Resumos
Joga-se com a idéia de que os poemas em prosa de Baudelaire relacionam-se agressivamente com As Flores do Mal, ao retomá-las em enunciados narrativos, ainda que sob a alegação da busca de uma nova musicalidade. Institui-se assim um interessante conflito de códigos na poesia baudelairiana. Mais que isso, através da noção de linguagem poética, impõe-se a prosificação à melhor posteridade.
Baudelaire; Poema em prosa; Prosificação; Crise do verso
This paper plays with the idea that Baudelaire’s prose poems bear an aggressive relation to The Flowers of Evil, inasmuch as the former recuperate the latter as narrative propositions, even if under the excuse of a search for a new musicality. An interesting conflict of codes is thus established in Baudelaire’s poetry. More than that, by means of the notion of poetic language prosification imposes itself as the best posterity.
Baudelaire; Prose poem; Prosification; Verse crisis
Loin de signifier tout simplement une relève rhétorique, les poèmes en prose baudelairiens expriment un conflit de codes auquel sera sensible la meilleure postérité, vouée désormais à expérimenter une certaine prose comme la poésie même.
Baudelaire; Poème en prose; Prosification; Crise du vers
As flores sobressaltadas
Leda Tenório da Motta*
RESUMO
Joga-se com a idéia de que os poemas em prosa de Baudelaire relacionam-se agressivamente com As Flores do Mal, ao retomá-las em enunciados narrativos, ainda que sob a alegação da busca de uma nova musicalidade. Institui-se assim um interessante conflito de códigos na poesia baudelairiana. Mais que isso, através da noção de linguagem poética, impõe-se a prosificação à melhor posteridade.
Palavras-chave: Baudelaire; Poema em prosa; Prosificação; Crise do verso
ABSTRACT
This paper plays with the idea that Baudelaires prose poems bear an aggressive relation to The Flowers of Evil, inasmuch as the former recuperate the latter as narrative propositions, even if under the excuse of a search for a new musicality. An interesting conflict of codes is thus established in Baudelaires poetry. More than that, by means of the notion of poetic language prosification imposes itself as the best posterity.
Key words: Baudelaire; Prose poem; Prosification; Verse crisis
RÉSUMÉ
Loin de signifier tout simplement une relève rhétorique, les poèmes en prose baudelairiens expriment un conflit de codes auquel sera sensible la meilleure postérité, vouée désormais à expérimenter une certaine prose comme la poésie même.
Mots-clés: Baudelaire; Poème en prose; Prosification; Crise du vers
Há um sucesso de Proust que é ter empreendido
e levado a cabo uma experiência espiritual.
Mas quão pouco ele nos importa diante deste outro
que é ter, ainda por cima, conseguido o fracasso
desse sucesso e nos ter deixado desse fracasso
o espetáculo perfeito que é sua obra.
Gérard Genette*1
A redondos 150 anos do aparecimento de As Flores do Mal, torna-se fascinante pensar que essa incomparável máquina de poesia é feita para reverter-se numa outra que, não obstante ser outra obra-prima, parece trazer no nome Pequenos Poemas em Prosa a insinuação de algo menor. Trata-se de algo tão mais fascinante quando a essa primeira provocação somar-se uma segunda: no vaivém dos títulos baudelairianos, sempre oscilantes, acaba por associar-se a estes já assim chamados "pequenos poemas" mais uma denominação, O Spleen de Paris , em que encontramos, na contramão da valorização da bela língua francesa pelos espíritos clássicos nacionais, o ruído de uma palavra estrangeira. Uma das mais belas, perturbadoras e decisivas obras poéticas de todos os tempos envolve, assim, e de uma vez só, todos estes acintes: é um inesperado acontecimento em prosa, dá-se por irrelevante e incomoda os ouvidos nacionais, já que o ataque de bile do "spleen" é aqui vertido em inglês.
De todos esses choques, a passagem à prosa é talvez o mais interessante. Se é verdade, como já notaram muitos, que As Flores do Mal e os Pequenos Poemas em Prosa /O Spleen de Paris trazem os mesmos temas, e que todo o dicionário baudelairiano da vida moderna mantém-se nesse processo, por assim dizer, intersemiótico, parece certo também que nos vemos diante de um redobramento do moderno, admitindo-se que se acrescenta, nesse passo, àquele desencantamento do mundo que já era próprio do poeta spleenático, um desencantamento da própria poesia.
