Acessibilidade / Reportar erro

A MÍDIA COMO ATOR POLÍTICO: UMA ANÁLISE DE TEXTOS DA REVISTA VEJA SOBRE CASOS DE CORRUPÇÃO POLÍTICA

RESUMO

Este trabalho analisa as relações entre mídia e política em textos de uma representante da grande mídia impressa brasileira, a revista Veja, referentes a casos de corrupção política nos governos Lula e Dilma. O objetivo é identificar recursos linguístico-discursivos mobilizados na produção de seus textos que reforcem a defesa de que seu uso da linguagem é informativo e imparcial ou de que representam a voz da população. Ao discutir a relação entre o campo midiático e campo político sob uma perspectiva antagônica do político, vimos que o caráter informativo de Veja só se realiza na medida em que seus jornalistas se posicionam e a constroem enquanto tal. Além disso, o fato de as representações discursivas que Veja faz em seus textos convergirem para a identidade dos atores políticos revela marcas de antagonismo que incidem diretamente na construção de novas identidades. O artigo também leva à ideia de que a mídia tem participação no embate político, seja como um adversário, ou não, mas sempre como um ator político. Para essa análise, adotaram-se como referenciais teórico-metodológicos o Sistema da AVALIATIVIDADE, de Jim Martin e Peter White, e a teoria social de Chantal Mouffe sobre o político e democracia agonística.

Mídia; Político; Corrupção; Avaliatividade; Agonismo; Antagonismo

ABSTRACT

This paper analyzes the relations between media and politics in texts from Veja magazine, a representative of the Brazilian mainstream media, referring to cases of political corruption in the Lula and Dilma’s governments. The objective of this article is to identify linguistic-discursive resources mobilized in the production of Veja texts reinforcing the belief that its use of language is informative and impartial or it represents the voice of the Brazilian population. In discussing the relationship between the media and the political fields from an antagonistic political perspective, we have seen that the informative nature of Veja only takes place insofar as its journalists stance it and construct it as such. Moreover, the fact the discursive representations that Veja makes in its texts converge to the identity of the political actors reveals traces of antagonism that directly affect the construction of new identities. The article also leads to the idea that the media has a stake in the political struggle, whether as an adversary or not, but always as a political actor. For this analysis, we have adopted as theoretical-methodological frameworks Jim Martin and Peter White’s System of Appraisal, and Chantal Mouffe’s social theory of the political and agonistic democracy.

Media; Political; Corruption; Appraisal; Agonism; Antagonism

Introdução

Quando consideramos contextos de uso da linguagem relacionados ao campo da política e à seara profissional do jornalismo e da mídia impressa, é possível destacar a proeminência de aspectos sócio-políticos contemporâneos que, embora à primeira vista desconexos, podem vir a ser analisados em convergência, principalmente em função das práticas de linguagem que neles estão pressupostas e sobre as quais exerceriam influência, como a propor uma nova forma de agir e de representar a realidade social. Tais aspectos já foram constatados por vários teóricos e trabalhos atuais e dizem respeito (I) à formulação, operada já há alguns decênios, mas em constante ratificação, de uma identidade da imprensa jornalística como informativa, em oposição a uma antiga imagem que a caracterizava, desde os seus primórdios até aproximadamente o início do século XX, como imprensa opinativa (THOMPSON, 2002THOMPSON, J. B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2002., 2005THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Tradução de Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 2005.; MELO, 2005MELO, S. H. D. de. Identidade, ética e linguagem: uma análise pragmática das práticas discursivas na Imprensa (ou como fazer um “bom” jornalismo com palavras). 2005. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas, Campinas, 2005.); (II) ao caráter da cultura política contemporânea, o que alguns sociólogos, mutatis mutandis e sob as mais variadas nomenclaturas (“política da confiança”, Thompson (2002)THOMPSON, J. B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2002.; “subpolítica”, Beck (1997)BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 11-71.; “política da vida” e “terceira via”, Giddens (1999GIDDENS, A. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Tradução de Maria Luiza X. de Borges. Rio de Janeiro: Record, 1999., 2001GIDDENS, A. A terceira via e seus críticos . Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 2001.)), identificam ser uma “nova política” – uma tendência moderna que crê no desaparecimento ou na incompatibilidade de anseios políticos se expressarem em termos de posições ideológicas tradicionais ou claramente definidas, como esquerda/direita, o que poderia incidir diretamente no papel crescente da confiança e da credibilidade enquanto critérios de julgamento para o campo político; e (III) ao “atual Zeitgeist político” (MOUFFE, 2005MOUFFE, C. On the political . London: Routledge, 2005.), uma ordem do discurso que tornaria possível a emergência dessa “nova política”, ao acreditar num mundo onde a discriminação política em nós/eles pode ser superada e onde os conflitos partidários estão se tornando coisas do passado, o que permitiria, portanto, haver finalmente, no campo político, um consenso racional, universal e sem exclusão entre seus participantes, obtido através do diálogo ou da deliberação.

Nesses três aspectos, há um ponto em comum que nos chama especial atenção e que está diretamente ligado ao uso da linguagem nas práticas sociais: (a construção de) identidades sociais1. No primeiro caso, vemos a reivindicação, por parte da mídia, de uma identidade que lhe daria suporte para um caráter mais noticioso, informativo (ANTÃO, 2009ANTÃO, E. P. A ética no uso da linguagem: reflexões sobre o papel que a mídia reivindica para si. In: SEMANA UNIVERSITÁRIA DA UECE, 14., 2009, Fortaleza. Anais [...]. Fortaleza: UECE, 2009. p. 1119-1138.), fruto de um ethos jornalístico mais interessado em apresentar os fatos correntes no mundo do que em opinar e se comprometer politicamente com o que relata, pois, do contrário, estaria ferindo os princípios norteadores desse novo jornalismo – a neutralidade e a objetividade. No segundo, há uma substituição dos critérios de avaliação para o campo da política e da representatividade dos políticos; com esse caráter da cultura política, não mais se pautariam as escolhas dos representantes por seus partidos, com programas ideológicos nitidamente determinados representando interesses gerais de classes ou de grupos ou movimentos sociais, mas sim pela credibilidade e confiabilidade morais e éticas dos representantes políticos; em outras palavras, o que está em jogo agora é a identidade que os atores políticos assumiriam para o público, com as qualidades morais que suas imagens carregariam com elas, bem como a importância que eles dão às deliberações realizadas na esfera pública. No terceiro, o espírito político atual traria em seu bojo o enfraquecimento das identidades sociais coletivas (MOUFFE, 1994MOUFFE, C. Le politique et ses enjeux: pour une démocratie plurielle. Paris: Éditions La Découverte, 1994., 2005MOUFFE, C. On the political . London: Routledge, 2005.), uma vez que, com a derrocada do socialismo, não haveria alternativa ao capitalismo, não fazendo mais sentido, portanto, pensar os desejos políticos em termos de conflitos político-partidários, e sim pensar nossos interesses e valores com base na deliberação racional com vistas ao bem comum, superando as identidades tradicionais enquanto expressões de anseios de grupos sociais.

Pressuposto nesses projetos de identidades sociais atuais está o fato de que mudanças nas formas de se conceberem tanto o papel do jornalismo e da mídia, quanto a expressão da representatividade política não apenas ocorrem em função de vicissitudes internas à prática jornalística e ao campo jornalístico, mas também podem se dar na maneira como se manifestam nos discursos cotidianos e em práticas sociais mais amplas das quais (o uso d)a linguagem faz parte. Com o objetivo de identificar como as identidades sociais jornalísticas e políticas são construídas e propostas em práticas cotidianas de uso da linguagem, uma vez considerando tanto este panorama profissional em que a imparcialidade e a objetividade são reivindicados como critérios jornalísticos imprescindíveis para a credibilidade de jornais e revistas em práticas discursivas, quanto este “atual Zeitgeist político” que defende a substituição da política tradicional pautada em partidos ou ideologias por uma “política da confiança” e não mais ideológica, analisaremos textos do semanário paulista Veja, da editora Abril, que abordem questões políticas, como a corrupção, e em que haja uma reivindicação de uma identidade não só para si mesma, quanto para aqueles sobre os quais fala ou a quem se dirige.

A escolha da revista se justifica por ser a primeira do ranking nacional de publicações em revista com maior circulação no país2, o que confere visibilidade na divulgação de seus textos e na propagação de seus discursos nas práticas sociais cotidianas. O fato de analisarmos textos relacionados com o tema da corrupção decorre, por seu turno, de a corrupção ser evidenciada e tratada em contextos de crises de legitimidade de um sistema político, tanto de suas instituições, quanto de seus membros, atores políticos (GOMES, 2013GOMES, E. P. M. A constatação da corrupção enquanto performatização de um discurso: uma análise de reportagens de VEJA em casos de corrupção política. Fortaleza, 2013. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013., p. 155), o que nos deixaria de frente com a possibilidade de analisar como atores políticos são representados em práticas discursivas cotidianas, como no caso dos textos jornalísticos. Além disso, como nos alerta Filgueiras (2008)FILGUEIRAS, F. Corrupção, democracia e legitimidade . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008., podemos entender a corrupção como a manifestação de problemas institucionais que são levados a falar tanto pelos próprios participantes das instituições democráticas (políticos, partidos, cientistas políticos, especialistas, quando são instados a analisar dada situação política), quanto pelos membros da sociedade civil, como a mídia, no caso aqui como Veja. Desse modo, o objetivo deste artigo é, primeiro, identificar recursos linguístico-discursivos mobilizados na produção de seus textos que reforcem ou não a defesa de que seu uso da linguagem é informativo e imparcial ou de que representam a voz da população, de modo que possamos entender, conforme dissemos acima, a relação entre o uso da linguagem e a construção das identidades sociais do jornalismo (tal como manifestado por Veja) quando estão a tratar de identidades sociais do campo da política ou dos políticos.

