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Leituras do literário e subjetividade

Literary Readings and Subjectivity

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre a relação entre a leitura literária e a subjetividade. A discussão é amparada por leituras que vão desde o aspecto recepcional ao lúdico, passando por noções de subjetividade, desejo e experiência. No decorrer dos argumentos vislumbra-se o ensino de literatura como uma prática obrigatoriamente deflagradora de experiências e vivências que constituem o sujeito leitor. O diálogo com algumas pesquisas, no âmbito do mestrado profissional, fomenta o encontro com essa necessidade de que se entenda o papel fundamental exercido pela subjetividade na constituição da leitura literária.

Palavras-chave:
leitura literária; subjetividade, experiência

Resumen

Este artículo propone una reflexión sobre la relación entre lectura literaria y subjetividad. La discusión se apoya en lecturas que van desde el aspecto receptivo hasta el aspecto lúdico, pasando por nociones de subjetividad, deseo y experiencia. En el transcurso de los argumentos, la enseñanza de la literatura es vista como una práctica que necesariamente desencadena experiencias que constituyen el sujeto lector. El diálogo con algunas investigaciones, en el ámbito de la maestría profesional, propicia el encuentro con esta necesidad de comprender el papel fundamental que juega la subjetividad en la constitución de la lectura literaria.

Palabras clave:
lectura literaria; subjetividad, experiencia

Abstract

This article proposes a reflection on the relationship between literary reading and subjectivity. The discussion is supported by readings that range from the reception aspect to the ludic aspect, including notions of subjectivity, desire and experience. Throughout the argumentation, the teaching of literature is seen as a practice that necessarily triggers experiences that constitute the reading subject. The dialogue with research, within the scope of the professional master's degree, fosters an encounter with this need to understand the fundamental role played by subjectivity in the constitution of literary reading.

Keywords:
Literary reading; subjectivity, experience

Não importa o meio onde vivemos e a cultura que nos viu nascer, precisamos de mediações, de representações, de figurações simbólicas para sair do caos, seja ele exterior ou interior. O que está em nós precisa primeiro procurar uma expressão exterior, e por vias indiretas, para que possamos nos instalar em nós mesmos. Para que pedaços inteiros do que vivemos não fiquem incrustados em zonas mortas do nosso ser. (Michèle Petit).

Gostaria de iniciar esta discussão procurando destacar a relação que existe entre literatura e afeto. Inicialmente, posso imaginar a literatura como sendo o espaço por excelência da experiência. A essa ideia de experiência relaciona-se o próprio ato de leitura enquanto uma forma complexa de pensar, justamente porque nesta relação está implicada uma compreensão-recepção que interfere naquilo que é lido/recebido. Nesse aspecto, a literatura constitui-se como locus privilegiado da alteridade, da expressão de um outro que se reflete em mim no atravessamento de uma linguagem que se vê instaurada no ato da leitura. O atravessamento de que falo pressupõe que se instaure um modo de perceber que comumente saia, se desloque da zona de conforto habitual do meu modo de olhar, do familiar, possibilitando que o encontro com a alteridade esteja vinculado ao descentramento de mim mesma do ponto em que me encontro. Essa mesma linguagem, no entanto, se aproxima de mim na medida em que me projeto através dela e reconheço um eu que pode, em maior ou menor grau, colidir comigo mesma.

Esse gesto, que pode ser definido como uma travessia rumo ao desconhecido, instaura aquilo que chamo escuta. Esta última, por sua vez, recupera algo muito importante no complexo processo da leitura: a imaginação. Este último processo envolve, no caso da leitura literária, não apenas a decodificação dos signos constituídos e o processo de compreensão abrangente, mas o envolvimento de componentes sensoriais, emocionais, intelectuais e neurológicos, sem mencionar os aspectos culturais, econômicos e políticos que engendram a própria recepção como ato significativo.

Esses aspectos formam a noção de que para compreender o texto ou o sentido que dou ao texto é necessário pensar a situação dele em relação a mim, sua leitora, como ponto de partida. A possibilidade do diálogo texto-leitor pressupõe reflexões dos encontros e desencontros propiciados nesse mesmo gesto. A literatura pensada como palavra em ação, como busca, como preservação de algo que me escapa, instaura-se no poder da invenção que nomeia o indizível e aciona o afeto. Este último não apenas como sentimento de afeição, mas como algo que me atinge, que me arrasta e me transforma de algum modo.

Esse movimento está intrinsecamente ligado à subjetividade leitora, especialmente se a concebo como algo que se apresenta em um processo gradual e lento de constituição do modo como percebo e me posiciono perante os objetos que me circundam. A essa subjetividade leitora podemos agregar o conceito de fruição estética, uma vez que este não se separa do conceito de subjetividade no processo da leitura.

