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Ensino de literatura e formação de leitores: concepções e práticas de professores de português em Moçambique1 1 Este artigo foi escrito no português de Moçambique, terra natal do primeiro autor.

Teaching Literature and Training Readers: conceptions and practices of Portuguese teachers in Mozambique

Resumo

Ao ensino da literatura na escola compete a formação de leitores. Na escola moçambicana, onde a literatura ocupa tempo lectivo bastante significativo nos programas de português, as práticas de ensino enfatizam a abordagem dos textos literários na sua natureza imanente, seus elementos constitutivos e classificação tipológica, tomados como fins e não como meios de acesso aos textos, visando a um treinamento de habilidades de leitura literária. Essas constatações resultam de uma pesquisa etnográfica qualitativa e interpretativista que analisou (i) práticas didáctico-pedagógicas desenvolvidas com a literatura nas aulas de português em Moçambique, com objetivo de: (ii) identificar finalidades, enfoques teóricos e metodológicos envolvidos nessas práticas e competências que se buscam desenvolver nesse ensino. O trabalho de campo foi realizado entre fevereiro e junho de 2018, em duas escolas secundárias públicas, uma no centro da cidade de Maputo, e outra no distrito de Marracuene.

Palavras-Chave:
ensino de literatura; formação de leitores; ensino médio em Moçambique

Abstract

The teaching of literature at school is responsible for the training of readers. In Mozambican schools, where literature takes up a significant amount of teaching time in the Portuguese syllabus (99 of 107 hours in Year 12, for example), teaching practices favour the approach to literary texts in their immanent nature, their constitutive elements and typological classification, taken as ends and not as means of access to the texts, with the aim of training literary reading skills. These findings result from a qualitative and interpretivist ethnographic research, which analyzed didactic-pedagogical practices involving literature in Portuguese classes in Mozambique, with the aim of identifying purposes, theoretical and methodological approaches involved in these practices and skills that are sought to be developed with this teaching method. The fieldwork was conducted between February and June 2018, in two public secondary schools, one in Maputo city center, and the other in the Marracuene district.

Keywords:
literature teaching; reader training; secondary education in Mozambique

Resumen

Compete a la enseñanza de la literatura en la escuela la formación de lectores. En las escuelas mozambiqueñas, donde la literatura ocupa una parte significativa del tiempo de enseñanza en el programa de Portugués (99 de 107 horas en el 12º curso, por ejemplo), las prácticas pedagógicas enfatizan el abordaje de los textos literarios en términos de su naturaleza inmanente, de sus elementos constitutivos y de su clasificación tipológica, tomados como fines y no como medios de acceso a los textos, con el objetivo de formar competencias de lectura literaria. Estos resultados son fruto de una investigación etnográfica cualitativa e interpretativista, que analizó las prácticas didáctico-pedagógicas desarrolladas con la literatura en las clases de portugués en Mozambique, con el objetivo de identificar las finalidades, los enfoques teóricos y metodológicos implicados en estas prácticas y las competencias que se pretende desarrollar en esta enseñanza. El trabajo de campo se llevó a cabo entre febrero y junio de 2018 en dos escuelas secundarias públicas, una en el centro de la ciudad de Maputo y la otra en el distrito de Marracuene.

Palabras Clave:
enseñanza de la literatura; formación de lectores; enseñanza secundaria en Mozambique

No Sistema Nacional de Educação (SNE) de Moçambique, a literatura sempre esteve presente como parte dos conteúdos da disciplina de português desde os primeiros Programas de Ensino (PE), concebidos a partir de 1985. De lá para cá, essa presença sempre foi, pelo menos quantitativamente, bastante significativa. Houve momentos em que os conteúdos de literatura correspondiam à totalidade dos conteúdos da disciplina de língua portuguesa, configurando o que Branco (2005BRANCO, A. Da leitura literária escolar à leitura escolar de/da literatura: poder e participação. In: PAIVA, A. et al. (org.). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2005. p. 85-110.) designa de uma perspectiva literaturocêntrica. Mesmo nos momentos em que se procurou moderar essa presença, como aconteceu na Reforma Curricular de 2008, que colocou ênfase na ideia de um ensino secundário profissionalizante e orientado para o mercado, as unidades temáticas de literatura continuaram a ter, em termos comparativos, mais tempo didáctico que outros conteúdos: em média 22% do tempo letivo de uma disciplina que tem cinco unidades temáticas.

Contudo, a distribuição favorável de tempos letivos para a literatura nunca foi acompanhada de uma formulação explícita dos objetivos e orientações metodológicas para o seu ensino. No Plano Curricular do Ensino Secundário Geral (PCESG), principal instrumento orientador do ensino em Moçambique, acha-se apenas uma referência, na qual se lê “(...) particular atenção será dada à valorização da literatura moçambicana, contribuindo para a preservação do património cultural e para a construção da identidade nacional” (MEC/INDE, 2007MOÇAMBIQUE. Lei do Sistema Nacional de Educação N° 6/92 de 6 de Maio. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3178/5/ulfp037703_tm_anexo9_Sistema%20Nac_%20Educa%C3%A7%C3%A3o_Mo%C3%A7ambique.pdf . Acesso em: 03 nov. 2023.
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, p. 38). Nos Programas de Ensino (PE) de cada classe do secundário, as concepções e as orientações estão descritas em apenas meia página e com o mesmo texto repetido em todos, no qual se lê:

