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Ensino da literatura, ensino literário, ensino emancipador. Apresentação do volume 26, n. 2 de Alea. Estudos Neolatinos

Literature Teaching, Literary Teaching, Emancipatory Teaching. Presentation of Volume 26, Issue 2, of Alea. Estudos Neolatinos

Em 2022, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) convidou um grupo de pesquisadores de diferentes estados e instituições brasileiras para discutir a situação do ensino da literatura no Brasil e elaborar propostas com vistas a ampliar sua presença na educação básica e superior. A ideia era produzir um documento que abrisse essa reflexão na própria associação para imediatamente ampliar o debate em outros espaços, como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a fim de enfrentar conjuntamente o encolhimento e a desfiguração do ensino da literatura e da formação leitora nos currículos da educação básica e superior no país. Em agosto de 2023, os pesquisadores convocados para esse trabalho emitiram uma carta aberta1 1 Disponível em: https://www.abralic.org.br/downloads/2023/carta-associacao-brasileira-de-literatura-comparada.pdf que oferece um valioso diagnóstico da situação. No documento não só se problematiza o papel da literatura na estrutura acadêmica do ensino básico e superior, mas também se chama a uma reflexão em torno da própria ideia de educação que está em jogo quando se aplica um modelo simplificador de ensino, lembrando, com Rita Segato (2018SEGATO, Rita. Contra-pedagogías de la crueldad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2018.), que pedagogias da simplificação reproduzem a colonialidade do ser e do saber.

O volume 26, número 2 de Alea, responde à convocação da carta aberta da ABRALIC com um dossiê dedicado a pensar este tema do ensino da literatura e a partir da literatura. Enfatizamos esse duplo movimento porque é evidente que o problema não se circunscreve somente a pensar um ensino disciplinar da literatura, mas também a pensar isso que os editores convidados para a preparação do dossiê chamam de “um ensino literário”.

Ao postular a possibilidade de subverter a ideia de um “ensino da literatura” por um “ensino literário”, Tiago Pinheiro e Eduardo Veras apontam para uma prática docente que funcione como exercício coletivo do pensamento, como processo crítico de construção de um saber, que não antecede, mas que se afirma no ato dialógico que acontece na aula e, nesse sentido, afirmam que “lidar com o literário exigiria aprender/ensinar a se posicionar com a alteridade, com o outro do saber: com o segredo, o estrangeiro, o debatível, o conflito, a tensão, com o incerto”.

Nessa mesma direção, venho apostando nos últimos tempos nas possibilidades de um ensino que favoreça uma leitura poética do mundo2 2 Na conferência Leer y escribir poéticamente el mundo: por una educación literaria crítica, creativa y Emancipadora, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da Universidade Autónoma de Barcelona em 23/11/2023, atualmente em processo de edição, desenvolvo essa proposta. Resumo disponível em: http://comunidad.psyed.edu.es/news/view/20820/conferencia-con-debate-abierto-%E2%80%9Cleer-y-escribir-poeticamente-el-mundo-por-la-dra-palmero , isto é, um ensino que perturbe os saberes sacralizados, que sacuda a palavra representativa, que estimule o exercício imaginativo e crítico do aluno. Ensinar a “pensar poeticamente” pressupõe uma convocação permanente à dúvida, à reflexão, ao exercício da imaginação; significa substituir a ordem explicativa do mundo, pela ordem emancipadora (Rancière, 2007RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007); é embarcar juntos, aluno e professor, na experiência memorável da leitura, considerando que o ensino literário que postulo precisa funcionar em comunidade, entendido o comunitário não como uma soma de individualidades cujo destino é um “ser em comum”, mas como a busca incessante de um “estar em comum” (Nancy, 1986NANCY, Jean-Luc. A comunidade inoperada. Tradução de Soraya G. Hoepfner. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.). Pensando no modelo de educação estética de Gayatri Spivak (2013SPIVAK, Gayatri. An Aesthetic Education in the Era of Globalization. Massachussets: Harvard University Press, 2013.) e em suas potencialidades transformadoras, poderíamos afirmar que ensinar e aprender a ler poeticamente o mundo é o único modo de instituir uma educação verdadeiramente crítica, criativa e emancipadora.