Ao apresentar as linhas gerais da estética da recepção, Jauss ressalta a importância das três categorias fundamentais da fruição estética: Poiesis, Aisthesis e Katharsis. A poiesis, como bem destaca Jauss, está relacionada a uma atividade na qual o indivíduo alcança um saber pela própria criação artística. A aisthesis, ainda que seja tomada a partir de Aristóteles, converte-se no prazer “estético da percepção reconhecedora e do reconhecimento perceptivo” (Jauss, 1979JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Coordenação e Tradução de Luiz Costa Lima. 2 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1979., p. 101). Jauss explica que esse fenômeno está ligado à noção de estranhamento ou ao que podemos chamar de uma “visão renovada” dos objetos. Ao refletir sobre a katharsis, o autor entra no domínio do “prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à liberação de sua psique” (Jauss, 1979JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Coordenação e Tradução de Luiz Costa Lima. 2 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1979., p. 101).

Nesse ponto, Jauss reforça a ideia de que essas três funções não estão isoladas e que não há uma hierarquia precisa entre elas. Essa questão é discutida quando se tem em mente que:

A função comunicativa da experiencia estética não é necessariamente mediada pela função catártica. Também pode decorrer da aisthesis, quando o observador, no ato contemplativo renovante de sua percepção, compreende o percebido como uma informação acerca do mundo do outro ou quando, a partir do juízo estético, se apropria de uma norma de ação. A própria atividade da aisthesis, contudo, também pode se converter em poiesis. O observador pode considerar o objeto estético como incompleto, sair de sua atitude contemplativa e converter-se em co-criador da obra, à medida que conclui a concretização de sua forma e de seu significado. A experiência da aisthesis pode, por fim, se incluir no processo de uma formação estética da identidade, quando o leitor faz a sua atividade estética ser acompanhada pela reflexão sobre seu próprio devir. (Jauss, 1979JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Coordenação e Tradução de Luiz Costa Lima. 2 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1979., p. 102-103).

Consequentemente, entramos no domínio dos pactos que compreendem as relações de leitura, um jogo em que, a partir do enfrentamento da linguagem, sou obrigada a trilhar um caminho, normalmente determinado pela relação afetiva estabelecida nesse mesmo contexto. A jornada se inicia e os encontros ou desencontros trarão mais ou menos desafios que serão dissolvidos pela motivação subjetiva operante para processar os sentidos que pretendo construir. Nesse ponto, o processo de encontro com a leitura atravessa a questão existencial, reverbera o que sou e o que sinto prospectado na mediação da linguagem. Yolanda Reyes (2012REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar - Literatura, escrita e educação. Tradução de Rodrigo Petronio. São Paulo: Editora pulo do gato , 2012.), ao defender a literatura como um ato significativo e de resistência, enfatiza que:

Nossas crianças e jovens estão imersos em uma cultura de pressa e tumulto que os iguala a todos e que os impede de se refugiar, em algum momento do dia ou, inclusive, de sua vida, no profundo de si mesmos. Daí que a experiência do texto literário e do encontro com esses livros reveladores que não se leem com os olhos ou a razão, mas com o coração e o desejo, sejam hoje mais necessários do que nunca como alternativas para que essas casas interiores sejam construídas. Em meio à avalanche de mensagens e estímulos externos, a experiência literária brinda o leitor com as coordenadas para que ele possa nomear-se e ler-se nesses mundos simbólicos que outros seres humanos construíram. (p. 27-28).

Consequentemente, o encontro com a literatura torna-se um ato de leitura da vida, de recuperação da experiência única e inigualável que é a existência.

Ler é existir

Considerando que o ato de ler seja muito mais complexo que a mera decodificação de sinais, entramos em um território bastante vasto. Ler não é apenas estabelecer uma relação com o que se lê, mas é tornar evidente no processo de mediação o que somos e como somos. Ler é o pensamento transformado em mecanismo de ação e reação do que está em pleno devir.

As linguagens audiovisuais, por exemplo, ampliaram de forma significativa as experiências da leitura. Trouxeram realidades e possibilidades que demonstram os diferentes lugares ocupados em cada situação de leitura. Se entendo que os três níveis básicos de leitura estão conectados aos fenômenos sensoriais, emocionais e racionais, a experiência de recepção promovida pelas novas linguagens midiáticas assentam modos de ler que escapam ao tradicional conceito de leitor. Posso agregar a essa ampliação das experiências de leitura uma questão não menos tensa que é a importância do afeto na formação de qualquer leitor, especialmente na infância. A complexidade dessa questão envolve não apenas o conceito de infância, que foi-se modificando ao longo da história, mas as próprias relações sociais que estão implicadas na sua construção sociocultural.

Considerando que hoje a infância esteja compreendida entre o nascimento e os 12 anos de idade e que esteja marcada por um período em que cientificamente se sabe que abriga um processo de construção fundamental do desenvolvimento físico, mental, social e emocional, é necessário pensar o afeto e a literatura a partir da própria constituição da fabulação.

Quando observo o processo de fabulação, automaticamente relaciono o jogo entre o brincar e a realidade prospectada, constituindo-se como uma situação de leitura. O ato de ler como situação em que entre em jogo a própria experiência de se compreender na compreensão daquilo que se lê, é algo que para a criança, que tão pouca experiência de vida tem, resulta na própria construção gradativa da subjetividade.

