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Teoria das urgências e o presente da literatura: uma prática de leitura especulativa a partir de Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret

Theory of Urgencies and the Present of Literature: a Speculative Reading Practice Based on Autobiography of an Octopus by Vinciane Despret

Resumo

O artigo busca articular uma teoria literária a partir de Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret. Almeja-se uma leitura da narrativa que conjugue a principal premissa da sua criação, o Antropoceno, a um instrumental elaborado por Bruno Latour e Donna Haraway, tais como a guerra entre Terrestres e Humanos, a simpoiese e a fabulação especulativa. O Antropoceno, neste contexto, assume um caráter de “tempos de urgência”, afeito a relações inovadoras entre os seres e entre as disciplinas e contrário a narrativas escatológicas do fim do mundo. Neste sentido, pretendemos esboçar uma prática teórica que permita a insurgência de paradigmas que valorizem a cognição pelo corpo e pelos sentidos, diminuindo a proeminência do aprendizado ou da leitura tradicionalmente compreendidos como exercícios da razão. Esta prática cooperaria com a concepção de um mundo porvir.

Palavras-chave:
Antropoceno; teoria literária; especulação; ficção; narrativa

Abstract

This article seeks to develop a literary theory based on Vinciane Despret's Autobiography of an Octopus. Our aim is to read the narrative in a way that combines the main premise of its creation, the Anthropocene, with instruments developed by Bruno Latour and Donna Haraway, such as the war between Earthbound and Humans, sympoiesis and speculative fabulation. In this context, the Anthropocene takes on the character of "times of urgency", favourable to innovative relationships between beings and between disciplines and contrary to eschatological narratives of the end of the world. In this sense, we intend to outline a theoretical practice that allows the emergence of paradigms that value cognition through the body and the senses, diminishing the prominence of learning or reading traditionally understood as exercises of reason. This practice would cooperate with the conception of a world to come.

Keywords:
Anthropocene; literary theory; speculation; fiction; narrative

Resumen

Questo articolo cerca di sviluppare una teoria letteraria basata su Autobiografia di un polpo di Vinciane Despret. L'obiettivo è leggere la narrazione in modo da combinare la premessa principale della sua creazione, l'Antropocene, con le categorie pensate da Bruno Latour e Donna Haraway, come la guerra tra Terrestri e Umani, la sympoiesis e la fabulazione speculativa. In questo contesto, l'Antropocene assume il carattere di "tempo dell'urgenza", un tempo di relazioni innovative tra gli esseri e tra le discipline, contrario alle narrazioni escatologiche della fine del mondo. In questo senso, intendiamo delineare una pratica teorica che permetta l'emergere di paradigmi che valorizzino la cognizione attraverso il corpo e i sensi, diminuendo il protagonismo dell'apprendimento e della lettura, tradizionalmente intesi come esercizi di ragione. Questa pratica collaborerebbe con la concezione di un mondo a venire.

Parole chiavi:
Antropocene; teoria letteraria; speculazione; fiction; narrativa

Ficção e simpoiese

Na sétima conferência, “Os estados (da natureza) entre guerra e paz”, de Diante de Gaia, Bruno Latour procura realizar um exercício que talvez possamos chamar de literário. Em toda a conferência há um bocado de especulação imaginativa sobre temas reais, resolutamente materiais. Há também uma leitura atualizada ao novo regime climático de O nomos da terra de Carl Schmitt e há a introdução de duas categorias de viventes que estariam em guerra. Latour (2020LATOUR, Bruno. Os Estados (da Natureza) entre guerra e paz. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryaluna Meyer. São Paulo; Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020. , p. 387) afirma: “Para apresentar isso no estilo de uma ficção geo-histórica, os Humanos que vivem na época do Holoceno estão em conflito com os Terrestres do Antropoceno”.

A insistência dos pensadores que têm se dedicado ao Antropoceno em assumir a narrativa e a imaginação para dar conta da tarefa não nos surpreende. A narrativa que perdurar será a narrativa que prevalecerá sobre as instituições e a moral humanas, como afirmou Dipesh Chakrabarty (2021CHAKRABARTY, Dipesh. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago; London: The University of Chicago Press. 2021., p. 169). Para Donna Haraway (2016HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham; London: Duke University Press, 2016.), os tempos do Antropoceno exigem um pensar responsável e o resultado “prático” deste pensamento, com habilidade de responder ao mundo danificado do Antropoceno, é consequência direta dos termos com os quais pensamos. Importa que pensamentos pensam pensamentos e que estórias contam mundos, explica Haraway. Ela se volta à potência de uma sigla, SF (science fiction, speculative fabulation, string figures, speculative feminism, science fact, so far [Haraway, 2016HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham; London: Duke University Press, 2016., p. 2]) e esclarece: “SF é a narração de estórias e o relato dos fatos, é a modelagem de padrões de mundos e tempos possíveis - mundos semiótico-materiais que despareceram, que permanecem e que ainda estão por vir” (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 60). Haraway clama por um pensamento incessante nesses tempos que ela caracteriza de “tempos de urgência”, “tempos que devem ser pensados [...] que precisam de estórias” (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 70).

Também Latour recorre à narrativa e à ficção, evocando este estranho conceito, “ficção geo-histórica”. Haraway caracteriza a pulsão latouriana pelo relato (de tipo literário) como a compreensão apaixonada da “necessidade de mudar a estória, de aprender a narrar - a pensar -, de algum modo, para além dos contos fálicos dos humanos na História” (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 74). Ao enunciar a ficção como prerrogativa do seu trabalho - Latour chamaria de cientificção (scientifiction) aquilo que Haraway denomina fabulação especulativa (p. 77) -, Latour afirma a necessidade do suplemento imaginativo para realização (ainda que inconclusiva) da melhor prática científica.

Esta convicção nos remete a uma outra pensadora, dedicada ao que talvez possamos chamar - de forma a admitir o jogo de palavras - os confins do mundo, Gayatri Spivak (2003SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Death of a Discipline. New York: Columbia University Press, 2003.). É seu, afinal, o clamor por um estudo da literatura que suplemente as ciências sociais. É, ainda, uma formulação sua que parece vincular a literatura às práticas filosóficas de Latour e Haraway. No livro que discute, justamente, a literatura comparada como treino de imaginação para uma “performance do outro”, Spivak (2003, p. 49) afirma que “a literatura não pode prever nada, mas talvez possa prefigurar algo”1 1 No original: “Literature cannot predict, but it may prefigure”. Tradução minha. .

