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TEXTOS DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: ANÁLISE DE DUAS REPORTAGENS SOBRE AGROTÓXICOS

RESUMO:

Este trabalho constrói-se com o intuito de examinar o texto de divulgação científica como um texto sincrético para verificar como os sentidos constroem-se em cada uma das reportagens, destacando ainda o conceito de observador em semiótica discursiva como responsável pela manutenção da perspectiva ou do ponto de vista do discurso. Para atingir seu objetivo, o trabalho, pelo fato de ambas as revistas se valerem da linguagem visual e da verbal para compor suas reportagens, pretende, primeiramente, verificar como seus textos selecionados para a análise criam unidade de sentido ao integrarem as duas modalidades de linguagem. Em segundo lugar, propõe examinar como a questão do agrotóxico é abordada pela reportagem da revista Super Interessante e pela da revista Pesquisa Fapesp. O que se observa nesses textos é o propósito de divulgar informações científicas de maneira mais acessível ao público a que elas se destinam. Embora os dois se valham do emprego de recursos de linguagem semelhantes, eles são utilizados de forma distinta em função da diferença de seus interlocutores, o que instaura o observador responsável pela condução do ponto de vista. A semiótica discursiva será a base teórico-metodológica para entender os mecanismos sincréticos envolvidos na constituição dos referidos textos de divulgação científica e, ao utilizá-la, procuraremos destacar suas propostas para o tratamento dos textos verbo-visuais.

PALAVRAS-CHAVE:
Discurso; Enunciação; Observador; Perspectiva; Ponto de Vista; Sincretismo

ABSTRACT:

This work is constructed with the intention of examining the text of scientific dissemination as a syncretic text to verify how the senses are constructed in each of the reports, also highlighting the concept of observer in discursive semiotics as responsible for the maintenance of perspective or the point of view of discourse. To reach its objective, the work, because both journals use visual and verbal language to compose their reports, firstly aims to verify how their texts selected for analysis create unity of meaning by integrating the two modalities of language. Second, it proposes to examine how the issue of pesticides is approached by the report of the magazine Super Interessante and by the magazine Pesquisa Fapesp. What is observed in the texts is the purpose of disseminating scientific information in a more accessible way to the public for which they are intended. Although both use similar language resources, they are used differently in function of the difference of their interlocutors, which establishes the observer responsible for conducting the point of view. The discursive semiotics will be the theoretical-methodological basis to understand the syncretic mechanisms involved in the constitution of the mentioned texts of scientific divulgation and, in using it, we will try to highlight its proposals for the treatment of the verbo-visual texts.

KEYWORDS:
Discourse; Enunciation; Observer; Point of view; Syncretism

Introdução

Os textos de divulgação científica são aqueles que têm o objetivo de tornar público o conhecimento produzido por diferentes segmentos da sociedade que, por meio da pesquisa, produzem ciência. Seu propósito primordial consiste em transmitir à população um saber necessário para que possa compreender o mundo em que está inserida e para ajudá-la a tomar decisões.

Não existe um consenso entre os diferentes estudos sobre os textos de divulgação científica a respeito de quando eles surgiram no mundo ocidental. Alguns afirmam que isso ocorreu simultaneamente às descobertas que foram sendo realizadas, outros estabelecem o século XVII como o marco de surgimento desse tipo de texto, uma vez que corresponde ao período de surgimento da ciência moderna, cujo objetivo consistiu em permitir acesso aos conhecimentos do universo a todas as pessoas. Em verdade, porém, o que de fato ocorreu até o século XIX foi a difusão do saber científico para um grupo restrito de pessoas, quais sejam, aquelas com maior nível de cultura e que pertenciam à classe social dos extratos mais altos da sociedade.

Foi a partir do século XX, principalmente, de seu final e do início do século XXI, que se intensificaram os meios de divulgação das informações científicas para a população em geral, compreendendo os veículos impressos, a televisão e a internet. Mas para que esse conhecimento atingisse um grupo de pessoas que não possuía conhecimento técnico sobre os diferentes fatos científicos, a informação passou por um processo de “didatização”, isto é, os textos produzidos para difundir o conhecimento atingido pelas pesquisas científicas modernas, passaram a ser produzidos de forma que pudessem divulgar os fatos de maneira mais clara, sem a repetição dos jargões das ciências, que poderiam dificultar o entendimento das pessoas leigas. Dessa forma, portanto, os textos de divulgação científica passaram a assumir um caráter instrucional e, na maioria das vezes, de cunho jornalístico. Na sua forma, procuraram destacar a objetividade na reprodução dos fatos, o que implicou criar o efeito de apagamento do ponto de vista subjetivo daquele que comunica determinado conteúdo a seu interlocutor.

Dentre os diversos meios de comunicação existentes no Brasil, que assumem a tarefa de socializar o conhecimento científico, destacam-se determinadas revistas, tais como, a Scientific American Brasil, a Pesquisa FAPESP, a UNESP Ciência, a Superinteressante, a Mundo Estranho, consideradas em geral as mais representativas desse tipo de projeto no Brasil atualmente.

É importante, porém, verificar que existem diferenças na maneira como cada uma dessas revistas propõe divulgar as informações científicas. As diferenças consistem primordialmente em seus públicos-alvos. A revista Scientific American Brasil é responsável pela divulgação de fatos científicos da atualidade para um público que já possui informação, portanto, que não é totalmente leigo no assunto; ela é uma revista produzida pelo próprio cientista. As revistas Pesquisa FAPESP e UNESP Ciência, por sua vez, preocupam-se em divulgar o conhecimento produzido pela academia, mas, ao fazê-lo, procuram utilizar uma linguagem mais acessível aos diferentes setores do público com formação universitária. Entre essas duas há, porém, uma diferença. Enquanto a Pesquisa FAPESP é produzida exclusivamente por jornalistas que tratam o conhecimento como um fato de divulgação jornalística, na revista UNESP Ciência quem divulga o conhecimento é, na maioria das vezes, o próprio cientista, embora seu texto procure adequar-se à linguagem do leitor leigo. As revistas Super Interessante e Mundo Estranho, por sua vez, voltam-se para um público mais genérico, que corresponde ao jovem de escolaridade do nível fundamental e do médio; elas também dão tratamento jornalístico aos fatos que noticiam e sua linguagem constroi-se a partir da imagem de seu público alvo.