Além disso, como destacamos que a construção da identidade da mídia e do jornalismo também pode ser vinculada a um panorama sócio-político mais amplo em que se incluem um novo espírito político e uma nova forma de se fazer política e de se escolherem representantes político, investigaremos formas linguístico-discursivos mobilizadas em textos de Veja na menção a eventos sócio-políticos ocorridos em dois momentos da história política nacional recentes e de grande repercussão no cenário político e social: uma série de eventos intitulada pela revista Veja de “escândalo do mensalão”, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010); e a sequência de eventos políticos que culminaram no afastamento, renúncia e substituição de ministros no primeiro ano do governo de Dilma Rousseff (2011) e que receberam, em Veja, a alcunha de “Crise da Esplanada”3.

Para analisarmos formas linguístico-discursivos que podem tanto denunciar a construção da identidade jornalística de Veja quanto denotar uma postura em relação aos postulados da neutralidade e objetividade jornalísticas, usaremos o quadro de Martin e White (2005)MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005. para descrição do Sistema de AVALIATIVIDADE em práticas de uso da linguagem. Por meio do trabalho de Martin e White, poderemos conceber as avaliações dos produtores dos/das textos/reportagens como uma forma de construção de identidades sócio-políticas, em dois sentidos ou direções: a) tanto para a constituição de um ethos de tais produtores – seja pela forma como posicionam os leitores em relação àquilo que eles relatam em seus/suas textos/reportagens, seja pelo fato de que questionar identidades na sociedade é também pôr em evidência ou fazer emergir os próprios sistemas ideológicos ou avaliativos que servem de suporte a quem avalia; b) quanto para a constituição das identidades sociais dos atores sócio-políticos citados nos/as textos/reportagens. Esse quadro teórico e metodológico vai, pois, nos auxiliar na análise de formas linguístico-discursivas mobilizadas pela mídia para a construção não só de sua identidade jornalística, mas também do campo sobre o qual fala. A análise mediada por esse quadro dirá, portanto, se a postura neutra, imparcial e objetiva, reivindicada pelo ethos jornalístico, se realiza ou não nos textos que a revista produz.

Na seção a seguir, como uma forma de entendermos melhor o background teórico e político que sustenta o Zeitgeist político atual que defende, para o campo político, o abandono de interesses particulares em nome do bem coletivo, do bem comum e dos interesses coletivos, por meio da deliberação racional e consensual entre os participantes sociais e políticos de uma sociedade, falaremos sobre as abordagens deliberativas difundidas nas concepções teóricas e sociais sobre a política e os políticos. Discutiremos como a dimensão conflitual e antagônica dos interesses pessoais, particulares, partidários e ideológicos é encarada e mitigada em tais abordagens, em prol de uma esfera pública baseada na racionalidade comunicativa e na efetivação de um consenso racional, de modo que possamos entender de que forma esse Zeitgeist se manifesta em formas de uso da linguagem e como apaga ou esconde a dimensão política e antagônica dos participantes da sociedade enquanto atores políticos e sociais.

O modelo agonístico de democracia e as críticas à abordagem deliberativa

Muitos teóricos que usam o conceito de esfera pública, na relevante interface que este estabelece entre a comunicação pública da sociedade civil, a mídia e a política, veem com entusiasmo e otimismo o modelo de democracia deliberativa4, além de destacarem a importância de uma reconceitualização crítica da noção de esfera pública para a realização/efetivação de um espaço de deliberação/discussão pública integrador e não excludente5. Contudo, o que escapa tanto da defesa destes teóricos do modelo liberal-democrático quanto dos trabalhos de remodelação conceitual dos teóricos da esfera pública contemporânea é a compreensão, encontrada em Chantal Mouffe, da dimensão sempre conflitual e antagônica do debate público e político. Isto é fundamental quando da construção de um de nossos argumentos contra a implícita afirmação, da mídia aqui a ser analisada, de que seus discursos representam um interesse comum, do povo, da nação6.

Dessa forma, faremos, primeiro, uma discussão da perspectiva deliberativa e das críticas à defesa de uma esfera de deliberação racional com vistas ao consenso universal, destacando disto a perda da dimensão antagônica, adversarial do político. Seguiremos, para tanto, as indicações e argumentos presentes em trabalhos de Chantal Mouffe. Com as posições de Chantal Mouffe sobre os modelos de democracia dominantes no mundo ocidental e suas implicações para a compreensão dos embates político-discursivos em esferas públicas de debate, entenderemos a necessidade de não se camuflar uma postura política nas discussões políticas, tais como propostas pelos textos jornalísticos.

Chantal Mouffe7 desenvolve seus trabalhos na direção da teoria política contemporânea, tentando propor um modelo normativo, e não apenas instrumental ou procedimental, de democracia, que reconheça a dimensão plural e radical da sociedade. Parte, para isso, da compreensão de que, com a derrocada do modelo soviético e, consequentemente, com o abandono cada vez mais patente (por parte dos democratas ao redor do mundo) do paradigma das lutas de classe, tem-se tornado forte a ideia de que não há mais alternativa, no âmbito econômico, ao capitalismo, nem, no âmbito político, ao liberalismo-democrático (MOUFFE, 1994MOUFFE, C. Le politique et ses enjeux: pour une démocratie plurielle. Paris: Éditions La Découverte, 1994., 2005MOUFFE, C. On the political . London: Routledge, 2005., 2009MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009.). Este seria o motivo para que muitos democratas liberais defendam que o surgimento de novas identidades políticas, não mais representando coletividades, asseguraria a substituição inevitável da antiga política e de suas ideologias e fronteiras tradicionais por princípios universais provenientes do direito e da moral racional.

Nisso residiria a tentativa, por parte dos teóricos defensores desse novo paradigma, como John Rawls e Jürgen Habermas, de se elaborarem procedimentos necessários à criação de um domínio deliberativo em que as decisões políticas fossem pautadas por princípios como o de “justiça enquanto equidade” (RAWLS, 1996RAWLS, J. Political liberalism . New York: Columbia University Press, 1996.) e de “racionalidade comunicativa” (HABERMAS, 2012HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo , 1: racionalidade da ação e racionalização social. Tradução Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.) com vistas a um consenso racional e sem exclusão entre os indivíduos deliberadores (MOUFFE, 1994MOUFFE, C. Le politique et ses enjeux: pour une démocratie plurielle. Paris: Éditions La Découverte, 1994., p. 8). É com base nisso que a autora vai elaborar um princípio que convergiria para a formação de um modelo de democracia que reconheceria a dimensão conflitual e plural do político, ao mesmo tempo em que responde a limitações que as abordagens deliberativas, como as de Rawls e Habermas, por exemplo, apresentam.

Para incorporar a ideia de racionalidade prática nas instituições democráticas, Rawls e Habermas dão respostas distintas. Rawls (1996) parte da ideia de uma posição original, em que os indivíduos, colocando à parte suas diferenças e idiossincrasias na vida social, são considerados como livres e iguais. Em seguida, deixadas de lado suas particularidades e interesses, surgiria um quadro para o exercício da razão pública, em que a atuação dos indivíduos estaria fundada na compreensão de que ela seria adequada e justificável. Dessa forma, a legitimidade das ações dos indivíduos decorre sempre das decisões coletivas entre pessoas iguais e livres, e estas decisões só representam a coletividade quando surgem das disposições de escolhas de todos, guiados pela assunção de que tais escolhas são para eles razoáveis.

É claro que tal concepção de exercício da razão pública nos processos de tomadas de decisão admite a existência do pluralismo de valores e interesses proveniente dos indivíduos participantes. Contudo, como vai ressaltar Mouffe (2009MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009., p. 89), Rawls defende que o consenso racional só não vai ser possível em relação a questões que ele chama de abrangentes, de natureza religiosa, moral e filosófica, mas que um consenso sobre decisões de ordem política é possível, uma vez que, se procedimentos democráticos de deliberação devem assegurar imparcialidade, igualdade, abertura e ausência de coerção, pautados por uma concepção de justiça como equidade compartilhada por todos, então estes mesmos procedimentos guiarão a deliberação em direção a interesses gerais e legitimados por todos. Mouffe (2009)MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009. vai encarar esta artimanha do modelo deliberativo de Rawls como uma tentativa de escapar do pluralismo de valores, irremediável em processos de discussão e deliberação públicas, ao estabelecer a centralidade de um domínio/campo em que soluções racionais e universais poderiam ser formuladas.