A proposta de Latour, que chamei de “literária” compartilharia, então, de certos pressupostos do texto literário, sobretudo sua (in)verificabilidade, especialmente se colocado vis a vis uma concepção dogmática de ciência. A necessidade de contar estórias, além de convocar todos os elementos necessários para que elas aconteçam - personagens, enredos, perspectivas -, aproximaria os textos científicos e filosóficos da ficção, ou do modo ficcional. Tenho certeza que nem Latour nem Haraway sentiriam qualquer embaraço diante desta constatação. É a própria Haraway, aliás, quem defende uma certa promiscuidade entre as (in)disciplinas e a simpoiese, o “fazer-com”, como método de crescimento, seja no sentido metafórico ou literal. Ficar com o problema, de Haraway, é povoado de relatos de pesquisas biológicas possibilitados pela cooperação entre campos e disciplinas diversos. Os dois trabalhos que cita como exemplos, nas suas palavras,

são acompanhados por relatos que envolvem colegas preocupados com conferências; críticos intransigentes, desabituados a tantos atravessamos de limites disciplinares e de evidências em um só artigo; editores inicialmente entusiasmados, mas logo hesitantes... Essas estórias não são incomuns quando tratamos de sínteses e proposições arriscadas e gerativas. [...] Este é o momento em que as artes para viver em um planeta devastado demandam pensamento e ação simpoiéticos (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 124-5).

“Simpoiese”, termo que surge no final da década de 1990 “para designar ‘sistemas produzidos coletivamente que não têm limites espaciais ou temporais autodefinidos’” (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 115), contrasta com o conceito de autopoiese e oferece um novo parâmetro para o estudo da evolução. Para Haraway, “simpoiese” não propõe somente uma abordagem para pensar os seres como seres que se formam (biologicamente) na relação uns com os outros. “Simpoiese” é também o nome apropriado para um determinado modo de pensar e de conhecer cuja existência depende de associações, muitas delas inusitadas e sem garantias de benefícios para as partes.

O enredamento entre ciências e arte parece estar no sulco da expressão latouriana “ficção geo-histórica”, que surge a partir da necessidade de relatar, através de um modelo ficcional, o presente do Antropoceno. A guerra que descreve Latour já está acontecendo porque o Antropoceno e a urgência climática são o nosso presente. Nestes tempos, os povos se dividem entre Humanos e Terrestres a partir das relações que estabelecem. Os Terrestres, em contraste com os Humanos, são aqueles que aceitam viver em um território entendido como “a série de outros agentes com os quais ele deve compor e com os quais precisa sobreviver no longo prazo” (LATOUR, 2020LATOUR, Bruno. Os Estados (da Natureza) entre guerra e paz. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryaluna Meyer. São Paulo; Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020. , p. 393). Latour e Haraway estão evocando modos de habitar, ou de criar mundos, simpoieticamente com outros seres, com o uso dos recursos que forem necessários.

Narração especulativa

Em determinado ponto de Autobiografia de um polvo, Sarah Buono, a cientista da Associação de Therolinguística enviada à coletividade associada aos polvos em Nápoles, explica uma mudança radical no ativismo da comunidade resumido na vontade “de compor com o mundo tal como ele se desenrola, não com o mundo tal como desejaríamos que fosse” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 141). A partir deste momento, a comunidade, que mantinha rituais de convivência com polvos mesmo na sua ausência, em tempos nos quais eles teriam sido quase que completamente exterminados, decide por uma mudança. Se, inicialmente, não intervinha no repovoamento dos oceanos, preservando os costumes entre seus membros e os antigos polvos como modo de alimentar a crença na sua volta, cultivar a calorosa recepção que receberiam e de conservar a memória da sua existência, no momento em que Sarah escreve aos seus colegas, a comunidade havia decidido por “ajudar os polvos a retornar” (p. 141). O plano consistia em coletar alguns polvos e mantê-los em cativeiro até que pudessem retomar seus velhos hábitos de vida - aqueles conhecidos e parcialmente praticados pelos membros “sim” da comunidade. Era um projeto de ressocialização dos polvos, violentados e traumatizados pela ameaça contínua de morte. Os tempos de constrangimento e brutalidade são os tempos do Antropoceno, e a narrativa ilustra bem modos de criação de um mundo simpoiético, interespecífico.

“Autobiografia de um polvo” faz parte do livro homônimo escrito por Vinciane Despret, publicado no original francês em 2021 e sua tradução no Brasil, em 2022. O subtítulo do livro, “e outras narrativas de antecipação”, se refere ao consórcio entre o texto e narrativas futurísticas e seu flerte com a ficção científica. “Therolínguística” é um termo explicado em um glossário que antecede as três estórias que compõem Autobiografia. Ali, lemos que Therolinguística

designa o ramo da linguística voltado ao estudo e à tradução das produções escritas por animais (e posteriormente pelas plantas) [...] Encontramos o primeiro registro do termo ‘therolinguística’ num texto de antecipação de Ursula K. Le Guin: “A autora das sementes de acácia e outras passagens da Revista da Associação de Therolinguística” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 10-11).

De fato, o relato de Despret se aproxima da ficção científica não só literalmente, através da associação com a obra de Le Guin, mas, sobretudo, por sua persistência na ficção e na ciência. O texto, neste sentido, é repleto de notas explicativas e referências, além de estabelecer um diálogo muito próximo com Ficar com o problema.