A literatura sempre se afirmou como sendo, por um lado, o espaço em que estão depositados de forma mais ou menos condensada os valores culturais, morais e intelectuais das comunidades e, por outro, o veículo de difusão interna e externa desses mesmos valores. O ensino da literatura preconizado no programa alicerça-se naquele pressuposto, pois, através do tratamento sistemático e consciente de obras de diferentes autores moçambicanos e estrangeiros, pretende-se, em princípio, conferir aos alunos o gosto pela leitura, o que, por seu turno, abrirá portas para que se confrontem com um conjunto de vivências que propiciarão a aquisição de valores culturais, morais e intelectuais locais e globais. O ensino de literatura será feito de forma sistemática, a partir do tratamento de diferentes tipologias textuais inerentes aos três modos literários: narrativo, lírico e dramático. Neste âmbito, pequenos textos ou extractos de textos servirão de pretexto para o estudo, quer dos aspectos formais e linguísticos que lhes são específicos, quer dos elementos culturais e ideológicos por eles veiculados (INDE/MINED, 2010, p. 10).

A análise dos enunciados desses documentos sobre o trabalho com a literatura permite verificar, entre outros aspectos, a contradição nas funções atribuídas à literatura. No Plano Curricular, propõe-se que o ensino sirva a fins identitários, enquanto nos Programas de Ensino, propõe-se que a literatura sirva, simultaneamente, para o desenvolvimento do gosto pela leitura e pretexto para o estudo de aspectos formais e linguísticos dos textos. Outro aspecto notável na análise dos documentos é a repetição do mesmo texto que enuncia a proposta de trabalho nos programas de todas as classes do ensino secundário, deixando evidente a ausência de planos específicos para o ensino de literatura em cada classe.

A ausência de orientações curriculares explícitas abre espaço para múltiplas utilizações dos textos de literatura nas aulas de português, nem sempre orientadas para o contacto e envolvimento do aluno com o texto literário nem para a sua formação como leitor. Em face destas constatações, e tendo como pressuposto que mais do que quantificar, é preciso qualificar a presença da literatura nas aulas de português, garantindo que o seu ensino possibilite o desenvolvimento de competências de leitura e formação cidadã do aluno (Zilberman, 2016ZILBERMAN, Regina. A Teoria da Literatura nos bancos escolares. In: CECHINEL, A. (org.). O lugar da Teoria Literária. Florianópolis: Editora da UFSC; Criciúma: Editora da Unesc, 2016. p. 395-417.; Todorov, 2009TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.), interessou-nos compreender as práticas (atividades, finalidades, metodologias) e significados que envolvem o ensino da literatura nas aulas de português em Moçambique, onde atuou, durante uma década, o primeiro autor deste artigo.

Para tal efeito, realizámos uma pesquisa de natureza qualitativa, envolvendo professores da disciplina de português do Ensino Secundário Geral de Moçambique. A pesquisa foi realizada pelo professor Óscar Alexandre Fumo, em nível de mestrado acadêmico em Linguística Aplicada, no Instituto de Estudos da Linguagem, na Universidade Estadual de Campinas, Brasil, e orientado pela professora Cynthia Agra de Brito Neves, co-autora deste texto. Este artigo compartilha um recorte dessa pesquisa acadêmica concluída em 2019. Apresentaremos a seguir, de forma comprimida, um panorama do ensino de literatura nas escolas em Moçambique sob uma perspectiva histórica inédita e algumas concepções teóricas que sustentam sua escolarização. Em seguida, descreveremos as questões metodológicas da pesquisa e compartilhamos os principais resultados da análise dos dados gerados.

O ensino de literatura no ensino médio em Moçambique

Em Moçambique, a presença da literatura na escola remonta aos primeiros programas de língua portuguesa adoptados para o ensino secundário. Essa presença foi tendo contornos diversificados, quer em termos de conteúdos, finalidades, objectos de ensino e abordagens, quer quanto ao tempo lectivo dedicado à sua leccionação. O primeiro programa de língua portuguesa, elaborado em 1985 para a 10ª Classe, dedicava 60 horas lectivas aos conteúdos de literatura. No texto sobre as orientações metodológicas, lê-se que o programa “orienta, também, para a utilização da leitura de ficção como meio para alargar o conhecimento da realidade moçambicana” (Ministério da Educação e Cultura, 1985MOÇAMBIQUE. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Plano Curricular do Ensino Secundário Geral. Maputo: INDE, 1985. Disponível em: http://www.eln.co.mz/wp-content/uploads/2015/04/programa.pdf . Acesso em: 03 nov. 2023.
http://www.eln.co.mz/wp-content/uploads/...
, p. 2). No mesmo programa, orienta-se que o trabalho com os textos literários deva consistir em “levantar os dados bibliográficos dos autores e relacioná-los com os contextos reflectidos na obra; estabelecer relações entre o contexto sócio-cultural reflectido na obra e o contexto de produção”. Indicam-se como leituras obrigatórias os textos dos escritores moçambicanos Rui de Noronha e Noémia de Sousa, aos quais se devem adicionar mais duas obras angolanas a critério do professor.

Nesse programa, a literatura cumpria pressupostos ideológicos. A preocupação era com a leitura dos textos associando-os ao contexto e com o objectivo de alargar a compreensão da realidade moçambicana, o que se explicava pelos objectivos gerais do primeiro projecto educacional moçambicano, marcadamente ideológico e que enfatizava a formação de um homem que assumisse os valores da unidade nacional, do amor à pátria, e “liberto de toda carga ideológica e política da formação colonial”. A escolha das obras e dos autores de leitura obrigatória tanto visava como reflectia, também, a esse projecto de promoção de valores patrióticos e rompimento com a realidade colonial. Noémia de Sousa e Rui de Noronha são autores influenciados pelos movimentos da negritude e do renascimento negro e suas obras possuem um forte pendor de protesto, denunciando e rompendo com o sistema colonial, ao passo que exaltam valores de africanidade e de identidade nacional.

