay; poetry; sliding
Resumen
Este artículo aborda las relaciones entre el ensayo y la poesía en la obra de la autora argentina Tamara Kamenszain. A partir de la lectura de la materialidad del texto poético y ensayístico de la autora, así como de las entrevistas importantes sobre el tema concedidas por la misma, buscaremos reflexionar sobre los deslizamientos entre esos dos modos de hacer en la obra de Tamara. Nuestra lectura se basará en los últimos títulos publicados por ella en vida: Libros Chiquitos (2020) y Chicas en tiempos suspendidos (2021), aunque otras obras de la autora también serán analizadas más puntualmente. Así, daremos privilegio, en los poemas, al movimiento ensayístico de recuperación del término “poetisa”, y, en los ensayos, a la estrategia poética de los estribillos.
Palabras clave: Tamara Kamenszain; ensayo; poesía; deslizamiento
Em março de 2007, Tamara Kamenszain concede uma entrevista a Pablo Gianera para o arquivo da Audiovideoteca de Buenos Aires. Nos primeiros segundos do vídeo, disponível no Youtube, Tamara está sentada em uma cadeira de madeira, diante de uma estante de livros de sua casa. A entrevista começa com ela se apresentando, sem que ouçamos qualquer comando do entrevistador: “Bueno, me llamo Tamara Kamenszain… soy… siempre me ponen como poeta y ensayísta, este…porque, bueno, escribo esos dos géneros (...)” (Audiovideoteca, 2011). A reformulação do que parece que seria um “soy poeta y ensayista” para um “siempre me ponen como poeta y ensayista” vem acompanhada de uma mudança de gesto. Tamara, que até então tinha uma das mãos apoiando o queixo, em uma pose relaxada, a aponta para a esquerda ao dizer “poeta”. Depois, quando diz o marcado “y”, assinala com as duas mãos um meio do caminho. Por último, dizendo “ensayista”, sua mão se volta para o seu lado direito. 1
Nessa reformulação é bastante perceptível, através de sua prosódia, um certo incômodo. É como se Tamara precisasse dizer que, a despeito de como percebe a si mesma enquanto escritora, ela é vista sempre - pela crítica, pela academia, por aqueles que se referem a ela publicamente -, antes, como poeta e, depois, como ensaísta. Neste artigo, no entanto, serão trabalhados alguns aspectos da obra de Tamara que nos levam a pensar que, talvez, seu incômodo nesse momento possa ter a ver também com outro ponto. Este ponto seria justamente a impossibilidade de conceber definitivamente separados esses dois fazeres que compõem sua obra. Nesse caso, é como se Tamara também quisesse dizer, com essa reformulação e esse gestual, algo como “me colocam como poeta e ensaísta, como se fosse possível ser uma coisa separada da outra”.
Para além as conjecturas que podemos fazer a partir dessa declaração de Tamara, em El libro de Tamar (2018) a ensaísta diz:
Una vez mi analista, cuando me quejaba de lo tortuoso que me resultaba escribir ensayos a diferencia de cierta euforia que solía acompañarme cuando escribía poesía, me comentó que tal vez el ensayo yo lo escribía de derecha a izquierda y la poesía al revés. No agregó nada más pero me fui de la sesión pensando que tal vez había querido decir que de la mano del ensayo venía el peso de los mandamientos, de la ley paterna, de la lengua del saber y de la reflexión, mientras que de la mano de la poesía entraba la calle con sus transgresiones no judías a la hora de la siesta. (Kamenszain, 2018, p. 58-59). 2
Talvez, a princípio, a imagem que permaneça desse trecho seja a de uma dicotomia mais estanque, na qual, de um lado, vemos a tortuosidade, os mandamentos, a lei, o pai, a língua do saber, e, do outro, a euforia, a transgressão das ruas, o não-judio. Uma imagem, portanto, semelhante à que Tamara constrói na entrevista a Gianera com a ajuda da conjunção “y” - tão marcada prosódica e gestualmente -, que, para indicar adição, se baseia na obviedade de que ensaio e poesia são coisas distintas. Poderíamos entender que esse trecho de El libro de Tamar trata de uma disjunção entre as duas vertentes de sua obra, mas a verdade é que as linhas que se escrevem da esquerda para a direita, e vice-versa, mais do que em sentidos opostos, são escritas em uma mesma direção. Nessa espécie de continuum, entre os dois extremos, pode ser pensada toda a obra da autora.