O propósito específico deste artigo consistirá em analisar dois textos de divulgação científica produzidos por duas das revistas anteriormente referidas a partir de dois objetivos centrais. O primeiro deles procurará verificar como estão compostos os elementos verbais e os visuais nas reportagens destacadas, uma vez que é também característico desse tipo de texto o uso do elemento visual para compor a informação a ser divulgada. O segundo, será examinar como os sentidos constroem-se em cada uma das reportagens, destacando o conceito de observador em semiótica discursiva como responsável pela manutenção da perspectiva ou do ponto de vista do discurso, uma vez que ambas as reportagens abordarão a questão do emprego do agrotóxico na produção de alimentos no Brasil. A perspectiva a partir da qual essas análises serão elaboradas será a da semiótica discursiva, oriunda das propostas de Algirdas Julien Greimas e dos semioticistas que deram continuidade a seu trabalho.

Duas questões a respeito da proposta teórico-metodológica da semiótica discursiva

Este artigo não tem o intuito de reproduzir o arcabouço da semiótica discursiva, por meio da retomada do percurso gerativo do sentido, mas deve destacar que sua atenção estará voltada principalmente para os elementos do chamado nível discursivo, em que se organizam as manifestações da pessoa, do tempo e do espaço, para a constituição de sua sintaxe, e as dos temas e das figuras, que compõem o elemento semântico desse nível do percurso. Para o exame da manifestação discursiva das reportagens de divulgação científica, por meio da perspectiva da semiótica, porém, pretendemos discutir mais aprofundadamente dois conceitos que nos parecem centrais para caracterizar a linguagem desse tipo específico de textos, quais sejam, o conceito de sincretismo e a noção de sujeito observador na constituição do sentido.

O verbal e o visual nos textos de divulgação científica

Ao realizar uma entrevista com o editor-chefe da Revista Pesquisa FAPESP, Neldson Marcolin, em 12/03/2018, foi-lhe perguntado sobre a presença do elemento visual nas reportagens que a revista produz. Sobre essa questão ele afirmou o seguinte:

A reportagem é composta por texto e imagens. Há o objetivo de dar informações por meio da imagem, mas tem o objetivo de atrair o leitor também. Se estamos folheando a revista e vemos uma foto espetacular ou uma foto curiosa ou uma foto que remete a algo de nossa área, paramos para ler. “Por que esta imagem está aqui? Do que trata o texto?”, são as perguntas óbvias. Ligamos uma coisa à outra. O objetivo é também chamar a atenção para o que queremos comunicar. […] Eu acho que esse elemento (o visual), em ciência, tem uma importância ainda maior, porque o objetivo é: se eu não te pego por uma coisa, pego por outra. Se eu não consigo atrair pelo assunto que estou tratando, tento atrair por um texto mais claro e agradável. Se eu não consigo ganhar o leitor por nenhuma dessas duas coisas, eu penso que ele pode parar numa foto ou gráfico interessante, que o puxe para dentro do texto1 1 Entrevista concedida ao pesquisador, não publicada. .

O que se pode constatar na resposta de Neldson Marcolin é que o que ele chama de ilustração, quer seja a fotografia, quer o gráfico, quer a disposição das cores, etc., tem o objetivo de informar o leitor sobre o assunto que está sendo tratado na reportagem, mas, mais do que isso, deve atrair o leitor para o texto informativo que a revista lhe apresenta. A primeira perspectiva apontada pelo editor corresponde ao que em semiótica chamamos sincretismo, isto é, o elemento visual e o verbal compõem um todo de sentido, de forma que o sentido do texto se dá em função da relação de motivação que existe entre o elemento verbal e o visual. A segunda perspectiva, de acordo com o editor, é uma forma de manipulação do enunciador sobre o enunciatário, isto é, uma maneira de fazer com que este seja levado a realizar o ato de leitura de acordo com a seleção que aquele faz dos elementos visuais. Embora se reconheça que a preocupação com a disposição da imagem seja realmente um procedimento persuasivo, a hipótese deste trabalho é a de o elemento visual reafirma a presença do observador, conceito da semiótica discursiva que será abordado na próxima seção, no discurso da reportagem que instaura a perspectiva a partir da qual esse discurso é construído.

O termo sincretismo retoma a concepção de neutralização que lhe é pressuposta, tal como propôs Hjelmslev (2009)HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução: J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2009., uma vez que não se trata de uma sobreposição de linguagens, a verbal e a visual, mas uma composição dos dois elementos para a produção de um único objeto, isto é, o texto da reportagem de divulgação científica.

Ao mesmo tempo, porém, que analisamos o discurso sincrético das reportagens selecionadas para este artigo do ponto de vista teórico da semiótica discursiva, é preciso que se levem em consideração as características próprias de cada uma das linguagens responsáveis pela composição do texto. Na medida em que a linguagem é constituída, de acordo com a proposta de Hjelmslev (2009)HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução: J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2009., por um plano de conteúdo e por um plano de expressão, é necessário identificar os elementos que constituem o plano da expressão da linguagem visual, que se diferem daqueles da linguagem verbal.

Enquanto no texto verbal é possível examinar, do ponto de vista do plano da expressão, a disposição sintático-semântica das categorias gráficas e sonoras, no caso do texto visual e no verbo-visual há que se observar como são mobilizados outros elementos expressivos, que, segundo Teixeira (2009)TEIXEIRA, L. Para uma metodologia de análise de textos verbovisuais. In: OLIVEIRA, A. C. de; TEIXEIRA, L. Linguagens na comunicação. Desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. p. 41-77., dizem respeito às categorias cromáticas, eidéticas, topológicas e matéricas.

A categoria cromática diz respeito à incidência da cor, o que pode dar origem a duas manifestações: os textos visuais cromáticos e os acromáticos. Os cromáticos correspondem àqueles em que há uma manifestação de distintas cores ou de concentração em uma ou outra cor. Os que denominamos acromáticos correspondem aos textos visuais em preto e branco, uma vez que alternam a ausência de cor (branco) e a indistinção cromática (preto), embora, para manter os contornos dos objetos reproduzidos, façam uso de uma gama variada de tonalidades entre o branco e o preto, que corresponde aos diferentes tons de cinza que compõem as imagens. Em verdade, portanto, não existe verdadeiramente um texto visual sem cor. O que denominamos como texto acromático é apenas uma forma de diferenciar o texto visual colorido daquele composto em preto e branco. Além desses elementos da categoria cromática, é preciso considerar ainda a intensidade da cor (forte ou abrandada), o brilho (intenso ou fosco), a incidência de luminosidade (direta, propiciando o realce; oblíqua, produzindo a sombra).

A categoria eidética do texto visual refere-se à forma dos objetos. De acordo com as disposições geométricas, as formas podem ser de dois tipos, planas e não planas. As formas planas são aquelas que estão inseridas num único plano e apresentam comprimento e largura; as não planas, ou sólidos geométricos, como podem também ser chamadas, necessitam de mais de um plano para serem representadas e, por esse motivo, apresentam comprimento, largura e altura. Além disso, as formas planas podem ser delimitadas por segmentos de reta (as retilíneas) ou não delimitadas por eles (as curvas); as formas não planas são caracterizadas pelo polígono ou pelos corpos redondos.