No último capítulo deste livro, Haraway apresenta o resultado - as estórias das Camilles - da sua participação em uma oficina que aconteceu em 2013, “no âmbito do colóquio sobre gestes spéculatifs organizado por Isabelle Stengers” (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 243). Haraway explica que, durante a oficina, ela deveria desenvolver uma estória juntamente com um grupo de colegas - uma delas era Vinciane Despret - mas que o trabalho se estendeu ao longo do tempo, em instâncias de colaboração entre os membros do grupo, entre eles e outras pessoas e sozinhos. “Minhas memórias dessa oficina consistem num lançamento ativo de fios, a partir de estórias contínuas e compartilhadas e por essas estórias. Camille, Donna, Vinciane e Fabrizio se trouxeram à copresença: só nos tornamos capazes mutuamente”, afirma Haraway (2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 244). Nessas estórias das Comunidades do Composto, a nova criança - a cria do composto - vem ao mundo como simbionte de algum animal em extinção, escolhido pela pessoa que gesta. Os laços de parentesco são profundamente alterados em prol do reequilíbrio da vida na Terra.2 2 Cada criança deve ter, ao menos, três progenitores, sem nenhuma demanda por uma performance de gênero específica para cada. As relações de parentesco são profundamente alteradas também porque progenitores e outros parentes podem ser incorporados em momentos “significativos de transição. Esses relacionamentos instauram compromissos fortes e vitalícios [...] Nesses dispersos mundos emergentes, fazer parentes como um meio de reduzir a quantidade de seres humanos e suas demandas sobre a Terra e, ao mesmo tempo, contribuir para o florescimento de pessoas e outros bichos, implicava intensas energias e paixões” (Haraway, 2023, p. 249). “O trabalho dessas comunidades, portanto, era e é a feitura intencional de parentesco” (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 249). “Autobiografia de um polvo” parte destas premissas, deste mundo criado em uma oficina chamada “Narration Spéculative”. Haraway (2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 246) afirma que as Crias do Composto nos convidam “à ficção sim, do gênero da simpoiese e da sinctonia - o encontro de seres terrenos”.

No mundo do relato de Despret, a Therolinguística de Le Guin é uma realidade, assim como o são as comunidades organizadas por meio de novas noções de parentesco e gênero e da simbiose entre humanos e outros bichos. A narrativa é disposta como um relatório formulado pela pesquisadora Christina Ventin, seguido por e-mails escritos por Sarah Buono à Christina e à Associação. O relatório de Christina nos apresenta a questão que coloca a narrativa em movimento, qual seja, os fragmentos escritos por um polvo comum encontrados por pescadores nas Calanques de Cassis (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 81). O relatório, ele mesmo já utilizando a narração, conta as descobertas arqueológicas mais recentes sobre os polvos, a própria história da Associação com a escrita animal e o impacto do aparecimento da escrita entre os polvos.

O jogo

Os polvos, os pesquisadores já sabiam (é, neste momento, sobretudo, que o relato se enche de referências a pesquisas reais), são animais que dispõem de uma gama imensa de habilidades de simulação e expressão, ou seja, de possibilidades de comunicação com o mundo externo, manifestando, através das diferentes cores que assumem, por exemplo, suas emoções. “A conversação com o meio se enriquece, os polvos se divertem até não poder mais, o que se traduz entre eles por esse ‘tagarelar cromático contínuo’ ... ‘uma linguagem visual’” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 90). As aptidões dos polvos para a brincadeira também eram motivo de interesse dos therolinguistas, uma vez que “consideraram o jogo um possível precursor do ato literário” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 91).

Se a perspectiva de uma “linguagem animal” não nos surpreende, já que a tradição racional e filosófica do humano há tempos fez algumas concessões para a possibilidade de certos tipos de comunicação entre os animais e entre eles e os humanos, o que é indicado no relato de Despret supera, em muito, nossa filosofia. Não só pelos aforismos escritos por um polvo sobre superfícies de cerâmica. Mas a reunião de dados científicos enxertados no relato, que lhe dão forma e possibilitam, efetivamente, o salto para a ficção é algo que nos desloca a formas de relações com os animais - com os polvos, neste caso - completamente inovadoras.

Acostumados ao domínio da esfera da criação como exclusividade humana (ou à ideia heideggeriana de que os animais seriam privados de mundo), a narrativa de Despret nos permite imaginar um campo literário verdadeiramente expandido, tirando dos humanos o protagonismo do fazer poético. Ao comentar os jogos dos polvos, Christina (e Despret e o cientistas mencionados por ela) afirma(m) que cada um remete “a um ato de criação. Transformam os animais não só em grandes artistas, mas também em dramaturgos talentosos” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 93). Ou seja, não é, exatamente, o conteúdo ficcional da narrativa de Despret - o texto escrito por um polvo encontrado pelos pescadores - o que faria dos polvos criadores ou animais dotados para a literatura. Mas é a disponibilidade dos polvos ao jogo, habilidade cientificamente comprovada, digamos, o que, de certa forma, insere esses animais no campo literário.

O “jogo”, sabemos, tem sido chamado a participar da teoria da literatura (da leitura e da escrita) desde, pelo menos, as contribuições de Jacques Derrida e Roland Barthes no final da década de 1960 e início da de 1970. Da obra ao texto (1971) é especialmente profícuo neste sentido. Nele, Barthes questiona a obra, “objeto de consumo”, e defende o texto que “decanta a obra (se ela permitir) do seu consumo e a recolhe como jogo, trabalho, produção, prática” (Barthes, 2012BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012. p. 65-75., p. 73). A leitura se torna prática significante tanto quanto a escrita, ou, ainda, entre as duas práticas a distância é diminuída até anular-se. Neste sentido, ler é “jogar” com o texto, entendido em Barthes (2012BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012. p. 65-75., p. 73)

no sentido polissêmico do termo [...] o leitor, ele joga duas vezes: joga com o Texto (sentido lúdico), busca uma prática que o re-produza; mas [...] ele joga o jogo de representar o Texto; não se pode esquecer de que jouer (além de ter um sentido lúdico: jogar, brincar; e um sentido cênico: representar) é também um termo musical (tocar); a história da música (como prática, não como arte) é, aliás, paralela à do Texto.

É evidente que esta concepção de leitura enquanto jogo só pode levar ao gozo. Se no relatório de Christina, o jogo dos polvos é “manifestação de uma relação livre e criadora com o mundo e as coisas” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 94), se o jogo é fonte de diversão para os polvos, o jogo do texto barthesiano, ou seja, o jogo implicado na ideia de literatura de Barthes, transforma a literatura em escritura, ou em uma prática simpoiética entre leitor e texto, criadora de mundos, além de prazer.