Dessa forma, no presente artigo serão tratadas as relações entre o ensaio e a poesia na obra de Tamara a partir da ideia de movimento, de deslizamento entre essas duas forças. Libros chiquitos, de 2020, e Chicas en tiempos suspendidos, de 2021, serão o centro dessas reflexões, ainda que seja impossível, como se verá, não tecer alguns comentários sobre obras anteriores. Esses foram os últimos livros publicados em vida por Tamara, e culminam, de certa maneira, um movimento de aproximação entre o ensaio e a poesia que já vinha acontecendo há décadas em sua obra.
A poesia no ensaio
“se escrever ensaisticamente é escrever experimentando
será que um poema pode ser tão crítico como o ensaio?” Marilia Garcia
Chicas en tiempos suspendidos é o último livro publicado em vida por Tamara Kamenszain, em 2021. Seus primeiros versos dizem: “Poetisa es una palabra dulce / que dejamos de lado porque nos avergonzaba / y sin embargo y sin embargo / ahora vuelve en un pañuelo / que nuestras antepasadas se ataron / a la garganta de sus líricas roncas” (Kamenszain, 2021, p. 13). Percebemos, assim que começamos sua leitura, que algo que esses poemas pretendem é reapropriar-se do anacrônico termo “poetisa”, rejeitado por gerações e gerações de mulheres que escreviam em verso por remeter ao fato de que mesmo os “bajofondos del canon” (Kamenszain, 2021, p. 36) no geral eram negados a elas por parte da crítica e da academia.
Henrique Solinas, por exemplo, diz que “poetisa” se trata de um
concepto impuesto por el orden masculino y que responde a determinadas características esperables (mujer suave, delicada, inspirada, prudente, volátil, obediente), como si allí no existiera un lugar de discusión y se sobreentendiera la supremacía del poeta sobre la poetisa. (Solinas, 2012, p. 2).
A voz do poema de Tamara, por mais de uma vez, marca sua posição frente à realidade dessa “supremacía del poeta sobre la poetisa” de que fala Solinas e ressalta seu mal-estar com relação ao tema, como em: “Yo no soy poetisa soy poeta / me dije una y mil veces a mí misma / a los 20 años / no soy Tamara soy Kamenszain / me quejé siempre que alguien por escrito / aludía a mi obra llamándome por el nombre. (...)” (Kamenszain, 2021, p. 25).
A revalorização do termo “poetisa”, que carrega essa história do desprezo e da ridicularização, passa por reconhecer também as estratégias retóricas perspicazes - verdadeiras “tretas del débil”, para usar essa conveniente expressão - das quais nomes como Delmira Agustini, Alfonsina Storni ou Juana Bignozzi se utilizavam em seus textos. A relação entre biografia e poesia estabelecida por Juana Bignozzi em sua obra, por exemplo, é uma dessas artimanhas:
Experta en tratar con los vates la poetisa de armas tomar los enfrentaba cuando todavía nadie se había animado a hacerlo. Les tiraba versos de comadrita como estos: “No hablo de la soledad del alma esas son cosas de poeta llamo soledad a cenar sola en mi ciudad”. O estos otros donde la rima es una humorada: “mientras mis colegas escriben los grandes versos de la poesía argentina yo hiervo chauchas ballina”. (Kamenszain, 2021a, p. 59-60).Os versos de Juana citados por Tamara falam a partir do lugar subalterno que ocupavam as poetisas naquele momento para ironizar os poetas ou, mais especificamente, os vates e suas pretensões de serem os cantadores das grandes questões humanas e da pátria, sempre em um tom solene e grandiloquente. Assim, ao trazer à tona justamente esses versos, a voz do poema evoca não só uma poderosa arma retórica com que Juana Bignozzi contava em sua escrita, mas, ao mesmo tempo, o fato de que a autora não deixava de levar a cabo uma escrita do que é miúdo, dos temas do dia a dia, dos afetos - não os afetos grandiloquentes, mas sim aqueles considerados menores para a poesia que se traduzem em imagens poéticas do cotidiano.
