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Entrevista com Abdellah Taïa

Interview as Abdellah Taïa

Flavia Trocoli: É com alegria que recebemos o escritor Abdellah Taïa na Faculdade de Letras da UFRJ, com apoio do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, do CNPq, da CAPES e da FAPERJ. Agradeço ao público presente, à Embaixada da França no Brasil e à Editora Nós pelo pioneirismo na tradução das obras do autor. Agradeço também ao PACC por nos receber neste espaço acolhedor, à Luísa Monteiro pela tradução que proporciona este encontro entre línguas e culturas e ao Francisco Renato de Souza e Davi Pimentel pela disponibilidade para discutirmos juntos esses livros tão preciosos. Sobretudo, agradeço a Abdellah Taïa pela abertura ao diálogo em torno de sua escrita.1 1 A partir dos desdobramentos do encontro, é preciso seguir agradecendo: ao Sergio Novo, por gravar o encontro. À Débora Bomfim Barros bolsista de Iniciação Cientifica (CNPq) e à Marcella Mahara, bolsista de Iiniciação Científica (FAPERJ), por cuidarem da transcrição do encontro, mais uma vez, agradecemos a Abdellah Taïa, por, prontamente, ceder os direitos para publicação da entrevista.

Abdellah Taïa nasceu em Rabat, no Marrocos. Escreveu mais de nove romances em francês. Três deles estão publicados pela Editora Nós: Aquele que é digno de ser amado (2018TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.), traduzido por Paulo Werneck, Um país para morrer (2021TAÏA, Abdellah. Um país para morrer. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora Nós , 2021.), traduzido por Raquel Camargo, e Viver à sua luz (2023TAÏA, Abdellah. Viver à sua luz. Tradução de Camila Vargas-Boldrini. São Paulo: Editora Nós , 2023.), traduzido por Camila Vargas-Boldrini e que será lançado hoje, dia 15 de junho de 2023, às 19:00, na Janela Livraria. Taïa dirigiu um longa-metragem baseado em seu romance L'Armée de Salut (Exército da salvação, Salvation Army). Terei que me desculpar com Camila Vargas-Boldrini, porque tive que improvisar uma tradução ontem à tarde de Viver à sua luz (2023TAÏA, Abdellah. Viver à sua luz. Tradução de Camila Vargas-Boldrini. São Paulo: Editora Nós , 2023.); não tive acesso ainda à tradução, vou ler e depois vou pedir ao Abdellah Taïa que leia para nós. Viver à sua luz (2023TAÏA, Abdellah. Viver à sua luz. Tradução de Camila Vargas-Boldrini. São Paulo: Editora Nós , 2023.):

Todo o amor dessa terra, todo o amor que houver nessa terra não será suficiente para mim e não me ajudará a suportar aquilo que vem depois de você, Allal. Você partiu para tão longe, para um mundo tão desconhecido para mim, e você não voltará. Agora não há mais nada diante de mim a não ser a lembrança, a ausência, o amor sem você. Allal, você está morto. Você seguiu estradas que nunca conheci. Você respirou o ar de um outro país, comeu outras comidas, viu outras pessoas, outras paisagens, outros céus. Você entrou no coração de pessoas que jamais encontrei. Você foi ao fundo de uma existência que será para mim sempre desconhecida. Fiz o que pude. A França me tirou Allal, meu primeiro marido. Ele foi morto na Indochina. A França não tem o direito de tirar agora de mim o meu filho. A França não é nada mais que um lugar onde há muito dinheiro (Taïa, 2022TAÏA, Abdellah. Vivre à ta lumière (French Edition). Paris: Seuil. 2022. Edição do Kindle., p. 1-120, tradução caseira de Flavia Trocoli).2 2 Tout l’amour de cette terre. Tout l’amour qu’il y a sur cette terre ne me suffira pas et ne m’aidera pas à supporter ce qui m’arrive après toi, Allal. Tu es parti si loin, dans un monde dont je n’ai aucune idée. Et tu ne reviendras pas. Il n’y a plus maintenant devant moi que le souvenir, l’absence, l’amour sans toi. Allal, tu es mort. Tu as suivi des routes que je ne connaîtrai jamais. Tu as respiré l’air d’un autre pays. Tu as mangé d’autres nourritures. Tu as vu d’autres gens, d’autres paysages, d’autres ciels. Tu es entré dans le cœur de gens que je ne rencontrerai jamais. Tu es allé tout au fond d’une existence qui me sera pour toujours inconnue. J’ai fait ce que j’ai pu. La France a pris Allal, mon premier mari. Elle l’a tué en Indochine. La France n’a pas le droit de me prendre mon fils maintenant. La France n’est qu’un lieu où il y a beaucoup d’argent.

Gostaria de destacar a ressonância sonora entre terre e se taire. Entre a terra e o se calar. Sem deixar de lembrar que, em “Circonfissão”, de Jacques DerridaDERRIDA, Jacques. Circonfissão. In: BENNINGTON, Geoffrey; DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 11-218., também escutamos tal homofonia; a mãe se chama Esther, evocando a terra e o calar. O calar estaria também do lado da história das mulheres, das mães, das avós. Então esse é um primeiro ponto que acho recorrente na sua literatura. Gostaria também de destacar a estrutura de carta ou de diálogo. Mesmo quando você não escreve, digamos assim, seguindo as leis do gênero epistolar, há sempre uma estrutura de endereçamento na sua literatura. Eu diria até um endereçamento aos fantasmas. Uma palavra, ou um grito da terra, que não pode mais ser calado. O endereçamento - como forma e como estilo -, isto é, escolher alguém para dizer, implícita ou explicitamente, mesmo ou principalmente sendo um fantasma, modifica a lembrança?

Isso posto, gostaria de pensar com você hoje aqui na UFRJ, num momento em que o Brasil talvez ainda precise se dar conta de que é preciso ainda muito trabalho de elaboração de seu passado de colônia e escravocrata - feridas ainda abertas -, em que medida o diálogo e o luto são uma forma de resposta, literária é claro, à colonização, à guerra, ao extermínio e ao silenciamento que sustentam os preconceitos de classe, de gênero e de raça. O diálogo é lágrima e arma contra os diferentes modos de poder totalitário?