Penso que aqui seja útil entender as estruturas que produzem a subjetividade e a objetividade. Sara Paín (2012PAÍN, Sara. Subjetividade e objetividade: relação entre desejo e conhecimento. Rio de Janeiro/Petrópolis: Editora Vozes, 2012.) nos alerta para o fato de que o “subjetivo se instaura na irregularidade, se constitui na esfera do desejo e é o que nos diferencia como pessoa singular” (p. 19) Usualmente, a tentativa de separar a objetividade e a subjetividade estão ancoradas na dicotomia consciente e inconsciente, especialmente “considerando que o conhecimento se dá no nível consciente e o desejo se dá no nível inconsciente”, como bem lembra Paín (2012PAÍN, Sara. Subjetividade e objetividade: relação entre desejo e conhecimento. Rio de Janeiro/Petrópolis: Editora Vozes, 2012., p. 21).

A separação, no entanto, não parece tranquila, já que para a própria autora há uma problematização nessa dicotomia na medida em que nem mesmo o que chamamos de objetividade, produzida pelo pensamento, está completamente livre do inconsciente ou do desejo. Paín retoma a discussão do quão pouco sabemos sobre o modo como se processa o próprio conhecimento na esfera prática. Seguindo nesse raciocínio, encontramos a percepção, que está marcada pelo conhecimento e os afetos, que parecem mais afeitos ao desejo. Novamente essa diferenciação é problematizada, uma vez que o afeto é uma qualidade da representação e essa em si mesma é completamente diferente de uma estrutura. Como exemplo, nos lembra que “se projetamos nosso medo em uma barata, outorgamos-lhe a qualidade de periculosidade. Não ocorre que sua periculosidade me dê medo, mas sim que meu medo a torna perigosa” (Paín, 2012PAÍN, Sara. Subjetividade e objetividade: relação entre desejo e conhecimento. Rio de Janeiro/Petrópolis: Editora Vozes, 2012., p. 23)

Nesse aspecto, entendemos que as estruturas do conhecimento e do desejo se diferenciam pelos próprios mecanismos que os regem. Construir um pensamento cognitivo não é o mesmo que pensar de forma simbólica ou dramática. A subjetividade, portanto, estabelece um elo entre aquilo que é produzido no inconsciente, ancorado pelo afeto, e o encontro disso com a objetividade, com aquilo que é personificado para mim como sendo real e objetivo. Nesse contexto, a arte se torna um espaço propicio para que a minha subjetividade encontre uma forma concreta de existência, projetando-se no encontro com o outro.

Consequentemente, a travessia que acompanha o movimento literário participa do desenvolvimento fundamental da formação educativa, pois:

A literatura, nesta acepção que abarca narrativas de diferentes ordens, mas que, com certeza, privilegia as que convocam os afetos, a sensibilidade, além da lógica e da inteligência - a meu ver - melhor serve para iniciar o indivíduo na aventura de ler e conhecer pela experiência de sentir-se diante do relato tomando partido, fazendo escolhas no exercício de tornar-se sujeito. Trabalhando com ela, é mais ágil atingir, pela observação dos modos de dizer, a tal consciência material da linguagem que constrói mundos com as referências que cria. (Yunes, 2002YUNES, Eliana (org.) Pensar a leitura: complexidade. Rio de Janeiro: Editora da PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002., p. 26).

A literatura instaura e mobiliza o encontro entre o conhecimento e o desejo, propicia um mergulho na vida, na visceral matéria do confronto que estabeleço com o mundo. Nas palavras de Paín:

Na rede cognitiva, como já vimos, o mecanismo de assimilação transforma o exterior em função dos próprios esquemas. Seu correspondente na ordem do desejo é o mecanismo de projeção. O sujeito tende a projetar sobre o outro -e, às vezes, também sobre as coisas e sobre o mundo - seus próprios sentimentos e, depois, vê-los no outro. Isto é, ele transforma o outro, projetando nele diretamente seus sentimentos, mas de modo que o outro adquira a qualidade que lhe convém. (2012PAÍN, Sara. Subjetividade e objetividade: relação entre desejo e conhecimento. Rio de Janeiro/Petrópolis: Editora Vozes, 2012., p. 29).

Essa consciência material da linguagem ainda encontra uma realização vibrante se mediada pelo processo de leitura oralizada e da escuta como ato significativo e participativo do movimento de estabelecimento do afeto.

Cecília Bajour, ao discutir o valor da escuta nas práticas literárias, retoma a importância que a literatura tem de possibilitar os confrontos na construção dos sentidos. Para ela:

A linguagem estética se oferece a leitores que se acomodam e se incomodam diante de modos alternativos, diversificados e por vezes transgressores de nomear o mundo. Na literatura não importa apenas aquilo que impacta nossas valorações, ideias ou experiências de vida, mas também como ela o faz. Destaco o “como” porque, quando se pensa na escuta ao se falar de literatura em cenas de leitura escolar, ou mesmo em contextos fora da escola, ele pode ficar de lado ou em um lugar menor perante a força dos temas ou ideias suscitados pelos textos. (Bajour, 2012BAJOUR, Cecília. Ouvir nas entrelinhas: O valor da escuta nas práticas de leitura. Tradução de Alexandre Morales. São Paulo: Editora pulo do gato, 2012., p. 25-26).