O fator prazer, inclusive, pode nos remeter à ideia de distração, fundamentalmente contrária ao “domínio” ou ao sujeito sempre consciente, do controle e da ação. Barthes, de fato, propõe que a coexistência de sentidos de um texto (oposta à ideia de um sentido central e dominante) faria do leitor um “sujeito desocupado”, um “sujeito vazio” que ao deambular capta aquilo que é “múltiplo, irredutível, proveniente de substâncias e de planos heterogêneos, destacados: luzes, cores, vegetação, calor, ar, explosões tênues de ruídos, gritos agudos de pássaros ...” (Barthes, 2012BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012. p. 65-75., p. 70). Esse processo de captura, podemos dizer, chega a insinuar que aquilo que é “captado” é, efetivamente, o leitor, o sujeito. Barthes escreve: “esse sujeito bastante vazio passeia (foi o que aconteceu ao autor destas linhas, e foi aí que ele captou uma ideia viva do Texto)”. Sua sintaxe é, ainda, aquela do sujeito que executa a ação, captura a ideia. Mas a ideia do Texto é “viva” e é essa vida atribuída à coisa somada ao prazer da captura, por assim dizer, que nos permite aproximar esse processo da linguagem das sim-crianças que Ulisses explica à Sarah e que ela relata em um dos seus e-mails à Christina:

Nas sim-língua dos Ulisses [...] “o sujeito é apenas o destinatário passageiro de um verbo que o agarra. Todo sujeito encontra-se em devir, não dentro de seu próprio agir, mas em uma multiplicidade de ações que o transbordam” [...] Logo, na sim-língua, reivindicar o fato de ter uma ideia é afirmar que algo fez você pensar - “uma ideia me veio” ou “me veio à mente” - e [...] não se diz “eu vejo”, mas “algo se deixa ver” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 107).

As sim-crianças de Autobiografia de um polvo são aquelas, como as crias do composto, que vivem em simbiose com um animal, um polvo. Como eles, essas crianças são capazes de perceber através de seus membros, braços e pernas, sugerindo um sistema nervoso bem menos central e centrado no cérebro (ou na mente) do que aquele dos humanos convencionais. Como suas habilidades são prestigiadas pela comunidade, as sim-crianças são encorajadas a aperfeiçoar seus dons, sendo ensinadas a “enxergar com a pele” e a “provar a forma das coisas”, aprendendo uma “aritmética palpável”, ou, ainda, “a distinguir as espécies de árvores, como fazia o cego Jacques Lusseyran, apenas pelo ruído de sua sombra” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 113-4). Também, aqui, nesta “formação/educação pelos sentidos”, parece podermos aludir a Barthes e sua sugestão de leitura semelfactiva, na qual as impressões do mundo externo (“o que ele capta é múltiplo, irredutível, proveniente de substâncias e de planos heterogêneos, destacados: luzes, cores, vegetação, calor, ar...”) se referem a uma experiência imediata e única, mediada pelos sentidos.

Sarah Buono está visitando a comunidade dos Ulisses como pesquisadora da Associação de Therolinguística. Ela tem a tarefa de interpretar o texto encontrado pelos pescadores e traduzido pelos linguistas, mas cujo significado lhes escapa. Convivendo com as sim-crianças, que são aquelas equipadas com as habilidades necessárias para conhecer suficientemente os polvos a fim de poder “jogar” com seu texto, Sarah aprende, efetivamente, a aprender com os sentidos. No último e-mail enviado à Christina, ela explica que decide ficar na comunidade. O convite havia sido feito pelo Ulisses que a ciceroneou durante sua estadia:

Aprenda a conhecer o mar, aprenda a prová-lo com sua pele, seus músculos, seus olhos, sua boca, aprenda o sal, a espuma e as plantas marinhas, as correntes quentes e frias, aprenda a água da noite e aquela depois das tempestades, aprenda o gosto dos corpos que vivem aqui e daqueles que se decompõem e se alimentam de outros seres, aprenda também os peixes que os fazer morrer, sinta o gosto de tudo isso e agradeça, na raiva e na alegria. Você nos ajudará (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 147).

Uma questão estética

Se estiver correta em relação à aproximação entre Barthes e “Autobiografia”, poderemos afirmar que a escrita e a leitura conformam uma experiência estética, uma experiência dos sentidos, com os sentidos, sobre e com o mundo. Uma experiência que começa no mundo e termina nele, ao modo dos polvos, ou como as sim-crianças, que escrevem e leem, que jogam, portanto, não somente com seus cérebros, mas com seus braços e pernas, reais e imaginários, com a boca e com todo o corpo. Tudo, enfim, que pode ser percebido na pluralidade estereográfica dos significantes (Barthes, 2012, p. 70) deve requisitar o corpo todo e todos os canais de comunicação entre nosso interior e o exterior.

Para pensar a experiência estética, gostaria de apelar brevemente ao texto de Susan Buck-Morss, “Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderado”, porque nele, Buck-Morss traça um percurso interessante da “estética” por meio da sua consciência feminista. Acredito que o que Buck-Morss é capaz de ver no sequestro da palavra “estética” por uma Modernidade cujo fruto principal é um sujeito humano desprovido dos sentidos enriquece bastante a discussão sobre o Antropoceno e o Capitaloceno3 3 Para Jason W. Moore (2016, p. 6), “Capitaloceno” se refere ao “padrão histórico básico contemporâneo da história mundial enquanto ‘Era do Capital’ - e era do capitalismo como uma ecologia mundial de poder, capital e natureza”. e fortalece as alternativas que Haraway e Despret oferecem.

Antes, entretanto, seria apropriado abordar o ensaio de Benjamin, valorizando algumas daquelas partes - que o olhar treinado por Buck-Morss faz tornarem-se tantas - em que o aparato sensorial do corpo é evocado. O texto é conhecido, mas nossa ideia é inventariar brevemente as atenções dadas, ao longo do ensaio, aos sentidos e ao corpo e notar como a revolução parece estar sugerida justamente a partir deles.

“A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, de 1936, dedica-se a uma nova sensibilidade que surgia no mundo moderno capitalista. Com a fotografia, explica Benjamin, “a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes”, que passam a depender do olho. Com a técnica da fotografia e com um órgão que “apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral” (Benjamin, 1996BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 165-196., p. 167).