Abdellah Taïa/Tradutora: Tudo o que escrevo vem de uma voz e, no interior dessa voz, tem muitas outras vozes. Nasci numa família muito grande e muito pobre. Eram 11 pessoas em três cômodos. E eu fui o oitavo. Sempre fui fascinado pelo tempo que as minhas irmãs, meus irmãos, meu pai, minha mãe, viveram antes de eu nascer. Fascinado por esse passado que se deu antes de mim, mas que era completamente presente porque as pessoas falavam dele o tempo todo no meu entorno. Então, quando eu era adolescente, acreditava que essas pessoas que vieram do passado eram quase uma ficção científica, o que, ao mesmo tempo, é uma ficção científica muito real, muito presente. Havia a presença desses corpos em uma situação de promiscuidade entre a gente, já que eram 11 pessoas em três cômodos, então era um caos entre esses corpos, o tempo todo. Uns sobre os outros, e uns dentro dos outros. E, muitas vezes, um do lado do outro. Não tinha cama, por exemplo. Vim de um mundo em que a ideia de uma cama individual não existia. Uma cama para uma pessoa só era uma coisa muito triste, a coisa mais triste do mundo.

Havia esse lugar onde a gente vivia, onde a gente comia, onde a gente brigava, onde a gente trocava de roupa, era todo mundo ao lado um do outro, menina, menino, menino, menina - esse, então, também era o lugar onde a gente tinha que passar a noite juntos. E essa noite era uma cobertura no chão, com vários cobertores, um em cima do outro no chão. E aí a nossa mãe dizia: “não mergulha, não pula!” Então, essa ordem “não mergulha, não pula” também era uma coisa do mar. [Inaudível] Essa ideia de mergulhar na noite, de dormir, é uma memória de todos nós, coletiva. Não só da minha família, mas de todas as pessoas. Vocês sabiam que os seres humanos vêm do mar? Nesse tempo, nesse tempo do mar, nesse tempo do dormir, era lá que a gente via aqueles que voltavam, os outros que voltavam. É nesse momento que a gente dorme que os ecos dos outros retornam. Essas vozes retornam e se tornam nossas. Como quando a voz de uma pessoa individual, como a minha, para e começa a se tornar outras vozes, como um corpo que vira outro corpo. Como se o meu corpo virasse também o corpo de todo mundo à minha volta, de minha mãe, de minhas irmãs, e de todos os outros.

Imaginem essas 11 pessoas convivendo na mesma casa todos os dias, que falam, que gritam, que comem, que brigam, que transpiram, que têm cheiros; não tinha perfume na época. E isso não era um problema. Não era um problema lidar com os cheiros uns dos outros. O que eu quero dizer é que, quanto a esse aspecto físico, há também a voz, ou melhor, a voz dos outros. E não só a voz do que escuto à minha frente, mas também nas vozes que escuto do passado, as vozes que vêm do passado. Como eles vieram antes de mim, eles falavam de um tempo em que eu não existia, mas que existia através das histórias que eles contavam.

Eu era muito apaixonado pelas minhas irmãs, que eram todas divas. Pobres, mas divas. Muito divas. Elas queriam sexo, queriam amor. Elas não tinham medo da sociedade, do pai e de tudo isso, mesmo naquela época. Então elas me usavam, eu, o pequeno menino gentil e gay, para encontrar os homens. Para encontrar, procurar, paquerar. Para contar mentiras para eles. E, enquanto elas encontravam os homens para transar, eu esperava tomando um sorvete. Era assim que eu tinha acesso à voz das minhas irmãs livres. No desejo sexual. Era a coisa mais transgressiva e mais bonita do mundo: um irmão que ajuda a sua irmã a encontrar o prazer sexual.

Para mim, era muito importante que as minhas irmãs não tivessem vergonha de estar na minha frente. Elas tinham todas essas estratégias de sedução na minha frente. E posso falar a mesma coisa de minha mãe. Ela, enquanto todo mundo falava e gritava, gritava ainda mais alto do que todo mundo, como um rádio permanente que nunca parava. Éramos espectadores privilegiados. Muito privilegiados, mesmo que tivéssemos que ter muitas estratégias para sobreviver, para comer.

Às vezes a gente acordava no meio da noite e encontrava minha mãe sentada numa cadeira num canto repetindo sozinha, como uma comediante, antes de ir ao teatro, como se estivesse ensaiando essas frases que ela queria dizer para o mundo. Mas era ela que escrevia esse texto. Ela tinha todo dia o papel da personagem mais malvada. Ela não era gentil, mas ela tinha o sentido do sacrifício. Ela fazia tudo por nós. Ela nos impunha essas estratégias, mas não tentava nos convencer delas.

Falo tudo isso para responder à questão das vozes, do endereçamento. Para dizer que, no meu corpo, tem muitas vozes, e vozes que eu não tentei registrar, mas que, sozinhas, se registraram no meu corpo. Acho que nem procurei ser escritor. Foi só uma continuidade lógica que fez com que eu fosse esse que continuasse a dizer essas vozes, a minha voz e as outras vozes. E elas se misturam, todas. Acho que hoje é isso que é ser gay, é você recolher essas vozes de todos, a memória de todos os outros, e escrever. Nunca escrevi na terceira pessoa, tudo que escrevo é uma voz na literatura, na primeira pessoa.

Minha mãe, quando não sabia o que fazer, quando estava entediada, ela dizia: “Fatima, Abdellah, venham comigo!”. E a gente tinha uma vizinha de quem ela não gostava, com quem ela tinha um problema, um acerto de contas muito antigo. E aí, do nada, o momento de acertar essas contas tinha chegado. E a gente bateu lá. Quando a mulher abriu a porta, a minha mãe quase incendiou e vomitou sobre ela tudo que ela estava segurando, guardando. Era uma poesia malvada e bela. Um pouco como Nicki Minaj hoje em dia. É o mesmo estilo. Adoro Nicki Minaj. Para mim, é uma grande mulher. Nicki Minaj é uma grande escritora, ela quem escreve, ela quem compõe, ela vem de Trinidad. Estou falando sério. Um parêntese. Ela viveu em Trinidad, quando era pequena, com a avó dela, então essa seria uma de suas vozes. Minha mãe foi uma precursora da Nicki Minaj. O que quero destacar é essa coragem de ir lá e incendiar alguém que fez mal a ela. E não esquecer a vingança. E fez tudo isso na frente das crianças, ela não tinha problema… Vejam, não era uma realidade que se dava sob essa noção do “bem”, era uma realidade muito complexa, muito ambígua. E acho que esse material é perfeito para a literatura. A literatura não é preto no branco, tem alguma coisa que se mistura, mas que a gente não sabe o que está se misturando com o quê. É claro que essas pessoas eram pobres, e claro que escutar a voz dessas pessoas pobres também era importante para os gays. Eu me projetava neles, eu me projetava nessa mãe que grita. Como criança gay, naquele momento, eu via um modelo a seguir. Se vingar e não ser gentil.

