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EDITORIAL

Dentre os vários aspectos envolvidos no processo de editoração de uma revista científica, um dos mais interessantes concerne à construção temática de um volume. Os membros da comissão editorial reúnem-se e discutem entre si, recebem sugestões de pesquisadores e, finalmente, escolhem um assunto que seja ao mesmo tempo relevante, de preferência candente, e adequado ao perfil da revista. Escreve-se então a chamada, para em seguida começar o longo (e por vezes doloroso) processo de avaliação dos artigos submetidos. Tanto os pareceristas quanto os editores devem saber equilibrar a pertinência das contribuições à questão proposta e o mérito de textos que não se afinam com aquilo que se tinha em mente. Se são lenientes demais, a revista perde o foco; se exageradamente rígidos, ela corre o risco de não sair, ou ser repetitiva e monótona. Quando bem judiciosos, deixam surgir um tipo de coerência que, sem abandonar os contornos gerais da ideia inicial, pode apontar para rumos antes impensados. Nossa intenção para este volume da Alea era lidar com o crescente passado do presente. Em uma época de aceleração cada vez maior do tempo, aquilo que já não é o presente emerge cada vez mais rápido. Trata-se de algo como um "passado anterior", que sugere a questão: em que medida o nosso presente imediato leva a uma reconfiguração daquilo que ainda há tão pouco tempo parecia tão novo? A amplitude das contribuições que recebemos foi surpreendente; não esperávamos que de um conjunto a princípio tão heterogêneo de textos pudesse surgir uma coerência tão sutil.

Nosso artigo de abertura, "Sociologia Demais", versão em português do edital do volume 16 (primavera de 2013) da revista n+1, volta-se para os problemas gerados com a universalização do gesto de denúncia da literatura como capital simbólico, puro veículo de dominação de classe. O que ontem se apresentava como tão arrojado e transgressor transformou-se hoje em uma doxa paralisante. Henning Teschke oferece uma interpretação teológica de nosso capitalismo globalizado pós-crise de 2008. O passado anterior, neste caso, era a (então nova) ordem mundial pós-soviética, que prometia a perenidade secular do capital mundial sob a guarda inconteste dos Estados Unidos. Subarno Chattarji segue o rastro da Guerra do Vietnã, um evento central na história americana recente, para interpretar a produção literária de mulheres que de alguma maneira envolveram-se no conflito. A presença do feminino, aqui, não mostrou ser tão apaziguadora quanto se poderia esperar, e a questão de gênero não conseguiu fazer frente à barbaridade da guerra. O artigo de Bruno Duarte contrasta dois tempos próximos. O primeiro é o do final dos anos 1960, quando Pasolini vislumbrou o projeto de fazer um filme-poema sobre o Terceiro Mundo, que incluía Notas para uma Oresteia africana, uma transposição da tragédia grega; o segundo, o de agora, que nos permite ver a relevância do coro dramático. Márcio Pinheiro tenta reconstruir a história literária moderna que é apenas esboçada por Roland Barthes em O grau zero da escrita. O conteúdo dessa história das formas é contrastado ao tom assumido pela escrita do ensaísta diante da história que ele mesmo narra, visando assim a identificar e discutir suas possíveis ambivalências. Rafael Viegas, por sua vez, traduz e comenta um canard do século XVI, um precursor do fait divers, cuja proximidade com o sensacionalismo da imprensa atual é assombrosa. </font

O texto de Miriam Gárate inicia um segundo grupo temático do volume, dedicado a questões brasileiras. Ele investiga a relação de mão dupla entre crônica jornalístico-literária e cinema documental, adotando como corpus de análise Cinematógrafo. Crônicas cariocas (1909) de João do Rio, Pathé Baby (1926) de Antônio Alcântara Machado e Rien que les heures (1926) de Alberto Cavalcanti. Alfredo César Barbosa de Melo analisa as tensões e diferenças da crítica de Antonio Candido quando comparada à de Roberto Schwarz, autores que de outra maneira são sempre pensados como em uníssono. Se o primeiro apresenta certo otimismo em relação às potencialidades transformadoras do povo brasileiro, este último desenvolve um diagnóstico bastante pessimista sobre a (de)formação social do Brasil. Marcos Siscar, por fim, propõe uma leitura de "Poesia e modernidade: Da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico", de Haroldo de Campos, texto que busca selar o fim das vanguardas, ao mesmo tempo em que empreende sua legitimação crítica e histórica. O conflito entre a sobrevivência dos valores de vanguarda e a interpretação do contemporâneo como época de "pluralidade" (ou "diversidade") faz do texto de Haroldo de Campos um acontecimento histórico decisivo para a discussão contemporânea sobre poesia. </font

A parte final deste número apresenta duas entrevistas e uma tradução. Janet Todd, uma especialista do romance vitoriano discute com Maria Clara Biajoli o verdadeiro universo paralelo que se tornou a obra de Jane Austen, em particular Orgulho e preconceito, que já foi objeto de incontáveis continuações e adaptações. Em seguida, Michel Collot responde às perguntas de Danielle Grace de Almeida acerca de Francis Ponge e da relação entre poesia e filosofia na contemporaneidade. Fechando o volume, Edson Rosa da Silva propõe a tradução de uma carta que Jules Champfleury escreveu a Georges Sand em 1855 em defesa do pintor Gustave Courbet. Trata-se de uma importante reflexão sobre o modo como o realismo, saco de pancada da crítica atual, quebra os padrões estéticos vigentes à época. Com isso, vislumbra-se uma estranha lógica: se o presente torna-se passado com velocidade cada vez mais estonteante, o passado mais distante revela-se atual. É como se houvesse um nó do tempo, que parece unir as épocas mais diversas e questionar se o passado era tão moderno ou se seria o presente que, por fim, recusar-se-ia a virar passado.</font

Fabio Akcelrud Durão
Editor Assistente

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Dec 2014
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