É notória a preocupação de Bajour não apenas em compreender o fenômeno da recepção dos textos, mas também a de destacar a importância de que se reconheça o movimento da literatura na sua execução enquanto linguagem. Esse movimento, no entanto, não se restringe apenas ao conteúdo material da linguagem, mas engloba a importância da oralidade nesse processo. Aliás, é justamente o poder da oralidade e de suas estratégias mentais no âmbito do letramento literário que constituem um domínio que a autora pretende ressignificar, uma vez que esta tenha sido sempre desvalorizada na educação dentro da cultura ocidental.

A sociedade letrada sempre deu muito valor ao registro escrito e a tudo o que advém da escrita. O contato com a oralidade restaura uma percepção da palavra como encarnação da experiência-afeto, uma vez que a voz restitui a relação primária com a linguagem, anterior ao domínio da própria leitura ou dos códigos que a regem. A materialização da leitura através da voz que lhe dá corpo encena uma relação que vai muito além da decodificação do código linguístico. Nesse “encontro da leitura”, se assim posso chamá-lo, está o que Vigotski chama de criação pela imaginação na criança, uma vez que:

Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas imagens ou ações, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores de sua experiência, pertence a esse segundo gênero do comportamento criador ou combinatório. O cérebro não é apenas o órgão que conserva a reproduz nossa experiencia anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo comportamento. (...) A psicologia denomina de imaginação ou fantasia essa atividade criadora baseada na capacidade de combinação de nosso cérebro. “Qualquer invenção, grandiosa ou pequena” diz Ribot, “antes de firmar-se, de realizar-se de fato, manteve-se íntegra como uma construção erigida na mente, por meio de novas combinações ou correlações, apenas pela imaginação”. (2009VIGOTSKI, Lev. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zola Prestes. São Paulo: Ática, 2009. , p. 13-14).

Considerando que essa construção se mantenha vívida apenas pela imaginação, pode-se pensar em uma relação de dependência entre ela e a sua materialização no construto da experiência. É o próprio Vigotski quem nos dá a resposta aqui, pois: “Há uma dependência dupla e mútua entre imaginação e experiência. Se no primeiro caso a imaginação apoia-se na experiência, no segundo é a própria experiência que se apoia na imaginação” (2009VIGOTSKI, Lev. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zola Prestes. São Paulo: Ática, 2009. , p. 25)

Essa especificidade do pensamento da criança está relacionada ao modo como se processa a compreensão desde cedo, tendo em sua base um procedimento metafórico natural para o uso da linguagem em quase todas as línguas. A proposição de pensar a relação entre a imaginação e a experiência encontra então o movimento da leitura e na esteira de Larrosa entendemos que “Ler é realizar a experiência de se pensar pensando o mundo”.

Ao falar da experiência, Larrosa (2019LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes e João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.) nos põe diante da linha de saída de um problema que é justamente a sua impossibilidade enquanto racionalidade, ainda que a ciência moderna a tenha “objetivada, homogeneizada, controlada, calculada, fabricada, convertida em experimento” (p. 40)

Esse movimento, conforme destaca o filósofo, vai na contramão da própria experiência que se materializa como algo particular e subjetivo, incidindo sobre ela a relação espaço-temporal do presente e ligando-a a algo transitório e efêmero como a própria vida. Como não há um logos da experiência, para Larrosa é necessário dignificá-la, ou seja, reivindicar a sua importância como algo fundamental para a formação do conhecimento.

Na tentativa de separar um pouco a experiência dos sentidos mais prosaicos que lhe foram atribuídos, há precauções importantes a serem pensadas.

Aqui, interessa-me particularmente a experiência pensada próxima da palavra vida, não como conceito, mas como palavra:

A experiência seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência, além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros. E a existência, como a vida, não pode ser conceitualizada porque sempre escapa a qualquer determinação, porque é, nela mesma, um excesso, um transbordamento, porque é nela mesma possibilidade, criação, invenção, acontecimento. (Larrosa, 2019LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes e João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019., p. 43).

É nesse sentido que vejo a experiência da leitura como experiência de compartilhamento de uma subjetividade para outra. Nessa direção, podemos pensar a linguagem como um meio de “mediação para a internalização da objetividade, permitindo a construção de sentidos pessoais que constituem a subjetividade” (Bock, 2004BOCK, Ana Mercês Bahia. A perspectiva histórica da subjetividade: uma exigência para la psicologia atual.Psicologia para América Latina, México, n. 1, fev. 2004. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2004000100002&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 27 abr. 2023.
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, p. 6). Nesse momento da leitura ligado à experiência é que podemos compreender o fenômeno como um ato ligado ao existir. Se a experiência só pode ser traduzida como palavra, e não como conceito, uma vez que ela diz o que diz e sempre algo mais, pensar a leitura nesse viés é justamente entender que nesse processo ocorre o encontro com as palavras e sempre com algo mais. A experiência, portanto, participa na linguagem como um modo de existência que sempre traz consigo esse “modo de habitar o mundo”.