Francisco Renato de Souza: Eu sou Renato, bom dia. Sou pós-doutorando pelo PPG em Ciência da Literatura, sou bolsista FAPERJ. Agradecendo à Flávia, agradeço em eco todos os agradecimentos que ela fez. Principalmente o de propiciar a leitura do seu livro Aquele que é digno de ser amado (2018TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.), que, aliás, estou adorando.

Mas antes da minha pergunta, quando você falou dessa questão da sua família, dessa imagem da família, do quarto, desse mergulhar, de todos comendo juntos, veio uma imagem para mim do seu filme. Daqueles momentos em que a mãe, com o filho caçula, as irmãs, estão sempre todos juntos, todos dormindo juntos, comendo juntos. Só para dizer que quando você falou sobre a sua história familiar real me veio essa imagem ficcional.

A.T./Tradutora: Sim. Esse filme é muito autobiográfico, e a construção do filme vem muito desse mundo.

F.R.S.: Sim, enquanto você falava, a imagem que eu construía era a das cenas do filme.

F.R.S.: Mas a minha questão vai também em direção a essa estrutura da carta. Por isso que eu pedi para falar depois da Flavia. A Flavia fala da estrutura da carta, do endereçamento aos fantasmas. Gostaria de poder destacar essa estrutura que são as cartas, quatro cartas que atravessam 25 anos da vida daquele que me parece ser o fio que, digamos assim, costura a narrativa de Aquele que é digno de ser amado (2018TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.), que é o personagem Ahmed, que também se alterna nas narrativas entre ser o remetente e o destinatário das cartas. Na primeira e na terceira carta, ele é o remetente, na segunda e na quarta, ele seria o destinatário. Na primeira carta Ahmed se endereça à mãe, que já está morta. Na segunda carta, Vincent, que foi um amante de Ahmed, se direciona a Ahmed, que então tem um paradeiro desconhecido, ou seja, se direciona para alguém que ele não sabe onde se encontra. Na terceira carta, Emmanuel, o destinatário, está ali, próximo, dormindo. Mas há a iminente partida de Ahmed, pois o fim da carta sugere que Ahmed parte, dá a entender que ele vai partir. Então, teria ainda o destinatário, que seria Emmanuel, mas já se perde o remetente, porque Ahmed some. E mesmo que Emmanuel responda essa carta, a resposta não teria mais um destinatário, que seria Ahmed. Poderíamos pensar na possibilidade de Ahmed receber a quarta carta, mas o provável suicídio de Lahbib, o emissor, não apenas inviabilizaria um remetente, como a própria possibilidade da emissão da carta, pois ele morre. Então, assim, eu acho que você já respondeu um pouco a minha pergunta quando você fala que a sua voz, na sua escrita, ecoa as muitas vozes que nela habitam. Então, minha pergunta é: o destinatário final dessas cartas sendo o leitor, quem seria o remetente dessas cartas? Seria o narrador, esse narrador-autor que emite muitas vozes pela voz da personagem que escreve cada carta?

A.T./ Tradutora: Falei há pouco tempo da minha mãe que se levantava à noite e falava. Não tinha ninguém, todo mundo dormia, mas ela falava. A quem que ela falava? Podemos dizer que ela falava ao Céu, a Allah, a Deus. Pode ser que ela falasse com a gente que estava dormindo, pode ser uma espécie de feitiço. Ela não esperava resposta. Ela estava numa urgência biológica que a impulsionava a dizer aquilo, a dizer alguma coisa. Alguma coisa precisava ser dita de maneira violenta, uma saída quase definitiva. A resposta não existe.

F.R.S.: Mesmo quando em algumas cartas existe um pedido de resposta, seria sobre esse caminho que você está falando? Mesmo quando o emissor da carta parece dizer: “Responda, responda”?

A.T./Tradutora: Parto do princípio de que, se a resposta chegar, ela será uma decepção, nos colocando numa lógica narrativa um pouco limitada. Clássica. Para mim, a escrita tem um efeito de elipse. E de coisas cortadas. Então, a gente pega a faca e corta. Tudo o que escrevo é fragmentário, é baseado em coisas que a gente não diz. Mas, de verdade, a estrutura desse livro vem dessa imagem da minha mãe, à noite, sentada, falando sozinha, enfim, a quem ela fala? Porque tem que ter uma certa coragem para fazer isso… Ela poderia parecer louca, mas ela não estava nem aí. Ela era tomada por alguma coisa que falava e que ela precisava fala. Não interessava se a gente ouvia ou não. E, então, essa ideia vem daí…E aí, em seguida, penso que a escrita não tem que ir ao seu fim. Porque, na vida real, as coisas não chegam ao objetivo delas. Na vida real, com num filme, as coisas começam e terminam. E terminam do nada, a gente não sabe qual a razão para elas terminarem. E isso, para mim, é o princípio basilar da escrita. Nesse livro tem um diálogo que se instala, mas é um diálogo que se dá entre... não sei bem como dizer isso. É como se todo mundo falasse na noite, é como se todo mundo estivesse falando à noite. Vocês não se conhecem e, no entanto, o espaço em que vocês falam acaba fazendo com que vocês se encontrem, sem vocês se procurarem, sem que vocês saibam…E esse espaço é o livro. Não quero nunca escrever uma história clássica. Não sei se convenci você.

Tem também o fato de ser gay que, pelo menos para mim, na minha experiência como homossexual, quando você é criança, adolescente, você não tem ninguém para conversar. Essa ideia de que os gays não existem. O mundo diz que eles não existem. Você não deve existir. O mundo diz e rediz isso. Então como fazer para continuar a existir? Porque tem um corpo que está ali, que respira, que come. Que precisa continuar a viver de uma maneira ou de outra. E aí penso que, nessa relação com uma não-resposta aos gays, os gays precisam encontrar um espaço onde eles falam sem esperar uma resposta. Qual será a resposta? Será: “você não existe”. Então, a gente não pode o tempo todo se endereçar a pessoas que simplesmente vão continuar a te negar, te negar, te negar. [Inaudível].