É um trajeto que parece ser além do mais concomitante. De fato, sabemos pelos aparatos que acompanham as edições das obras completas baudelairianas, o quanto o artista já trabalha em todas as frentes, ao longo do decênio de 1840, em que já existem peças, em prosa e em verso, que um dia seriam célebres, mas que, por ora, passam por aberrantes. Por outro lado, diante da freqüente recusa de que são objetos as composições que acabariam por formar os Pequenos Poemas em Prosa, conforme o autor as submete aos chefes de redação dos jornais e revistas sendo essa a razão não apenas do que ele diz aí dos jornalistas1 mas das reticências que reencontramos depois, nas edições póstumas, no lugar das partes cortadas , e dado também, o processo judicial que lhe é movido, em 1857, por ocasião da publicação das Flores, quando o livro é desfalcado de vários dos poemas originais , não fica difícil pensar que foram todas essas condições desfavoráveis que terminaram por inviabilizar este álbum que, deixado na gaveta, deixa também a impressão de que vem depois.
Em Passagens, Walter Benjamin anotou que Pierre Louÿs e Leconte de Lisle, juntando-se a uma recepção crítica aversiva, e até para negar-lhe o dom poético, eram dos que acreditavam que As Flores do mal teriam sido escritas a partir de uma primeira versão em prosa.*2 Se, por todos os motivos indicados, jamais nos será dado deslindar completamente a gênese da obra baudelairiana, nem essa precedência é implausível.
Mas, seja qual for a cronologia exata, e saiam As Flores do Mal de Os Pequenos Poemas em Prosa/ O Spleen de Paris ou Os Pequenos Poemas em Prosa/O Spleen de Paris de As Flores do Mal, há relações de parentesco entre os dois livros, que vêm nos falar de mais uma Penélope além da Penélope homérica e da Penélope proustiana às avessas que Benjamin tirou da homérica ,*3 que, passando de um canteiro de obras ao outro, desfaz seu trabalho, costura e descostura, sem que a parte que se desfaz fique devendo à outra, como no caso de Proust, tal como é visto pelo crítico Gerard Genette, aqui em epígrafe.
Vale para Baudelaire o que Genette diz de Proust. De resto, ele não é o único a dizê-lo. Numa elegante leitura desconstrutiva, em que revê a opinião de alguns de nossos contemporâneos que, comparando desfavoravelmente a prosa poética de Baudelaire à perfeição de seus versos, se indignaram contra ela, a crítica norte-americana Barbara Johnson assinalou a flagrante retomada das Flores pelo Pequenos Poemas. Ela cuida particularmente das duas "Invitation au Voyage" que, sob o mesmo título, nos são propostas. Começa por notar que uma delas é toda abstrata, enquanto que a outra é toda concreta. Segue dizendo que a "Invitation" da prosa trocou as brumas de algum país longínquo, que não sabemos qual é, por algo tão terra-a-terra quanto uma paisagem rudemente doméstica, que irrompe no interior de um honesto lar burguês, a que se reduz inesperadamente o lugar utópico: "Um verdadeiro país de Cocanha, garanto, onde tudo é rico, limpo e luzente, como uma bela consciência, como uma magnífica bateria de cozinha..." E termina por observar que Baudelaire usa agora de palavras que parecem reconciliá-lo com aquela moral do trabalho contra a qual sempre clamou: "para lá afluem os tesouros do mundo, como para a casa de um homem laborioso, que fez por merecer, o mundo todo...".*4
Mas há mais conflito entre códigos nesse traslado que o simples recuo do sermo nobilis. Não se trata somente da passagem de objetos mais elevados para outros mais reais. Se continuarmos tomando por referência as duas "Invitation", o que também acontece é que passamos da primeira pessoa para a terceira, e com isso, espetacularmente, para a ancoragem da narração poética no domínio do vulgo, onde nunca pensaríamos encontrar Baudelaire. De fato, num dos poemas fala o eu lírico, o próprio poeta: "Minha doce irmã/ Pensa na manhã/ Em que iremos, numa viagem...".*5 Enquanto que no outro fala a voz geral, o narrador sonha fora de sua própria esfera, a narração vê-se atravessada pelo lugar-comum: "Existe um país de Cocanha, como dizem..."*6