Em 1994, foram elaborados os programas da disciplina de português para a 11ª e a 12ª classes. Nesses programas, aumentaram-se o tempo lectivo dedicado à literatura e o leque de obras e autores a serem trabalhados. No entanto, os objectivos e as orientações metodológicas permaneceram inalterados. Os conteúdos de literatura passaram a ocupar a totalidade das unidades temáticas, de modo que a disciplina de língua portuguesa passou a ser estudada a partir da literatura. Os temas abordados dedicavam-se à definição dos conceitos de literatura, poesia trovadoresca e literaturas portuguesa, brasileira, africanas, moçambicana, colonial e pós-colonial. Na versão do programa destinado exclusivamente aos professores, era instruído que o trabalho com a literatura devesse criar no aluno o gosto pela leitura, para além da utilização da ficção como meio para alargar o conhecimento da realidade moçambicana, conforme se previa nos programas anteriores. O trabalho de leitura das obras, geralmente apresentadas em pequenos excertos adaptados em livros didácticos, e que engloba autores canónicos das literaturas abordadas (Orlando Mendes e Luís Bernardo Honwana, para o caso de Moçambique; Luandino Vieira e Manuel Rui, no caso de Angola), consistia na identificação de elementos temáticos, caracterização da estrutura formal dos textos e tratamento de aspectos linguísticos a partir deles.

Em 1999, foram introduzidos novos programas no Ensino Secundário Geral. Os textos literários passam a co-ocorrer com outros géneros textuais, nomeadamente, textos normativos, administrativos e didácticos. Apesar de reduzida a percentagem de tempo lectivo dedicado à literatura, ela continuava a ser dominante. Por exemplo, na 11ª e na 12ª Classes, dos 100% que a literatura ocupava no programa de língua portuguesa, passou para 50% e 94%, respectivamente. As orientações metodológicas feitas aos professores continuavam a enfatizar a identificação de elementos temáticos, estruturais e linguísticos nos textos literários. Em 2004, foram revistos os programas do 1º Ciclo. No programa da 10ª Classe, por exemplo, a literatura continuou a preencher a maior parte do tempo lectivo, cerca de 98%. As unidades temáticas, por sua vez, foram organizadas tomando como base os géneros literários (textos poéticos, narrativos e dramáticos). Outros conteúdos e géneros textuais passaram a ser abordados como sub-unidades.

A partir de 2005, com a mudança de governo e de Presidente da República, começaram-se a operar profundas mudanças políticas e ideológicas no país. No discurso governamental, sobretudo do Presidente da República à época, defendia-se, como condição para a superação do subdesenvolvimento, a necessidade de uma formação para o “saber fazer”, o que se concretizou na expansão de uma educação técnico-profissional e na introdução de matérias que privilegiassem a “prática” em detrimento da “teoria”. É nesse contexto que, em 2007, foi publicado o novo Plano Curricular do Ensino Secundário Geral (PCESG), principal documento orientador para esse nível de ensino e que continua em vigor. A perspectiva de educação reflectida nesse documento baseia-se no Plano Estratégico de Educação - PEE 2006-2010/11, o qual considerava como prioridade a transformação do currículo do Ensino Secundário Geral para centrar-se no desenvolvimento de “habilidades para vida e entrada no mercado de trabalho.” (MEC/INDE, 2007MOÇAMBIQUE. Lei do Sistema Nacional de Educação N° 6/92 de 6 de Maio. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3178/5/ulfp037703_tm_anexo9_Sistema%20Nac_%20Educa%C3%A7%C3%A3o_Mo%C3%A7ambique.pdf . Acesso em: 03 nov. 2023.
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, p. 4).

As novas orientações do Ensino Secundário Geral reflectiram-se, entre outros aspectos, na redução do tempo lectivo e dos conteúdos de literatura. Com excepção do programa de língua portuguesa da 12ª Classe, em que os textos literários constituem a maior parte das unidades temáticas (11 das 12 unidades temáticas) e ocupam a maior parte do tempo lectivo (99 horas do total de 107 horas), nos programas das outras classes (8ª à 11ª Classes) esses textos correspondem a uma unidade por trimestre e ocupam, actualmente, em média, 22% do tempo lectivo contra cerca de 55% nos programas anteriores, e, em alguns, 100%.

Vale dizer que os programas de língua portuguesa hoje em vigor estão organizados em géneros textuais, nomeadamente: textos normativos, administrativos, jornalísticos, multiusos e literários. Quanto às concepções, objectivos e enfoques metodológicos do ensino da literatura, não houve mudanças significativas em face das reformas curriculares do Ensino Secundário Geral. Continuou a predominar uma orientação que valoriza a literatura enquanto veículo de património cultural e uma abordagem de ensino muito voltada para a exploração da forma estrutural do texto literário e também de aspectos gramaticais.

Finalidades, objetivos e métodos no ensino da literatura

Embora não deixem de ser preocupantes os sinais de redução da literatura no currículo do Ensino Secundário Geral, o problema da sua presença na escola moçambicana, mais do que de quantidade, parece-nos ter que ver com a qualificação das práticas de ensino. Mais concretamente, trata-se da ausência de clarificação sobre (i) as finalidades e os objetivos, explicitando o que se espera que decorra do ensino da literatura, e (ii) os enfoques e as orientações metodológicas, definindo explicitamente o que deve constituir o foco do trabalho com conteúdos de literatura e como organizar situações de aprendizagem que visem a desenvolver no aluno as competências que se pretendem. Em face disso, e na perspectiva de poder fornecer subsídios aos professores de português, parece-nos oportuna uma reflexão em torno das finalidades, enfoques e métodos no ensino da literatura em Moçambique.