Por exemplo, numa história de amor, às vezes, a gente escreve uma carta estando apaixonado, mesmo sabendo que o outro não ama a gente. É esse desespero que enche, que chega até nós, que nos permitirá ir ao fundo das coisas, justamente porque não terá resposta. Espero que eu não soe muito desesperado para vocês. Mas vocês entendem que, às vezes, a impossibilidade é o que permite que a gente se revele? E foi isso que fez com que eu fosse um escritor. Então, não existo como gay, a literatura é só para os burgueses marroquinos, lá onde eu não existo. Tais impossibilidades, na vida real, elas existem, elas são reais. A gente precisa se mexer para encontrar não sei que tipo de coragem, para fazer um pouco como a minha mãe fez, como fez a Nicki Minaj (risos).

E tem uma coisa que me fascina hoje, mesmo que eu não faça isso. Há pessoas que fazem live no Instagram para soltar tudo que têm no coração, para fazer sair. Frequentemente, esses vídeos são vazios, não tem interesse, mas tem algumas pessoas que realmente sabem usar esse mecanismo da live para fazer passar alguma coisa. Há pessoas que usam até palavrões, palavras sexuais, para expressar uma coisa que sai dali e, dentro disso tudo, tem alguma coisa bonita. Acho que vocês devem ter exemplos disso aqui também. Quero destacar essa ideia de uma fala que sai porque ela tem que sair, não importa através de qual meio ela vai sair. Pode ser literatura, pode ser Instagram, pode ser uma briga. Mas essa saída, com certeza, não espera uma resposta.

F.R.S: Porque tem algo, que eu vejo que é recorrente nas falas presentes nas cartas, algo como “eu não perguntei, eu deveria ter perguntado, eu não disse”, e por isso, talvez seja sobre isso que você esteja falando, não vai ter mesmo resposta. Mas tem ainda esse, não digo arrependimento, mas o pensamento sobre o que eu não perguntei, e que agora não vou saber já que o outro já não está mais aqui, porque sempre está distante. Porque essa voz que, como você falou agora, se endereça não para alguém diretamente, mesmo que tenha ali um destinatário, mesmo que Vincent esteja falando para Ahmed, ele está falando para uma ausência, porque Ahmed não vai receber essa carta.

F.T.: Você está dizendo que esse falar não está na dimensão da simetria, não é?

A.T./Tradutora: A literatura não é um espaço democrático. É um espaço para dizer coisas que não procuram ser resolvidas. É só pensar nisso tudo sem ir para uma resolução. De novo, volto para experiência de ser gay. Os gays vivem essa vida completamente sozinhos sem conseguir estabelecer um diálogo com as pessoas próximas. Vivem ao lado delas, mas não falam como eles vivem, pelo que eles são atravessados. A dificuldade de ser gay, muito mais do que para os heterossexuais, é um silêncio, e mesmo assim ninguém procura saber o que é ser… É terrível… E pode até levar à morte. Entretanto, para esses gays, é demandado participar da vida heterossexual: escutar, aconselhar todo mundo, ir aos casamentos, padrinho, madrinha, sem parar nunca… E aí se algum dia esse gay diz: “Olha, eu existo!”, eles dizem “Ah é? Você existe? Bom, a gente deixa você ficar do nosso lado, o que mais você quer além disso?”. Então, na minha vida tem isso, essa não resposta permanente. Porque as pessoas, na verdade, não pensam sobre isso, elas não pensam no que atravessa a vida de uma lésbica, a vida de um gay, elas não se preocupam em procurar saber como é essa vida cotidiana. E isso é uma violência imensa.

Conheço o tio do marido da minha irmã. Ele se divorciou, fez uma operação no hospital, não sei mais o quê... Sei da vida de pessoas que nunca encontrei.

E minhas irmãs não perguntam nunca o que eu vivo. Até hoje. E isso é muito difícil. Espero que vocês entendam, tenham entendido. Acredito que eu poderia ter sido mais duro com minha família, poderia ter sido um assassino, porque é muito difícil estar com um monte de gente em volta e se sentir sozinho no meio de todas essas pessoas.

Não há uma única resposta que a gente dá aos gays. Acho que a gente tem que ter a arrogância literária de não dar resposta a eles. Porque, se a gente responde, o que vai sair como literatura não vai ser… não vai ser bom, não vai ser interessante. Porque vamos acabar escrevendo para responder a eles de novo. Vai ser, ainda, sobre eles. Hoje em dia eu nem ligo que eles não compreendam, não é importante.

Hoje eu vejo e penso “ah, fiquem entre vocês e eu vou fazer meu livro”. Mas acho que esse livro é muito violento. Por exemplo, a primeira carta é muito violenta. E acho que ele foi benéfico para esse retorno desse sentimento de solidão da infância no meio deles, e que retornou como imigrante na França, tendo sido revivido uma segunda vez.

A experiência da imigração rememora tudo isso. E tem a questão do colonialismo nesse livro. A terceira carta começa assim: eu quero sair da sua língua. Eu quero sair da língua francesa e de tudo o que você me impôs através da língua francesa. A voz que afirma isso não quer mais o reconhecimento da França, porque compreendeu, na verdade, que, dentro dessa língua francesa, quem diz ele não existe. Quem diz ele é ignorado pelo francês e pela língua francesa. E, mesmo para os franceses, se a gente tenta ser compreendido, tenta fazer eles compreenderem... Isso entra por um ouvido e sai pelo outro. Então, nesse momento, não ligo, não acredito na democracia para literatura.

F.R.S.: Ele quer deixar de ser Midou e voltar a ser Ahmed...

A.T./Tradutora: Sim, ele não quer mais ser o “cachorrinho” de Emmanuel, o arabezinho que conhece a literatura francesa, que é aceito pelos franceses brancos e que fala muito bem o francês. Eles o aceitam porque ele fala como eles, porque ele é eles. Então, quem é ele na verdade?

Davi Andrade Pimentel: Não sei se tenho tempo para falar (risos).

A.T./Tradutora: Você tem todo o tempo agora.