A categoria topológica corresponde à disposição dos objetos no espaço. A partir dela, portanto, pode-se falar em alto e baixo; superior e inferior; acima e abaixo; direito e esquerdo; centro e periferia. A categoria matéria reporta-se ao material com que é produzido o objeto e dificilmente deve ser levada em consideração nos objetos planares, como, por exemplo, a fotografia, a propaganda e ainda nas figuras que aparecem em textos de divulgação científica, como é o que examinamos neste artigo. Poder-se-ia pensar, em decorrência da categoria matérica, na categoria tátil, em que o objeto poderia ser percebido por apresentar traço rugoso ou liso; quente ou frio; duro ou mole, etc., mas isso só importaria para objetos bastante específicos, o que não é também o caso das reportagens de divulgação científica.

O que é importante ressaltar na análise do texto visual e do verbo-visual é como essas categorias do plano da expressão visual constroem o sentido que se pretende veicular por meio dos objetos. Dessa forma, ao examinar as reportagens das revistas selecionadas aqui, é preciso verificar como elas produzem sentido e como, associadas ao verbal, organizam a composição dos elementos significativos dos textos. Isso é o que pretendemos mostrar no tópico de análise dos textos de divulgação científica escolhidos.

Estatuto do observador na constituição do discurso

Segundo a proposta da semiótica discursiva, o observador corresponde ao

[…] sujeito cognitivo delegado pelo enunciador e por ele instalado, graças aos procedimentos de debreagem, no discurso-enunciado, em que é encarregado de exercer o fazer receptivo e, eventualmente, o fazer interpretativo (isto é, que recai sobre outros actantes e programas narrativos e não sobre ele mesmo ou sobre seu próprio programa) (GREIMAS; COURTÉS, 2008GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008., p. 347-348).

No mesmo verbete que trata do observador, os autores observam que há diferentes modos de captar sua presença: 1) ele pode permanecer implícito; 2) ele pode estar em sincretismo com outro actante da comunicação (narrador ou narratário) ou da narração; 3) seu fazer cognitivo pode ser reconhecido pelo sujeito observado.

Dessa forma, o “eu” implícito na enunciação (ou na comunicação) delega a um outro sujeito cognitivo o direcionamento do discurso de forma a agir sobre o enunciatário. É dessa maneira, portanto, que se instauram no discurso a perspectiva e o ponto de vista.

Uma vez que a textualização é compreendida como “o conjunto de procedimentos […] que visam à constituição de um contínuo discursivo, anteriormente à manifestação do discurso nesta ou naquela semiótica (e, mais precisamente, nesta ou naquela língua natural)” (GREIMAS; COURTÉS, 2008GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008., p. 504), a perspectiva depende desses procedimentos ao se valer da relação entre enunciador e enunciatário e, diferentemente, do ponto de vista, não necessita da mediação do observador (GREIMAS; COURTÉS, 2008GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.). Dessa forma, portanto, a perspectiva consiste na escolha que o enunciador faz quando organiza sintagmaticamente os programas narrativos ao produzir as estruturas narrativas de seu discurso a partir de sua dimensão polêmica. É dessa forma, portanto, que um texto sobre um crime, por exemplo, pode ser produzido a partir da perspectiva do criminoso ou do policial que investiga o caso. Nesse exemplo, ao escolher a perspectiva do policial para narrar o os fatos em detrimento da do criminoso não significa que a segunda perspectiva seja eliminada, mas sim que está ocultada pelo fazer do sujeito privilegiado pela enunciação. No caso do ponto de vista, segundo Greimas e Courtés (2008GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.), ocorre uma variação de foco narrativo, isto é, o enunciador não se vale de um observador para privilegiar uma perspectiva em detrimento de outra, mas sim oferece diferentes possibilidades interpretativas para o enunciatário realizar a leitura da narrativa.

Ao propor a reformulação do conceito de perspectiva em semiótica, no verbete correspondente a esse conceito no segundo dicionário de semiótica (GREIMAS; COURTÉS, 1986GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Sémiotique 2: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1986.), Jacques Fontanille, responsável pela redação do referido verbete, afirmará que a perspectiva necessita de um observador da mesma forma que o ponto de vista, com a condição de definir o observador como um actante e não como um ator.

Um ponto de vista será chamado “perspectiva” quando os traços do fazer cognitivo que produzem a focalização são parcialmente ou totalmente implicitados (por exemplo reduzindo um assistente a um espectador ou a um focalizador abstrato), quando a pluralidade de pontos de vista possíveis é virtualizada e reduzida, graças a uma identificação de competências de observação, quer dizer, quando o enunciatário não tem outra possibilidade para interpretar o enunciado a não ser adotando o ponto de vista que lhe é imposto (na perspectiva pictural, por exemplo)2 2 Original: “Un point de vue sera dit « perspectif » quand les traces du faire cognitif focalisant sont partiellement ou totalement implicitées (par exemple en réduisant un assistant à un spectateur ou à un focalisateur abstrait), quand la pluralité des points de vue possibles est virtualisée, et réduite grâce à une identification des compétences d'observation, c'est-à-dire quand l'énonciataire n'a pas d'autre possibilité pour interpréter l'énoncé que d'adopter le point de vue qui lui est imposé (dans la perspective picturale, par exemple)” (GREIMAS; COURTÉS, 1986, p. 165). (GREIMAS; COURTÉS, 1986GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Sémiotique 2: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1986., p. 165, tradução nossa).

Nesse sentido, portanto, para Fontanille, o ponto de vista corresponde à configuração discursiva em que se admite uma competência de observação diferente daquela do sujeito da enunciação pressuposto (GREIMAS; COURTÉS, 1986GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Sémiotique 2: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1986., p. 170). O que nos parece ocorrer na reformulação apresentada por Fontanille em relação aos conceitos de “perspectiva” e de “ponto de vista” é que eles se tornam praticamente sinônimos. Para Fontanille, parece-nos, esses conceitos se confundem no caso do texto pictural, pois, nesse tipo de texto é pouco provável que o enunciador possa produzir uma variação do foco narrativo de seu discurso ao enunciatário.

O que se pretendeu afirmar neste subitem do trabalho, ao retomar os conceitos ainda não suficientemente aprofundados pela semiótica, como focalização, perspectiva e ponto de vista, é que o procedimento de didatização presente nos textos de divulgação científica constrói-se por meio da produção de um objeto sincrético em função de seu enunciatário. Isso determina, portanto, a perspectiva, ou o ponto de vista, a partir do qual é focalizado o tema desses textos. Essa questão será mais explorada na análise que se pretende desenvolver no próximo item deste artigo.