A forma encontrada por Habermas, por outro lado, para estabelecer uma razão pública nas decisões políticas não vai diferir muito da de Rawls, recaindo até no mesmo problema apontado por Mouffe na estratégia deste último. Habermas (2012), baseando sua concepção de democracia deliberativa em sua teoria da ação comunicativa, vai defender uma abordagem procedimental em que o reconhecimento, por parte dos indivíduos, de constrangimentos da situação ideal de fala eliminará as posições que podem ou não ser assumidas por eles, contanto que estes ajam de acordo com o que ele chama de racionalidade comunicativa – uma comunicação livre e racional.

Do mesmo modo que Rawls e seus seguidores, os habermasianos não negligenciam o fato de que a realização e efetivação desta situação ideal de fala não são de todo fáceis, já que seria muito improvável que as demandas e desejos particulares sejam postos completamente em suspensão, ao ponto de que as ações dos indivíduos performatizem uma racionalidade universal que beneficiará a todos. Não obstante isso, o pluralismo das demandas, desejos e interesses particulares é amenizado, em Habermas, por uma estratégia implícita em seus argumentos. Ele aceita, por exemplo, que haja questões que deveriam ficar alheias às práticas políticas de deliberação, sobretudo aquelas que concernem a assuntos existenciais, à vida digna, e, por outro lado, que haveria conflitos de interesses entre grupos de pessoas que poderiam ser resolvidos apenas através de uma ação compromissada (HABERMAS, 1996b, p. 448). Desse modo, Habermas faz, segundo Mouffe, a mesma separação que Rawls fez ao separar dois domínios, um privado e um público, de modo a escapar das implicações provenientes do pluralismo de valores. Mouffe (2009, p. 89) fala que Habermas é inflexível quanto à possibilidade de que a troca de argumentos seja o procedimento adequado para o alcance da formulação de um interesse geral, reforçando a ideia de que o domínio das decisões políticas possa ser isolado do pluralismo e seja suficientemente neutro para que soluções racionais venham a ser propostas.

Mouffe (2009)MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009., ao contrário dessas perspectivas, vai propor que não se subestime o caráter contraditório, paradoxal, da democracia liberal, por estar fundada na tensão entre duas lógicas distintas e irreconciliáveis – a lógica da democracia, com seu apelo à igualdade e participação popular, e a lógica do liberalismo, com sua defesa aos direitos individuais e à liberdade –, e que, portanto, qualquer tentativa de dar uma solução racional final à tensão é descabida, principalmente quando boa parte da política democrática é dedicada à negociação deste paradoxo, bem como à proposição de soluções precárias e contingentes. A tarefa não é escapar ao pluralismo de valores, mas enfrentá-lo e dispô-lo de um modo que seja compatível com formas democráticas de práticas políticas. Mouffe, assim, defende que a lealdade para com os regimes e instituições democráticos não virá da substituição de uma “racionalidade meio-fins”, típica do modelo agregativo8, por uma racionalidade deliberativa ou comunicativa, mas da constituição de um conjunto de práticas que torne possível a formação de cidadãos democráticos. Não adianta relegar para um domínio abstrato as paixões e afetos (entendendo por isso as forças ou laços afetivos que estariam na origem das formas coletivas de identificação), pois desempenham papel crucial na garantia de fidelidade às instituições e valores democráticos.

Assim, não é com argumentos que defendam a incorporação de uma racionalidade comunicativa nas instituições democráticas que será garantida uma lealdade para com os valores democráticos; mas sim com a criação e difusão de instituições, de discursos, de formas de vida que alimentem a identificação dos atores sociais com tais valores. Pautada na crítica wittgensteiniana ao racionalismo, Mouffe defende que, para que acordos sobre opiniões sejam alcançados, é necessário haver acordo sobre formas de vida.

O “político”, a “política” e o “pluralismo agônico”

Uma das questões levantadas na crítica de Mouffe ao modelo deliberativo de democracia diz respeito à crença no estabelecimento de um campo em que ocorreriam as decisões políticas, fundado por princípios ou procedimentos de ordem racional. Entretanto, o que tal crença deixa escapar é que o próprio antagonismo faz parte da constituição de qualquer relação sócio-política. O modelo de democracia deliberativa traz a ideia de que os sujeitos podem compartilhar de um princípio de racionalidade que serviria para os processos de decisão política, isolando num mundo privado suas histórias, suas diferenças sociais, culturais, religiosas, e acreditando, com isso, que tais idiossincrasias não teriam implicações para o agenciamento político, nas esferas de debate.

Mouffe (1994MOUFFE, C. Le politique et ses enjeux: pour une démocratie plurielle. Paris: Éditions La Découverte, 1994., 2005MOUFFE, C. On the political . London: Routledge, 2005., 2009MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009.), por seu turno, vai propor uma alternativa a tal quadro, a que ela chama de democracia pluralista e radical ou pluralismo agonístico, defendendo que o poder não pode ser espanado da deliberação público-política, pois é constitutivo de toda e qualquer relação social. Um dos erros dos teóricos da democracia deliberativa está em postular a disponibilidade de uma esfera pública em que o poder teria sido eliminado e um consenso racional seria produzido. Nas palavras da autora:

Segundo a abordagem deliberativa, quanto mais democrática uma sociedade é, menos o poder seria constitutivo das relações sociais. Mas, se aceitarmos que as relações de poder são constitutivas do social, então a principal questão para a política democrática não é como eliminar o poder, mas como constituir formas de poder compatíveis com valores democráticos. (MOUFFE, 2009MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009., p. 100, tradução nossa)9.

Desta feita, a tarefa está em assumir uma esfera de debate pública constituída por relações de poder, por tensões em busca de decidir uma ordem política, sem ignorar que, com isso, haverá exclusão, pois pensar a política tendo o antagonismo como condição inescapável de existência implica sempre construir um nós em oposição a um eles10. Mouffe (1994MOUFFE, C. Le politique et ses enjeux: pour une démocratie plurielle. Paris: Éditions La Découverte, 1994., 2009MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009.) não nega que o consenso possa ser alcançado; ela só não compactua que isto aconteça sem alguma exclusão. Para se pensar o consenso ou qualquer legitimidade racional, não deveríamos negligenciar o papel da hegemonia na disposição de discursos aglutinadores no debate público. Qualquer ordem política decidida ou aceita na esfera pública é a expressão de uma hegemonia, de uma disposição de relações sociais de poder entre os indivíduos, e, enquanto tal, está sujeita a rearranjos, a novas disposições, uma vez que ela é sempre uma construção discursiva, portanto, contingente e precária.

Se poder e legitimidade convergem e atuam perfeitamente em conjunto, isto acarretará uma ordem política hegemônica. Para a autora, uma distinção é necessária para compreendermos um pouco da complexidade do campo político, bem como a relação entre poder, antagonismo e discurso. De um lado, tem-se o “político” (the political), que concerne a uma dimensão ontológica, em que se situam, por exemplo, trabalhos de teoria política, preocupados não com os fatos políticos em si, mas com a essência do político (MOUFFE, 2005MOUFFE, C. On the political . London: Routledge, 2005., p. 8); nesta dimensão, Mouffe vê a presença do antagonismo, como algo inerente às relações humanas estabelecidas tanto no campo político, quanto em quaisquer relações sociais. De outro, há a “política” (the politics), que trata do campo empírico da política, ou seja, de trabalhos da ciência política preocupados com a agenda política, as eleições, os discursos, os programas de partidos. A política (the politics), portanto, surge como uma tentativa, sempre precária, contingente, histórica, de se tentar domesticar a dimensão antagônica do político (the political). O erro presente nos trabalhos de inúmeros teóricos e cientistas políticos, segundo Mouffe, foi negar e eliminar essa dimensão antagônica do político e buscar um caminho pelo qual os indivíduos pudessem participar de uma esfera pública de debate sem tratar uns aos outros como inimigos, com o que haveria inevitavelmente exclusões, deixando de atender ao bem comum.

Aqui, tem-se a importância de se pensar o papel dos discursos disponíveis em uma esfera pública de debate político, como os midiáticos, por exemplo. A política, manifestada por meio de discursos em processos de deliberação coletiva, seria sempre a tentativa de criação de uma unidade, de uma ordem, num contexto conflituoso, repleto das diferenças e interesses dos participantes. Estaria, assim, ligada à construção de um nós pela determinação de um eles (MOUFFE, 2005MOUFFE, C. On the political . London: Routledge, 2005., p. 101). Ao contrário do que pensam os teóricos da democracia deliberativa, dificilmente conseguiremos conciliar, por meio do diálogo, interesses divergentes, por serem estes, antes, discursos que sustentariam a ordem política e social, cada um ao seu modo. A questão para a política democrática reside em, ao assumir a inerradicabilidade do pluralismo de valores, construir um eles que não precise ser destruído pelo discurso do nós ou que seja razoavelmente incluído num discurso racional de unidade, mas que, tendo suas ideias combatidas pelo discurso do nós, não tenha o direito de defendê-las posto em questão, tratando-os sempre como opositores legítimos. Para Mouffe, nisso está o verdadeiro espírito da tolerância pautado nos princípios liberal-democráticos: não exigir aquiescência para com as ideias a que nos opomos, ou indiferença diante dos pontos de vista com que discordamos, mas tratar aqueles que os defendem como opositores legítimos. Assim, a política democrática deve encarar a criação de uma vibrante esfera pública agonística de contestação em que distintos discursos políticos hegemônicos possam ser confrontados (MOUFFE, 2005).