Nesse sentido, o gesto ensaístico de recuperar o termo “poetisas” para fazer referência a nomes da literatura argentina contemporânea como Cecilia Pavón e Tamara Tenenbaum parece ser uma tentativa também de reconhecer, celebrar e se aproximar outra vez desse lugar de elaboração que se contrapõe à pompa dos grandes versos da poesia nacional, ironizando-a. É o que fica claro no ensaio “Las nuevas poetisas del siglo XXI” - texto que cada vez mais parece não poder ser pensado separadamente de Chicas en tiempos suspendidos - em que Tamara fala sobre a tendência das poetisas de hoje a fazer “una poesía de amor que entiende el romanticismo como un tendal donde colgar los trapitos al sol”3 (Kamenszain, 2020b, p. 448).
Ainda falando sobre Juana Bignozzi, no mesmo poema citado há pouco, Tamara fabula um encontro entre gerações de poetisas em um tempo suspendido. Esse é um trecho que marca um momento importante para a tônica geral da obra e para o que estamos tratando neste ensaio:
A Juana sí que le hubiera gustado confundirse como una más entre las chicas de pañuelo verde en esa Plaza de abuelitas militantes por la que ella hubiera avanzado exhibiendo un cartel que dijera ‘nadie sabe que una mujer que ha entrado en la vejez vuelve a sentir’. (Kamenszain, 2021a, p. 393).Ao aproximar a figura de Juana Bignozzi das “chicas de pañuelo verde” - não só em seus desejos e fazeres políticos, mas também em seus afetos e experiências -, a voz do poema também se implica. É através do seu verso que Juana Bignozzi, que lhe remete a sua mãe, aparece ao lado das “chicas” e se confunde com elas. De fato, como diz a epígrafe de Didi-Huberman, que nos interpela nas primeiras páginas do texto, “Estamos ante un tiempo que no es el de las fechas” (Didi-Huberman apud Kamenszain, 2021, p. 9) no qual todas essas mulheres se presentificam através da voz do poema, mas também, é claro, da figura de autora de Tamara. Figura esta que se constrói, nesse sentido, enquanto mediadora entre as “chicas” de ontem e as de hoje e entre o ensaio e a poesia.
Embora “poetisa” seja um dos termos de maior importância durante todo o livro, em seu decorrer vamos encontrando outros que também vão sendo empregados e testados, como “vate”, “antivate”, “abuelas” e “chicas”. Através de cada um de seus empregos, vamos entendendo um pouco mais os sentidos dessas palavras e aquilo a que cada uma delas remete no contexto da obra de Tamara. Esse movimento de testagem dos termos empregados no poema ressoa naquilo que Max Bense, em seu clássico “O ensaio e sua prosa”, atribui como o porquê do ensaio:
Transformar a configuração em que o objeto se dá a nós, esse é o sentido do experimento ensaístico; e a razão de ser do ensaio consiste menos em encontrar uma definição reveladora do objeto e mais em adicionar contextos e configurações em que ele possa se inserir. (Bense, 2000, p. 121).
Junto a ele, penso que o que opera Tamara não é uma tentativa de encontrar outra definição para os termos que ela vai, ao longo do livro, ensaiando, mas sim de acrescentar a eles outros usos, outras modulações. Em outras palavras, quando lemos que
(...) la poetisa que todas llevamos adentro busca salir del clóset ahora mismo hacia un destino nuevo que ya estaba escrito y que al borde de su propia historia revisitada nunca se cansó de esperarnos. (Kamenszain, 2021, p. 42).O que nos diz essa voz é que, agora, “poetisa” pode significar também outra coisa, diferente do que já significou, mas que, ao mesmo tempo, o termo recupera uma certa tradição, remonta a um determinado legado. É, de fato, uma operação de adição de uma nova camada de significado.