Essa visão corrobora o que Jauss determina como algo próprio da função catártica da recepção, nas palavras de Miranda:

Portanto, enquanto função comunicativa, a katharsis não aparece em Jauss restrita ao prazer catártico; antes, trata-se da percepção acerca do mundo do outro, por um lado, e, por outro, da apropriação, através do juízo estético, de uma norma de ação. Como experiência intersubjetiva, designa tanto a função geradora e justificadora de normas quanto a capacidade de libertar o receptor de seus interesses práticos, de se identificar com as situações representadas, liberar seu ânimo e permitir-lhe fruir distanciadamente situações que gostaria ou poderia ter vivido. Em suma, trata-se do prazer reflexivo e intersubjetivo das emoções próprias suscitadas pela experiência com a arte. (2007MIRANDA, Mariana Lage. Objeto ambíguo: arte e estética na experiência cotidiana, segundo H. R. Jauss. 2007. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, 2007. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/ARBZ-7jrhsc . Acesso em: 25 jul 2023.
http://hdl.handle.net/1843/ARBZ-7jrhsc...
, p. 82).

Ao utilizar a metáfora da “casa de palavras”, Yolanda Reyes nos explicita como o confronto com a linguagem toma corpo de uma forma particular da existência. Aliás, é a própria autora, ao pensar-se como escritora, quem afirma que:

Pessoalmente, como autora, prefiro falar mais de experiências do que de temas. E é pertinente recordar, neste congresso literário, que essa experiência “ocorre na linguagem”. Talvez seja isso: filtrar a experiência, decanta-la e expressá-la neste Reino Outro da linguagem, onde é possível ter encontros imprevisíveis com leitores, sem idade nem rosto definido. Com “gente”, nada mais: sem atributos especiais. (2012REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar - Literatura, escrita e educação. Tradução de Rodrigo Petronio. São Paulo: Editora pulo do gato , 2012., p. 41).

Reyes explicita que seu mundo enquanto escritora é movido pela escuta das inquietações, dos vazios, dos assombros que escapam em meio às experiências vividas e pensadas no próprio trajeto da vida. Em sua perspectiva autoral, podemos projetar a compreensão de que são esses intervalos da escuta e a sua incorporação à linguagem que vão ao encontro ou desencontro do leitor. É a materialização da experiência imaginada e traduzida discursivamente que encontrará uma brecha com o destinatário e o fará aderir em maior ou menor grau ao seu mundo.

Nesse ponto nos perguntamos, como as inquietações de uma autora ou autor encontram as nossas próprias? Como esses vazios que se iniciam no processo de escrita encontram nossos próprios vazios e os intervalos em que vivemos?

Penso que aí reside algo que seja próprio do universo literário e algo que seja particular da subjetividade. E é Reyes quem nos oferece novamente uma reflexão:

Em meu caso pessoal, o único de que me sinto autor-izada a falar, não estou interessada em temas, senão em certas experiências que me inquietam e que forma configurando um mundo: por exemplo, em uma conversa que ocorre na mesa ao lado, entre a sobremesa e o café, quando a mulher diz a seu marido “quero me separar de você” e, enquanto o mundo desaba, irrompe o garçom com a bandeja de café e pergunta “Para quem é o curto?”. (2012REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar - Literatura, escrita e educação. Tradução de Rodrigo Petronio. São Paulo: Editora pulo do gato , 2012., p. 35).

A subjetividade integra, ainda, uma relação fundamental com a ideia do jogo. A concepção de uma relação de jogo está associada à leitura aberta1 1 Essa concepção está desenvolvida no meu artigo “Leitura aberta: por uma construção da leitura literária no ensino”. In: Fragmentum, (57), 2022 https://doi.org/10.5902/2179219455242 e ao afeto, especialmente porque ela envolve uma proposição performativa fundamental. Quando penso no jogo do texto, imediatamente me vem à mente uma questão apresentada por Iser:

Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O próprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível à consciência. Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo. Essa dupla operação de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável, de modo que, inevitavelmente, o mundo repetido no texto começa a sofrer modificações. Pois não importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem - e, daí, modificam - o mundo referencial contido no texto. Ora, como o texto é ficcional, automaticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor, indicador de que o mundo textual há de ser concebido, não como realidade, mas como se fosse realidade. (1979ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Coordenação e Tradução de Luiz Costa Lima. 2 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. , p. 107).