Das finalidades

Refletir sobre as finalidades e os objetivos do ensino de literatura deve ser um exercício preliminar, pois é a partir dessa reflexão que questões relativas a, por exemplo, opções teóricas e metodológicas se tornam viáveis. Como qualquer outra prática pedagógica, o ensino de literatura não é neutro; cumpre, evidencia e articula um determinado projeto político-social. Está em causa um ideal de sociedade e de cidadãos que se pretende formar. Portanto, as finalidades do ensino da literatura são igualmente justificadas em função do tipo de sociedade, das circunstâncias sociais e políticas, ou mesmo em função dos paradigmas pedagógicos e concepções teóricas dominantes.

Pode-se distinguir duas abordagens relativas às finalidades do ensino da literatura em Moçambique. A primeira é aquela em que o ensino de literatura está associado a um projeto nacionalista, servindo como veículo de elementos do património cultural da nação. Nessa vertente, a literatura é concebida enquanto manifestação e repositório dos elementos caracterizadores da nação; logo, o seu ensino almeja reforçar a noção e a consciência de identidade nacional. Em termos metodológicos, concordando com a crítica de Zilberman (2016ZILBERMAN, Regina. A Teoria da Literatura nos bancos escolares. In: CECHINEL, A. (org.). O lugar da Teoria Literária. Florianópolis: Editora da UFSC; Criciúma: Editora da Unesc, 2016. p. 395-417.) ao contexto brasileiro, no ensino de literatura em Moçambique também se adopta uma perspectiva historiográfica, de modo que o ensino incorpora uma concepção ascensional e progressiva da trajetória da literatura e assenta na abordagem dos movimentos literários, das suas características, dos estilos de época, dos seus autores proeminentes, e nos usos de linguagem, tudo enquanto constitutivo do ideário comum de nação.

A segunda abordagem, com a qual concordamos, é aquela em que o ensino visa fundamentalmente ao desenvolvimento de habilidades de leitura literária. O reconhecimento da formação de leitores como sendo a finalidade do ensino de literatura radica do entendimento de que, embora todos os géneros de textos sejam formas de construção de sentidos e que, a princípio, não devem ser hierarquizados, o texto literário distingue-se porque constitui uma forma privilegiada de construção de sentidos dada a sua natureza ficcional.

O texto literário, conforme explica a autora brasileira Aguiar (2013AGUIAR, V. T. O saldo da leitura. In: DALVI, M. A.; REZENDE, N. L.; JOVER-FALEIROS, R. (org.). Leitura de Literatura na Escola. São Paulo: Parábola, 2013. p. 153-161.), diferencia-se pela abertura ao que pode ser, dando margem à imaginação e à criação, ultrapassando as referências espaciais e temporais com que se estrutura, para jogar com o provável, com o possível. Ainda de acordo com a autora, diferentemente de outros - que tratam daquilo que é ou que foi, nascidos do compromisso com a realidade próxima, factual e marcados no tempo e no espaço, e por isso, menos abertos -, a leitura do texto literário, objeto despragmatizado, coloca-se sempre como uma sugestão, com espaços vazios e indeterminações que devem ser preenchidos pelo leitor, mobilizando-o, e, assim, ele (re)constrói uma série de conhecimentos e habilidades. O texto literário não impõe saberes, convenções e normas ao leitor, ao contrário, sugere-os, colocando-os em questionamento contínuo.

Bernardes e Mateus (2013BERNARDES, J. C.; MATEUS, R. A. Literatura e ensino do português. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013. Disponível em: https://www.ffms.pt/sites/default/files/2022-07/literatura-e-ensino-do-portugues.pdf . Acesso em: 02 nov. 2023.
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), ao explicitar o potencial pedagógico da literatura para a formação de leitores, referem que (i) dada a sua inscrição num sistema de comunicação secundário que o faz ultrapassar o plano da transmissão unívoca de informação e lhe permite reproduzir situações complexas, o texto literário proporciona material com elevado potencial de significação e representação do mundo; e (ii) ao veicular mensagens de natureza plurissignificativa, ele presta-se à aquisição e ao treino de modalidades de leitura complexas, que não se podem garantir com as realizações discursivas do quotidiano. A esses aspectos podemos acrescentar o facto de, na sala de aula, na leitura de literatura, mais do que no de outros géneros, realiza-se um trabalho linguístico intenso, uma vez que o texto literário expõe o leitor, em extensão e profunidade, a uma vasta gama de possibilidades de utilização e manifestação dos recursos linguísticos, promovendo, assim, a sua consciência linguística, o enriquecimento do seu vocabulário, a aprendizagem de códigos retóricos e o desenvolvimento de sensibilidade estética, pois, no trabalho com os géneros literários, lida-se com uma multiplicidade de códigos e referências histórico-culturais e simbolos traduzidos nos textos.

Do objeto/enfoque de/no ensino da literatura

Neste aspecto, parece-nos, também, poder-se distinguir, basicamente, dois enfoques que têm sido tomados como eixos do ensino da literatura na escola, quais sejam: o foco na estrutura interna do texto, no contexto e na função do texto literário. Na abordagem que direciona o foco na análise interna da obra, compreende-se a literatura como um sistema imanente, regido por leis próprias e independente de fatores externos. A nosso ver, os princípios dessa abordagem derivam de concepções herdadas do estruturalismo linguístico, em que a língua é compreendida como um sistema articulado de signos e o seu estudo realiza-se num plano sincrónico, buscando revelar a sua estrutura, isto é, as regras de seu funcionamento interno.