Nesse encontro de temporalidades - ou nessa suspensão provisória da diferença temporal no espaço único da escrita - está, por um lado, a memória do menosprezo e do não ser poeta e, por isso, ser considerada como estando em uma segunda categoria. Por outro lado, está o reconhecimento de um ser poetisa que passa pela constituição consciente de uma comunidade entre escritoras, de uma tradição. Retomar esse termo é fazer as pazes com um passado que sempre esteve à espera, a partir de um presente que, por sua vez, o engloba.
Por último, é importante dizer que, ainda que o recorte necessário desse artigo nos faça centrar nossa leitura nas obras mais recentes de Tamara Kamenszain, isso não quer dizer que as relações entre a dimensão do ensaio e da poesia são recentes nela. Apenas para comentar brevemente uma delas, falemos de El libro de los divanes, publicado em 2014. Nele, em primeiro lugar, flagramos certos momentos particulares de proposições ensaísticas muito claras, como quando se incorpora a um poema os versos “¿Cuándo acabará la novela de mi vida / para que empiece su realidad? / ¿Por qué no acabo de despertar de mi sueño?” (Kamenszain, 2014, p. 32), do poeta cubano José Maria de Heredia, e ensaia a possibilidade de que esses versos sugiram que “el poeta prerromántico salta a ser un post” (Kamenszain, 2014, p. 32). Ao mesmo tempo em que lemos uma proposição sobre uma obra canônica como a de Heredia - a de que podemos lê-lo também sob chaves pós-românticas -, em uma outra via, agora mais geral, El libro de los divanes ensaia as relações entre a psicanálise e a poesia. Em outras palavras, podemos ler esse livro inteiro como uma tentativa de responder à questão “¿Escribir y asociar libremente / tienen algo que ver?” (Kamenszain, 2014, p. 43).
Seria possível deter-nos em outros momentos de sua obra poética a fim de buscar esses momentos mais ensaísticos, entendendo que esse processo vem se acentuando com o passar dos anos. Entretanto, passemos agora a tratar do outro sentido desse movimento: aqueles momentos em que, de dentro do ensaio, podemos perceber a poesia nos espreitando.
O ensaio na poesia
“talvez seja essa a pergunta ao ler certos livros:
o que faz um poema ser um poema?”
Marília Garcia
Libros chiquitos (2020a) é um livro que se coloca entre os registros autobiográfico e ensaístico para tratar, em primeira pessoa, das leituras que participaram do processo formativo de Tamara Kamenszain. Esse conjunto termina por formar uma obra a ser lida em chave íntima e que, ao mesmo tempo, não deixa de lado o tom ensaístico. No entanto, ao longo de sua prosa, vamos percebendo alguns trechos que se repetem, funcionando como estribilhos. São momentos em que aquilo que vem sendo contado ou analisado se suspende. Esses trechos - ou seriam, talvez, versos? - vão aparecendo em momentos estratégicos do texto e lhe dão um ritmo de leitura poético.
Um deles, o verso “Por mi parte”, já em sua primeira aparição, opera uma mudança de foco da escrita, como podemos observar a seguir:
Él [Néstor Sánchez] también nos impulsaba a hacer traducciones caseras a pesar de nuestra común condición de monolingües. Quizás fue justamente él quien impulsó a Vicky Rabin, por entonces su mujer, a traducir el poema de Aragón. Por mi parte, al llegar a casa de mis padres a altas horas de la noche, me encerraba en mi cuarto e intentaba traducir, o mejor adivinar, partes de Kaddish desde mi inglés inexistente. (Kamenszain, 2020a, p.16, grifos meu).
Depois de comentar de forma breve a relação entre Néstor Sánchez e Vicky Rabin, a voz que está tecendo esse relato encontra um caminho para voltar a falar sobre si mesma. É essa guinada de volta ao relato da experiência pessoal que o “por mi parte” opera quando aparece em Libros chiquitos, neste e em muitos outros momentos. No caso a seguir, por exemplo, Tamara está relatando seu encontro com Enrique Lihn, que aconteceu em Nova York e deu início à amizade entre os dois. Nesse trecho, o “por mi parte” provoca novamente um movimento parecido com o que vimos acontecer no trecho acima:
Me lo crucé en una reunión con latinoamericanos en la Universidad de Nueva York y le pedí hacerle una entrevista para La Opinión. A pesar de la diferencia de edad y del prestigio que para ese entonces él ya tenía - por mi parte yo contaba con un solo ignoto librito publicado -, fue el comienzo de una amistad entrañable que duró hasta su muerte. (Kamenszain, 2020a, p. 56, grifos meu).