Ao aceitar o pacto e adentrar o campo do jogo, assumo, lembrando a própria teoria do jogo de Piaget, a necessidade em me adaptar ao mundo no qual estou. Ao exercitar essa adaptação no texto mimético, vejo-me impelida a repensar os modos de ser e estar nesse mesmo mundo para compreender como devo jogar. Em um mundo cada vez menos marcado pela experiência significativa ou contemplativa da vida, esse exercício representa uma partilha de afetos que me acionam e me envolvem a compreender o mundo modulado. Nesse sentido, vejo que se relaciona à katharsis pensada por Jauss, que não está apenas reduzida ao prazer catártico, mas envolta na percepção sobre o outro e o seu espaço e o modo como nos apropriamos de uma conduta no próprio juízo estético.

Aqui entra uma questão fundamental do problema esboçado por Iser:

Em vez de facilitar a adaptação ao mundo físico, os esquemas podem ser usados para moldar coisas doutro modo inapreensíveis ou de que queremos dispor dentro de nossas condições. Assim como os esquemas nos capacitam a nos acomodarmos a objetos, assim também nos concedem assimilar objetos de acordo com nossas próprias inclinações. Quando ocorre essa inversão, abre-se o espaço do jogo. (1979ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Coordenação e Tradução de Luiz Costa Lima. 2 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. , p. 111).

Quando o espaço do jogo se abre, entendo que passo a existir de uma nova forma, minha subjetividade é invadida pelas outras e vivo várias vidas em mim. Ao viver várias subjetividades e reconhecer-me de alguma forma nas alheias, consigo compreender melhor a existência e a complexidade daquilo que representa o existir como potência criativa da subjetividade. Penso que, neste momento, um pouco tomada pelo espírito de Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas, eu posso dizer: “De ninguém eu era. Eu era de mim” (Rosa, 1986ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986., p. 151).

O diálogo entre a pesquisa e as indagações sobre a subjetividade

A partir das reflexões propostas, passei a analisar as pesquisas-ação de cunho qualitativo realizadas nos últimos anos, sob minha responsabilidade, no âmbito do Profletras. Tendo aplicado várias metodologias para a compreensão da recepção de textos literários na escola, deparei-me com algumas questões que não pude ignorar ao longo do percurso. Penso que na pesquisa-ação, de cunho qualitativo, com a leitura literária temos nos debruçado bastante nos resultados empíricos e apresentado alguns conceitos teóricos iniciais sobre leitura, literatura e letramento literário, mas ainda falta uma ousada reflexão mais profunda sobre a relação entre a subjetividade e as práticas construídas nas pesquisas. Neste ponto, foi-me fundamental o diálogo com a pesquisa de Fernando González Rey, pois põe o dedo na ferida:

Sentir medo da especulação é um fato institucionalizado e público de um medo oculto na instituição científica e acadêmica: o medo das ideias. A especulação é uma operação do pensamento que nos permite novos acessos ao aspecto empírico da realidade estudada. A especulação é parte inseparável da construção teórica, e a partir dela retornarmos ao momento empírico e passamos a desenvolver sensibilidade para novos elementos nesse nível, os quais somente poderão adquirir inteligibilidade graças a uma representação teórica que nos permita visibilizá-los. (2022GONZÁLEZ REY, Fernando. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. Tradução de Marcel Aristides Ferrada Silva. São Paulo: Cengage Learning, 2022., p. 8).

Essa reflexão me fez retornar aos dados empíricos produzidos ao longo desse período de oito anos e construir algumas especulações que dialogam com o problema proposto inicialmente. Quando dei início à formulação de questões e suas aplicações, aproveitei o momento para obter dados empíricos sobre a presença feminina na formação leitora de crianças e jovens. Os resultados foram surpreendentes, uma vez que mostravam a presença quase que unânime das mulheres nesse quesito. Essa constatação me levou a indagar se esse fato teria algum impacto na subjetividade receptiva desses leitores em formação. Considerando que as mulheres tenham ocupado um espaço restrito ao círculo doméstico durante muito tempo e que esse cenário tenha mudado radicalmente nas últimas décadas, considerando a participação econômica das mulheres em todas as esferas da vida pública, a constatação de uma presença massiva no letramento literário acaba por problematizar o fato de que alguns papeis conferidos às mulheres ainda não mudaram tão radicalmente quando o tema é o ensino ou a leitura no âmbito doméstico.

Decorre, ainda, um fator mais preocupante relacionado a um aspecto psicossocial no cerne da família que diz respeito ao afeto. Se a leitura, como a compreendemos aqui, está relacionada à subjetividade e, consequentemente, ao afeto, o letramento literário feminino na infância destaca a importância que o papel desempenhado pela figura “materna” ou “feminina” determina para a adesão ao mundo do imaginário. O afeto desencadeado pela figura feminina no letramento afetaria o meu modo de ler o mundo? Se quando leio realizo a tarefa de me pensar pensando o mundo, a mediação feminina teria impacto nas crenças que estabeleço na recepção?

Essas inquietações me acompanhavam, ainda que eu não tivesse dados suficientes para esboçar respostas mais completas, mas continuo navegando pelo modo como esses jovens, formados em sua maioria por um letramento feminino, reagem ao texto. Passo a observar como reagem ao tecido vivo textual na experiência da leitura.