Na teoria e crítica literárias, nas quais o estruturalismo exerce(u) grande influência, o texto literário passou a ser analisado de acordo com um conjunto de princípios, procedimentos e técnicas que consistem na sua descrição, na sua natureza imanente, e visão a compreender o seu funcionamento interno. À semelhança da língua, a literatura passou a ser entendida como um sistema de signos, com modos de funcionamento próprios. Na lógica estruturalista, a organização da obra é vista como interna ao sistema literário, sem relação com referente externo algum.

No que se refere ao ensino da literatura, tal perspectiva enforma procedimentos metodológicos que enfatizam, por exemplo, a análise dos elementos constitutivos da narrativa, tais como personagens, tempo, espaço e suas respectivas classificações e funções. O que se ensina dos textos literários são os elementos que os instituem, as técnicas de sua construção e a sua classificação tipológica. O cerne do estudo são os mecanismos de sua construção.

A essa tradição de ensino, centrada na obra tomada em si, contrapõe-se uma abordagem que valoriza o contexto e as funções transcendentes do texto. Parte-se da compreensão de que nenhuma obra de arte se basta a si mesma (Ceia, 2004CEIA, C. A Literatura Ensina-se?: Estudos de Teoria Literária. Lisboa: Edições Colibri, 2004.), desse modo, não se pode tratar de textos sem finalidade ou sentido além ou fora de si. Candido (2012CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Revista Remate de Males, Campinas, p. 81-90, 2012. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8635992 . Acesso em: 31 out. 2023.
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) explica que a literatura constitui um raciocínio feito com referência à história e, enquanto objeto de conhecimento e projeção da experiência humana, ela desperta inevitavelmente o interesse pelos elementos contextuais. Para o crítico brasileiro, a obra literária tem uma função social, isto é, ela desempenha um determinado papel na sociedade.

Diversos estudos têm constatado que o ensino de literatura tem sido pautado pela perspectiva que valoriza a dimensão estética dos textos, às vezes, em detrimento e até por exclusão da função e do contexto. No entanto, embora, à primeira vista, pareça lógico pensar-se que a dimensão estética constitua o eixo do ensino, cabendo ao professor formar o gosto e a capacidade de apreciação das obras, essa postura é duplamente arriscada (Jouve, 2012JOUVE, V. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola , 2012.). Na percepção de Jouve, o eixo do ensino de literatura não deve ser apenas o texto em si, na sua dimensão estética. A forma e a função não são dois polos que se excluem, por isso não se deve querer substituir um enfoque pelo outro. Corroborando Todorov (2009TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.):

Não apenas estudamos mal o sentido de um texto se nos atemos a uma abordagem interna estrita, enquanto as obras existem sempre dentro e em diálogo com o contexto; não apenas os meios se devem tornar o fim, nem a técnica nos deve fazer esquecer o objectivo do exercício. É preciso também que nos questionemos sobre a finalidade última das obras que julgamos dignas de serem estudadas. (...) Não se trata de uma sugestão para que o ensino de literatura se apegue inteiramente em prol do ensino das obras, mas de que cada um encontre o lugar que lhe convém (...) O ensino médio, que não se dirige a especialistas em literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo alvo; o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários (Todorov, 2009TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009., p. 34).

Dos métodos no ensino de literatura

A falta de propostas metodológicas sistematizadas e fundadas em pressupostos teóricos explícitos sobre literatura, leitura e o seu ensino constitui outro grande problema do ensino da literatura na escola. Os professores, no contexto moçambicano, em que têm de lidar com um número elevado de turmas, invariavelmente numerosas, e se lhes acrescentam constrangimentos relacionados com a falta de livros e a obrigação de cumprir os programas escolares, tendencialmente aplicam, sem questionamento e adaptação, propostas e sugestões metodológicas fornecidas nos livros didáticos. Essas propostas, para além de consistirem no mesmo tipo e sequências de atividades (apresentação do texto, explicação do vocabulário, questionário direcionado ao estudo do texto), sempre voltadas para a exploração dos elementos formais dos textos e exercícios gramaticais, não tomam em consideração o perfil dos alunos com que cada professor trabalha, os contextos das práticas, não refletem bases teóricas coerentes e consistentes e muitas delas não possuem articulação com objetivos educacionais concretos.

Reconhecendo a centralidade dos procedimentos metodológicos nas práticas de ensino de literatura e a necessidade de ultrapassar abordagens fundadas nos modelos tradicionais, comprovadamente ineficazes para a formação de leitores, diversos autores têm sugerido que, na formulação, estruturação ou escolha de procedimentos didácticos, o professor tenha de se basear em perspectivas de trabalho que colocam a leitura no centro das práticas de ensino da literatura para assim garantir que o texto literário seja lido, explorado e discutido a partir dos conhecimentos e da interpretação do aluno, reforçando e mostrando que o texto que se lê é um discurso situado, passível de questionamento e reformulação.