Só aparentemente pequenas, essas são providências importantíssimas, que têm contrapartida na própria letra do texto, e que são de conseqüência sobre o próprio discurso das figuras. Assim, de uma composição a outra, somos também deslocados de algumas belas imagens voluptuosas, com sua liga metafórica, bem captada na tradução de Ivan Junqueira "os sangüíneos poentes", "os canais [...] em seu ouro" *7 para uma miscelânea de objetos "Esses tesouros, esses móveis, esses luxos, essa ordem, esses perfumes, essas flores miraculosas...", que são agora apenas computados, surgindo em dispersão metonímica. Trata-se de um regime de enunciação que é feito para corresponder à voz partida de um sujeito não mais fusional em relação ao seu outro a amada-irmã dos versos como bem viu Bárbara Johnson.*8
Haveria muitas outras viradas, de forma e fundo, a evocar. A exemplo, ainda, da existência de todo um repertório de pensamentos que são quase adágios, menos próprios de um eu lírico fechado em si mesmo que de um sujeito que, embora meditativo, está voltado para o mundo exterior, que toma conta da situação. Vejam-se estes enunciados, escolhidos ao léu: "O poeta goza desse incomparável privilégio de ser ele mesmo e um outro"; "Não é dado a qualquer um mergulhar na multidão"; "Há naturezas puramente contemplativas e inaptas para a ação que, no entanto, sob uma misteriosa impulsão, agem por vezes com rapidez de que se julgariam incapazes."
Mas não estaríamos diante de uma obra baudelairiana maior, malgrado a palavra "menor" que a encabeça, se essas fossem oposições simples, ou simples oposições, simples trocas do muito sublime pelo muito menos digno.
Na verdade, estamos às voltas com um desencantamento encantador! Trata-se de um reencantamento! De um lado, porque aos objetos tornados tangíveis, o poeta da terceira pessoa continua votando os sentimentos mais abstratos, como se pode depreender da maneira como ele encarece a arte culinária nesta sua mais que desconcertante formulação: "um país onde a própria cozinha é poética". De outro, porque o choque de uma tal proferição vale por uma lição de estilo, já que ousar dizer que a cozinha pode ser poética equivale a perguntar o que seria finalmente o poético, e mais que isso, a expor o caráter de código do discurso poético, logo, a condição de viagem retórica destas viagens. Último e mais importante, porque, se quisermos jogar com a ironia, sempre presente ao discurso de Baudelaire, que é um dos maiores defensores do riso e suas vantagens para a literatura,2 o que mais parece saltar à vista no itinerário desse poeta moderno que já não é mais o "bebedor de quintessências", nem o "comedor de ambrosia", mas alguém "aborrecido com a dignidade", como zomba o narrador do pequeno poema em prosa justamente intitulado "Perda de auréola",*9 é um agravamento do senso da falta.
Senão uma espécie de flerte final com o duplo, que termina por fazer dos Pequenos Poemas em Prosa o duplo prosaico de As Flores do Mal. Numa jogada em que tudo se passa como se o fugidio, que era só a metade da arte interessada em ser moderna, como sentenciava Baudelaire em sua célebre definição, que ainda assim seguia prevendo uma parcela de eternidade "a modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável" ,*10 fosse agora tudo o que resta, num mundo ainda mais irremediavelmente baixo, mais engolfado naquela catástrofe permanente" que é o "spleen", segundo Benjamin.
Os assim chamados "pequenos poemas" seriam então um verdadeiro cataclismo. Fato de que o próprio Baudelaire, de algum modo, parece se dar conta. Sem querer tomá-lo ao pé da letra, mas retendo o possível significado de sua própria hesitação, examinemos a famosa dedicatória do livro a Arsène Houssaye. Num primeiro momento, ele atribui aí a façanha à influência de Aloysius Bertrand, entusiasma-se com o modelo de escritura do autor de Gaspard de la nuit. Faz-nos crer que deve a esse predecessor, hoje desconhecido, a idéia de uma "musicalidade" que é "sem ritmo nem rima", a sugestão de "uma prosa lírica" que se adaptaria aos "sobressaltos da consciência"; o desafio de traduzir numa "canção" algo tão "estridente" quanto o barulho citadino do "pregão de um vidraceiro".*11 Poderíamos dizer que, até esse ponto, e tirante a "prosa", tudo nesse frontispício referenda o espírito das Flores.