Análise das reportagens de divulgação científica

Para realizarmos o propósito que moveu a produção deste trabalho, apresentado na introdução, elegemos duas reportagens que tratam do mesmo assunto, qual seja, a produção de agrotóxicos no Brasil. Essa temática foi explorada por dois diferentes artigos de divulgação científica publicados em duas distintas revistas, no mesmo mês e no mesmo ano. A primeira delas é a revista Super Interessante, edição 393, de setembro de 2018; a segunda é a revista Pesquisa FAPESP, ano 19, n° 271, de setembro de 2018. Nossa tarefa consistirá, portanto, em verificar como os sentidos são produzidos nesses dois textos, na medida em que o entendemos como textos sincréticos.

Inicialmente observemos a composição das capas das duas revistas selecionadas como nosso córpus de análise.

Figura 1
Capa da revista Super Interessante

Além do título da revista em destaque na mancha vermelha localizada na parte superior da capa, com chamada para a segunda reportagem realçada pela revista, o que se repete em outros números, a ênfase central recai sobre a matéria a respeito dos agrotóxicos.

A imagem centralizada na capa, sobre um fundo verde, é a de um crânio humano que veste um turbante encimado por diferentes tipos de alimentos (morango, pimentão, brócolis, berinjela, uva, cenoura, banana, laranja, pêra, cebola e abacaxi). A frase “O país do agrotóxico” aparece logo abaixo da imagem, em relação direta com outra frase na mesma organização sintática, “O país do carnaval”, que consiste na referência ao Brasil, por meio da retomada do título do romance, publicado, em 1931, por Jorge Amado. E a ideia de carnaval é resgatada pela referência também explicitada entre o crânio humano usando turbante de frutas e grandes brincos de argola e a figura de Carmem Miranda, símbolo das festividades carnavalescas no país. Acrescente-se que essa expressão remete também à imagem do Brasil como o lugar da grande festa da cultura cristã ocidental em que há o excesso, o relaxamento dos costumes e dos comportamentos.

A partir dessa imagem, é possível identificar uma tensão entre vida e morte, na medida em que se opõem a alegria, a festividade do carnaval e o alimento, representações da vida, ao crânio, que remete à morte, dois semas do eixo dos contrários do quadrado semiótico, a partir dos quais é construído o sentido do discurso sobre o agrotóxico na reportagem da revista. A imagem reafirma, assim, a perspectiva a partir da qual tratará a problemática do uso de agrotóxicos no Brasil, qual seja, a banalização do seu uso, o que poderá causar a morte de muitas pessoas. O texto que aparece ao lado direito da imagem central chama a atenção do leitor para a ação de uma lei em tramitação do Congresso que confirma o que essa imagem quer denunciar:

O Brasil é o campeão mundial no uso de pesticidas. E o Congresso está se mobilizando para que a agricultura possa usar ainda mais. Entenda por que isso abre brechas perigosas (Texto que aparece ao lado da imagem reproduzida na capa da revista).

O texto reforça o uso abusivo do agrotóxico pelo setor agrícola brasileiro e destaca o Projeto de Lei 6299/2002, de autoria do senador Blairo Maggi (PP-MT). Por fim, convida o leitor a ler a reportagem para entender em que medida o referido projeto de lei trará malefícios para a população em geral.

Figura 2
Capa da revista Pesquisa FAPESP

A capa da revista Pesquisa FAPESP corresponde a uma foto panorâmica, obtida pelo recurso de enquadramento em “plongée” que capta, de cima para baixo, parte da extensão de uma plantação de milho em Campo Novo do Paricis (MT). Na parte médio inferior, do lado esquerdo, há um trator branco e azul, destacando-se do verde dominante da foto, que pulveriza agroquímico sobre o milho ali cultivado. Diferentemente da capa da revista anterior, a da revista Pesquisa FAPESP valoriza a vida e não faz referência à morte. Seu tema central é o alimento que assegura a subsistência da espécie humana.

Na parte inferior de toda a extensão horizontal da capa, logo acima dos destaques dados a cinco outras reportagens inseridas no corpo da revista, em letras grandes na cor branca, aparece a palavra “agrotóxicos”. Na parte central da capa, do lado direito, acima da imagem do trator, abaixo do nome da revista destacado no alto, sobre a plantação de milho, está registrado o seguinte texto: “Projeto de lei coloca em debate o uso de pesticidas: impulsionam a produtividade agrícola, mas podem causar problemas de saúde aos trabalhadores e contaminar o ambiente”.

Da mesma forma que na revista anterior, dessa vez, a revista da Fapesp refere-se ao Projeto de Lei 6299/2002, anteriormente mencionado, mas, de forma distinta, informa que esse projeto está propiciando à sociedade a possibilidade de um debate sobre a questão dos pesticidas utilizados nas lavouras brasileiras. O texto aponta que o uso do agrotóxico pode ser visto de dois diferentes pontos de vista. Por um lado, ele é responsável pelo aumento da produtividade de alimentos, o que é valorizado positivamente, porque reforça a perspectiva da manutenção da vida e beneficia o Brasil, um dos maiores produtores de produtos agrícolas. Por outro lado, o pesticida pode “causar problemas de saúde”, tanto para o trabalhador que manuseia o produto como a outras pessoas, uma vez que afeta o meio ambiente. A escolha da expressão “problemas de saúde”, porém, não concretiza a perspectiva da morte, uma vez que o sintagma utilizado corresponde à não-morte. Dessa forma, portanto, não se estabelece uma oposição entre vida e morte, dois semas contrários, mas a manutenção da dêixis positiva, isto é, a vida e a não-morte, que será responsável pela manutenção do sentido do texto da reportagem como um todo.

Texto da revista Super Interessante

No interior da revista, a reportagem retoma o título e o subtítulo que foram destaque na capa, tal como apresentado no subitem 1 deste item do artigo. O título e o subtítulo tomam toda a página 22, que dá início à reportagem, e é produzido em cor amarelo ouro. Ao seu lado há uma foto de uma mão feminina que segura um morango, de dentro do qual escorre um líquido escuro, a semelhança de um óleo (figura 3). O braço feminino da foto está vestido até próximo do pulso com uma blusa amarelo-dourada; o fundo da fotografia é verde-bandeira. A relação primeira que se pode estabelecer é entre o dourado, que remete ao ouro e à riqueza, e o verde, à vegetação, à mata. Dessa forma, há referência à própria bandeira do Brasil, verde-amarela. Estão aí reconfigurados o título e o subtítulo da reportagem: o país do agrotóxico é o Brasil.