Questões metodológicas da pesquisa

O objetivo da pesquisa que deu origem a este artigo era descrever as práticas didático-pedagógicas que os professores de português, no ensino médio em Moçambique, desenvolvem com a literatura na sala de aula e como entendem essas práticas. A concretização desse objetivo implicava que estivéssemos presentes no contexto em que as práticas de ensino ocorrem, observando-as, vivenciando-as e descrevendo-as, e, também, que captássemos a perspectiva dos professores com relação a esse ensino. Em consonância com essa demanda, optámos por realizar uma pesquisa enquadrada numa abordagem qualitativa, interpretativista (Moita Lopes, 1994MOITA LOPES, Luiz Paulo. Pesquisa Interpretativista em Linguística Aplicada: a linguagem como condição e solução. Revista DELTA, n. 2, v. 10. p. 329-338, 1994. Disponível em: https://www.scribd.com/doc/315214851/MOITA-LOPES-Pesquisa-Interpretativista-Em-LA-1994 . Acesso em: 30 out. 2023.
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) e seguindo a perspectiva etnográfica (André, 2012ANDRÉ, Marli Eliza D. A. de. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 2012.). Observámos aulas, entrevistámos professores e analisámos os principais documentos orientadores do ensino, nomeadamente a Lei nº 6/92 de 6 de Maio, o Plano Curricular e os programas de português do Ensino Secundário Geral (PCESG) em Moçambique.

O trabalho de pesquisa de campo durou cinco meses, de fevereiro a junho de 2018, período correspondente a dois trimestres letivos no sistema escolar de Moçambique. O trabalho foi realizado em duas escolas secundárias públicas, sendo a “Escola A” localizada no centro da cidade de Maputo e a “Escola B” no distrito de Marracuene, 30 Km a norte da cidade de Maputo.

Os participantes da pesquisa são quatro professores (três homens e uma mulher) que leccionam a disciplina de língua portuguesa no nível médio, dois de cada escola. Quisemos que os participantes representassem gerações diferentes de professores; tivessem mais de cinco anos de experiência profissional e que tivessem sido formados nas duas principais universidades de Moçambique que formam professores, nomeadamente, a Universidade Eduardo Mondlane e a Universidade Pedagógica. Por questões de ética e salvaguarda das suas identidades, codificámos os participantes em Prof.1, Prof.2, Prof.3 e Profª.4.

Observámos o total de oito aulas com duração de 90 minutos cada, duas de cada professor, perfazendo 720 minutos de observação no total. Todas as aulas eram referentes à unidade temática “textos literários”. Os registos foram feitos através de anotações escritas na Escola A, enquanto, na Escola B, combinámos anotações e gravações das aulas em áudio. A observação incidiu sobre questões relativas ao tópico da aula, objetivos, sequência didática, atividades, tarefas para os alunos, materiais usados e “falas” do professor e dos alunos em aula. As anotações de aula foram descritivas para fins de registo e reflexão futura.

As entrevistas realizadas foram classificadas como semiestruturadas e o roteiro foi composto por 11 questões que abordavam três eixos temáticos, nomeadamente: objetivos de ensino da literatura na aula de língua portuguesa, perspectivas teórico-metodológicas de ensino da literatura e ideias sobre as experiências pessoais com a literatura e o seu ensino. No total, foram 230 minutos de gravação, uma média de 50 minutos por entrevista. As entrevistas foram transcritas e retextualizadas, seguindo os procedimentos propostos por Marcuschi (2010MARCUSCHI, L. A. Da Fala para a Escrita: actividades de retextualização. São Paulo: Cortez Editora, 2010.).

Análise de dados e resultados

Para a análise de dados, definimos três categorias: (i) como os professores organizam e operacionalizam o ensino de literatura; (ii) que concepções sobre as finalidades do ensino de literatura revelam e (iii) que práticas de leitura dos textos literários são desenvolvidas nas aulas de português e como essas práticas se articulam com o objetivo maior enunciado na Lei do Sistema Nacional de Moçambique, que prescreve a formação para a cidadania. A construção dessas categorias teve como referência os objetivos específicos da pesquisa. No entanto, ressaltamos que esses objetivos foram sendo (re)formulados no decurso da pesquisa de campo, em função das situações que iam sendo observadas nas aulas e na análise de documentos.

Na interpretação dos dados, buscámos captar as regularidades e particularidades que ocorriam nas práticas dos dois professores observados, apreender os significados que emergiam nos seus discursos durante as entrevistas, procurando sempre fazer interligações, tanto com o contexto da pesquisa, quanto com as abordagens teóricas fundamentais, visando, assim, a construir hipóteses de explicação.

Em síntese, quanto à organização e operacionalização do ensino, a análise dos dados gerados revela que os professores, de modo geral, formulam os objetivos de ensino e a perspectiva de abordagem a partir do programa oficial da disciplina, apesar de reconhecerem que esses documentos apresentam limitações e contradições de natureza teórica e metodológica. Verificámos, porém, posturas diferentes no tocante à forma como os professores operacionalizam o ensino. Por um lado, notámos haver professores que combinam as sequências de aula propostas nos livros didáticos com procedimentos que refletem a sua própria perspectiva sobre o ensino de literatura. Nas aulas desses professores, embora o livro didático não deixe de ocupar um lugar central, funcionando como o principal organizador das aprendizagens, as propostas didáticas não eram implementadas de forma literal, sem os devidos ajustamentos feitos pelos próprios professores.

Nas entrevistas, os professores, via de regra, posicionaram-se criticamente em relação aos livros didáticos ao reconhecerem que esses materiais reproduzem as limitações e contradições dos programas. Afirmaram que os livros didáticos traduzem uma perspectiva restrita de literatura ao se centrarem em aspectos de ordem conceitual e formal, limitando, desse modo, a possibilidade de outras abordagens, quais sejam: a vinculação dos textos à realidade dos alunos, ao conhecimento da história e da cultura do país, bem como ao desenvolvimento do gosto e habilidades de leitura.