A técnica gera um novo modo pelo qual a percepção humana se organiza. Esta nova percepção acompanha um novo modo de existência, seguindo a premissa marxista do autor. A obra de arte se desprende da esfera da autenticidade; a tradição é abalada. Neste abalo, reside o potencial revolucionário de uma arte como o cinema.

O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas - é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido (Benjamin, 1996BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 165-196., p. 174).

O dadaísmo havia antecipado o cinema pelo choque e

colocou de novo em circulação a fórmula básica da percepção onírica, que descreve ao mesmo tempo o lado tátil da percepção artística: tudo o que é percebido e tem caráter sensível é algo que nos atinge. Com isso, favoreceu a demanda pelo cinema, cujo valor de distração é fundamentalmente de ordem tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos, que golpeiam intermitentemente o espectador. (Benjamin, 1996BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 165-196., p. 191-192).

(Qualquer semelhança com o leitor vazio de Barthes não me parece mera coincidência uma vez que ambos os pensadores contestam a autoridade de uma “obra” afeita à burguesia e à tradição.)

Benjamin termina com uma nota pessimista, sobre a estetização da política pelo fascismo. À qual, completa, “o comunismo reponde com a politização da arte” (Benjamin, 1996BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 165-196., p. 196). Qual poderia ser essa resposta?

Para Buck-Morss, que se diz assombrada pelo último parágrafo do texto, Benjamin pede à arte, à “politização da arte”, que desfaça “a alienação do aparato sensorial do corpo,” que restaure “o poder instintual dos sentidos corporais humanos em nome da autopreservação da humanidade, e isto, não através do rechaço às novas tecnologias, mas pela passagem por elas” (Buck-Morss, 1996BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderad”. Travessia, n. 33. UFSC - Ilha de Santa Catarina, p. 11-41, ago-dez. 1996., p. 12). A regeneração do poder dos sentidos e a reabilitação do corpo, para nós, é um modo de escapar desta espécie de drama humano, que o condenou ao isolamento, à diferenciação e ao distanciamento da chamada natureza. Não seria esta convicção a maior responsável pelos tempos urgentes do Antropoceno?

Etimologicamente, explica Buck-Morss (1996BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderad”. Travessia, n. 33. UFSC - Ilha de Santa Catarina, p. 11-41, ago-dez. 1996., p. 13-14), “estética” provém de “aistitikos” que “é a palavra grega antiga para aquilo que é ‘perceptivo através do tato’. [...] Aistisis é a experiência sensorial da percepção.” Assim, diz, “o campo original da estética não é a arte mas a realidade - a natureza corpórea, material. [...] É uma forma de cognição, alcançada via gosto, audição, visão, olfato - todo o aparato sensorial do corpo”. Como “os terminais de todos os sentidos ... localizam-se na superfície do corpo”, eles estão na “fronteira que media o interior e o exterior”.

Pensar a estética em relação ao mundo material e ao corpo, precisamente a partir da etimologia da palavra e, assim, do seu contexto de surgimento, coloca o uso contemporâneo de “estética” em xeque, recuperando a história da vontade moderna de abandono de uma suposta condição natural em favor de uma educação racional. Distanciar-se do corpo e das suas capacidades de interação com o mundo é, em outras palavras, uma tentativa de preservação de uma presumida condição de superioridade, autonomia e domínio. É a investida no humano enquanto um organismo autopoiético, “autoprodutor” e autossuficiente. Nas palavras de Buck-Morss (1996BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderad”. Travessia, n. 33. UFSC - Ilha de Santa Catarina, p. 11-41, ago-dez. 1996., p. 18-19), por outro lado, “os sentidos são efeitos do sistema nervoso” e “o sistema nervoso não se cinge aos limites do corpo. O circuito que vai da percepção sensorial à resposta motora começa e acaba no mundo”.

Talvez os humanos do Antropoceno possam desfrutar de uma politização da arte, do modo como a compreende Buck-Morss, e tornarem-se os Terrestres de Latour. Desfazer a alienação do aparato sensorial do corpo, afinal, é aquilo pelo que parece clamar o pensador ao evocar a figura do cientista terrestre que compõe um território com outros agentes. O cientista de Latour está chafurdado no mundo - ele não é mais um terceiro, neutro, árbitro e dono da última palavra (ou da verdade). “Eles (os cientistas) formam um povo” (Latour, 2020LATOUR, Bruno. Os Estados (da Natureza) entre guerra e paz. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryaluna Meyer. São Paulo; Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020. , p. 393), estabelecem relações.

Se seu território não conhece uma fronteira nacional, não é porque ele tem acesso ao universal, e sim porque não cessa de trazer novos agentes como partes intervenientes da subsistência de outros agentes. [...] Eles não hesitam em desenhar a forma do mundo, o nomos, o cosmos em que preferem viver (Latour, 2020LATOUR, Bruno. Os Estados (da Natureza) entre guerra e paz. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryaluna Meyer. São Paulo; Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020. , p. 394).

O cientista terrestre, então, está a uma distância enorme do “‘homem’ moderno” e sua “ilusão de controle total. O fato de se poder imaginar o que não é se extrapola na fantasia de que se pode (re)criar o mundo conformemente a um plano (este grau de controle é impossível, por exemplo, na criação de uma criança viva, que respira” (Buck-Morss, 1996BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderad”. Travessia, n. 33. UFSC - Ilha de Santa Catarina, p. 11-41, ago-dez. 1996., p. 15). Ao exemplo da criança de Buck-Morss, somemos o do planeta e a consciência - devastadora para muitos - de que ele não está sob controle e de que não há (re)criação possível (dentro de processos individualistas e especistas, de domínio e de governo) da Terra, ou melhor, de Gaia.