Figura 3
Imagem da presença do agrotóxico em produto agrícola

À página 24, o texto verbal da reportagem da revista Super Interessante inicia-se com uma narrativa a respeito de Vanderlei Matos da Silva, que, no período de 2008 a 2011, morreu, aos 31 anos de idade, com diagnóstico de síndrome hepatorrenal causada por intoxicação. Nesse período de três anos, havia trabalhado na lavoura de abacaxi da Del Monte Fesh, em Limeira, responsável pela preparação da “calda tóxica”, mistura de agrotóxicos usados na produção do abacaxi. Essa narrativa associada à foto reproduzida acima na figura 3 identifica o líquido que escorre do morango. Trata-se da calda tóxica.

Em seguida à narrativa, é destacado o alto consumo de agrotóxicos no Brasil e a referência ao PL 6299/02 da seguinte forma: “No dia 25 de junho, uma comissão da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 6299/02, que ficou conhecido nas redes sociais como PL do veneno” (GARATTONI; LACERDA, 2018GARATTONI, B.; LACERDA, R. O país do agrotóxico. Super Interessante, São Paulo, ed. 393, set. 2018., p. 24). Seu autor, um senador, é, segundo a reportagem, “um dos maiores produtores mundiais de soja” (GARATTONI; LACERDA, 2018GARATTONI, B.; LACERDA, R. O país do agrotóxico. Super Interessante, São Paulo, ed. 393, set. 2018., p. 24), que, em 2016, “licenciou-se do Senado para assumir o Ministério da Agricultura do Brasil” (GARATTONI; LACERDA, 2018GARATTONI, B.; LACERDA, R. O país do agrotóxico. Super Interessante, São Paulo, ed. 393, set. 2018., p. 26).

Segundo o enunciador, o PL apresenta 30 medidas que alteram “a situação do agrotóxico no Brasil”, indo de coisas mais simples, como a eliminação do nome “agrotóxico” nas embalagens dos produtos, sendo substituído por “defensivo fitossanitário”, até propostas mais radicais, como determinar que “o Ibama e a Anvisa não poderiam mais vetar a liberação de novos agrotóxicos, mesmo se eles apresentarem riscos ambientais ou à saúde” (GARATTONI; LACERDA, 2018GARATTONI, B.; LACERDA, R. O país do agrotóxico. Super Interessante, São Paulo, ed. 393, set. 2018., p. 26).

À página 24, aparece um gráfico que registra a informação sobre comportamento dos agricultores em relação ao descarte de embalagens de agrotóxicos e ao uso de equipamentos de proteção e, à página 26, há um destaque para a informação sobre o crescimento no uso de agrotóxico no país. Ambos os destaques aparecem com letras em cor dourada.

Figura 4
Uso de agrotóxico
Figura 5
Crescimento do uso de agrotóxico

À página 25, há uma foto (figura 6) de um pé de pimenta vermelha em que quatro mãos humanas aparecem realizando quatro ações: aplicação da calda tóxica, poda do produto, retirada da pimenta, acomodação do pimentão em um recipiente. As quatro mãos executoras das ações estão sujas com a calda tóxica. O fundo da foto é verde-amarelo.

Figura 6
Imagem da presença do agrotóxico no alimento

A reportagem apresenta um primeiro subtítulo, “A Dose e o veneno”, em que há a explicação sobre a dosagem de agrotóxico nos alimentos, cujo “limite costuma ficar entre 0,01 a 0,5 miligramas a cada quilo de alimento” (GARATTONI; LACERDA, 2018GARATTONI, B.; LACERDA, R. O país do agrotóxico. Super Interessante, São Paulo, ed. 393, set. 2018., p. 26). Além disso, nesse subitem da reportagem é explicado o processo natural de limpeza do agrotóxico dos alimentos (com a inclusão da figura 7, abaixo reproduzida, que toma praticamente toda a página 27 da revista) e o processo mecânico que consiste na lavagem dos produtos em casa, com o uso de bicarbonato no molho da lavagem.

Figura 7
Funcionamento dos agrotóxicos na plantação

“A ofensiva do agrotóxico” é o segundo subtítulo da reportagem e nele é discutida a participação da Anvisa no controle do uso de agrotóxico em diferentes produtos, tal como proposto pelo PL 6299/02, ao mesmo tempo em que se insere a questão da substância “glifosato”, que é muito nociva, e está presente na maioria dos agrotóxicos. Esse subitem é acompanhado de dois gráficos. O primeiro registra os agrotóxicos mais consumidos no Brasil e o segundo a proporção de uso de agrotóxicos nos diferentes estados brasileiros.

O último subtítulo da reportagem, “O glifosato e a fome”, afirma que o glifosato é um herbicida usado para limpar o solo de diversas plantações, mais acentuadamente na plantação de soja. Apresenta também o caso do jardineiro DeWayne Jonhson, de 46 anos, que ganhou causa de indenização da indústria Monsanto por ter sido afetado pelo uso do glifosato. A reportagem conclui dizendo que a ciência afirma que os resíduos de agrotóxicos “presentes nos alimentos não representam risco – desde que as normas e os limites de uso dos agrotóxicos sejam obedecidos. Só que isso não depende apenas da ciência. Também tem a ver com algo mais subjetivo e obscuro, mas nem por isso menos importante: a política” (p. 32 da reportagem da revista Super Interessante).

Na última ilustração da reportagem (figura 8), que corresponde à última página, aparecem vários alimentos sem a presença ostensiva da calda tóxica ao mesmo tempo que são apresentadas formas de neles diminuir os resíduos de agrotóxicos.

Figura 8
Presença do agrotóxico na casca de produtos agrícola

Do ponto de vista da organização narrativa, o texto da reportagem da Super Interessante ressalta que o uso indiscriminado do agrotóxico é nocivo ao ser humano, estabelecendo uma oposição entre a população e os grandes agricultores. Os primeiros, porque consomem os alimentos produzidos pelos segundos ou porque manipulam os pesticidas no trabalho, estão expostos a uma série de danos. Os agricultores, por sua vez, querem obter lucro com a venda do que produzem e, para isso, precisam dos agrotóxicos. Nessa oposição de interesses entre s1 e s2, que correspondem aos actantes da sintaxe narrativa, o segundo tem um adjuvante, o PL 6299/02, que o discurso da reportagem da revista quer denunciar ao enunciatário, que recobre, da estrutura narrativa, ao próprio s1. Nesse sentido, portanto, o discurso da reportagem da Super Interessante pretende reforçar os malefícios do agrotóxico, figurativizado no discurso verbal e no visual, pela calda tóxica, e denuncia todos os malefícios embutidos no projeto de lei que deputados e senadores podem aprovar. Em razão disso é que o discurso conclui dizendo que a ciência é importante para se pesarem os aspectos negativos e positivos do emprego do agrotóxico na lavoura, mas ressalta que um problema não menos importante é o político, em claro ataque ao referido projeto de lei.