Além disso, com a constatação de Mouffe de uma tendência mundial no campo político que desacredita na função articulatória desempenhada por ideologias que congregam antagonicamente interesses políticos e sociais particulares, em favor da defesa de um consenso racional não excludente pelo qual seria possível atender às demandas de todos os cidadãos, sendo aceitos ad hoc, especialmente, os procedimentos para a constituição e, consequentemente, a participação em uma esfera pública de deliberação racional, vemos que, por outro lado, há um ambiente político propício para que uma mídia possa regrar-se por uma postura discursiva informativa ou pelas ideias de imparcialidade, objetividade – pontos nodais11 responsáveis pela constituição de sua identidade como imprensa jornalística informativa – e representar-se como advogada de um interesse comum, de todos, ou como “vista da nação” e de seus cidadãos, ainda mais quando é a tarefa de se chegar ao bem comum um dos pilares procedimentais da formação de uma esfera pública de deliberação racional, e já que para isto é pressuposto deixar de lado os interesses particulares e éticos para que possam ser atingidos os objetivos públicos e morais que beneficiem a todos – conduta esta que parece estar na base daquelas ideias de imparcialidade e objetividade.

Em resumo, poderíamos dizer que uma identidade da mídia como imprensa jornalística pode se beneficiar de um tal contexto político, hegemonizado pela política apolítica de uma terceira via para a política e reforçado pelo interesse teórico crescente da deliberação racional. Com o amparo teórico e político da defesa da possibilidade de existência de uma esfera pública de debate pautada por princípios racionais a nortear a deliberação, tornar-se-ia mais fácil supor que o uso da linguagem feito pela mídia (aqui, no caso deste trabalho, feito por Veja) poderia ser mais facilmente considerado como informativo, e, por conseguinte, que sua postura em relação ao relato, à representação dos eventos e atores sociais, em suma, em relação àquilo que diz é mais comprometida com a verdade.

Sistema da avaliatividade

A descrição do sistema da AVALIATIVIDADE, de Jim R. Martin e Peter R. R. White (2005), é um referencial metodológico para este trabalho, dado que o quadro sistemático para a AVALIATIVIDADE que eles oferecem nos permite não só analisar os textos, mas também organizar os dados com base em categorias relacionadas ao sistema de AVALIATIVIDADE. A sistematização da AVALIATIVIDADE feita por Martin e White permite, assim, identificar vários pontos importantes para a análise, como, por exemplo, o modo como os jornalistas adotam posturas para com as proposições que eles apresentam e para com aqueles que com eles se comunicam; como os jornalistas aprovam ou desaprovam, elogiam ou criticam aquilo ou aqueles a que se referem; como se constroem comunidades de valores e sentimentos compartilhados e quais os mecanismos linguísticos mobilizados pelos jornalistas para o compartilhamento de avaliações, valores e normas; como os jornalistas constroem, deles mesmos, identidades particulares; e como eles constroem para seus textos uma audiência específica (MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005.). Todos estes pontos se tornam de relevância crucial para este trabalho.

A rede de sistemas de avaliatividade (appraisal)

De início, a AVALIATIVIDADE possui três domínios ou três subsistemas pelos quais as avaliações podem ser elaboradas, a saber (ver Figura 1): a ATITUDE (ATTITUDE), o ENGAJAMENTO (ENGAGEMENT) e a GRADAÇÃO (GRADUATION). Em linhas gerais, o subsistema de ATITUDE está relacionado ao campo das emoções, principalmente aos nossos sentimentos e reações emocionais, aos nossos julgamentos de comportamentos dos outros e às nossas avaliações das coisas ou acontecimentos naturais ou semióticos. O subsistema de ENGAJAMENTO trata da criação de atitudes, de posicionamentos, seja para quem fala/escreve, seja para quem escuta/lê, bem como do jogo de vozes (se há uma diferenciação ou equivalência entre elas, se há um compartilhamento – ou abertura para a discussão – de valores, gostos) em torno de opiniões, no discurso. E, por fim, o subsistema de GRADAÇÃO é destinado à amplificação ou redução da força das avaliações e à construção de escopo ou periferia para as coisas avaliadas.

Figura 1
– Panorama do sistema de AVALIATIVIDADE (APPRAISAL)

Dos três subsistemas, aqueles que, à primeira vista, são mais importantes para este trabalho são os dois primeiros (ATITUDE e ENGAJAMENTO), uma vez que estão mais relacionados à identificação dos sentimentos que os jornalistas têm em relação àquilo que experimentam e representam em seus textos, bem como aos recursos que eles utilizam para posicionar-se e posicionar os outros com respeito àquilo que escrevem, defendem, repudiam e projetam em seus discursos. Esses aspectos vão perfeitamente ao encontro dos objetivos deste trabalho. Portanto, como ponto de partida, especificaremos, a seguir, os subsistemas de ATITUDE e ENGAJAMENTO.

O subsistema de ATITUDE, de acordo com a definição há pouco citada, concerne ao campo dos sentimentos. Dada a sua complexidade sistemática, a ATITUDE compreende três áreas semânticas relacionadas à emoção, à ética e à estética, categorizadas no quadro de Martin e White (2005)MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005. como AFETO (AFFECT), JULGAMENTO (JUDGEMENT) e APRECIAÇÃO (APPRECIATION), respectivamente, conforme a seguinte figura:

Figura 2
– Subsistema de ATITUDE

A área do JULGAMENTO, por seu turno, tem a ver com as atitudes que temos para com o comportamento dos outros, quando o expressamos como admirável ou criticável, como digno ou condenável. As avaliações feitas do comportamento alheio podem ser consideradas como inscritas ou fundamentadas por princípios ou sistemas avaliativos (MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005.), que norteariam normativamente como podem ou devem ser julgados as atitudes e o caráter das pessoas, bem como a forma como elas se comportam. Assim como é o caso da área dos significados para o AFETO, o JULGAMENTO pode ser analisado do ponto de vista da variável positivo/negativo, ou seja, como quando representamos características do outro que admiramos ou criticamos. Uma vez que tais avaliações se dão na relação que nós, enquanto avaliadores, estabelecemos com os outros, enquanto avaliados, pode-se dizer, desta forma, que a área do JULGAMENTO está circunscrita à ética e à moral – à ética, porque, para fazermos julgamentos deste tipo, partimos sempre de um sistema de normas ou conjunto de princípios que nos permitem avaliar da forma como avaliamos; à moral, porque, dado serem tais julgamentos expressos, comunicados a alguém, só podemos fazer isso, portanto, publicamente, por meio de recursos que comprometem o avaliado perante as pessoas de seu convívio social privado ou perante a lei pública.

Como indicam Martin e White (2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., p. 52), as avaliações de JULGAMENTO podem ser divididas ou dar entrada a mais dois subsistemas: o de “ESTIMA SOCIAL” (SOCIAL ESTEEM) ou o de “SANÇÃO SOCIAL” (SOCIAL SANCTION). Cada subsistema do subsistema de JULGAMENTO, por sua vez, tem suas especificidades quanto às escolhas ou recursos. Os julgamentos de ESTIMA SOCIAL têm a ver com as avaliações de NORMALIDADE (avaliando em termos de quão normal ou incomum alguém é), de CAPACIDADE (avaliando em termos de quão capaz ou incapaz alguém é) e de TENACIDADE (avaliando em termos de quão firme, resoluto ou indeciso, inseguro alguém é). Segundo os autores (MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005.), as avaliações feitas desta forma são essenciais e críticas para a formação e consolidação de redes sociais de convivência, como a família, os amigos, os colegas etc. Já os julgamentos do tipo SANÇÃO SOCIAL são condições de entrada para avaliações que têm a ver com a VERACIDADE (julgando em termos de quão verdadeiro, honesto ou mentiroso, desonesto alguém é) e a PROPRIEDADE (julgando em termos de quão justo, probo, ético ou injusto, corrupto, antiético alguém é). Para Martin e White (2005)MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., as avaliações deste tipo estão relacionadas mais diretamente com julgamentos de ordem normativa, ou seja, têm a ver com a observância de preceitos religiosos ou legais, como exemplos.

A Figura 3 de Martin e White (2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., p. 45) mostra, também, que o AFETO poderia ser visto como estando no coração do JULGAMENTO e da APRECIAÇÃO, que seriam Afetos mais institucionalizados, seja em função de normas, regras e regulamentos respaldados, por exemplo, pela Igreja ou o Estado (JULGAMENTO), seja em função de critérios e valorações respaldados por “sistemas de premiação” (systems of awards) (APRECIAÇÃO):

Figura 3
– JULGAMENTO e APRECIAÇÃO como AFETO institucionalizado

Na figura, assim como o JULGAMENTO estaria relacionado à avaliação por meio de regras e regulamentos, ou seja, ao domínio da ética/moralidade, a APRECIAÇÃO poderia ser remetida à estética, por estar aliada à valoração das coisas ou pessoas.