Contudo, observámos que as práticas desses professores, não obstante, seguem, quase à letra, as sequências de aula dos livros didáticos, sem nenhuma preocupação com a forma como os conteúdos de literatura são tratados nessas propostas. Paradoxalmente, eles criticam os programas de ensino por, na sua percepção, proporem conteúdos e abordagens que não tomam como referência o aluno e as suas necessidades concretas de aprendizagem.

Essas críticas desconsideram que os livros didáticos nos quais os professores baseiam as suas práticas materializam, ipsis verbis, as formulações dos documentos orientadores. Acresce às posturas contraditórias dos professores o facto de afirmarem que é prática comum, ao nível dos grupos de disciplina e na planificação individual, procurar-se adequar as formulações dos programas de ensino em função da realidade e das necessidades dos alunos, mas não tornarem tal exercício de reformulação extensivo aos livros didáticos.

Quanto aos conteúdos de ensino e perspectivas de abordagem, constatámos, nos tópicos acerca dos géneros literários, uma predominância na abordagem de aspectos teóricos e formais dos textos. A unidade temática e a aula de literatura são organizadas em torno dos géneros. Cada unidade temática aborda um género, que pode ser narrativo, lírico ou dramático. As aulas centram-se na definição do género, a sua caracterização e a classificação de categorias metaliterárias inerentes: narrador, personagem, ação, espaço, tempo.

Nos programas e nos livros didáticos apresentam-se, explicitamente como objetivos da unidade temática ou da aula, o desenvolvimento de competências de identificação das características do género, a distinção de outros géneros, a análise do texto quanto à mancha gráfica, a identificação do tipo de linguagem e temática.

Nas aulas, os conteúdos são abordados numa perspectiva informativa, sendo os conceitos tratados de forma isolada, sem preocupação em vinculá-los a atividades de leitura dos textos correspondentes aos géneros abordados. Geralmente são aulas longas e expositivas, baseadas nas fichas de leitura que constam nos livros; os conceitos são definidos, classificados e depois buscam-se exemplos em textos selecionados especificamente para o efeito. Não se trata de pôr os conceitos e as respectivas classificações como ferramentas no trabalho de análise e interpretação, tal como sugerido por Todorov (2009TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.). O texto funciona como um apêndice, colocado ao serviço dos conceitos, e não o contrário.

Os professores, nos seus discursos, posicionaram-se basicamente de duas formas em relação à predominância desses conteúdos e à forma de abordá-los. Uns entendem que a abordagem de aspectos conceituais e formais é necessária tendo em conta as dificuldades demonstradas pelos alunos, que chegam ao segundo ciclo do ensino secundário com conhecimentos muito desfasados sobre a literatura. Para esses professores, esses conteúdos são pré-requisitos para o enfrentamento dos textos literários, de modo que o seu tratamento é fundamental e deve preceder a leitura. Outros, porém, afirmaram não se identificarem com a abordagem desses conteúdos e assumem uma posição extrema, recusando a utilidade de aspectos teóricos e formais ao se ensinar literatura. Contudo, nas suas aulas, abordam-nos conforme proposto nos programas, devido às obrigações institucionais de concretizar os objetivos.

A obrigação institucional de cumprir o programa é, aliás, recorrente no discurso de todos os professores entrevistados e foi também apresentada como justificativa para as contradições verificadas entre a posição crítica que assumem em relação aos programas, reconhecendo que têm limitações, e a atitude de, apesar disso, se basearem integralmente neles sem os reformular ou ajustá-los à realidade em que leccionam e às necessidades dos seus alunos. Os professores revelaram que existem mecanismos de controle, institucionalizados, que constrangem as suas práticas de ensino, diminuindo as possibilidades de as conduzirem em função das suas próprias concepções e do que julgam necessário para a aprendizagem dos alunos. As inspeções periódicas, às vezes repentinas; as avaliações finais, que são elaboradas ao nível central por uma comissão de professores a serviço das autoridades centrais e que cobram estritamente o domínio dos conteúdos previstos nos programas; bem como os procedimentos e critérios de avaliação do professor corporificam alguns dos mecanismos de controlo operacionalizados pelas autoridades gestoras do Sistema Nacional de Educação, que, de facto, limitam a autonomia do professor moçambicano.

Relativamente às finalidades do ensino de literatura, três orientações sobressaíram dos discursos dos professores: (i) o conhecimento da realidade e da cultura moçambicana, (ii) o ensino de aspectos gramaticais e (iii) o desenvolvimento do gosto pela leitura literária. A primeira orientação é a mais dominante, mais enfatizada pelos professores e a que se pode confirmar nas práticas de ensino observadas. As duas últimas, embora tenham sido proferidas nos discursos, não se concretizaram de forma evidente nas aulas. Na primeira concepção, os professores partem da perspectiva de que o texto literário encerra mensagens sobre uma determinada realidade social e cultural, a qual é considerada coincidente com o contexto do autor. Em síntese, textos de autores moçambicanos abordam a realidade social e cultural do nosso país. O ensino de literatura, na concepção da maioria dos professores, deve estar orientado, sobretudo para o conhecimento dessa realidade pelos alunos, nesse sentido; o texto literário é abordado como uma representação da realidade.

Nas aulas dos professores participantes desta pesquisa, à semelhança do que constatou Pinheiro (2006PINHEIRO, Marcos Pinheiro. Letramento literário na escola: um estudo de práticas de leitura literária na formação da “comunidade de leitores”. 2006. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo Horizonte, 2006.) sobre a forma como os textos literários são trabalhados nas aulas de português, as personagens foram apresentadas como modelos de comportamento para os alunos e as situações interpretadas como tradução do quotidiano. Não se observaram situações em que se apela para o posicionamento crítico dos alunos, em que eles sejam encorajados a problematizar a apreensão da realidade subjacente aos textos. Pelo contrário, os professores ratificaram-na, às vezes fazendo interpretações bastante discutíveis, reproduzindo, com isso, valores que consideram caracterizar a sociedade e a cultura moçambicana de maneira bastante estereotipada.