Um dos primeiros projetos em que apostei logo de cara em um texto mais complexo para a intervenção foi O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Nesse momento imaginava que apenas uma boa seleção de textos garantiria algum sucesso à proposta de mediação. Percebi, meses depois, que outra leitura que teria como motivação algo relacionado ao afeto, uma vez que apresentava como tema a elaboração de um segredo pessoal, teria muito mais impacto sobre seus leitores e os faria muito mais motivados na execução. A partir dessa experiência inicial, resolvi apostar mais no caráter subjetivo do trabalho e insistir mais na escuta dos horizontes de expectativa desses jovens.

Em um segundo momento encontramos o trabalho com mitos e lendas desenvolvido por Fabiana Moreira Cardoso em sua dissertação de mestrado. A discente coletou dados que claramente demonstraram a preponderância da mediação feita pelas mães e avós. Entre os gêneros preferidos estavam os mitos, as lendas e os contos de fada. A intervenção foi realizada através dos mitos de origem (criação) e mitos indígenas e uma sequência com lendas do folclore brasileiro. Os resultados dessa pesquisa demonstraram que um dos grandes desafios enfrentados foi a ausência de um contato na infância com mediadores com alguma bagagem literária e com os próprios textos literários. Cardoso ressalta que: “Como eles não tiveram acesso a um estágio inicial de modo satisfatório, quando chegaram às fases subsequentes (Ensino fundamental I e II) tiveram dificuldades no trabalho com os textos literários” (2019CARDOSO, Fabiana Moreira. Letramento literário: práticas envolventes nos mitos e lendas. 2019. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestrado Profissional Profletras, 2019. Disponível em: http://bdtd.uftm.edu.br/handle/tede/668 . Acesso em: 25 out 2023.
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, p. 137).

O encantamento com os mitos de criação e as lendas demonstrou como a ausência desse repertório provocou um estranhamento do próprio objeto literário, uma vez que foram necessárias várias oficinas de sensibilização para adentrar no universo ficcional propriamente.

A pesquisa de Eliana da Silva Bino (2020BINO, Eliana Aparecida da Silva. O imaginário por trás dos contos: perspectivas e leituras com alunos do oitavo e nono ano do ensino fundamental. 2020. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestrado Profissional Profletras, 2020. Disponível em: http://bdtd.uftm.edu.br/handle/tede/1023 . Acesso em: 30 nov. de 2023.
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), que tratou dos contos de fadas em uma intervenção com alunos do oitavo ano, deixou evidente a quase que totalidade de mediação sendo desenvolvida pelas mulheres. Nos dois grupos selecionados (azul e verde), a mediação feminina foi respectivamente de 83,3 e 80%.

O trabalho com contos de fadas com adolescentes revelou-se muito profícuo e demonstrou a importância de um bom letramento literário na infância para o êxito do leitor futuro. Na pesquisa de Bino, configurou-se que é fundamental que os projetos de letramento literário precisam envolver a família e principalmente os homens como forma de acentuar a importância da leitura como uma prática familiar e social que deve ser abraçada por todos os membros. Nota-se nessa pesquisa que a prática da leitura desenvolvida pelos pais teria um impacto direto no interesse deles pela leitura.

Na pesquisa de Melina de Paulo, que realizou o plano de intervenção com alunos do nono ano de uma escola pública, novamente a figura feminina aparece como responsável pela mediação de leitura. A pesquisadora mostra em gráfico que, dos 28 alunos da pesquisa, somente dois não foram mediados por mulheres. Sua pesquisa também demonstrou que o interesse de alunos que passaram pela mediação na infância foi fundamental para o gosto pela leitura. A autora afirma que:

Ao oportunizar momentos em que a leitura subjetiva foi priorizada, notamos o fortalecimento da educação literária desses jovens leitores-investigadores que não leram por obrigação, mas que puderam encontrar na leitura uma companhia especial durante este tumultuado período pandêmico. (Paulo, 2021PAULO, Melina de. A contemporaneidade e a leitura de textos literários no ensino fundamental II. 2021. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestrado Profissional Profletras, 2021., p. 123).

Os trabalhos realizados partilharam uma busca por mediações e reflexões que pudessem contribuir para o êxito da leitura literária com jovens em formação leitora, mesmo quando desprovidos de uma formação leitora na infância. As pesquisadoras estabeleceram diferentes metodologias e corpus para realizar as intervenções. O fato de terem sido mediados na infância por mulheres demonstra um repertório de textos mais voltados para a visão de uma infância ligada aos contos de fadas ou a narrativas de cunho oral. Possivelmente esse repertório esteja ligado ao rótulo que esses textos carregam na formação da psiquê infantil e no fato de serem textos de fácil acesso e baixo custo em edições modernas. A facilidade em memorizar essas histórias também contribui para a possibilidade de realizá-la sem a presença do livro físico, mesmo que a experiência não seja a mesma.