Mas tudo o que nos é dito a seguir pode levar-nos a pensar que há sim um abalo de proporções no paradoxo dessa "prosa lírica" ou desse canto em prosa. Que lemos a partir daí? Entre modesto e seguro de si, o que tem tudo a ver com sua consciência sempre dividida, o poeta escreve agora que "Assim que comecei o trabalho, percebi não apenas que estava bem longe de meu misterioso e brilhante modelo (em referência a Bertrand) mas ainda que estava fazendo alguma coisa (se isto se pode chamar alguma coisa) de singularmente diferente".
Vendo as coisas 150 anos depois, só podemos confirmar essa suspeita que se insinua nas linhas finais da dédicace. Só podemos pensar que, sob o pretenso amparo de Aloysius Bertrand, tudo o que o poeta, que não precisava de amparo para lançar seus desafios, começava a tramar era algo completamente diferente de tudo o que se fazia até então. A prova é a própria fortuna, o próprio destino dos Pequenos poemas em prosa. Julgando-os por tudo o que vem depois, eles não apenas redefinem a estética imposta à modernidade pelas Flores mas realizam ainda toda uma remarcação do território poético, que, a partir daí, se reinventa em prosa.
De fato, que mais é o despojamento dos versos, cada vez menos hieráticos, cada vez mais brancos e livres, cada vez mais perto do sintagma dos grandes simbolistas, que são os herdeiros diretos de Baudelaire, senão uma espécie complicada de prosa? Que mais é o "ditado automático" dos surrealistas para tomar esse exemplo, até porque os surrealistas tanto levaram a peito poetizar a vida senão uma poesia sem o seu protocolo de poesia, sem as suas marcas formais?3 Já diante disso, pode-se dizer que, das duas reviravoltas que Baudelaire realiza, praticamente ao mesmo tempo, é o convite à prosa que mais conta. Por mais que flanar seja um luxo na era das mercadorias, e por mais que o dândi seja, por definição, um resistente que não renuncia à Beleza, numa sociedade em que os homens uniformizados em ternos escuros formam "um desfile de papa-defuntos",*12 é esse assassinato do verso que abre um veio poético inesgotável para a literatura moderna e muito moderna.
Tanto mais que é em torno dessa prosificação que vai girar um dos textos-manifesto mais perturbadores (e menos conhecidos e de resto jamais traduzidos entre nós) de Mallarmé, Crise de Vers. O poeta que a tradição dos estudos literários vê como eminentemente moderno chama aí a poesia, tal como aprendemos a reconhecê-la a partir de Victor Hugo, que, segundo ele, era "o verso pessoalmente", de mecanismo rígido e pueril".*13 É esse mecanismo que As Flores do Mal engatam e Os Pequenos poemas em prosa desengatam. Para abrasileirar os exemplos, acrescente-se que é desse desengate que ainda estariam falando, um século depois, na qualidade de continuadores de Mallarmé e de ruidosos decretadores do "fim histórico do verso", os poetas concretos brasileiros.
É a poesia em prosa em suma que oferece um reino à literatura. Em retrospecto propositalmente sumário, para que se sinta o peso da influência desses poemas a respeito dos quais Baudelaire se pergunta se seriam alguma coisa..., e para só tomar alguns casos clássicos de figura, que temos?