D.A.P.: Muito obrigado, Taïa. É um imenso prazer poder conversar com você sobre a sua obra. Bem, devo agora aproveitar o meu tempo (risos). Bom dia a todos. Aos meus colegas de mesa. Obrigado, Flavia, pelo convite de estar presente nesta bela mesa. E obrigado, Renato, pela companhia tão enriquecedora. Aliás, obrigado aos meus dois colegas pelas falas tão bem elaboradas e tão pertinentes sobre a obra de Taïa. Uma brevíssima apresentação sobre mim: chamo-me Davi Andrade Pimentel e sou pós-doutorando Sênior UFRJ/Faperj, desenvolvendo uma pesquisa de tradução da obra da escritora argelina e francesa Hélène Cixous. Agora, vamos ao que nos trouxe aqui: a potente obra de Taïa.

Gostaria de iniciar a minha pergunta-reflexão com uma frase do filósofo Jacques Derrida, presente em seu livro Força de Lei (2007DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007.), cito-a: “A ruína não é uma coisa negativa”. E, a partir dela, tentar construir, se possível, uma pergunta que envolve diretamente uma bela cena em ruínas, que se origina e que se escreve sobre e sob ruínas, do livro Um país para morrer (2021TAÏA, Abdellah. Um país para morrer. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora Nós , 2021.), de Abdellah Taïa. Esta cena se dá em frente ao metrô Couronnes, de uma Paris com seus escombros metafóricos e reais, encenada por dois personagens que, cada um à sua maneira, carregam em si suas ruínas, são eles: Zahira, uma prostituta marroquina, e Mojtaba, um rapaz em fuga do Irã por sua posição política e por ser quem é, por ter se apaixonado por Samih. Esse encontro de ruínas pessoais nos permite ver e sentir como a ruína pode não ser uma coisa negativa, de como a ruína pode, sim, nos dá a ver o acolhimento e a hospitalidade humanas sob os escombros de vidas que se fizeram, que se alimentam e que existem por meio de suas próprias ruínas. A imagem final desse primeiro encontro retoma e reencena, a meu ver, a Pietà, de Michelangelo, mas de maneira a fazer resistência e a questionar, pois se trata de uma Pièta decolonial no coração de uma das maiores metrópoles da Europa.

Interrompo, aqui, a minha pergunta-reflexão para ler para vocês essa passagem tão significativa do livro Um país para morrer (2021TAÏA, Abdellah. Um país para morrer. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora Nós , 2021.), que se encontra na página 95. Destaco que quem está narrando, neste momento, é Zahira: “Ele vem de longe, esse rapaz, de muito longe”. Prestem atenção que a pontuação na narrativa de Taïa é muito importante. Neste momento da narrativa, a recorrência dos pontos finais são uma espécie de retomada do fôlego, do sopro, da narradora. Dito isto, retomemos: “Ele vem de longe, esse rapaz, de muito longe. Ele vagueia há tanto tempo. Ele vai. Desloca-se constantemente. Não tem mais centro. Já não sabe onde encontrar a energia para continuar vivendo. / Eu me aproximei dele. Passei meu braço em torno do seu. Ele precisava disso. Ele me fez essa pergunta com um francês quebrado e charmoso: / ‘Barbès fica longe daqui?’ / Respondi com um sorriso largo: / ‘Não muito. Um pouco depois da linha 2 do metrô.’ / Não deu tempo de escutar minha resposta. Ele perdeu a consciência. / Tirando o momento do gozo sexual, eu nunca tinha visto algo assim. Um homem que desmorona, que perde o controle do corpo, do espírito, da energia. Um homem que cai. / Eu o acompanhei nessa queda tentando segurá-lo, tentando desacelerar o movimento do seu corpo para baixo. Consegui. / Agora eu estava com o traseiro no chão e com esse jovem em meus braços. As pessoas começaram a se aglomerar ao nosso redor. Normalmente indiferentes, do nada elas ficaram gentis”. Essa imagem é muito bonita! A meu ver, é um dos momentos mais... solar! Esse encontro do Mojtaba e de Zahira da narrativa, no Paço de Luxemburgo, é o sol na escuridão de Paris.

É o momento mais solar da narrativa, porque toda ela, a meu ver, está em ruínas. E, no momento que Zahira se deixa, digamos, penetrar pelo outro, acolhendo-o, é o instante em que a narrativa se ilumina. Muito embora, quando eles decidem visitar o Jardim de Luxemburgo à noite, a narrativa volte a ficar nublada, retomando o seu tom cinza anterior.

A partir dessas reflexões, gostaria de perguntar a Taïa, como é possível, e se é possível, sobreviver, enquanto escritor, a essa escrita em ruínas que fala de modo tão visceral desses seres que continuamente vivem sob escombros, carregando suas ruínas para além das fronteiras de seus países natais.

A.T./Tradutora: Esses personagens são ruínas, é verdade, mas são ruínas, como diz Derrida, muito vivas. O livro não os apresenta como pessoas sem capacidade de reação, muito pelo contrário: eles têm muita consciência da posição inferior que lhes é imposta pela França. Para a França, eles são só corpos de imigrantes para serem explorados. Mas o livro permite que a gente veja o que eles pensam da França. E, melhor que isso, eles ultrapassam essa exploração.

Tudo bem, eles não são nada para a França, mas o livro não os mostra como um nada, muito pelo contrário. É um livro trágico e brasileiro, se posso dizer assim, porque tem uma capacidade de se levantar o tempo todo. Porque, durante todo o livro, são eles que fazem Paris, eles não se referem aos franceses brancos. Isso não conta para eles. Eles estão no centro de Paris. Porque, entre eles, eles inventam uma maneira de ser uma ruína sublime, uma ruína onde a gente tem vontade de viver. Os velhos não são velhos, é a sociedade que diz que eles são velhos, que diz que: “Vocês não estão mais aí para o mercado de exploração. Que morram”. Então, mesmo que o livro fale da morte, ele fala muito mais da vida. Ele é cheio de vida. Então, de novo, mais uma vez, não é para gente se endereçar à França ou mesmo explicar o que quer que seja à França.

É preciso falar do mundo deles no centro da França sem a França. Vejam essa prostituta marroquina, Zahira, que não se deita com nenhum homem a não ser que seja um imigrante ilegal. É uma santa, não é? É uma santa que caminha nas ruas de Paris. De Barbès, não de toda a Paris, claro.