Nesse sentido, a leitura é mediada pela relação de afeto e da escuta (quase que unânime) pela presença feminina. Essa relação muitas vezes é interrompida no processo de escolarização em nome de uma necessidade de cumprir as metas das diferentes etapas.

Penso que essa ruptura do afeto e da mediação internalizada possa ser um dos aspectos que distancia o jovem leitor da leitura. A necessidade de evitar a subjetividade e ir direto ao encontro do texto, de forma mais sistemática, pode ser um passo em falso para que ocorra a materialização da experiência. Afinal, ler é um ato complexo do pensar que interage com o modo como me sinto em relação ao que leio/escuto. Neste sentido, creio que a lição de Jauss sobre o gozo estético pode nos trazer alguma luz:

La actitud de goce estético, en la que la conciencia imaginativa se despega de la coacción de las costumbres y los intereses, libera de este modo al hombre de su que hacer cotidiano y le capacita para otra experiencia. De aquí se deduce mi segunda tesis: “La liberación por medio de la experiencia estética puede efectuarse en tres planos: para la conciencia productiva, al engendrar el mundo como su propia obra; para la conciencia receptiva, al aprovechar la posibilidad de recibir el mundo de otra manera, y finalmente - y de este modo la subjetividad se abre a la experiencia intersubjetiva- , al aprobar un juicio exigido por la obra o en la identificación con las normas de acción trazadas y que ulteriormente habrá que determinar. (2002JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética. Barcelona: Paidós, 2002., p. 41).

Penso que aqui encontramos uma lição muito importante no trato das leituras literárias e de sua relação com a subjetividade. Corroborando com as ideias de Iser sobre o papel do imaginário, especialmente tratadas no Ato da leitura, entendemos que a dimensão semântica como um horizonte final de sentido apresenta-se problemática se consideramos a interpretação histórica de textos singulares, quem dirá a recepção de seus leitores, nunca heterogêneos. Ao traduzir um texto para uma dimensão semântica, estou sempre enquadrando o que leio nos suportes de referência dominantes e não na recepção mediada pela subjetividade. Creio que depois de realizar várias pesquisas com leitores de oito a 15 anos, percebi que é necessário considerar que o imaginário não é de natureza semântica e que ele pode assumir configurações diversas a partir dos modos como lemos e como mediamos um texto com esses jovens leitores. Acredito hoje que seja fundamental que se permita uma recepção que não seja primariamente um processo semântico, mas sim um movimento de experimentação de estruturação do imaginário que foi projetado no texto. Considero, ainda, usando as palavras de Baldoino, que:

A ressignificação do trabalho com literatura na escola passa pela necessidade de buscar o lugar da literatura no espaço escolar, bem como pela adoção de práticas que consolidem este lugar entendendo a literatura para a formação humana, visto que ela possibilita ao indivíduo um encontro consigo e com o mundo ao seu redor. (2021BALDOINO, Adriana Morais de Sousa. O desafio de ressignificar o trabalho com literatura na escola e promover a formação de comunidades leitoras. 2021. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestrado Profissional Profletras, 2021. Disponível em: http://bdtd.uftm.edu.br/handle/123456789/1287 . Acesso em: 25 nov. de 2023.
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, p. 131).

A última pesquisa, de Oliveira (2023OLIVEIRA, Fabiana Bragança de. Não era uma vez: O (re)conto na formação de leitores. Letramento literário: práticas envolventes nos mitos e lendas. 2023. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestrado Profissional Profletras, 2023. Disponível em: http://bdtd.uftm.edu.br/handle/123456789/1518 . Acesso em: 11 de janeiro de 2024.
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), demonstrou não apenas a problemática do letramento literário cada vez mais ausente nas famílias, mas também revelou a necessidade de aprimorar-se a compreensão e construção coletiva de uma leitura pautada sobre a subjetividade. Se por um lado as pesquisas demonstram que o letramento literário é exclusivamente feminino nos grupos pesquisados, por outro lado tenho de reconhecer que as condições sociais, econômicas e culturais que transformaram as mulheres em potencial força de trabalho nos últimos anos tem tornado cada vez mais difícil a conciliação de todas as tarefas envolvidas na educação dos filhos. A escola, portanto, cada vez mais recebe crianças que nunca experimentaram uma leitura afetiva ou subjetiva. Não sei que impactos isso trará para a nossa sociedade no futuro ou que tipo de educação pretenderemos estabelecer com indivíduos que carregam uma forte presença da falta.

Talvez seja necessário investir mais tempo e recursos em reaprender o que somos e o que projetamos para o devir.

Referências

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  • BALDOINO, Adriana Morais de Sousa. O desafio de ressignificar o trabalho com literatura na escola e promover a formação de comunidades leitoras 2021. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestrado Profissional Profletras, 2021. Disponível em: http://bdtd.uftm.edu.br/handle/123456789/1287 Acesso em: 25 nov. de 2023.
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  • 1
    Essa concepção está desenvolvida no meu artigo “Leitura aberta: por uma construção da leitura literária no ensino”. In: Fragmentum, (57), 2022 https://doi.org/10.5902/2179219455242
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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