Lautréamont
Contemporâneo de Baudelaire, Lautréamont escreve e faz publicar Os Cantos de Maldoror em 1869 e os dois tomos de Poésies em 1870, o mesmo ano de sua morte precoce, talvez por suicídio. Estamos bastante perto da saída e da condenação judicial de As Flores do mal. Isso ajuda a entender como esses volumes, que também mudariam o rumo dos acontecimentos ulteriores, passaram completamente despercebidos dos contemporâneos e, por que motivo, este mestre dos surrealistas se autoriza a chamar de "canto" e de "poesia" algo que já não guarda mais nada das marcas externas do poema, nem mesmo as de sua configuração gráfica. No primeiro caso, trata-se de uma série de relatos ficcionais em torno de violências cometidas pela personagem do título, o anti-herói Maldoror, misturados a meditações filosóficas sobre a necessidade do mal, tese que é o que os surrealistas, justamente, mais apreciam em Lautréamont, e os faz equipará-lo a Sade. No segundo caso, de um conjunto de escritos dividido em duas partes, que o próprio autor chama, numa dedicatória, entre outros, a seu professor de Retórica, de "pedaços de prosa". Este é talvez o legado mais instigante de Lautréamont. Ele está aí às voltas com duas operações igualmente surpreendentes. No primeiro tomo, quer desdizer as maldades de Maldoror, de que agora se arrepende, o que o leva a retomar os textos de alguns poetas anteriores, inclusive Baudelaire, de modo a repô-los "no sentido da esperança".*14 No segundo tomo, quer continuar essa reforma moral retrabalhando as máximas dos moralistas antigos, entre os quais Pascal e La Rochefoucauld. Ora, o genial, neste caso, não está só no fato de essas obras emblemáticas, na verdade vertidas em pura prosa, voltarem completamente as costas para tudo aquilo que Roland Barthes chamou "ritual", "equação decorativa" da poesia.*15 Além de não-poemas, elas são também paródia e o que é melhor uma autoparódia, cuja comédia não apenas cancela a reforma moral pelo poeta pretendida, restaurando sua excentricidade surrealista, mas nos leva de volta à descostura.
Rimbaud
Formulador de uma das divisas modernas mais interessantes para a prosperidade de nossas reflexões em torno da prosificação "Um dia, eu sentei a Beleza no colo. E a achei amarga. E a injuriei" ,*16 Rimbaud entra na linha de sucessão de Baudelaire como mais um versejador dotado do senso da destruição. Mas embora aqui também haja canteiros de obras em paralelo, ele vai por etapas. Entra em literatura com versos clássicos virtuosísticos, que faz na escola, assim como quem não quer nada, e que causam uma enorme impressão em Yzambard, o seu professor de Retórica (disciplina e figura aqui outra vez convocadas, o que não deixa de ser sardônico em se tratando de alunos em guerra contra ambas as coisas!). Mas, em meio ao tédio provincial de sua cidadezinha de Charleville, nas Ardenas, no norte da França, logo passa a um exercício mais torturado. Põe-se a trocar essas fiorituras por aquelas composições, de que o "Bateau Ivre" é uma boa ilustração "Como descesse ao léu nos Rios impassíveis/ Não me sentia mais atado aos sirgadores...",*17 que, se mantêm a configuração tipográfica do poema, já se apresentam como seqüências sintagmáticas. São frases que, aliás, só devem sua poesia à violência do vocabulário e às associações insólitas que explodem a sintaxe francesa, ao passo que os arrevesamentos mallarmeanos a implodem, como notou Augusto de Campos.*18 A isso se acrescenta a estranha narração, também ambientada na cidade, ela também brumosa, como a dos Pequenos Poemas em Prosa, de Uma estação no inferno, Iluminações, Os Desertos do Amor, em que reencontramos a mesma tentativa de tirar música da linguagem ordinária e a mesma estrutura capitular do álbum baudelairiano. Em final de percurso, tudo isso é coroado com a correspondência que resta da aventura na África, e que se constitui, ironicamente, na maior parte dos escritos, portanto, novamente, em prosa, deixados pelo poeta. Sem falar que, mesmo sem computar a epistolografia, o primeiro tomo das obras de Rimbaud traduzidas por Ivo Barroso, encimado pela rubrica "prosa poética" Artur Rimbaud- Prosa Poética é mais volumoso que o primeiro Artur Rimbaud- Poesia Completa.