A recuperação dos sentidos, tendo em vista a relação mundo - corpo - mundo, tal como Buck-Morss conjectura a partir de Benjamin, também nos remete aos polvos de Christina, Sarah, Despret e à comunidade dos Ulisses. São as crianças “superdotadas” “sim” que têm acesso a uma linguagem inovadora, capaz de atribuir agência ao “objeto” e interagir (e agir) com o mundo em modos ainda ignotos para nós. É interessante que as crianças-sim de Autobiografia sejam, precisamente, aquelas que no século XX padeceram com o isolamento e a incompreensão que o “autismo” lhes imputava. “Foi somente no decorrer do século XXI que se passou a considerar que essas crianças diferentes experimentavam outra maneira de ser humano” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 119). Sarah cita, em um e-mail, a bela definição de Mel Baggs sobre sua “linguagem original”: “esta não consistia em palavras nem mesmo em símbolos visuais, mas ‘em uma conversação contínua com cada aspecto do que me cerca’” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 119).4 4 Mel Baggs gravou um vídeo, “In my language”, que se encontra disponível no Youtube. A “linguagem original” de Baggs, aquela das sim-crianças com os polvos e com “cada aspecto que [as] cerca”, funciona como um paradigma da recuperação da estética enquanto experiência sensorial, reabilitando a capacidade do corpo de “pensar”. O sistema nervoso se expande, as habilidades latentes dos humanos se revigoram. Assim, Autobiografia de um polvo não utiliza de artifícios enfadonhamente pedagógicos para defender a criação de um mundo no qual humanos e bichos vivam simpoieticamente em relação. Os humanos podem e se tornam Terrestres, abandonando os lugares de vilãos que assumiriam em narrativas demasiadamente confiantes nos significados de Antropoceno e Capitaloceno e nas escatologias que seguem.

A literatura como antecipação

Juliana Fausto (2013FAUSTO, Juliana. Terranos e poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Revista Landa, v. 2, n. 1. p. 165-181, 2013. ) entende que os Terrestres de Latour (que ela chama de “Terranos”) conformam um povo que ainda não existe, mas que é o único capaz de (sobre)viver no Antropoceno. Neste sentido, compreendemos que a narrativa especulativa de Despret é uma antecipação, precisamente o “gênero literário” evocado no título do livro. Uma nota do redator e da tradutora explicam que “‘antecipação’ é um termo empregado no mercado literário francófono para se referir de maneira geral a narrativas ambientadas no futuro, próximo ou distante” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 11). Tendo em vista o que foi dito até agora, gostaria de pensar que “narrativas de antecipação” se referem a um futuro quase presente, a um presente alternativo, ou a várias alternativas de presente. As narrativas deste tipo conseguiriam responder afirmativamente aos presentes evocados pelo Antropoceno, conjurando o povo dos Terrestres.

Dizíamos, com Latour, que este era um povo localizado, pertencente a um território, com o qual se enredava. A natureza, neste território, não é “natureza morta”, não é paisagem. Ela não existe tal como pensada pelos Modernos (os Humanos), os causadores do Antropoceno. Ela não é “Natureza”, é Gaia. A ficção que evoca Latour também para Fausto se aproxima da literatura. A pensadora costura esta vizinhança com Deleuze (2011DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012. ) para quem o fim último da literatura é a criação de um povo que falta, o povo de Gaia.

Fausto adverte, entretanto, que

a entrada de agências não-humanas no povo de Gaia põe uma questão complicada, qual seja, a dos discursos desses povos. Como ouvir/compreender vozes não-humanas, nós que passamos tanto tempo convencidos de elas sequer existiam (ou que, se existiam, eram desprovidas de sentido, de mundo, já que esse era um só? Como compor politicamente com elas? (Fausto, 2013FAUSTO, Juliana. Terranos e poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Revista Landa, v. 2, n. 1. p. 165-181, 2013. , p. 174)

A resposta que ela mesma dá é a possibilidade de que “os discursos não-humanos sejam trazidos ao centro da política por meio da literatura” (p. 175). A partir da leitura de Poetry in the Making, de Ted Hughes, Fausto compreende um poeta atravessado por afetos não-humanos e na sua poesia um “canal de comunicação intermundos” (p. 175). Em The Thought-Fox, ela encontra “um modelo de devir-animal poético” (p. 176) e conclui: “é o próprio processo de escrita que tem uma qualidade raposa, é o pensamento ele mesmo que é raposa” (p. 175-176). Apesar de uma análise muito breve, as intuições de Fausto são instigantes. Já sabemos que o processo de devir, de fato, não é uma transformação, mas algo como a criação de uma “zona de vizinhança”. Nas palavras de Deleuze e Guattari (2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012. , p. 75-76),

os devires-animais são, antes, de uma outra potência, pois eles não têm sua realidade no animal que se imitaria ou ao qual se corresponderia, mas em si mesmos, naquilo que nos toma de repente e nos faz devir, uma vizinhança, uma indiscernibilidade, que extrai do animal algo de comum, muito mais do que qualquer domestificação, qualquer utilização, qualquer imitação: “a Besta”.

Portanto, o devir-animal do poeta ou do poema faria “uma triangulação entre mundos” (Fausto, 2013FAUSTO, Juliana. Terranos e poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Revista Landa, v. 2, n. 1. p. 165-181, 2013. , p. 177), criando um espaço intersticial através da literatura. A literatura assumiria um caráter de refúgio diante dos discursos, pelo menos aqueles mais dogmáticos, da razão e da ciência, que “ativamente procuraram privar os não-humanos de discurso”, segundo Fausto (2013FAUSTO, Juliana. Terranos e poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Revista Landa, v. 2, n. 1. p. 165-181, 2013. , p. 174).

Se é difícil discordar com as linhas gerais dessa afirmação, vemos, por outro lado, que ela se complica diante das práticas científicas mencionadas por Donna Haraway, diante do seu pensamento mesmo, ou daquele do próprio Latour, e também em obras como O que diriam os animais?, da mesma Vinciane Despret. Autobiografia de um polvo, além disso, não foi escrito por uma literata e uma classificação dogmática e excludente - ou literatura ou ciência - é, no mínimo, desjeitosa, se quisermos ser honestas com o texto. De qualquer forma, a fuga à literatura, ou ao literário, se torna não condição, mas uma possibilidade interessante de especulação.