Lançar mão desse refrão, já conhecido pelo leitor a essa altura, é a forma que a ensaísta-narradora encontra de recolocar-se no centro da escrita e em relação com esses nomes que vinham sendo comentados - assim como, anteriormente, o faz com relação a Vicky Rabin. Mas a presença desse trecho é também uma espécie de “alarme auditivo”, para usar o termo que a própria Tamara usa para definir o refrão de Héctor Viel Temperley em Crawl (1982):
Cuando el estribillo “Vengo de comulgar y estoy en éxtasis”, que se repite ocho obstinadas veces a lo largo del libro, ya se había transformado para mí en una alarma auditiva que me hacía segregar adrenalina literaria, le pedí a Bizzio que me facilitara fotocopias de esos otros libros de Viel (…). (Kamenszain, 2020a, p. 12).
Mais adiante, comentando suas leituras de Néstor Perlongher e, mais especificamente, seu célebre refrão “Hay cadáveres”, a autora diz que “Cada una de esas veces, cuando la lectura del texto me va adormeciendo dentro de la espiral metafórica perlongheriana, suena un despertador que me recuerda lo que hay y me libra de lo que sobra” (Kamenszain, 2020a, p. 17). Por sua parte, considero que esses refrões de Libros chiquitos podem ser considerados também alarmes, alertas que nos recordam vez ou outra que o que estamos lendo é uma prosa ensaística, mas é, também, outra coisa. Se a existência do refrão é “o que permite reconhecer que há aí um poema” (Kanzepolsky, 2020, p. 35), sua presença numa obra como esta é o que nos leva de volta à poesia.
O caso específico do refrão “por mi parte”, traz, portanto, uma imbricação de três dimensões diferentes. Isso porque a cada vez que essa operação acontece, a suspensão momentânea do texto - o corte - nos leva à poesia, ao mesmo tempo que nos avisa que vamos acompanhar uma guinada em direção a algum relato da vida de Tamara, ao relato autobiográfico. Esse “golpe de realidad” (Kamenszain, 2020a, p. 45) que é o estribilho no ensaio, nos leva, neste caso, ao “novelón”4 da vida de Tamara.
De toda forma, o uso dos estribilhos em Libros chiquitos faz eco em uma declaração de Tamara, durante a entrevista concedida a Silvina Friera, na ocasião da publicação de La novela de la poesía:
Evidentemente cada vez más se me confunden un poco las cosas que antes eran muy fijas y obsesivas. Antes, cuando terminaba un libro de poemas, me decía: “ahora viene el ensayo, no me vengan con poesía, no me puedo distraer”. Como si fuera una buena alumna. Ahora voy a escribir ensayo y me aparece la poesía. Algo está cambiando. (Kamenszain, 2012, s.p., grifos meus).
Essas palavras nos ajudam a pensar os momentos em que a poesia irrompe em sua prosa ensaística. A mudança a que se refere a autora, de fato, se dá gradual e irremediavelmente, e esse espaço difuso entre o ensaio e a poesia vai se fazendo mais evidente ao longo de sua obra. No entanto, indícios dessas “confusões” que percebemos em suas últimas duas obras podem ser flagrados muito antes, como por exemplo no singular “Epílogo íntimo” de Una intimidad inofensiva (2016). Nele, a ensaísta lê criticamente seu próprio livro de poemas El eco de mi madre (2010) em conjunto com Desarticulaciones (2010), de Sylvia Molloy. Tamara não só trata sobre como as obras, tão diferentes e convergentes a um só tempo, elaboram um mesmo tema, mas realiza mais um giro em torno da questão a partir de sua posição arriscada por ser juíza e parte (Kamenszain, 2016, p. 102).