Observando a presença dos objetos visuais na reportagem da Super Interessante, o que se pode constatar é que basicamente são constituídos por duas modalidades, isto é, a imagem fotográfica e o gráfico. As imagens, conforme destacamos inicialmente, reafirmam o ponto de vista que determina a constituição da informação produzida pelo texto da reportagem a partir da instauração de um observador. Centrada na calda tóxica, a partir da narrativa inicialmente apresentada, o texto irá reforçar todos os malefícios do uso do agrotóxico na vida das pessoas. Nas figuras 3, 6 e 8 apresentadas nas páginas anteriores é possível identificar a presença desse elemento que prejudica o ser humano. Nas três figuras pode-se identificar uma gradação da presença do pesticida, desde sua inserção no interior do produto (figura 3), na aplicação na plantação (figura 6) e ainda na casca do produto final, no momento da higienização (figura 8). Os gráficos correspondem, na reportagem, à visualização da informação que é produzida pela linguagem verbal, de tal maneira a reforçar os dados a respeito do mal uso dos recipientes em que são transportados os agrotóxicos (figura 4), o crescimento do uso do agrotóxico no Brasil (figura 5) e o ciclo da ação do agrotóxico na plantação (figura 7). Dessa forma, o que essa breve análise confirma é que o elemento visual e o verbal constituem um todo de sentido que produz o discurso em defesa do combate à ação dos políticos brasileiros que querem aumentar a liberdade do agricultor no uso dos pesticidas.

Texto da revista Pesquisa FAPESP

A abertura da reportagem da revista Pesquisa FAPESP aparece às páginas 18 e 19, que correspondem, à semelhança da capa da revista, a uma foto panorâmica de um trator realizando pulverização de agroquímicos em plantação de trigo no Rio Grande do Sul. Essa foto (figura 9) é composta por um trator ao centro, com destaque para o contraste ente o azul do céu e o verde da plantação de trigo. O título e o subtítulo da reportagem (examinados no subitem 2 deste item do artigo), assinada por Yuri Vasconcelos, aparecem no canto esquerdo da página 18, que dá início à reportagem; no canto direito da página 19 há um gráfico em que é informada a evolução de agrotóxicos no Brasil.

Figura 9
Foto de plantação de trigo

O texto tem início com a afirmação de que Brasil destaca-se como um dos grandes consumidores de agrotóxicos por ser uma potência agrícola. A venda dos agrotóxicos movimenta US$ 10 bilhões por ano, o que corresponde a 20% do mercado global, que gira em torno de US$ 50 bilhões. A necessidade do uso de agrotóxico nas plantações brasileiras (540 mil toneladas em 2017) deve-se muito ao clima tropical, pois não há um inverno rigoroso capaz de conter o ciclo das pragas. Segundo o enunciador, uso do agrotóxico, apesar de ser importante para as culturas agrícolas, causa problemas para o meio ambiente e para a saúde das pessoas, principalmente em relação ao trabalhador. Para modernizar a Lei n° 7802/1989, que regulamenta o uso de agroquímicos no Brasil, informa que foi proposto pelo senado o PL 6299/2002, que apresenta várias modificações na lei anterior. Na parte superior da página 20, mais à esquerda, há uma foto (figura 10) com fundo escuro em que aparecem militantes com expressão séria, manifestando oposição e apoio ao projeto de lei, durante o debate na comissão especial da Câmara dos Deputados, em 2018. Abaixo da foto, na mesma página, na coluna à direita, está escrita em destaque a frase: “No Brasil, 84 mil pessoas sofreram intoxicação após exposição a defensivos entre 2007 e 2015” (VASCONCELOS, 2018VASCONCELOS, Y. Agrotóxicos na berlinda. Pesquisa FAPESP, São Paulo, ano 19, n. 271, set. 2018.).

Figura 10
Manifestações contrárias e a favor ao projeto de lei do uso do agrotóxico

Na página seguinte são apresentados três gráficos que comparam o Brasil a outros países no que diz respeito ao uso de pesticidas.

Figura 11
Uso de pesticidas em diferentes países do planeta

No primeiro subtítulo da reportagem, “Pontos de discórdia”, são apresentados quatro pontos nos quais se concentra o PL 6299/2002: o nome da substância usada para combater as pragas agrícolas não deve ser mais “agrotóxico”, devendo ser substituído por outro mais adequado; a competência para o registro ou o veto de um agrotóxico deve ser apenas do Ministério da Agricultura e não conjuntamente com a Anvisa ou o Ibama; o critério de avaliação do produto deve levar em conta sua toxicidade (incluindo forma de utilização, condições climáticas durante a aplicação, tempo de exposição ao agrotóxico, entre outros) e não o fato de apresentar características cancerígenas, mutagênicas (alteração do DNA) ou teratogênicas (má formação fetal) ou alterações hormonais; o registro do produto será automático por 24 meses a partir do início da análise pelo órgão competente, quando tiver sido aprovado em pelo menos três países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O quarto ponto em que está concentrado o projeto de lei vem destacado em um segundo subtítulo da reportagem, intitulado “Registro Automático”.

No canto superior esquerdo da página 22 aparece uma tabela com os ingredientes ativos mais comercializados em produtos de agrotóxicos no Brasil e no canto esquerdo do alto da página 23, uma foto de trabalhadores que aplicam defensivos agrícolas em canavial no interior do Rio de Janeiro.

Figura 12
Substância mais usadas em agrotóxicos
Figura 13
Trabalhadores aplicando agrotóxicos

A partir do uso de um terceiro subtítulo, “Fato ou mito?”, a reportagem questiona se o Brasil é realmente o paraíso para os fabricantes de agrotóxicos, comparando-o a outros países. As pesquisas mostram que sim, que o Brasil utiliza muitos agrotóxicos, incluindo alguns que são proibidos em outros países do planeta. Ambientalistas criticam a permissividade da legislação brasileira e são contrários ao novo projeto de lei. Há referência ao caso da Monsanto, tal como referido na reportagem da revista Super Interessante, que teve que indenizar o ex-funcionário Dewayne Johnson.