Lembrem que há duas prostitutas, a Zahira, que era a santa, e tem Zannouba, que, ao contrário, acha que vai ser salva por esses homens brancos que se deitam com ela. O livro, primeiro, a mostra como Aziz, como homem, depois ela passa pela transição e é apresentada de novo como Zannouba. E aí, através deles, tem duas ruínas: a ruína da infância e a ruína de um corpo feminino também. Porque tem essa imagem que imaginamos de um corpo feminino, mas que a cirurgia e a medicina não têm como dar. Então, depois da operação, Aziz fica muito decepcionada. A medicina não deu para ela o corpo de mulher que ela sonhava na sua cabeça e no seu coração. Quando eu era adolescente, eu vivia em um lugar muito pobre e eu queria viver na França. Mas eu não tinha dinheiro nem para pagar um ônibus, então imagina pagar um avião. Então precisava encontrar lugares ou encontrar pessoas que tinham dinheiro. Talvez me prostituir ou seduzir. Encontrar uns turistas brancos perdidos que têm tanto dinheiro que nem sabem o que fazer. Estávamos lá para roubar o dinheiro deles.

A minha ideia era: “Ah, bom, eles estão nas ruínas e nos momentos históricos de Rabat e do Marrocos”. Na época, eu tinha um pouco de vergonha de fazer isso, porque todo mundo tem um pouquinho de vergonha de se prostituir. Mesmo que todos nós sejamos um pouco prostituídos. Mas, hoje, acredito que não foi nada o dinheiro que eles me deram, já que dei para eles minha vida, meu coração, minha juventude. Fui eu que seduzi, fiz o esforço. Eu fazia o trabalho todo. Depois de tudo, eles tiravam o dinheiro do bolso, e isso não é nada! Eu era o rei! Não é? Sim! E isso sempre passava nas ruínas! É isso.

D.A.P: E é interessante a imagem das divas e a imagem do feminino em Um país para morrer (2021TAÏA, Abdellah. Um país para morrer. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora Nós , 2021.). Pois no livro há uma forte presença do cinema, do cinema indiano e, claro, de Isabelle Adjani. Ou seja, tem toda uma formação ficcional do feminino que vai sendo criado e construído pela criança, na figura de Aziz, por exemplo. É toda uma construção ficcional do feminino que se apresenta para aquela criança que era o Aziz e que, quando ele transiciona, quando ele se afirma ela, quando se vê Zannouba, ele não consegue mais restituir aquela ficção do feminino, da diva, que ficou guardada em seu imaginário, em seu passado, que ficou reservada em seu passado.

A.T./Tradutora: De novo, a realidade que é uma decepção, porque o mundo entre nós, os seres humanos, não vai no fundo do que a gente procura. A maior parte das histórias de amor são tristes, o amor acaba. Tem algo disso nessa personagem, porque o mundo não atende ao desejo que ela tem de ser mulher, porque tem alguma coisa que não é possível na realidade, nesse desejo. E, nesse contexto, as atrizes são as verdadeiras deusas desse mundo, porque elas se permitem interpretar tudo o que existe na missão de interpretar. Porque elas se deixam ser possuídas, assim, por outras vozes e por outras pessoas. Acredito verdadeiramente que é o cinema que salva. É uma arte que salva.

Público: O cinema indiano, mas as novelas egípcias também.

A.T./Tradutora: Absolutamente. Para mim, os filmes egípcios, na televisão marroquina quando eu era criança, nos anos 1980, eram o auge da minha semana, da minha vida. Porque só tinha um canal de televisão e os filmes egípcios passavam uma vez por semana, na sexta-feira. Na sexta-feira à tarde. Omar Sharif, Faten Hamama, Nadia Lutfi. Lembro-me, sobretudo, das atrizes egípcias. Ver esses corpos que, como eu, falavam árabe, era alguma coisa que me tirava de uma condição de loucura. Vê-los me permitia entrar numa loucura mais rica. E é por isso que nesse livro tem muitas atrizes. Isabelle Adjani, vocês conhecem a Isabelle Adjani? Venero a Isabelle Adjani. Ela, muitas vezes, faz o papel da mulher louca. Para mim, é a atriz que tem o melhor grito do cinema. Ela é extraordinária. Seu pai era argelino, a mãe era alemã, e ela nasceu na França. Então ela simboliza alguma coisa outra da França. Um corpo que está na França, mas não é como a França. Vejo essa multiplicidade da Isabelle Adjani quando ela interpreta os papéis. Ela é maluca igual às minhas irmãs. Da mesma maneira. Obsessiva, gentil e, subitamente, pode virar de uma coisa para outra. Ou seja, há uma incapacidade de sequestrá-las emocionalmente, de fazer um sequestro emocional. Você não sabe mais o que acontece. Não é mais sobre interpretar, atuar, acontece outra coisa. Imaginem que, ao redor de mim, havia sete “Isabelles”: a minha mãe e as minhas seis irmãs. Eu não me entediava nunca. Até o presente momento, entendi como manipular essas irmãs, mas não a minha mãe. Uma das coisas mais tristes do mundo foi quando minhas irmãs começaram a se casar e a ir embora. Eu não entendia como temos uma irmã em casa e, do nada, um estranho entra na casa, fica assim sentado e todo mundo começa a se comportar como serventes, escravos dele com comida, com bolo. Todo mundo sendo falso com ele. E é esse homem que vai pegar sua irmã e levá-la embora. Eu ainda não entendo como. Uma atrás da outra, todas foram indo embora. Mas por quê? E com homens estrangeiros… para elas virarem escravas desses homens. Antes elas eram mais livres, faziam sexo com todo mundo. E aí, do nada, vem um homem, um só homem e ainda tem que trabalhar para ele. Não são nem pagas por esse trabalho. Elas ganham presentes e coisinhas, flores, mas não... E isso me fascinava muito, como elas manipulavam esses homens. E aí, do nada, esses homens completamente regulares entravam em casa e falavam: “Ah bom, eu sou um Deus, vem ser minha escrava”. Felizmente, a Isabelle Adjani nunca se casou.

Público: Ela se casou com Daniel Day-Lewis.