O que quero dizer é que, ao mesmo tempo em que o epílogo trata dos “límites que parecen seguir insistiendo en acercar y diferenciar a un tiempo poesía y narrativa” (Kamenszain, 2016, p. 120), ele o faz a partir de um gesto ensaístico que coloca em questão os limites entre a poesia e o ensaio. Variando entre a primeira e a terceira pessoa para se referir ao seu trabalho, Tamara vai ensaiando essa distância necessária para ler a si mesma e, ao mesmo tempo, a (im)possibilidade de se ausentar como primeira pessoa.
Em El libro de Tamar, apenas dois anos depois, a autora diz: “Para mí, que contrapongo ficción a poesía, esto de identificar ficción novelística con la primera persona (¡justamente la privilegiada de la poesía!) me resulta extraño (...)” (Kamenszain, 2018, p. 40), marcando sua posição em oposição a Julia Kristeva, para quem o romance se identifica com a primeira pessoa. Com isso em mente, é interessante perceber que, em certos momentos do epílogo de 2016, o “eu” emerge de maneira muito pronunciada, como em:
Así es como, cuando Sylvia escribe ‘Ayer descubrí que me había vuelto aún menos yo para ella’, me aporta el tono justo para que yo, duplicando su gesto de narradora, escuche lo que no quiero dejar de contar en el poema. (Kamenszain, 2016, p. 122).
Nesse trecho, para desenvolver sua proposição ensaística - a de que sua própria poesia precisa lançar mão de estratégias e mesmo de recortes de narrativas alheias, que logo se fazem também próprias -, Tamara precisa se colocar em duas posições: a de autora referida e a de autora ensaísta. Assim, todo o texto se preenche de sua presença, no presente, “un tiempo con el que la poesía sabe trabajar” (Kamenszain, 2020a, p. 21).
Esse ponto nos leva de volta a Libros chiquitos, mais especificamente, a algumas descrições de certas ações no presente da escrita do livro. Ao longo de suas páginas, por diversas vezes a autora materializa esse presente da escrita através da inscrição de gestos como abrir o exemplar de certo livro - “Abro ahora mi tomo de Arte y poesía, que de tan usado se me deshace entre las manos, y me encuentro que subrayé este parrafito y al costado le puse um NO entre signos de admiración (...)” (Kamenszain, 2020a, p. 34) - ou recorrer ao Google para fazer alguma busca mais imediata - “Yo no lo sabía -y si mi abuelo estaba al tanto no me lo contó- pero hoy, gracias a Google, me entero de que Bruria se suicidó” (Kamenszain, 2020a, p. 43).
São cenas em que essa primeira pessoa abre exemplares de livros dos quais está tratando no ensaio, relê seus próprios textos passados, busca nomes de autores ou de obras no Google. Flagrar esses movimentos de presentificação da escrita de Libros chiquitos faz recordar a forma como Tamara define a poesia em entrevista dada a Luis Chitarroni em 2005 e publicada no suplemento Radar Livros do jornal Página 12. A autora condensa aquilo que diversas vezes fica claro em sua obra: “la poesía, como yo la entiendo, es puro presente o, para decirlo más filosóficamente, es presentificación del presente”5 (Kamenszain, 2005). Anos depois, no próprio Libros chiquitos, falando sobre a obra de Mariano Blatt e a questão do estribilho nela, declara: “Ya absolutamente por fuera de cualquier escaramuza metafórica, Blatt nos atesta con cada verso un golpe de realidad. Y la realidad hay que aprenderla de memoria porque es la presentificación del presente, un tiempo con el que la poesía sabe trabajar” (Kamenszain, 2020a, p. 21).6
É importante destacar, também, que esses momentos em que o presente se coloca de maneira tão contundente quebram uma certa continuidade de Libros chiquitos, que, ensaisticamente, vinha elaborando seus temas e suas leituras, sem marcar o tempo da enunciação. Com a exceção desses momentos, como se pode prever por se tratar de um livro mais ensaístico, no geral outras relações de sentido são privilegiadas: relações mais argumentativas e analíticas, e menos de ordem temporal. Essas irrupções do agora são também irrupções do real.