Todas estas formas de realizações do subsistema de ATITUDE serão tomadas para a análise como contributo de uma avaliação negativa, desvantajosa, condenável, por parte dos escreventes dos textos, dos atores sociais citados como envolvidos nos eventos políticos ou casos de corrupção denunciados pela revista Veja. Essas avaliações atitudinais podem ser encaradas como formas de construção de identidades dos tais atores sociais, ao mesmo tempo em que possibilitam a emergência das dos jornalistas e da revista Veja, consequentemente. Concomitantemente, as avaliações atitudinais feitas permitem ainda encará-las como reveladoras dos sistemas políticos e ideológicos ou, como dizem Martin e White (2005)MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., das comunidades socialmente constituídas de crenças e atitudes compartilhadas associadas às suas posições, que dão suporte à postura axiológica assumida pelos jornalistas da revista em seus textos, o que possibilitaria identificar um discurso ou, para ser mais preciso, uma prática articulatória a impugnar, de um lado, identidades ideológica e politicamente adversárias à Revista e, de outro, a propugnar tanto a posição (inescapavelmente política) desta em relação àquelas, quanto ao discurso projetante em seus textos.

Subsistema de engajamento

Pensar o subsistema de ENGAJAMENTO é reconhecer, de antemão, um contexto ou pano de fundo de opiniões, de pontos de vista, de juízos de valor com os quais uma voz sempre interage, seja respondendo, concordando, afirmando, seja discordando, negando, refutando12. Assim, Martin e White vão considerar o ENGAJAMENTO como concernente aos sentidos que fornecem ao escrevente os meios pelos quais ele pode se posicionar e engajar-se com outras vozes ou posições alternativas que estão em jogo no contexto comunicativo, imediato ou mais amplo, em que ele se encontra.

Seu enquadre para a análise do ENGAJAMENTO permite caracterizar, portanto, os diferentes recursos linguísticos usados pelos escreventes para adotar uma posição ou postura em relação às posições de valor que são referenciadas por seus textos e pelo contexto discursivo, assim como investigar os efeitos retóricos associados com as tomadas de posição e explorar o que está em jogo quando uma postura é adotada e não outra. O enquadre, também, oferece a oportunidade de verificar os aspectos antecipatórios do texto – os sinais que os escreventes/falantes fornecem quanto a como eles esperam que aqueles a quem eles se dirigem respondam à proposição e à posição de valor que ela oferece (MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., p. 93). Além disso, a análise dos sentidos construídos no subsistema de ENGAJAMENTO possibilita ainda ver que posições de valor são tomadas e apresentadas como dadas para a audiência do texto ou quais são problemáticas, controvertidas, ou, mesmo, destinadas a serem questionadas ou refutadas.

A despeito da orientação dialógica que se tem sobre as interações discursivas, não se pode ignorar aí a presença de asserções categóricas ou nuas (“‘bare’ or categorical assertions”). Como nos explicam Martin e White (2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., p. 99), tais asserções tendem a ser consideradas, na literatura semântica tradicional, como factuais, objetivas, neutras. Mas, quando se toma a visão de que a comunicação verbal se dá num contexto constituído precipuamente de várias vozes e pontos de vista alternativos, este tipo de asserção tende a assumir outra nuança, do que simplesmente a ser encarada pela lente das condições de verdade, como é vista, em geral, neste tipo de literatura. Assim, o status deste tipo de asserção pode ser analisado como construindo, ao seu modo, um dado arranjo de vozes ou pontos de vista alternativos, ao não as reconhecer abertamente. Nestes casos, temos um contexto comunicativo tendendo a ser unilateralmente construído pelo escrevente.

Portanto, duas escolhas possíveis se revelam nas interações: EXPANSÃO do potencial dialógico das vozes nos enunciados, permitindo posicionamentos alternativos; ou a sua CONTRAÇÃO, desestimulando a negociação dos sentidos produzidos nas interações. No primeiro caso, ocorre uma abertura para a negociação dos sentidos veiculados no texto do escrevente, abrindo margem, inclusive, para discordância, questionamento. No segundo, contudo, há a adoção de uma postura tendente à monológica, que, ao tentar apagar a impressão de relatividade ou, mesmo, de não validade dos sentidos produzidos pelo escrevente, busca produzir um caráter de verdade categórica e absoluta ao que se diz. Esses são os dois termos a serem escolhidos no subsistema de HETEROGLOSSIA no subsistema de ENGAJAMENTO. O termo heteroglossia, por sua vez, faz par com o termo monoglossia: heteroglossia, para enunciados abertos à negociação; e monoglossia13, para enunciados categoricamente intransigentes à qualquer possibilidade de negociação. Martin e White (2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., p. 101) dizem que o caráter de “tomado como dado” dos enunciados categóricos ou asserções “nuas” tem o efeito fortemente ideológico de construir para o texto um leitor ou audiência suposta que compartilha da posição de valor comunicada pelo escrevente, deixando fora de questão a não validade delas.

A CONTRAÇÃO DIALÓGICA, conforme explicado acima, faz com que a proposição contida na voz do escrevente seja vista apenas como uma das diferentes possibilidades de posicionamentos, mas, diferentemente de quando escolhe os recursos da expansão dialógica, com a contração o escrevente assume uma posição em total desacordo ou em rejeição às posições contrárias, ou seja, sua formulação desafia, evita ou mesmo restringe o foco das posições ou vozes alternativas. Vale notar que, como destaca Vian Jr. (2010, p. 38), “os recursos para a contração imprimem à proposição um aspecto altamente válido e fundamentado”, principalmente por se valer ou da rejeição, ou da força epistêmica da voz de outrem, para basear as proposições defendidas.

A CONTRAÇÃO, assim como a expansão, é uma condição de entrada para outro subsistema, que se abre também para duas escolhas: a DISCORDÂNCIA (DISCLAIM) e a PROCLAMAÇÃO (PROCLAIM). A DISCORDÂNCIA é um termo para recursos através dos quais alguma alternativa é tomada para ser rejeitada ou suplantada por outra, ou ainda para ser representada como não pertinente àquilo de que se fala no texto. Nesta categoria, encontrar-se-ão aquelas formulações lexicogramaticais por meio das quais é evocada alguma posição de valor ou proposição alternativa a fim de ser substituída por outra ou, então, ser considerada insustentável. Dentro desta categoria, ainda há mais dois subtipos, que concernem às formas como a DISCORDÂNCIA é possível: a negação (deny) e a contraexpectativa (counter). Com a negação, tem-se o movimento de introduzir uma posição alternativa, de reconhecê-la, para ser, em seguida, rejeitada, ou seja, o escrevente usa outras vozes para serem negadas e, depois, propor uma alternativa própria.

Em relação à discussão dos mecanismos de contração dialógica, como a negação, Martin e White (2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., p. 119) salientam ainda as possíveis relações entre escrevente e audiência que a negação promove. Em um caso, com o uso deste recurso, o escrevente pode estar partindo da suposição de que a audiência, de alguma forma, compartilha ou é suscetível às vozes, às proposições ou valores que a voz negada representaria, construindo, assim, uma audiência que precisa ser convencida ou informada de algo mais a respeito delas. Em outro caso, a negação pode ser dirigida para a audiência ela mesma, assumindo, assim, o escrevente, a postura de alguém que tem conhecimento o suficiente sobre o assunto em discussão, o que o autorizaria negar as vozes ou proposições trazidas ao texto. O segundo tipo de DISCORDÂNCIA é a contraexpectativa, que se refere aos recursos que apresentam uma proposição ou voz a ser suplantada por outra, a do escrevente. Assim, o escrevente usa outra voz, mas não defende o que dela se deduz, quebrando, com a alternativa que ele oferece, uma provável expectativa criada pelo leitor/audiência durante a leitura da primeira posição/voz.