Mallarmé
Figurando entre os que corroem os limites entre a prosa e a poesia para criar o discurso poético moderno está também Mallarmé. Não obstante Um lance de dados jamais abolirá o acaso desponte, desde 1897, como a quintessência da poesia pura, o próprio Mallarmé o chama "poema em prosa", no prefácio que escreve para a revista Cosmópolis, onde é publicado pela primeira vez.*19 Por sua vez, numa nota que figura no apêndice de suas obras completas pela Gallimard-Pléiade, lemos, não sem certo susto, que se trata da "última das obras em prosa de Stéphane Mallarmé".*20 Esses não são os únicos depoimentos que temos sobre o impacto da crise genérica deflagrada por Baudelaire sobre a escritura mallarmeana. Noutro lugar, o mesmo Mallarmé se encarrega, mais que de explicitá-la, de aproveitar-se dessa crise, que de resto chama "exquise" "a literatura sofre aqui uma deliciosa crise, fundamental"*21 para fazer uma de suas mais famosas provocações, ao sentenciar que "o verso está por toda parte na língua onde há ritmo, por toda parte menos nos cartazes (affiches) e na quarta página dos jornais".*22 Além de espicaçar os publicitários através da menção aos anúncios que se afixam, e dos folhetinistas, que tradicionalmente ocupavam os rodapés das quartas páginas, o que ele quer dizer com isso é que a poesia moderna, sem confundir-se com a linguagem ordinária, é um enclave no meio dela. Isso lança luzes sobre uma outra provocação famosa que está no prefácio a Un coup de dés, com a qual se completa a observação sobre a índole de "poema em prosa" de que o lance de dados se reveste: "Hoje ou sem presumir sobre o futuro que sairá daqui, nada ou quase uma arte, reconheçamos, sem mais tardar, que a tentativa participa, imprevistamente, de caros desígnios próprios de nosso tempo, o verso livre e o poema em prosa".*23 Junte-se a isso que temos ainda, nas obras completas de Mallarmé, um álbum intitulado "Poemas em Prosa", com a mesma disposição em capítulos e os mesmos temas profanos de O Spleen de Paris e da prosa de Rimbaud. E se saberá por que, em sua iniciação, o narrador proustiano, impressionado com uma vanguarda de romancistas puros ou de anti-romancistas, que escreve ficção como quem faz poesia, invertendo a manobra, precisou passar pelo poema em prosa!
Proust
Diz o Dictionnaire Marcel Proust que "se dermos à palavra simbolismo o sentido amplo de procura por uma unidade profunda do mundo, Em Busca do Tempo Perdido é uma obra simbolista".*24 Os leitores de Proust sabem que, em suas primeiras tentativas literárias, este aprendiz-de-feiticeiro que é o herói-narrador, tendo resolvido submeter-se ao escrutínio poético do embaixador Norpois, lhe entrega, para exame, uma de suas primeiras e singelas criações. Sabe também que, da maneira mais cruel, Norpois devolve o texto que lhe fora confiado, sem dizer palavra, o que significa sugerir que o tinha reprovado. O que se sabe menos é que se trata de algo escrito dentro da mais pura linha de observância simbolista, isto é: de um pequeno poema em prosa. O que nos deixa pensar que todo o edifício da Recherche, de algum modo, é uma declinação do poema em prosa! Retomemos as recordações do herói proustiano, no ponto em que, desesperado, trata de engolir a crítica muda de Norpois, se convence, mais uma vez, de que não era talhado para a literatura, e menciona, en passant, o gênero baudelairiano de sua composição: "...outrora em Combray, certas impressões muito humildes, ou uma leitura de Bergotte (aqui já mencionado), me haviam posto num estado de devaneio que me tinha parecido de grande valor. Esse estado, meu poema em prosa o refletia. Nenhuma dúvida de que o Sr. de Norpois percebia a miragem totalmente enganadora que era a minha... já que ele estava longe de ser bobo (dupe)".*25 Se esse já é um mau começo de carreira, é de se imaginar a evolução dramática dos acontecimentos, para o herói-narrador de Proust, mundo elegante afora, quando se sabe que, com o poema em prosa, vem uma temática também prosaica, que é feita para complicar ainda mais a sua situação de candidato a escritor, principalmente diante daquela gente de salão, a fauna principal do romance proustiano, que ainda se pauta pelo estilo retrógrado dos beletristas que tão bem diferenciam a prosa e a poesia.