Nesse sentido é que aproximo esses momentos da obra aos estribilhos da poesia uma vez mais. De certa maneira, eles têm uma função semelhante à do refrão - ou talvez sejam, de fato, o mesmo mecanismo -, irrompendo no corpo do texto de Libros chiquitos. Ao encenar o acesso a seus papéis antigos, o manuseio dos exemplares de sua biblioteca, as buscas no Google que empreende, o momento da escrita do ensaio é presentificado pela autora, e nós, leitores, somos capazes de criar imagens da escrita dessa obra. Imagens que reportam diretamente a um real inofensivo, quase insignificante, a uma cena rotineira. Mas que, ao mesmo tempo, reafirmam o movimento de lectoescritura,7 tão característico do fazer de Tamara: escrever é voltar, a todo tempo, à leitura de outros (livros, autores, mídias, ferramentas...).
* * *
A fim de encerrar essas breves páginas sobre um tema tão importante da obra de Tamara Kamenszain, recorro a um outro nome que acabou por rondar este artigo sem incorporar-se, até agora, exatamente ao texto: o da poeta carioca Marília Garcia. Parque das ruínas (2018) é um livro de poemas ensaísticos que trabalha a relação entre o ensaio e a poesia através de uma série de testes. Essa obra é também citada por Tamara em Chicas en tiempos suspendidos, já perto de seu final, em um momento muito singular: Marília é uma das que, junto a Emmanuel Hocquard, a Paloma Vidal, a Diana Klinger e a outros, faz companhia à voz do poema durante a clausura forçada pela pandemia da Covid-19, quando o livro estava sendo escrito. Tamara diz:
Si yo me hiciera ahora un test no de coronavirus sino de soledad seguramente me daría negativo. Resultado: NO ESTÁ SOLA. Gracias a Rancière, a Lihn, a Marília y también a Hocquard - a quien acabo de conocer a través de ella - me albergo en este tiempo suspendido en el que parece ser posible sumar pan con emoción. (Kamenszain, 2021, p. 77).Se Tamara se refere a um teste de solidão cujo resultado dá negativo por conta também de Marília e dessa comunidade que forja para si através dos livros durante a quarentena, é porque Parque de ruínas trata de muitos desses testes. Em determinado ponto do texto, a moça - como se refere a ela Tamara - comenta uma ideia da filósofa Avital Ronell, dizendo que:
segundo ela não há nada no mundo que não seja testado ou ao menos sujeito ao teste neste livro a avital ronell diz que o teste possui uma estrutura de “pesquisa incessante”: “talvez uma modalidade de ser o teste esquadrinha as paredes da experiência medindo sondando para assim determinar o ‘o que é’ do mundo vivido” ou seja testa-se o mundo para se fazer as perguntas mais simples que existem: “o que é isso?” “para que serve?” “funciona?”. (Garcia, 2018, p. 63).Por minha parte, tomo dessa proposição a ideia de que tudo é passível ao teste e, mais do que isso, o fato de que as perguntas que guiam esses testes são as menos complexas possíveis. E, a partir dessa ideia, proponho que as últimas publicações de Tamara Kamenszain, das quais tratamos aqui, são as que mais acentuadamente se propõem a testar o ensaio e a poesia em sua obra. Em outras palavras, e guardadas as devidas diferenças entre eles, é como se esses dois títulos se perguntassem a todo de maneira íntima o que são, a que se prestam e se funcionam.
Referências
-
AUDIOVIDEOTECA. Tamara Kamenszain - Audiovideoteca de Escritores. Youtube, 30 de outubro de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R6l5VpXNqcU&t=1s Acesso em: 3 de março de 2024.
» https://www.youtube.com/watch?v=R6l5VpXNqcU&t=1s - BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. Revista Serrote n. 16, São Paulo, 2014.
-
FONTES, Mariana. As dimensões poética e ensaística na obra recente de Tamara Kamenszain. Cadernos do IL, [S. l.], n. 62, p. 158-175, 2021. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/cadernosdoil/article/view/127064 Acesso em: 20 de janeiro de 2024.