Essa perspectiva circula nos 12 artigos reunidos no Dossiê e nas valiosas Palavras dos Editores Convidados. Trata-se de instigantes reflexões de pesquisadores e professores de literatura que, movidos pela pergunta “como aprender juntos”, oferecem um amplo panorama das realidades que hoje envolvem o ensino da e a partir da literatura, inclusive em outros espaços que transcendem o Brasil.

Já na seção de Artigos, incluímos quatro textos que circulam por problemas diversos da tradição literária latino-americana e francesa. O primeiro examina como as muitas camadas de vozes do conglomerado cultural latino-americano geraram uma expressão barroca, sendo que as variantes orais marginais desenharam um arquipélago em palimpsesto semovente, radicalizando a proliferação metonímica e o oxímoro. O segundo foca sua atenção na obra do escritor e ilustrador colombiano Luis Carlos Barragán, lendo a singularidade do relato “Biopolítica” no contexto do New Weird contemporâneo. O terceiro problematiza tópicos de grande tradição na cultura ocidental (o monstro, a metamorfose, o corpo) e figuras dicotómicas da cultura do Antropoceno (o humano e o animal; a monstruosidade e a normalidade), articulando esse debate conceitual à análise do romance El animal sobre la piedra (2008), da escritora mexicana Daniela Tarazona. E, fechando a seção, incluímos uma leitura dos poemas em prosa do Livre de Jade (1867), de Judith Gautier.

Para a seção de Entrevistas, transcrevemos o encontro do escritor marroquino Abdellah Taïa com a comunidade da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por ocasião do lançamento de seu terceiro livro traduzido no Brasil, Viver à sua luz (2023). O encontro teve a mediação de Flavia Trocoli, Davi Pimentel e Francisco Renato de Souza, que prepararam um instigante rol de perguntas e conduziram o agradável encontro com o escritor. A memória familiar, o rumor de vozes que povoam seus textos, a escrita autorreferencial, as tensões entre Marrocos e França foram temas que animaram a conversa daquela manhã de junho de 2023. Alea agradece aos entrevistadores; a Sergio Novo, encarregado da gravação; às bolsistas de iniciação científica Débora Bomfim Barros (CNPq) e Marcella Mahara (FAPERJ), que cuidaram da transcrição, e ao escritor Abdellah Taïa, por ceder desinteressadamente os direitos autorais para publicação da entrevista nas páginas da nossa revista.

Fechando o volume, incluímos uma resenha do livro Contra o cânone: arte contemporânea em um mundo sem centro, de Andrea Giuta, que com tradução de Eleonora Frenkel foi publicado pela Editora Nave, de Florianópolis, em 2022.

Externamos nosso agradecimento a toda a equipe de pareceristas que participou no processo de avaliação de originais e especialmente aos Editores Convidados, Prof. Dr. Eduardo Horta Nassif Veras e Prof. Dr. Tiago Guilherme Pinheiro, pela valiosa colaboração na preparação do dossiê.

Da mesma maneira, nosso agradecimento às autoras e aos autores participantes no número, professores e pesquisadores das seguintes instituições brasileiras: Universidade de São Paulo; Universidade Federal de São Paulo; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Universidade Federal do Ceará; Universidade de Brasília; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Universidade Federal do Triângulo Mineiro; Universidade Federal de São João del-Rei; Universidade Estadual de Campinas; Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Tecnológica Federal do Paraná; e professores e pesquisadores das seguintes instituições estrangeiras: Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique); University of Zimbabwe (Zimbabwe); Pontificia Universidad Católica de Valparaíso (Chile); Universidad de Talca (Chile) e Universitat de Barcelona (Espanha).

Aos leitores de Alea, como sempre, desejamos uma agradável e produtiva jornada de leitura.

Referências

  • NANCY, Jean-Luc. A comunidade inoperada Tradução de Soraya G. Hoepfner. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
  • RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007
  • SEGATO, Rita. Contra-pedagogías de la crueldad Buenos Aires: Prometeo Libros, 2018.
  • SPIVAK, Gayatri. An Aesthetic Education in the Era of Globalization Massachussets: Harvard University Press, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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