Em relação ao segundo tipo de contração dialógica, a PROCLAMAÇÃO, têm-se aqueles recursos que limitam o alcance de outras vozes, em vez de diretamente rejeitar a posição contrária. Este tipo de contração ainda é entrada para outros três subtipos, que permitem a proclamação: a CONCORDÂNCIA (CONCUR), o PRONUNCIAMENTO (PRONOUNCE) e o ENDOSSO (ENDORSE). A CONCORDÂNCIA concerne aos recursos que mostram o escrevente como alguém que concorda ou tem o mesmo conhecimento do de outro, em geral o leitor, mas ele tira a força de sua proposição ou a fundamenta com base no senso comum, ou seja, usando-se de argumentos comumente válidos ou aceitos por todos ou por sua audiência. Neste caso, a forma como o escrevente produz seu texto põe (ou pressupõe estar com) o leitor numa relação de alinhamento tácito e a proposição que ele advoga em questão é tomada como dada. Dessa forma, a eficácia de um compartilhamento do valor ou crença promovido pelo escrevente é alta, pois ele baseia sua proposição de um modo universal, amplamente aceito, excluindo, assim, ou comprometendo fortemente qualquer discordância que daí possa surgir. A CONCORDÂNCIA ainda pode ser detalhada em mais dois subtipos: a CONCORDÂNCIA AFIRMATIVA (AFFIRMING CONCURRENCE) e a CONCORDÂNCIA CONCESSIVA (CONCEDING CONCURRENCE). O ENDOSSO, por sua vez, refere-se aos recursos por meio dos quais o escrevente, usando vozes e proposições externas às do seu texto, vai construir as suas como válidas ou inegáveis, ou seja, o escrevente se utiliza de fontes, fatos, eventos externos para validar a sua opinião. Por fim, no PRONUNCIAMENTO, os recursos estão sempre relacionados à ênfase em algo que o escrevente quer dar, tentando eliminar qualquer resistência que o leitor possa oferecer ao que é exposto e desejando, assim, buscar uma solidariedade para com aquilo que diz. Como informam Martin e White (2005)MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., a ênfase implica a presença de alguma resistência à voz que se expressa ou às proposições e valores que se asseveram no texto. Os casos de resistência podem ser, por exemplo, por parte da audiência, com o que a solidariedade entre o escrevente e esta vai ser ameaçada, mas, com frequência, ele vai empregar outros recursos para que o alinhamento entre ambos seja reestabelecido; ou, ainda, por parte de uma terceira voz, com o que, ao contrário do exemplo anterior, a solidariedade vai ser construída e reforçada, uma vez que o escrevente se apresenta como estando de acordo com o leitor em relação à terceira posição. Esta estratégia, segundo os autores (MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005., p. 130), é comumente explorada em comentários jornalísticos ou em retóricas políticas (abaixo, a rede de sistemas de contração dialógica).

Figura 4
– Rede de opções paradigmáticas do sistema de CONTRAÇÃO DIALÓGICA

As escolhas monoglóssicas, por exemplo, podem ser associadas à construção de uma identidade informativa e investigativa (desmistificadora) da Revista; o uso de léxico atitudinal, por sua vez, à construção das identidades do outro; e o uso de argumentos heteroglóssicos, por fim, à construção tanto dessas identidades (com o enfraquecimento das que eram antes supostas), quanto de comunidades de crença e valores (político-ideológicos) compartilhados, o que poderia favorecer a formação de práticas articulatórias em torno de pontos nodais, como o “combate à corrupção”. Daí a importância que damos às categorias linguísticas provenientes da discussão sobre o Sistema da AVALIATIVIDADE de Jim Martin e Peter White (2005), em especial às que demonstram as realizações de ATITUDE e ENGAJAMENTO na linguagem, conforme discutimos, por nos permitirem perceber como a mídia, no caso a revista Veja, se constitui e aos outros ou exibe a identidade de si e de outrem pela forma como diz quando diz o que diz.

O engajamento e a atitude com a audiência enquanto proposição de um discurso

Nesta seção, apresentaremos dois textos14 que paradigmaticamente nos dão uma compreensão de como essa postura “universal”, ao mesmo tempo “racional”, ocorre. Logo abaixo, temos uma Carta ao Leitor, publicada no dia 3 de agosto de 2005, aproximadamente dois meses após a divulgação de um vídeo por Veja em que flagrava um funcionário dos Correios recebendo e explicando a propina que chegava em sua diretoria15.

A Carta ao Leitor é um tanto quanto exemplar no que concerne à postura imparcial, objetiva, despolitizada da revista Veja. Isso porque é claramente declarado ao lado de quem ela estaria, quem representa, para quem se dirige e por quê. A atitude antagônica, ao mesmo tempo constatativa da revista, encontra sua razão de ser aqui, nessa declaração que reivindica para ela a identidade de veículo jornalístico imparcial, a serviço de todos, como se os interesses que a movessem encontrassem esteio não em questões políticas, sociais, ideológicas particulares, mas antes almejassem fim em um interesse comum, que representasse os anseios de todos, da nação.

Nesta Carta ao Leitor, encontramos esta postura universal da revista. Trata-se de uma forma estratégica de engajamento com a audiência. Colocando-se como representante da nação, a revista transfigura-se como agente representativo de todos, esconde-se numa homogeneização de um todos nós. Seu discurso, portanto, é apresentado como articulação e condensação dos interesses dos brasileiros. E, engajando todos na luta da revista contra a corrupção, todos aqueles que ratificam a significância da revista, que endossam sua representação da realidade, anuem à forma como Veja significa os eventos e atores sociais. A corrupção, neste caso, aparece como elemento norteador, como ponto nodal que congrega em torno do discurso de Veja a nação, ao menos todos aqueles que são contra os que ao país fazem mal. Nos textos analisados, a corrupção desempenha papel moral preponderante, já que ela amarra em si a indignação que se manifestaria na sociedade, mas com o auxílio de discursos que não só a constatam, e sim que direcionam o olhar, a compreensão, a forma de encarar a realidade social e política – enfim, um discurso, supostamente de todos.

Vejamos o texto:

A FAVOR DO BRASIL

“A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça.” A frase de Rui Barbosa, que vale sempre citar, desdobra com beleza aquela que é a missão jornalística por excelência – a de fiscalizar o poder, independentemente de quem o tenha conquistado, pelo bem do país. É essa missão que VEJA leva a cabo semana após semana, desde que foi lançada, em setembro de 1968. Durante a ditadura militar, na vigência da qual a revista nasceu, a fiscalização do poder da imprensa era dificultada, quando não completamente impedida, pela censura. Democracia reinstaurada, à mordaça substituiu-se – tanto melhor – a grita dos fiscalizados. “A imprensa é parcial”; “É preciso controlar a imprensa”: tais são as frases que costumam pontuar o cantochão dos que, no poder, são apanhados com a boca na botija.

No caso de VEJA, o cantochão mais ouvido é que ela é “parcial”. Há quem o entoe agora, por causa da cobertura extensa e aprofundada que a revista faz dos escândalos que colocam em xeque o governo Lula. Como se fatos sobejamente provados fossem um diz-que-diz inconsequente. Como se VEJA fosse antipetista. Nada mais longe da verdade. A revista não é, nem nunca foi, inimiga de forças políticas. Não era anti-Collor quando denunciou o esquema do tesoureiro PC Farias; não era antitucana nos momentos em que o governo Fernando Henrique Cardoso foi maculado por esquemas de corrupção. VEJA não é inimiga de certos partidos políticos nem amiga de outros. A revista é, simplesmente, a favor do Brasil. Contra os que lhe malfazem, os que lhe roubam. A vista da nação. (A FAVOR..., 2005, p.09).

O texto começa com um engajamento com a voz de outro. Trata-se da voz de alguém que goza de prestígio social e político no Brasil, ao menos essa é a imagem por muitos imputada a Rui Barbosa, a seus discursos políticos, que encerram excelente retórica e exemplificam a hombridade de seu caráter. A voz de Rui Barbosa, aqui, serve como ENDOSSO daquilo que será defendido pela revista: o fato de que Veja está a serviço de todos, e não contra certos partidos políticos. A recontextualização da voz de Rui Barbosa não poderia ser mais perfeita. Ela surge como uma força que defende a revista das acusações a que vinha sendo submetida por estar a desvendar casos de maltrato e mal-uso da máquina política pública, além de reforçar o papel que seria da imprensa: o de fiscalizar o poder para o bem do país. Esta proposição da Revista se erige no texto contra uma voz que, sem atribuição específica, lhe questionaria a função (“independentemente de quem o tenha conquistado, pelo bem do país.”). Em seguida, temos uma avaliação (ATITUDE – JULGAMENTO – ESTIMA SOCIAL – TENACIDADE – POSITIVA) da própria revista quanto à sua atividade, ao afirmar que persegue, “semana após semana”, o objetivo da imprensa, tão bem defendido por Rui Barbosa, desde sua fundação enquanto revista, em 1968. E isso mesmo diante de tantos empecilhos que tentavam impedir sua tarefa, como na ditadura com a censura e na democracia com “a grita dos fiscalizados”.

No trecho “‘A imprensa é parcial’; ‘É preciso controlar a imprensa’: tais são as frases que costumam pontuar o cantochão do que, no poder, são apanhados com a boca na botija”, temos um uso interessante dos recursos de HETEROGLOSSIA. Encontramos a menção a outras vozes que concorrem para a construção da identidade da própria Revista e que subestimariam a validade epistêmica de tudo o que ela propõe com seus discursos/textos (“‘A imprensa é parcial’; ‘É preciso controlar a imprensa’”). Embora inaugure a possibilidade de questionamento ou discordância daquilo que tais vozes propõem, típico de uma EXPANSÃO DIALÓGICA, o que percebemos é que a orientação, em seguida, dada pela voz da Revista não tende a negociar os sentidos dessas outras, mas antes as nega e as contrai, de tal modo que são refutadas em função dos valores morais norteadores das intenções da Revista ao desmascarar aqueles que “são apanhados com boca na botija”, ou seja, são apanhados, pelas denúncias da Revista, roubando o dinheiro público. Além disso, quando consideramos o que é dito imediatamente antes (“Durante a ditadura militar, na vigência da qual a revista nasceu, a fiscalização do poder da imprensa era dificultada, quando não completamente impedida, pela censura. Democracia reinstaurada, à mordaça substituiu-se – tanto melhor – a grita dos fiscalizados.”), com uma comparação da “grita dos fiscalizados” à mordaça da época da Ditadura Militar, vemos que a postura da Revista, nesse caso, é a de reduzir o potencial ideológico dessas outras vozes concorrentes, eliminando qualquer resistência ou alinhamento que o leitor possa oferecer ao que é exposto.