» https://seer.ufrgs.br/index.php/cadernosdoil/article/view/127064 - GARCIA, Marília. Parque das ruínas São Paulo: Luna Park, 2018.
- KAMENSZAIN, Tamara. El ghetto de mi lengua. In: MOLLOY, Sylvia. Poéticas de la distancia: adentro y afuera de la literatura argentina. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2006. p. 157-169.
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KAMENSZAIN, Tamara. Escribir es andar medio a ciegas con alguna intuición. Entrevista concedida a Silvina Friera. Página /12 Cultura & Espectáculos., 27 de agosto de 2012. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/4-26263-2012-08-27.html Acesso em: 10 de abril de 2024.
» https://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/4-26263-2012-08-27.html - KAMENSZAIN, Tamara. El libro de los divanes Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2014.
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- MOLLOY, Sylvia. Desarticulaciones Buenos Aires: Eterna Cadencia , 2010.
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SOLINAS, Enrique. La poesía femenina argentina en sus antologías. In: VIII CONGRESSO INTERNACIONAL DE TEORÍA Y CRÍTICA LITERARIA ORBIUS TERTIUS. 2012, La Plata. Anais […]. La Plata: CONICET, 2013. 5 p. Disponível em: http://sedici.unlp.edu.ar/bitstream/handle/10915/31706/Documento_completo.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 14 de abril de 2024.
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Financiamento
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
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Neste artigo, aqui e em outros momentos, algumas declarações e performances de Tamara em entrevistas serão lidas como fontes importantes de reflexão. Assim como a seu texto poético e ensaístico, interpreto essas entrevistas, entendendo que são parte importante de sua figuração autoral. Nelas, Tamara faz releituras de sua própria obra, comenta a obra de outros autores e, o que é muito importante para este artigo em específico, reflete sobre o que entende por ensaio e poesia. É necessário também perceber que sua performance em ocasiões como essas não se dá sob uma lógica grandiloquente ou gestualmente afetada - o que, obviamente, é também uma camada de significação importante para sua figura de autora. Em Libros chiquitos, Tamara fala sobre João Cabral de Melo Neto e seu modo de “extirpar de si o vírus da grandiloquência”, o que tem bastante a ver com sua própria forma de se portar em situações como essa. Cito apenas o início do trecho em que a autora relata a participação do poeta em um encontro entre ele, Borges, Allan Ginsberg e Octavio Paz, na cidade do México, em 1980: “Sobre el final entró um señor bajito, vistiendo traje gris de oficinista, y se paró incómodo delante del micrófono. Sacó un rollo de papel del bolsillo y empezó a leer casi para sus adentros (…)” (Kamenszain, 2020, pp. 25 e 26)
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Em um artigo anterior (Fontes, 2021), em que discuto também as relações entre ensaio e poesia na obra de Tamara Kamenszain, cheguei até esta citação, ao final da escrita, sem me aprofundar em sua leitura, lançando-a como um gancho para ser retomado na sequência da pesquisa. Neste momento, retomo essa questão e parto daqui com outras reflexões, embora ao longo deste artigo me aproxime de algumas leituras feitas nesse artigo anterior, para desenvolvê-las e articulá-las a outros aspectos da obra de Tamara.
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3
Essa mesma metáfora, inclusive, de “tender los trapitos al sol” é uma das muitas que aparecem paralelamente na poesia e no ensaio.
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4
“(...) creo que mi irrelevante vida / es un novelón, una de esas sagas / que leemos solo / para poder llegar al final.” (Kamenszain, 2021, p. 29)
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CHITARRONI, Luis. El motivo es el poema. Página 12, Buenos Aires, 30 de outubro de 2005. Radar Libros. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/libros/10-1803-2005-10-30.html.
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FRIERA, Silvina. Escribir es andar medio a ciegas con alguna intuición. Página 12, Buenos Aires, 27 de agosto de 2012. Cultura & Espectáculos. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/4-26263-2012-08-27.html.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2024
Histórico
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Recebido
15 Maio 2024 -
Aceito
26 Jun 2024