Cabe ressaltar ainda que, ao final da reportagem “Agrotóxicos na berlinda”, há referência a um projeto de pesquisa financiado pela Fapesp, coordenado por Larissa Mies Bombardi (FFLCH-USP), intitulado “Brasil e União Européia – a agricultura e a dialética do uso de agrotóxicos: Diferenças, restrições e impactos das commodities brasileiras no mercado europeu” e ao livro, decorrente da pesquisa, intitulado “Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia”. Nesse sentido, portanto, o enunciador presente no discurso atribui à enunciação dos trabalhos produzidos por Larissa Bombardi a responsabilidade sobre o que é informado no texto da reportagem.

Em seguida à reportagem anterior há uma conexa, que dá continuidade ao tema e que tem como título “Alternativas na mesa” e como subtítulo “Adoção de tecnologias baseadas na agricultura 4.0 é o caminho para produzir o consumo de pesticidas nas lavouras nacionais”.

De acordo com o texto, para minimizar o impacto ao meio ambiente de agroquímicos utilizados em plantações, os grandes produtores procuram soluções que se baseiam na chamada agricultura 4.0, como sensores, máquinas inteligentes que “conversam entre si”, internet e robotização. O emprego de tecnologias de ponta deve permitir que os produtores rurais apliquem os insumos em taxas variáveis, eliminando-se as práticas inadequadas, como a pulverização aérea, a costal, a uniforme, que prejudicam o homem e o meio ambiente. Esse trecho da reportagem remete a uma outra da revista, à página 72, intitulada “Lavoura autônoma: Máquinas Agrícolas Jacto soma 383 pedidos de patentes e se posiciona entre as pioneiras mundiais em veículos sem motorista no campo”, produzida por Domingos Zaparolli. Uma das propostas das máquinas agrícolas sem motorista é eliminar a contaminação humana na aplicação do agrotóxico. Na parte superior da página 25 até sua metade aparece a foto (figura 14) de um funcionário da empresa Solintec operando computador durante a colheita de cana-de-açúcar.

Figura 14
Colheita de cana-de-açúcar com tecnologia 4.0

No canto esquerdo inferior da página 26, outra foto (figura 15) de um produtor rural utilizando um pulverizador costal para lançar agrotóxico em plantação de hortaliça; no canto superior direito da mesma página, um gráfico (figura 16) com proporção de uso de defensivos agrícolas nas principais culturas do país durante 2017; no alto da página 27 a foto (figura 17) de um avião pulverizando pesticidas em plantio de cana-de-açúcar no interior de São Paulo.

Figura 15
Pulverização de agrotóxico em plantação de hortaliça
Figura 16
Lavouras campeãs em defensivos agrícolas no país
Figura 17
Pulverização de pesticida em plantação de cana-de-açúcar

Nessa segunda reportagem que dá continuidade ao assunto da anterior, à página 26, aparece um único subtítulo, “Estímulo à agroecologia”. Ele inicia-se informando que está em discussão na Câmara dos Deputados, desde 2016, o PL 6670/16, que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA) e que se contrapõe ao PL 6299/02. Ele prevê medidas para fortalecer a produção de orgânicos, a agricultura agroecológica e o controle biológico, propõe a eliminação de isenções tributárias e estímulos financeiros à importação, produção e comercialização de agrotóxicos. A agroecologia defende o manejo sustentável das lavouras, incorporando na produção questões sociais, políticas, culturais, ambientais e éticas. Ao mesmo tempo, evita o emprego de defensivos agrícolas e fertilizantes químicos, e estimula o plantio de orgânicos.

Com relação à produção de orgânicos, segundo o texto, há posições divergentes, pois alguns setores afirmam que essa prática alternativa de produção é cara e implica aumento da área cultivada, o que causa impacto no meio ambiente e degradação das florestas. Já outros setores afirmam que isso não é verdadeiro, uma vez que ela favorece a economia solidária, prioriza mercados locais e apoia o desenvolvimento regional. Por fim, a reportagem reafirma que uma das formas eficientes é reduzir as intoxicações nas pequenas propriedades e investir na capacitação de mão de obra, de forma que os agrotóxicos sejam aplicados com cuidado, quando forem indispensáveis. Na conclusão do texto, afirma-se que essa é a proposta do programa Aplique Bem, criado pelo Centro de Engenharia e Automação do Instituto Agronômico (CEA-IAC), em Campinas.

De forma distinta ao texto anterior, o discurso da reportagem (ou das reportagens) da revista Pesquisa FAPESP não está centrado na questão negativa do PL 6299/02 em tramitação na câmara e no senado. Ao contrário do discurso do texto anterior, procura ressaltar aspectos positivos no projeto de lei e, como alternativa, apresenta o desenvolvimento tecnológico como forma de controle do uso do agrotóxico, o que diminuiria os riscos que poderiam ser causados às pessoas. Ao mesmo tempo, refere-se a um outro projeto de lei, o 6670/16, que tem uma abordagem distinta para o tratamento da questão, qual seja, investimento na agroecologia.

É importante ressaltar ainda que o enunciador do texto estabelece um contrato com seu enunciatário, que consiste em assegurar a neutralidade de seu discurso, pois nada do que afirma é assumido explicitamente por esse enunciador, que sempre se reporta a pesquisadores de instituições brasileiras que desenvolvem projetos voltados para as questões agrícolas no país. Essa é uma característica dos textos da revista Pesquisa FAPESP, qual seja, investir na neutralidade e no aspecto científico de seu conteúdo. Não se trata de uma revista que assuma posições ideológicas claramente marcadas, em defesa explícita de uma causa que não seja, no seu modo de compreender, aquilo que a ciência pode comprovar ou explicar.

Cabe ainda dizer que há uma diferença importante na constituição do enunciatário construído pelos discursos das duas revistas aqui comparadas. O da Super Interessante é o enunciatário jovem, que busca a revista para manter-se atualizado, abarcando inclusive o público que pretende prestar as provas dos vestibulares de ingresso às universidades brasileiras, razão pela qual sua linguagem é mais simples, mais acessível a essa imagem de enunciatário, ao mesmo tempo em que não se preocupa em referendar suas afirmações em pesquisas científicas. No caso da revista Pesquisa FAPESP, o enunciatário projetado no discurso é o homem adulto, com nível universitário, razão pela qual a linguagem é mais cuidada e o discurso procura construir uma imagem de neutralidade, na medida em que as afirmações apresentadas devem estar sempre apoiadas em pesquisas científicas que as sustentem.

Considerações finais

Ao observar as duas reportagens, o que se pode constatar é que a diferença entre elas reside exatamente na questão da perspectiva a partir da qual o discurso manifestado nos textos é construído. Enquanto a reportagem da revista Super Interessante tem um tom de denúncia e de protesto, com viés nacionalista, marcado pelas cores com que compõe suas fotos e os gráficos apresentados, destacando principalmente os malefícios do PL 6299/2002, a reportagem da Revista Pesquisa Fapesp, tal como apontamos ao final do subitem 4 deste artigo, valoriza a neutralidade da ciência, apoiando suas afirmações em trabalhos científicos desenvolvidos por pesquisadores brasileiros ou internacionais.