A.T./Tradutora: Não, foi apenas uma história de amor. Ela teria se casado com Daniel, mas foi só uma história de amor, e ele era mais maluco que ela. Muito mais. Mas, a dele, não era uma maluquice interessante, era a maluquice de um ator, uma maluquice técnica. A Isabelle Adjani é ligada ao cosmos. E o outro é ligado à técnica. Não podemos comparar, na minha opinião.

Público: Gostaria de aproveitar para falar da Isabelle Adjani e da recepção, no Marrocos, das novelas egípcias e dos filmes indianos. Aqui no Brasil, o nosso senso comum sobre o Marrocos é a partir de uma novela de 2001 que fez muito sucesso, que se chama O Clone. Não sei se você já ouviu falar.

A.T./Tradutora: Eu adoro. Há uma novela dos anos 1990 que se chama Dona Beija.

Público:Dona Beija, que é a adaptação de um livro. Mas essa é mais antiga. Aproveitando que você falou da recepção… Você fala das mulheres muito como subjugadas e do homem como aquele que manda. Porém, em seus livros, tanto em Um país para morrer (2021TAÏA, Abdellah. Um país para morrer. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora Nós , 2021.) como em Aquele que é digno de ser amado (2018TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.), a mãe aparece como uma ditadora. E a gente tem uma imagem do pai que causa muita empatia. A gente lê sobre, tanto o pai da prostituta em Um país para morrer (2021TAÏA, Abdellah. Um país para morrer. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora Nós , 2021.), quanto o pai do personagem principal em Aquele que é digno de ser amado (2018TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.), são postos como se fosses subjugados à mãe. E a mãe é muito presente na sua fala. Apesar de a mãe não ter voz, exatamente, nos seus livros, ela chega a partir do outro. O pai, por sua vez, tem voz. Como é essa questão da mãe que aparece só a partir do narrador? Como foi a recepção na Europa, na França, dos seus livros? Pergunto isso porque você é um homossexual vindo da periferia - um homossexual que não existe -, e você fala que não escreve em terceira pessoa. Mas é a França que te publica, e como é essa relação? Você acredita que a França usa o seu texto de alguma maneira? Qual maneira seria essa? São várias perguntas, na verdade.

A.T./Tradutora: Não, sou mais inteligente que a França, porque o que ponho no meu livro não vai no sentido do que a França quer que alguém como eu escreva. Mas tenho consciência de que tive sorte. Foi uma sorte que procurei, pela qual trabalhei. Mas, mesmo que tenha um racismo em torno do meu livro, para mim não é nada importante. Não estou tentando convencer ninguém, porque o mais importante é escrever o livro, encontrar o editor, e que alguma coisa seja bonita. Que o livro exista, que ele tenha um sentido. E é muito difícil chegar a esse lugar, realizar isso. Mesmo um livro pequenininho é construído, é pensado. E não é fácil chegar a isso, a essa forma acessível para os outros. E, para mim, encontrar um editor já é uma grande vitória, porque consigo ir ao objetivo do que quero fazer. Na França, vocês sabem que tem muito preconceito, muito racismo, em relação aos muçulmanos, aos imigrantes, eis o grande paradoxo da França.

Público: Existe um mercado, não é mesmo? Existe um mercado de leitura sobre as minorias. Contudo, ao mesmo tempo, esse mercado não acaba com a discriminação que a minoria sofre. Você acha que você é, muitas vezes, digamos, “manipulado” por esse mercado editorial? Entre aspas, digo. Ou é você que manipula, digamos assim, é você que sabe orquestrar?

A.T./Tradutora: Não, não, acho que não. Quem leu o livro sabe que não tenho como ser manipulado. Você leu o livro e sabe que está tudo aí, está tudo claro.

Público: Digo em relação à recepção do outro.

A.T./Tradutora: Para ser rápido, não sou um superstar na França.

Público: Mas é premiado.

A.T./Tradutora: Ao mesmo tempo, não sou confidencial, não sou um segredo, sou conhecido. E meus livros vendem, são livros de bolso. Então eu existo, mas os desafios do momento passam e o que fica é o livro. Por isso, é importante que o livro fale uma coisa maior do que só os problemas, os desafios do momento. Essa história de ser acolhido é importante, mas também não é importante e não sou um superstar. Porque, se eu fosse um superstar, as pessoas iriam ler o livro com muito mais... com uma lupa, não é? E os franceses não iriam ficar nem um pouco felizes com a terceira carta, por exemplo, de Aquele que é digno de ser amado (2018). Eles não iriam ficar nem um pouco felizes.

D.A.P.: Mas você é um superstar! Você é Isabelle Adjani!

A.T./Tradutora: Ah, eu? Não, não, eu não posso ser Isabelle Adjani.

Público: Então você é o Abdellah Adjani.

Tradutora pergunta para A.T.: Tenho uma pergunta. Está tudo bem? Você já está cansado?

A.T./Tradutora: Não estou cansado, nem um pouco. Estou no Brasil, não posso estar cansado.

Público: Só uma curiosidade. Primeiro: Como ele é lido no Marrocos? Se ele chega ao Marrocos?

A.T./Tradutora: Sim, sim, meus livros estão no Marrocos.

Público: Só uma outra pergunta, e isso é uma grande curiosidade minha. Como você leu Barthes?

A.T./Tradutora: Não, não, não. Esse livro precisa ser esquecido. Esquece esse livro. É preciso esquecer Incidentes de Roland Barthes. É um livro orientalista do Barthes.

Público: Mas ele mesmo não quis publicar.

A.T./Tradutora: Mas foi publicado depois.

Público: É, mas o que eu queria dizer é justamente isso. Quando você estava contando a história de que você ia para as ruínas e [inaudível]. Quer dizer, como essa visão do homem branco francês em relação aos homossexuais…

A.T./Tradutora: Mas você leu esse livro?

Público: Olha, já faz muito tempo.

A.T./Tradutora: A resposta está no livro. O orientalismo ainda é muito presente no Ocidente. Os intelectuais ainda são muito tomados por isso, mas, na verdade, eles sonham, não é? Ir para o Marrocos, transar com marroquinos... Mesmo o Foucault foi para a Tunísia. Adoro os dois como escritores, mas não me impede de [Inaudível]. Mas mesmo Paul Bowles, o grande escritor americano, Paul Bowles, os intelectuais americanos também fizeram de alguns lugares um grande clube sexual. Há uma cidade no norte do Marrocos que se chama Tânger, que tornaram quase um clube sexual para eles.