Poe
Para fechar o círculo, convidemos a esta pequena homenagem enviesada às Flores do Mal através dos Pequenos Poemas em Prosa/O Spleen de Paris o talvez maior dos inspiradores de Baudelaire, em todo caso, aquele que, segundo Valéry, Baudelaire salvou do esquecimento, introduzindo-o na literatura européia, e tanto admirou que o plagiou: Edgar Allan Poe.4 Se formos atrás da mais remota referência dessa prosa baudelairiana, que se quer poesia, ela não está em Aloysius Bertrand e seu Gaspard de la Nuit, como o pretende Baudelaire, mas neste estranhíssimo volume de Poe, publicado em 1848, a um ano da morte do escritor, que é Eureka, volume subintitulado A Prose Poem. Baudelaire o traduziu em 1859. Na dedicatória do livro, que vai, em aberto, para todos os eventuais leitores, nas linhas finais, temos que se trata "de uma espécie de arte que se poderia chamar Romance, mas também, se não for pedir demais, Poesia".*26 Poe grafa as duas palavras Romance e Poema com maiúscula, passando assim, debaixo delas, um traço de denominador comum. Já isso, nos remete à advertência de alguns aparatos críticos das edições da obra baudelairiana no sentido de que muitos trechos dos Pequenos Poemas em Prosa podem ser vistos como novelas curtas.*27 Mas há mais instigações a tirar dessa última provocação do mestre de Baudelaire. Dedicado a ninguém menos que ao naturalista e explorador alemão Alexander Von Humboldt, o livro, que é dos menos conhecidos de Poe, constitui-se num pequeno tratado científico, vertido em registro de poema cosmogônico. O título é feito, aliás, para recolher esta outra espécie de paradoxo poetizar a ciência , já que a exclamação arquimediana com que joga é uma alusão à iluminação repentina através da qual o cientista, agindo como um detetive do universo físico decifra uma parte de sua imensa charada. Fala-se aí das origens do cosmos, de sua evolução, do funcionamento da "máquina do mundo". Como Haroldo de Campos, retomando Camões e Carlos Drummond de Andrade, um século e meio depois, em A Máquina do mundo repensada (2000), o autor de Eureka dá conta da ciência de seu tempo. Num comentário pioneiro do volume, Valéry assinalou as relações surpreendentes que se estabelecem entre as formulações de Poe e certas idéias que acabariam posteriormente se firmando no âmbito da Física.*28 É o que confirma Roland Campos, quando nos informa que há ecos de Eureka na teoria relativista.*29
À guisa de conclusão
Conhecendo as íntimas relações que existem entre a melancolia e o mundo captado a frio do olhar científico, essa tristeza que faz pender para baixo, nas iconografias da melancolia, a cabeça de todos os pensativos, também nós podemos encontrar um denominador comum entre a aridez dos tratados científicos sobre os quais Poe se debruça, à beira da morte, e a escritura sem métrica a que Baudelaire se inclina, trabalhando num canteiro de obras adjacente ao das Flores. Tanto mais que, se a cidade esquadrinhada pelo "flâneur" é aquela vista de fora, em sua aparência, como puro movimento, e além do mais, aquela atmosférica, que tem a ver com a materialidade do clima, há um agravamento dessa exterioridade e dessa frieza nos poemas em prosa, em que não apenas a cidade está sempre enevoada mas tudo gira em torno da cidade. De modo, aliás, "obsedante", como diz a dédicace: "É principalmente da freqüentação das cidades enormes, é do cruzamento de suas inúmeras relações que nasce este ideal obsedante".*30
Como depois faria Proust, maníaco do barômetro, Baudelaire está infinitamente às voltas com o tempo que faz. Esse é um elemento que tem tal efeito narcotizante sobre o homem vazio e frágil que acabou se tornando o tema de suas conversas mais vãs, como bem notou Benjamin, a propósito da relação de Baudelaire com as forças cósmicas.*31
Compreende-se assim que ao tédio na bruma de uma Paris nunca antes observada tão de perto com seus bulevares, subúrbios, viradas de esquinas, cafés, águas-furtadas, cemitérios... toda a matéria enfim dos poemas em prosa tivesse que corresponder uma não-poesia ou uma despoesia.