As orientações para o ensino de aspectos gramaticais e para o desenvolvimento do gosto pela leitura coincidem com o que vem expresso no Plano Curricular do Ensino Secundário Geral. O trabalho sobre aspectos de gramática apareceu de forma bastante ténue. Não se verificaram abordagens detidas nesse aspecto. As atividades do questionário, a ser respondido a partir da leitura do texto, apenas se serviam de frases retiradas do texto proposto para realizar a análise sintática. No que diz respeito ao desenvolvimento do gosto pela leitura literária, não observámos, ao longo de 12 horas de aulas ao todo, nenhuma prática com tal propósito.

Já no tocante às práticas de leitura de textos literários na aula de português, constatámos que o texto literário estava sempre presente nas aulas, geralmente em pequenos excertos ou adaptações de uma página e meia nos livros didáticos, no caso do género narrativo, e poemas curtos e esparsos, quando se tratava do género lírico. A sua presença, contudo, apenas cumpria o objetivo de exemplificar géneros literários e responder a questionários. Nas sequências didáticas propostas nesses livros e nas quais os professores se baseiam, o texto aparece, invariavelmente, seguido de uma ficha de leitura que apresenta a definição dos conceitos que são o tópico central da aula. Ao introduzi-lo, há sempre uma solicitação do tipo “Leia atenciosamente o texto”. Logo após a “leitura atenciosa”, instrui-se o aluno a responder a um questionário com algumas perguntas em torno do texto e outras relacionadas aos conceitos trabalhados e suas respectivas classificações e, por fim, atividades de gramática.

De modo geral, não se realizaram atividades que envolvem estratégias de leitura e operações de compreensão, análise, discussão, interpretação e extrapolação do texto literário. A leitura silenciosa ou em voz alta é assumida como suficiente para a compreensão do texto, e, desse modo, logo após a sua realização, passa-se para o questionário, cujas perguntas são mais de avaliação, embora etiquetadas como de compreensão e interpretação. Apesar de os professores se revelarem preocupados com as dificuldades de leitura apresentadas pelos alunos, esse procedimento, que verificámos em todas as aulas, ao contrário, parte do pressuposto de que os alunos já possuem competências para a leitura, compreensão e interpretação de textos literários. Nas aulas, não aconteceram momentos e atividades de mediação de leitura. Os sentidos atribuídos aos textos foram fornecidos pelos professores, sem a preocupação de mostrar aos seus alunos ou com eles trabalhar os percursos de leitura que os conduziram a esses sentidos. Sequer houve discussão a propósito desses sentidos, que são, afinal, apenas sugestões possíveis de leitura e não leituras acabadas, fixas e inquestionáveis.

Considerações finais

O ponto de partida desta pesquisa foi a constatação de que, embora os conteúdos de literatura tenham uma presença bastante significativa na escola moçambicana, ocupando mais tempos letivos na disciplina de português quando comparados com outros conteúdos, os documentos orientadores de ensino, nomeadamente o Plano Curricular do Ensino Secundário Geral e os Programas da Disciplina, não explicitam os parâmetros do trabalho que se deve realizar com esses conteúdos de literatura na escola. Para além de os documentos enunciarem objetivos diferentes, mesmo sendo que um se baseia noutro, eles partem de concepções diferentes de literatura e, nos programas de ensino, não se distinguem os objetivos e as orientações metodológicas para cada uma das classes do ensino secundário moçambicano.

Em face dessa constatação, e assumindo que a inexistência de parâmetros formulados de forma objetiva e coerente abre espaço para o surgimento de práticas de ensino diversas, propusemo-nos, então, a investigar essas práticas de ensino de literatura desenvolvidas pelos professores no ensino secundário em Moçambique, bem como as concepções que eles revelam sobre as finalidades desse ensino, e, ainda, como, nessas práticas, é pensada a formação de leitores literários, função que deve cumprir o ensino de literatura (Zilberman, 2016ZILBERMAN, Regina. A Teoria da Literatura nos bancos escolares. In: CECHINEL, A. (org.). O lugar da Teoria Literária. Florianópolis: Editora da UFSC; Criciúma: Editora da Unesc, 2016. p. 395-417.).

O pressuposto fundamental da nossa pesquisa é o de que o Sistema Nacional de Educação de Moçambique, propondo-se formar para o exercício da cidadania, conforme referido no PCESG, não pode descurar de um trabalho qualificado com a linguagem escrita, no geral, e com o texto literário, em particular. Uma formação para a cidadania pressupõe que a escola possibilite que o aluno se torne um leitor competente, o que passa, inelutavelmente, entre outros aspectos, por envolver os alunos, através de práticas didáctico-pedagógicas de qualidade, com a literatura. Tais práticas requerem e resultam da definição explícita e eficaz das finalidades, enfoques e métodos do ensino da literatura, ao que se acrescenta uma formação sólida e qualificada do professor.

A nossa expectativa é que as constatações desta pesquisa possam, ao fim e ao cabo, suscitar reflexões necessárias para se transformar o ensino de literatura, mais especificamente, na realidade do ensino médio em Moçambique.

Referências

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    Este artigo foi escrito no português de Moçambique, terra natal do primeiro autor.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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