No texto da Super Interessante o observador instalado constrói um enunciador combativo, que denuncia o projeto de lei que propõe um menor controle sobre o uso dos agrotóxicos no país e se dirige a um enunciatário pressupostamente também engajado, jovem e receptivo ao discurso em defesa de um controle mais efetivo sobre o uso de agrotóxico nos alimentos produzidos pelos agricultores brasileiros. O processo persuasivo instaurado pelo observador na direção de construir uma perspectiva que intensifica os malefícios da utilização do agrotóxico na lavoura está expresso nas imagens que entremeiam o texto.

Desde a capa da revista, que estampa um crânio humano com um turbante encimado por frutas e legumes, numa referência ao carnaval e à imagem de Carmem Miranda, aponta para a intensidade da morte em relação ao uso do agrotóxico nos alimentos. As fotos que compõem com o elemento verbal a reportagem também são marcadas pela degradação, na medida em que a “calda tóxica”, referida na narrativa que inicia o texto, contamina todos os alimentos. Os gráficos sintetizam as informações apresentadas e, em todos os casos, referem-se também ao alimento.

O texto da revista Pesquisa FAPESP é também marcado por um observador que direciona seu discurso a partir de uma outra perspectiva. Embora também se refira ao alimento, não associa o produto do agrotóxico à morte da forma como o faz o texto de Super Interessante. A questão central da reportagem da revista da Fapesp é a produção do alimento. A partir da consideração de que o Brasil é um dos maiores produtores e exportadores do setor agrícola, destaca a importância do uso do agrotóxico para o aumento dessa produção e, consequentemente, para assegurar o mercado agrícola brasileiro. O que o discurso propõe discutir, por outro lado, é o uso indevido que se faz do agrotóxico nas plantações. Esse será o foco do discurso, ao afirmar que há alternativas para utilizar com inteligência o produto que mantém o mercado produtor do país.

Nesse sentido, portanto, o observador instaurado no discurso da reportagem, constrói um enunciador que argumenta sobre os malefícios do uso indevido do agrotóxico, mas aspectualiza de forma distensa o emprego do produto. Entre os valores expressos em vida e morte, o produto agroquímico está a serviço da vida e não o contrário. Três fotos associadas ao texto ilustram ações que devem ser evitadas porque causam danos. A figura 13, comparada à figura 15, apontam para a contaminação do trabalhador com o produto aplicado na lavoura. Em ambas as fotos ocorre a pulverização costal, considerada nociva, embora na figura 13 os trabalhadores estejam mais protegidos pela roupa que usam, que os da figura 15, em que o agricultor está completamente exposto ao produto. Na figura 17 é mostrada a pulverização aérea, capaz de contaminar de forma mais agressiva ainda o meio ambiente e não apenas o trabalhador individualmente.

A figura 10, por sua vez, reporta-se ao debate na Câmara dos Deputados em que se discute a PL 6299/02. O que se vê nessa figura são cinco cartazes de apoio à proposta de lei e um contrário, o que reforça o depoimento de alguns pesquisadores entrevistados pelo repórter que entendem que PL 6299/02 será benéfica para a diversificação e para a atualização dos agrotóxicos que poderão ser utilizados pelos agricultores. A figura 14 reafirma a utilização de tecnologia para o uso adequado do produto nas plantações.

Pretendemos neste artigo destacar o objeto com que procuramos discutir a questão da instauração do observador no discurso da reportagem de divulgação científica, na medida em que estão implicados nesse processo os procedimentos de perspectiva e de ponto de vista que não foram até o momento mais aprofundados pelos estudos semióticos. Ao mesmo tempo, procuramos inserir a questão do sincretismo, na medida em que, por meio do que podemos denominar procedimento de didatização, as reportagens de divulgação científica examinadas nas duas revistas em destaque, organizam dois procedimentos textuais distintos (o verbal e o visual) para construir o texto final por meio do qual o enunciador argumenta seu ponto de vista sobre o objeto com o enunciatário.

Cabe, por último, chamar a atenção para o fato de que as fotos que aparecem nas capas das revistas (figuras 1 e 2) têm a função indicada pelo editor da revista Pesquisa FAPESP, Neldson Marcolin, que consiste em atrair o leitor para o conteúdo da reportagem. No caso da Super Interessante, cria-se o inusitado pela associação da morte à festividade do carnaval; no caso da revista Pesquisa FAPESP, o efeito visual da tomada panorâmica, que destaca a plantação de milho como uma fonte de produção da agricultura brasileira. Além disso, a revista da Fapesp usa o mesmo recurso visual na abertura do texto de sua reportagem (figura 9), no interior da revista, quando reproduz a fotografia de uma plantação de trigo, o que propicia o mesmo efeito de atratividade do leitor, embora as demais ilustrações sirvam para reforçar o que é apresentado pela linguagem verbal. No caso da revista Super Interessante, por sua vez, o apelo ao leitor aparece destacado apenas na capa, pois as ilustrações inseridas no interior da reportagem têm o propósito exclusivo de reforçar as informações manifestadas pela linguagem verbal.

  • 1
    Entrevista concedida ao pesquisador, não publicada.
  • 2
    Original: “Un point de vue sera dit « perspectif » quand les traces du faire cognitif focalisant sont partiellement ou totalement implicitées (par exemple en réduisant un assistant à un spectateur ou à un focalisateur abstrait), quand la pluralité des points de vue possibles est virtualisée, et réduite grâce à une identification des compétences d'observation, c'est-à-dire quand l'énonciataire n'a pas d'autre possibilité pour interpréter l'énoncé que d'adopter le point de vue qui lui est imposé (dans la perspective picturale, par exemple)” (GREIMAS; COURTÉS, 1986GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Sémiotique 2: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1986., p. 165).

Agradecimento

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

REFERÊNCIAS

  • GARATTONI, B.; LACERDA, R. O país do agrotóxico. Super Interessante, São Paulo, ed. 393, set. 2018.
  • GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica São Paulo: Contexto, 2008.
  • GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Sémiotique 2: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1986.
  • HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem Tradução: J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2009.
  • TEIXEIRA, L. Para uma metodologia de análise de textos verbovisuais. In: OLIVEIRA, A. C. de; TEIXEIRA, L. Linguagens na comunicação Desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. p. 41-77.
  • VASCONCELOS, Y. Agrotóxicos na berlinda. Pesquisa FAPESP, São Paulo, ano 19, n. 271, set. 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2018
  • Aceito
    18 Jun 2019
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