Conforme dissemos mais acima, na discussão sobre a escolha de CONTRAÇÃO por PRONUNCIAMENTO, a presença de alguma resistência, sobretudo de vozes de terceiros, à voz que se expressa (no caso, à da Revista) ou às proposições e valores que se asseveram colabora com um alinhamento tal com a audiência que a coloca como se estivesse do lado das vozes da Revista, já que esta vem se posicionando contra aqueles que dilapidam o dinheiro da população. Nesse caso, portanto, temos como o recurso de ENGAJAMENTO – HETEROGLOSSIA – CONTRAÇÃO – PROCLAMAÇÃO – PRONUNCIAMENTO, pelo que a Revista apresenta aquelas frases que seriam ouvidas frequentemente quando se tratava de criticar sua atividade de imprensa que busca o bem de todos. A atribuição, assim, não é feita a alguém específico, mas antes àqueles que foram acusados de, no poder, cometer irregularidades. Como essa atribuição, mesmo que não específica a alguém, mas a quem está em erro com o Estado, tem, assim, sua estima reduzida, pois não invalida em nenhum momento a atividade de Veja de fiscalizar o poder, mas antes constrói uma solidariedade para com o leitor, representado como a população cujo dinheiro é roubado pelos políticos.

O fato de ela ser julgada como “parcial”, por exemplo, chega a ser conferido a pessoas que, no momento em questão, incomodavam-se com sua atividade jornalística (“Há quem o entoe agora, por causa da cobertura extensa e aprofundada que a revista faz dos escândalos que colocam em xeque o governo Lula”). Se um pouco mais acima a Revista afirma que “a grita” de sua “parcialidade” vem daqueles que foram apanhados em atos condenáveis (“com a boca na botija”), há uma orientação quanto a quem, neste momento, pode estar a declamar sua parcialidade: pessoas envolvidas no Escândalo do Mensalão. A TENACIDADE de certas frases atribuídas à postura jornalística da revista só faz creditar ainda mais o valor positivo que ela tem frente às atividades que ela realiza no cenário jornalístico e político nacional. Dessa forma, a Revista constrói a imagem de si como a de alguém confiável, que pratica seu ofício para o bem de todos, como fica evidente no final do texto.

A frase seguinte é uma contra-afirmação àqueles que criticam a atuação da revista: “Como se fatos sobejamente provados fossem um diz-que-diz inconsequente”. Aqui, a revista coloca ao seu lado os fatos, “sobejamente provados”, ou seja, coloca-se como um veículo que está ao lado da verdade, junto à qual não estariam, portanto, aqueles que contra ela gritavam. Aqui a CONCORDÂNCIA CONCESSIVA da proposição “No caso de VEJA, o cantochão mais ouvido é que ela é ‘parcial’” encontra seu arremate, sua contra-afirmação, sob a forma de outra proposição fundamentada em “fatos sobejamente provados”, ou seja, temos um ENGAJAMENTO – HETEROGLOSSIA – CONTRAÇÃO – PROCLAMAÇÃO – ENDOSSO. Assim, temos a consequência de que a imagem reivindicada para a revista está amparada não pelo que ela deseja e diz, mas pelo que está “provado”, por “fatos”. Isto é o que faz, por exemplo, que o ethos de “imparcial”, corriqueiramente atribuído ao jornalismo informativo, seja tão bem justificado e validado, sobretudo quando os fatos perdem a dimensão factual e contingente, para assumir, dessa forma, o caráter de própria realidade. Em vez de serem vistos como formas de encarar a realidade, os fatos tornam-se aspectos incontestes dela própria. Assim, a Revista tira a força da identidade – “imparcial” –, bem como de suas proposições, não da relatividade de sua subjetividade, mas da certeza da objetividade. Elimina-se, aqui, mas só à primeira vista, a resistência de vozes que se contraporiam ao que a da revista apresenta. Daqui o poder de recalcitrância que até mesmo a frase seguinte comportaria (“Como se VEJA fosse antipetista”) perde sua própria validade.

A CONTRAÇÃO (ENGAJAMENTO – HETEROGLOSSIA – CONTRAÇÃO – DISCORDÂNCIA – negação) de vozes alheias é o recurso par excellence dos jornalistas de Veja. E isso fica patente nas frases seguintes: “Nada mais longe da verdade. A revista não é, nem nunca foi, inimiga de forças políticas. Não era anti-Collor quando denunciou o esquema do tesoureiro PC Farias; não era antitucana nos momentos em que o governo Fernando Henrique Cardoso foi maculado por esquemas de corrupção”. Aqui, temos o uso de proposições como recurso para ATITUDE – JULGAMENTO – SANÇÃO SOCIAL – PROPRIEDADE, mormente porque põe a Revista como alguém ao lado da verdade, e não da mentira; alguém a serviço da nação, e não de interesses particulares. Além disso, reforça seu caráter tenaz na perseguição e denúncia daqueles que enchem de opróbio o Brasil, não por divergências políticas e partidárias em relação aos denunciados, mas por um dever cívico, íntegro, virtuoso e republicano, que a põe ao lado da nação, do bom governo, e não dos malfeitores.

O que percebemos da análise dessa Carta ao Leitor é que, em vários momentos, a Revista constrói uma conciliação entre si e sua audiência, estabelecendo um alinhamento que, de um lado, põe o leitor como alguém solidário para com as propostas da Revista e, de outro, juntos, Revista e leitor, se posicionam contra o governo e as práticas corruptas que dele emergem. Isso nos leva a formular duas conclusões a respeito do que papel político e parcial presente nas escolhas linguístico-discursivas do texto da Revista. Primeiro, a reivindicação de uma postura neutra, objetiva e universal é constante e se sustenta à medida que consegue contrair a força de ideias e proposições conflitantes com os interesses de imparcialidade da Revista. A presença constante de recursos léxico-gramaticais de ENGAJAMENTO mostra também que a luta implícita por diferenciar a si mesma de todos aqueles contra quem a Revista e a audiência alinhada a seu lado se erigem é sintomática de um embate político e ideológico que não se apaga mesmo com a tentativa de construção de uma identidade representante do bem coletivo. Mostrar-se como advogada de um interesse comum, de todos, ou como “vista da nação” e de seus cidadãos, conforme dissemos mais acima, é o modus operandi procedimental da ideia de uma esfera pública de deliberação racional, em que pretensamente se colocam de lado os interesses particulares, políticos e ideológicos em nome do bem coletivo, da nação para que possam ser atingidos os objetivos públicos e morais que beneficiem a todos.

Contudo, a presença recorrente de recursos linguístico-discursivos de ATITUDE revela uma segunda conclusão que mina a ideia de separação de interesses particulares e ideológicos nas formas linguísticas mobilizadas pela Revista. Se a própria presença de avaliações atitudinais de JULGAMENTO, na medida em que compromete aqueles contra os quais a Revista se coloca em termos morais e jurídicos (“Contra os que lhe malfazem, os que lhe roubam”, em avaliações que tocam a dimensão da SANÇÃO SOCIAL, de PROPRIEDADE), denuncia o sistema de valores, os interesses que subjazem ou norteiam a forma como ela representa os atores políticos em questão, é porque isso demonstra que há um discurso político, uma proposta política a lhe fundamentar e a orientar tanto a si quanto sua audiência. Isso significa que a Revista, longe dos princípios de uma democracia deliberativa, racional, preocupada com o consenso e com a racionalidade comunicativa, tal como discutimos via Chantal Mouffe, é guiada por questões políticas e particulares em suas representações. Por exemplo, o fato de considerar que o governo FHC foi “maculado” por esquemas de corrupção, mas que o governo Lula vem sendo assolado por “fatos sobejamente provados” que “colocam em xeque” o próprio governo, demonstra também um aspecto valorativo da Revista ao empreender suas críticas em relação a certos políticos, num dado momento histórico, marcando, portanto, a orientação argumentativa e valorativa presente em suas avaliações atitudinais, embora sub-repticiamente negada, por estar contra todos os que roubam e malfazem contra a nação. Isso mostra que as orientações e as decisões políticas não conseguem, como propõem os defensores da democracia deliberativa, ser isoladas do pluralismo valorativo e ideológico nem que sejam politicamente neutras o suficiente para que soluções racionais venham a ser propostas em detrimento de posições valorativas, políticas e ideológicas. Assim, fica notório que a ideia de uma identidade jornalística que daria suporte para um caráter mais noticioso, mais informativo, menos orientada para opinar e se comprometer politicamente com o que relata, se constrói como uma tentativa de negar os valores políticos e ideológicos, bem como a posição de ator político da esfera pública.