Mas tem uma crítica disso nesse livro, em Aquele que é digno de ser amado (2018TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.), através do personagem de Emmanuel. E tem até uma cena em que esses intelectuais, quando se encontram, estão tomados pelo mesmo sonho neocolonialista. E, para eles, não tem o que eu possa fazer. Mesmo que eu escreva na língua deles, continuo sendo visto como inferior a eles. Às vezes, nas feiras de livro, encontro pessoas que nunca escreveram livros e começam a falar de você e explicar o que você escreveu. Quero assinar o meu livro. E, quando eles olham nos meus olhos, eles veem que estou chocado pelo que eles dizem. Eles dizem: “Ah, você escreveu tudo isso então? Em francês?”. Já me falaram até: “Ah não, achei que você tinha escrito em árabe e alguém traduziu para você para o francês”. Eles não têm nem um pouco de modéstia para reconhecer o esforço do outro, toda a trajetória, aprender a língua, aprender o francês, de publicar, escrever o livro, encontrar um editor, tudo isso não é reconhecido. E, depois de tudo isso, falam: “Ah, você escreveu em francês…”, porque alguém como eu não pode escrever em francês. Mas isso tudo veio do meu aprendizado nas ruas do Marrocos, porque lá o Napoleão não é nada... essa arrogância deles.

E esse sentimento de que o Marrocos pertence a eles e não a nós, os marroquinos. Isso é louco, eles se sentem em casa mais do que nós. Principalmente porque eles sabem que a polícia marroquina irá proteger a eles e não a mim, se tiver algum problema. Rio dessa arrogância. O que é que a gente vai fazer? Tem que rir… desculpa à Embaixada da França, mas a literatura é para dizer a verdade. E a literatura está lá para decolonizar. Acho que todo mundo concorda com isso. Acho que isso está bem claro nos dois livros. Não é feito de maneira teórica, mas são essas coisas que me motivam a continuar a escrever hoje, isto é, para me dar conta do quanto a gente é ignorado e que eles instalaram na gente uma espécie de amnésia. É absurdo que se demore tanto tempo para se dar conta disso de uma maneira precisa, não de uma maneira geral, mas de maneira precisa através das coisas que a gente viu, que a gente ouviu. Então esse livro é a mãe, a narradora é a mãe,

Público: É que eu falei que a sua mãe não teria voz nesses dois livros e ela está falando por ela agora mesmo.

A.T./Tradutora: É a resposta da primeira carta desse livro, Aquele que é digno de ser amado (2018TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.). E é todo um livro para essa resposta. Mas é ela que fala, não sou eu.

F.R.S: Então há uma resposta…

A.T./Tradutora: Tem uma resposta que não é escrita como uma resposta. Mas é muito mais como o que contei antes, a minha mãe que vai até a vizinha para incendiá-la, com esse estilo, como forma de uma energia cósmica que nunca vai acabar. E, principalmente, como um confronto com a França. É um livro que vem do primeiro marido da minha mãe. No primeiro capítulo, o primeiro marido da minha mãe foi enviado pra França para fazer uma guerra na Indochina, Vietnã hoje em dia. Ele morre nessa guerra e é enterrado lá nos anos 1950. E aí a França deu indenização para a família desse homem e a família pegou o dinheiro e rejeitou minha mãe. Simplesmente essa família jogou a minha mãe na rua, nos anos 1950, no interior.

Ela tinha até uma filha com esse homem. E, também, pegaram a filha. E aí, de repente, minha mãe se viu sem nada, porque a mãe dela já estava morta e o pai dela tinha se casado e tinha outros filhos. Essa história, que é incrível e trágica, eu só soube quando minha mãe morreu em 2010. Isso foi nos anos 1950 e eu só soube em 2010. E, quando soube isso, fiquei com muita vergonha de mim mesmo. Porque eu ficava pensando: “Como que podia viver ao lado da minha própria mãe e não ter uma curiosidade profunda por ela, o que ela viveu antes, o que teria sido a motivação da vida dela, o que tornou ela dura? Foi por que ela precisava sobreviver e começar de novo sem nada?” E esse livro começa com essa história e vai tendo o confronto com a França até o limite. E é isso. Muito obrigado. Obrigado a todos.

Referências

  • DERRIDA, Jacques. Circonfissão. In: BENNINGTON, Geoffrey; DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 11-218.
  • DERRIDA, Jacques. Força de Lei Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  • TAÏA, Abdellah. Vivre à ta lumière (French Edition). Paris: Seuil. 2022. Edição do Kindle.
  • TAÏA, Abdellah. Aquele que é digno de ser amado Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Editora Nós, 2018.
  • TAÏA, Abdellah. Um país para morrer Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Editora Nós , 2021.
  • TAÏA, Abdellah. Viver à sua luz Tradução de Camila Vargas-Boldrini. São Paulo: Editora Nós , 2023.
  • 1
    A partir dos desdobramentos do encontro, é preciso seguir agradecendo: ao Sergio Novo, por gravar o encontro. À Débora Bomfim Barros bolsista de Iniciação Cientifica (CNPq) e à Marcella Mahara, bolsista de Iiniciação Científica (FAPERJ), por cuidarem da transcrição do encontro, mais uma vez, agradecemos a Abdellah Taïa, por, prontamente, ceder os direitos para publicação da entrevista.
  • 2
    Tout l’amour de cette terre. Tout l’amour qu’il y a sur cette terre ne me suffira pas et ne m’aidera pas à supporter ce qui m’arrive après toi, Allal. Tu es parti si loin, dans un monde dont je n’ai aucune idée. Et tu ne reviendras pas. Il n’y a plus maintenant devant moi que le souvenir, l’absence, l’amour sans toi. Allal, tu es mort. Tu as suivi des routes que je ne connaîtrai jamais. Tu as respiré l’air d’un autre pays. Tu as mangé d’autres nourritures. Tu as vu d’autres gens, d’autres paysages, d’autres ciels. Tu es entré dans le cœur de gens que je ne rencontrerai jamais. Tu es allé tout au fond d’une existence qui me sera pour toujours inconnue. J’ai fait ce que j’ai pu. La France a pris Allal, mon premier mari. Elle l’a tué en Indochine. La France n’a pas le droit de me prendre mon fils maintenant. La France n’est qu’un lieu où il y a beaucoup d’argent.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2024
  • Aceito
    29 Fev 2024
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