Foi o mesmo Proust quem, numa das mais sagazes leituras críticas já feitas de As Flores do Mal, que encontramos na seção dedicada a Baudelaire de seu Contra Sainte-Beuve, nos mostrou que Baudelaire não hesita em cortar as asas da eloqüência, assim que seus versos começam a voar alto demais. De tal modo que muitos deles, que tinham tudo para chegar ao apogeu, são subitamente freados, e passam a pender para baixo, ele escreve. E continua: "Versos que seu gênio, transportado desde o hemistíquio precedente, se prepara para, com toda a força, preencher em sua gigantesca carreira, e que dão a mais alta idéia da riqueza, da eloqüência, do ilimitado de um gênio [...], são bruscamente paralisados, como se ele não tivesse a força de continuar".*32 Uma ilustração desse decrescendo é para Proust o poema "O Cisne", em que estes versos "... o fio dagua/ Soturno e pobre espelho onde esplendeu outrora/ De tua solidão de viúva a imensa mágoa" são seguidos por estes outros, de fato, muito menos eloqüentes: "Penso em marujos esquecidos numa praia,/Nos párias, nos galés... e em outros mais ainda!"*33 Em seu La Mélancolie au Miroir, Jean Starobinski referenda essa visada crítica proustiana, lembrando que Baudelaire faz aí Andrômaca aparecer curvada sobre o túmulo de Heitor, na posição, portanto, do sujeito melancólico.*34
À luz dessa sacada crítica de Proust, talvez não seja exagerado pensar que a passagem à prosa é tão mais naturalmente baudelairiana quanto encerra um máximo de contenção melancólica, de desolação contida, como convém a um moderno, a quem já não cabe mais arrebatar-se.
Recebido em 25/04/2007
Aprovado em 12/06/2007
Referências bibliográficas
- *1 ("Proust Palimpseste". Figures I. Paris: Seuil, 1966: 67.
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- *4 (JOHNSON, Barbara. "Poetry and its double: Two Invitation au Voyage". Em The critical difference: Essays in the contemporary rhetoric of reading. The Johns Hopkins University Press, 1980: 36-37.
- *6 (BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. O Spleen de Paris. Trad. de Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago, 1995: 58. Grifo meu.
- *7 (BAUDELAIRE, C. As Flores do Mal. Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: 237.
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- *13 (MALLARMÉ, Stéphane. "Crise de Vers". Em Oeuvres Complètes. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1945: 361.
- *15 (BARTHES, Roland. Le Degré Zero de lÉcriture. Paris: Seuil, 1953: 32)
- *16 (RIMBAUD, Arthur. Une saison en enfer. Paris: Gallimard-Pléiade, 1972: 93.
- *17 (RIMBAUD, Arthur. "O Barco Bêbado". Em Artur Rimbaud. Poesia Completa. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topboks, 1995: 203.
- *18 (CAMPOS, Augusto de. Rimbaud Livre. São Paulo: Perspectiva, 1992: 19.
- *24 (REY, Pierre-Louis. "Symbolisme". Em Dictionnaire Marcel Proust. Paris: Honoré Champion 2004: 984.).
- *25 (PROUST, Marcel. "À lOmbre des jeunes filles em fleurs". Em À la Recherche du Temps Perdu. Paris: Gallimard-Pléiade, 1954: 475.
- *26 (POE, Edgar Allan. Prefácio a Eureka- A Prose Poem. Los Angeles: Soon&Moon Press, 1997.
- *28 (VALÉRY, Paul. "Au Sujet dEureka". Em Oeuvres complètes. Paris: Gallimard-Pléiade, 1957: I, 862.
- *29 (CAMPOS, Roland. "A Charada final de Edgar Allan Poe", Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 16/05/2004.
- *32 (PROUST, Marcel. Contra Sainte-Beuve. Notas sobre crítica e literatura. Trad. de Haroldo Ramanzini. São Paulo: Iluminuras, 1988: 91-92.
- *34 (STAROBINSKI, Jean "Le Cygne". Em La Mélancolie au miroir. Trois lectures de Baudelaire. Paris: Juliard, 1989: 56.
- 3 Trato mais detidamente disso em meu ensaio "Palavras, Palavras, Palavras Sobre a Prosa Surrealista" em O Surrealismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.
- 4 Valéry refere-se ao fato de que, no prefácio a sua tradução das Histórias Extraordinárias, Baudelaire introduziu trechos inteiros do Poetic Principle sem créditá-los a Poe. Cf. Paul Valéry, "Situação de Baudelaire" em Variedades. Trad. de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991: 28.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Jan 2008 -
Data do Fascículo
Jun 2007
Histórico
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Aceito
12 Jun 2004 -
Recebido
25 Abr 2007