Esta também parece ser a posição de Elizabeth Costello, a célebre escritora de J.M. Coetzee, protagonista da obra de mesmo nome.5 5 Em Elizabeth Costello, de 1999, Costello disserta sobre assuntos aos quais Coetzee já havia se dedicado, repetindo argumentos que já haviam, inclusive, sido publicados pelo escritor. Na seção “Agradecimentos”, ao final do livro, lemos, por exemplo: “Uma versão anterior da Palestra 1 apareceu sob o título ‘O que é o realismo?’ na revista Salmagundi n. 114-5 (1997)” ou “Uma versão anterior da Palestra 2 apareceu como ‘O romance na África’, Occasional Paper o. 17 do Townsend Center for the Humanities, Universidade da Califórnia em Berkeley, 1999” (Coetzee, 2004, p. 253). Que tipo de romance ou que tipo de ficção se constitui de conferências proferidas pelo autor? Ou como se chama a ficção que fala de tudo o que de fato aconteceu? Pelo menos no nível formal, assim como acontece com o Autobiografia de um polvo, somos remetidos a notas de rodapé que indicam artigos científicos, estudos, trabalhos e discussões públicas. Essas escritas, pouco respeitosas dos campos e das disciplinas específicas, parecem realizar o que Haraway descreve em Ficar com o problema, mas que já era evocado em "Manifesto ciborgue", por meio da implosão de qualquer noção de pureza ou “estado original”: escritas-ciborgue. É ela - ou o devir-mulher do escritor - que contesta, nas Palestras 3 e 4 do livro, a supremacia da razão e da Filosofia em uma defesa dos animais e da capacidade da poesia aproximar-se deles. Neste último caso, seu exemplo também é Ted Hughes, cujo poema “O jaguar”, motiva a discussão na segunda dessas palestras.

É interessante que, tendo enveredado pela literatura em busca de uma política que compreenda as agências não-humanas e, sobretudo, os animais, Fausto não tenha mencionado Elizabeth Costello. Isto porque a leitura desta do poema de Hughes parece se conformar por meio de uma percepção estética que contestaria um conhecimento racional, taxonômico ou antropocêntrico do animal. Assim, Costello entende, antes de Fausto, que Hughes encontra uma zona de vizinhança ou uma perspectiva em comum com o jaguar, ou, ainda, que ele restitui agência ao animal.

A “Palestra 3: A vida dos animais Um: Os filósofos e os animais” é uma arriscada defesa dos animais através da condenação da indústria da carne na sua comparação com campos de concentração nazistas. Para Costello, não pensar sobre a morte dos animais que nos servem de comida é privar-se de empatia. A mesma empatia de que se privaram, diz a escritora, aqueles que matavam nos campos e aqueles que viam - porque eram sempre centenas de milhares - os que eram transportados para os campos. “Em outras palavras, eles fecharam os seus corações. O coração é sítio de uma faculdade, a simpatia, que às vezes, nos permite partilhar o ser do outro” pois, dirá, “não há limites para a imaginação simpatizante” (Coetzee, 2004COETZEE, J.M. Elizabeth Costello: oito palestras. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 91).

“Partilhar o ser do outro”, para Costello, seria possível por meio da empatia, de uma compreensão ou um avizinhamento que não é racional. Desta forma, podemos supor que são os sentidos e não a mente a serem acionados. Posto que, lembra Buck-Morss (1996BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderad”. Travessia, n. 33. UFSC - Ilha de Santa Catarina, p. 11-41, ago-dez. 1996., p. 14), “os sentidos mantêm um traço não civilizado e não civilizável, um núcleo de resistência à domesticação cultural”, os filósofos, guardiães do logos, não poderiam ativar uma imaginação simpatizante.

Vale notar que em determinado momento desta palestra, Costello imagina para Pedro Rubro, de “Um relatório para uma academia”, uma proveniência: um livro científico, A mentalidade dos macacos, de Wolfgang Köhler. Assumindo a incerteza da sua genealogia, ou, mesmo, o improvável conhecimento que teria Kafka dos experimentos de Köhler, Costello segue imaginando:

De acordo com seu próprio relato, Pedro Rubro foi capturado no continente africano por caçadores especializados no comércio de macacos, e despachado para um instituto científico ultramarino. Eram esses os macacos com que Köhler trabalhava. Tanto Pedro Rubro como os macacos de Köhler passavam por um período de treinamento destinado a humanizá-los (Coetzee, 2004COETZEE, J.M. Elizabeth Costello: oito palestras. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 82).

Na leitura de Costello, Pedro Rubro ou os macacos do laboratório de Köhler buscam uma saída das situações às quais foram submetidos. Humanizar-se foi o modo que o macaco de Kafka encontrou para ficar vivo, mas está longe do que ele teria escolhido. Costello, assim, afirma que nem os macacos de Köhler, nem Pedro Rubro estão preocupados com as obsessões de seus treinadores e dos cientistas. “A questão que realmente [os] ocupa [...] é a seguinte: onde está minha casa e como chego lá?” (Coetzee, 2004COETZEE, J.M. Elizabeth Costello: oito palestras. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 85).

A situação kafkiana de Pedro Rubro, seu ingresso em uma humanidade sempre parcial, sempre diferida, diverge daquilo que uma imaginação simpatizante pode entrever. De fato, Costello é capaz de sugerir aquilo que a narrativa de antecipação de Despret contém. Tanto Christina, no seu relatório, quanto Sarah, descrevendo o que aprende sobre os polvos com a comunidade dos Ulisses, comentam as habilidades destes animais de jogar com o entorno e escapar das situações de clausura ou tédio. “Os polvos são intensamente motivados por essa convicção quase kafkiana: sempre há uma saída” (Despret, 2022, p. 96)6 6 Na narrativa de Despret, uma nota de rodapé neste momento nos remete ao texto de Kafka. , afirma a primeira. “É preciso guardar na memória o fato de que o polvo, onde estiver e qualquer que seja a situação, sempre se pergunta: ‘Há alguma saída?’, e que isso contamina todos os seus gestos, todas as suas relações com o mundo” (Despret, 2022DESPRET, Vinciane. Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação. Tradução de Milena P. Duchiade. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. , p. 111), relata a segunda.

É através da solicitação da imaginação simpatizante, de certa forma um pedido pela suspensão da racionalidade filosófica, que Costello chega à “Palestra 4: A vida dos animais. Dois: Os poetas e os animais”. Aí, efetua uma leitura sensorial de O Jaguar, na qual, pra falar com Benjamin, usa uma “fórmula básica da percepção onírica, que descreve ao mesmo tempo o lado tátil da percepção artística”: “Hughes tateia em busca de um tipo diferente de ser-no-mundo, que não é inteiramente estranha a nós, uma vez que a experiência diante da jaula parece pertencer a uma experiência de sonho, uma experiência ocorrida no inconsciente coletivo” (Coetzee, 2004COETZEE, J.M. Elizabeth Costello: oito palestras. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 109). E continua, “conhecemos o jaguar não pela sua aparência, mas pela maneira como se move. [...] O poema [...] nos pede para habitar aquele corpo” (p. 109).

Costello entende que o poema se desvia de qualquer tentativa de compreensão do animal enquanto objeto de estudo. Não há uma relação sujeito-objeto em The jaguar e nem uma tentativa de aproximação do jaguar como se ele fosse humano, correndo o risco de um narcisismo pedante. Mas, antes, Hughes teria executado uma mudança de perspectiva, deslocando, também, o conceito do seu entendimento mais tradicional: da mente para o corpo.7 7 Quem melhor explica o deslocamento é Eduardo Viveiros de Castro (2002) e seu conceito de perspectivismo ameríndio. Costello afirma: “Em Hughes não se trata de habitar outra mente, mas de habitar outro corpo” (p. 109), “uma poesia que não tenta achar uma ideia no animal, que não é sobre o animal, mas, sim, ao contrário, o registro de um compromisso com ele” (Coetzee, 2004COETZEE, J.M. Elizabeth Costello: oito palestras. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 109). Não seria este compromisso a realização do que pode a literatura que evocava Fausto? Não estamos, assim, diante do animal no “centro da política”? E, ainda, não teria Costello sido capaz de escutar o “discurso” do animal quando compreende que quando “desviamos para as palavras a corrente de sentimento que flui entre nós e o animal, nós a abstraímos para sempre do animal” (Coetzee, 2004COETZEE, J.M. Elizabeth Costello: oito palestras. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 109)? Aí, também, residiria a percepção de um limite, da literatura sobretudo, sua inevitável referência ao humano.

Se a literatura, ou o literário, pode ser vista como uma alternativa aos saturados discursos cientificistas que inviabilizariam um factível e seguramente necessário mundo simpoiético, é nesta qualidade que parece residir sua maior potência nos tempos do Antropoceno. “Autobiografia de um polvo” executaria, assim, os chamados de Latour por um povo de Gaia e as defesas de Donna Haraway das fabulações especulativas em prol de um mundo habitável. A narrativa de Despret mais do que ensinar qualquer coisa sobre os polvos, treinaria seus leitores para um futuro já em curso, a performance de/para um outro radical que habita seus (nossos) próprios corpos.

Referências

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  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 165-196.
  • BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: o ‘ensaio sobre a obra de arte’ de Walter Benjamin reconsiderad”. Travessia, n. 33. UFSC - Ilha de Santa Catarina, p. 11-41, ago-dez. 1996.
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  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia Vol 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012.
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  • FAUSTO, Juliana. Terranos e poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Revista Landa, v. 2, n. 1. p. 165-181, 2013.
  • HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue. Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 33-118.
  • HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham; London: Duke University Press, 2016.
  • HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023.
  • LATOUR, Bruno. Os Estados (da Natureza) entre guerra e paz. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno Tradução de Maryaluna Meyer. São Paulo; Rio de Janeiro: Ubu Editora, 2020.
  • MOORE, James W. (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism Michigan: Kairos PMPress, 2016.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Death of a Discipline New York: Columbia University Press, 2003.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia São Paulo: Cosac Naify, 2002.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação
  • 1
    No original: “Literature cannot predict, but it may prefigure”. Tradução minha.
  • 2
    Cada criança deve ter, ao menos, três progenitores, sem nenhuma demanda por uma performance de gênero específica para cada. As relações de parentesco são profundamente alteradas também porque progenitores e outros parentes podem ser incorporados em momentos “significativos de transição. Esses relacionamentos instauram compromissos fortes e vitalícios [...] Nesses dispersos mundos emergentes, fazer parentes como um meio de reduzir a quantidade de seres humanos e suas demandas sobre a Terra e, ao mesmo tempo, contribuir para o florescimento de pessoas e outros bichos, implicava intensas energias e paixões” (Haraway, 2023HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 Edições, 2023., p. 249).
  • 3
    Para Jason W. Moore (2016MOORE, James W. (ed.). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism. Michigan: Kairos PMPress, 2016., p. 6), “Capitaloceno” se refere ao “padrão histórico básico contemporâneo da história mundial enquanto ‘Era do Capital’ - e era do capitalismo como uma ecologia mundial de poder, capital e natureza”.
  • 4
    Mel Baggs gravou um vídeo, “In my language”, que se encontra disponível no Youtube.
  • 5
    Em Elizabeth Costello, de 1999, Costello disserta sobre assuntos aos quais Coetzee já havia se dedicado, repetindo argumentos que já haviam, inclusive, sido publicados pelo escritor. Na seção “Agradecimentos”, ao final do livro, lemos, por exemplo: “Uma versão anterior da Palestra 1 apareceu sob o título ‘O que é o realismo?’ na revista Salmagundi n. 114-5 (1997)” ou “Uma versão anterior da Palestra 2 apareceu como ‘O romance na África’, Occasional Paper o. 17 do Townsend Center for the Humanities, Universidade da Califórnia em Berkeley, 1999” (Coetzee, 2004COETZEE, J.M. Elizabeth Costello: oito palestras. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 253). Que tipo de romance ou que tipo de ficção se constitui de conferências proferidas pelo autor? Ou como se chama a ficção que fala de tudo o que de fato aconteceu? Pelo menos no nível formal, assim como acontece com o Autobiografia de um polvo, somos remetidos a notas de rodapé que indicam artigos científicos, estudos, trabalhos e discussões públicas. Essas escritas, pouco respeitosas dos campos e das disciplinas específicas, parecem realizar o que HarawayHARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue. Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 33-118. descreve em Ficar com o problema, mas que já era evocado em "Manifesto ciborgue", por meio da implosão de qualquer noção de pureza ou “estado original”: escritas-ciborgue.
  • 6
    Na narrativa de Despret, uma nota de rodapé neste momento nos remete ao texto de Kafka.
  • 7
    Quem melhor explica o deslocamento é Eduardo Viveiros de Castro (2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.) e seu conceito de perspectivismo ameríndio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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