Vejamos mais uma reportagem. Desta vez, referente ao período dos escândalos envolvendo ministros de Dilma. Ela foi publicada no dia 26 de outubro de 2011, na edição 2240, e foi assinada por Otávio Cabral e Laura Diniz. A reportagem é escrita quase em sua inteireza por constatações, com pouco recurso a outras vozes. Quando estas são mobilizadas, são apenas para reforçar as teses principais dos jornalistas, que, além de desenhar a realidade dos acontecimentos de seu modo, ainda conseguem, com o endosso de dados, fatos e vozes de especialistas, construir e alinhar a audiência como alguém que está em perfeito acordo com tudo o que eles dizem. O tema central da reportagem é corrupção. Vejamos:

A VINGANÇA CONTRA OS CORRUPTOS

Brasileiros começam a se indignar com a corrupção, mal que consome por ano o dinheiro que seria suficiente para acabar com a miséria no país.

A máscara branca com bigode e cavanhaque negros de Guy Fawkes, usada pelo justiceiro solitário do filme V de Vingança, tornou-se o símbolo dos manifestantes que ocupam as praças das principais cidades do mundo em protestos contra a crise econômica. No Brasil, onde a situação da economia ainda não guarda semelhança com a turbulência dos países ricos, a mesma máscara passou a decorar as manifestações contra a corrupção. Em sua indignação contra o regime totalitário que domina a Inglaterra em 2020, o mascarado V manda pelos ares o Parlamento. Por aqui, em um regime democrático, ninguém com juízo pode defender a explosão das instituições. Mas motivos para se indignar e sair às ruas a exigir a reforma da política e dos políticos não faltam. Os brasileiros são expostos quase todos os dias pela imprensa - e, em especial, por esta revista - a reportagens que revelam vergonhosas práticas de corrupção em todos os níveis de governo. Como se diz no interior do Brasil, em matéria de encontrar malfeitos no universo oficial, é “cada enxadada, uma minhoca”. Cada um desses casos escandalosos provoca um surto de indignação nos homens de bem - mas, como logo aparecem novas denúncias, as pessoas honestas são levadas a redirecionar a indignação para outro alvo e, ao fim e ao cabo, todos se sentem perdidos e desamparados. VEJA se propõe, nesta reportagem, a examinar o fenômeno da corrupção em sua completude, analisando especialmente os malefícios que o roubo constante do nosso dinheiro provoca em cada um de nós.

[...]

A indignação com a corrupção ganhou força nos últimos meses, com a demissão pela presidente Dilma Rousseff de quatro ministros envolvidos em irregularidades. O último pilhado foi Orlando Silva, do Esporte. A atitude firme da presidente ajudou a despenar a população para o descalabro do desvio em massa do dinheiro do povo. Agora é preciso dar urgentemente o passo seguinte, que é estancar a sangria da riqueza nacional - pois os atuais mecanismos de prevenção e punição da corrupção não estão funcionando. [...]. (CABRAL; DINIZ, 2011CABRAL, O.; DINIZ, L. A vingança contra os corruptos. Veja , São Paulo, n.2240, p.76, 26 out. 2011., p.76).

Este texto é predominantemente MONOGLÓSSICO. Há sim a presença de outras vozes no texto, mas, como é possível ver, são apenas para reforçar e endossar o que os jornalistas advogam. Vejamos o início. Os pressupostos das frases são de que a audiência sabe e até compartilha dos fatos a que os jornalistas se reportam. O mais curioso é que toda a indignação que motiva, por exemplo, os mascarados no Brasil a saírem às ruas “para exigir a reforma política e dos políticos” encontra seu apoio e ânimo na própria revista (“Os brasileiros são expostos quase todos os dias pela imprensa - e, em especial, por esta revista - a reportagens que revelam vergonhosas práticas de corrupção em todos os níveis de governo”), o que imprime o matiz de que a revista continuamente vem denunciando “vergonhosas práticas de corrupção em todos os níveis de governo” e de que somente ela é que tem, ao menos em um primeiro momento, se colocado contra essas práticas “vergonhosas”.

Se levarmos em consideração que o contexto em que a reportagem surge é o da série de escândalos e demissões envolvendo o mais alto escalão do governo Dilma, então muito sugestivo fica o fato de que as práticas vergonhosas aludidas vêm deste governo e que sua frequente exposição e revelação pela imprensa, mas, “em especial, por esta revista”, é, senão a origem da indignação geral que vem levando os brasileiros a se manifestarem nas ruas, ao menos sua pedra de toque. Nesse sentido, evidencia-se que Revista elege o governo em questão como a expressão máxima da corrupção e da indignação da população brasileira, a quem os escreventes se dirigem e com quem compartilham do sentimento generalizado de indignação. É como se os então casos de corrupção na Esplanada dos Ministérios fossem o estopim, a gota d’água que transbordou o limite da pusilanimidade dos brasileiros. Entretanto, como é dito no trecho “Cada um desses casos escandalosos provoca um surto de indignação nos homens de bem - mas, como logo aparecem novas denúncias, as pessoas honestas são levadas a redirecionar a indignação para outro alvo e, ao fim e ao cabo, todos se sentem perdidos e desamparados”, a indignação que há parece não ser a reação de todos os brasileiros, mas somente daqueles que não suportam mais tanta exposição a “vergonhosas práticas”, ou melhor, os “homens de bem”, “pessoas honestas”. A relevância de se destacar isso vem do alto grau de alinhamento que os jornalistas desenham com a audiência, ao engajá-la com a revista para ser incluída entre os “homens de bem” que se indignam com a corrupção diária em “todos os níveis de governo”, trechos esses que revelam escolhas léxico-gramaticais sub-reptícias de ENGAJAMENTO – HETEROGLOSSIA – CONTRAÇÃO – PROCLAMAÇÃO – ENDOSSO, pois que comprometem, por meio do ENDOSSO, a audiência com aquilo que vem sendo dito no texto.

Boa parte das frases, das proposições dos jornalistas, no primeiro parágrafo, é feita sem nenhuma remissão a outras vozes. Não há a presença de vozes concorrentes, mas também não há de outras que endossem a dos jornalistas, senão nos trechos destacamos acima. Um outro caso de uma voz externa é do provérbio, do dito popular, usado, aqui, como ENDOSSO da própria tese dos jornalistas de que em todos os lugares, em todos os níveis de governo, há a praga da corrupção (“cada enxadada, uma minhoca”). Todo o restante é tomado como dado, mas sem a presença de um pressuposto, como se tacitamente todos os que leem soubessem do que se tratava do texto, pois o predomínio é de uma narrativização dos acontecimentos. Justamente esta ausência de voz é que fornece este caráter de narrativa primeira, de palavra inauguradora do universo construído em torno do tema da corrupção. Neste caso, como os jornalistas generalizam a indignação como reação de todos os brasileiros de bem, além do fato de não haver uma diferenciação real para esclarecer quem de fato está incluído nesta categoria (o que reforça mais a disposição de alinhamento tácito dos brasileiros com a narração dos jornalistas), a audiência é conduzida, desta forma, a compartilhar tanto da constatação feita pelos jornalistas, quanto do próprio sentimento que eles lhe atribuem na representação da reação como indignação, assim como do comportamento, de sair às ruas em defesa da reforma política e em luta contra a corrupção.

No caso da última frase do primeiro parágrafo (“VEJA se propõe, nesta reportagem, a examinar o fenômeno da corrupção em sua completude, analisando especialmente os malefícios que o roubo constante do nosso dinheiro provoca em cada um de nós”), encontramos mais uma vez aquela atitude teorizante da Revista, que oferece uma descrição da realidade, manifestando sua essência. Aqui, há o uso de uma estratégia científica, em mostrar, senão a causa primeira, ao menos os desdobramentos e os liames entre um evento e outro, de modo que uma compreensão mínima, mas confiável, seja oferecida como apreensão da realidade dos acontecimentos que constituem a conjuntura política atual, bem como a reação de seus expectadores, os brasileiros, dentre os quais nós, a audiência. Além disso, a escolha de itens lexicais (“nosso dinheiro”, “em cada um de nós”) em que se incluem tanto os jornalistas, quanto a audiência é importante para o estabelecimento de um alinhamento e anuência com o público-leitor.

No caso do outro parágrafo, o dado mais relevante na voz dos jornalistas é o caráter deontológico, ordenador, imperativo presente na última frase (“Agora é preciso dar urgentemente o passo seguinte, que é estancar a sangria da riqueza nacional - pois os atuais mecanismos de prevenção e punição da corrupção não estão funcionando.”), que, em vez de sugerir, na sua teorização da situação política brasileira, propõe como ordem a ser seguida “estancar a sangria da riqueza nacional – pois os atuais mecanismos de prevenção e punição da corrupção não estão funcionando”. Aqui, o que temos é a redução da positividade da atitude tomada por Dilma, e até citado pelos jornalistas, ao dizerem que “a atitude firme da presidente ajudou a despenar a população para o descalabro do desvio em massa do dinheiro do povo”. Em vez do endosso positivo, o que logo em seguida aparece é um ENGAJAMENTO – HETEROGLOSSIA – CONTRAÇÃO – PROCLAMAÇÃO – CONCORDÂNCIA CONCESSIVA, que só concorda com a atitude de Dilma, se o passo seguinte de modificar os atuais mecanismos de combate à corrupção for dado.

A característica mais notória desse segundo texto é a de que a Revista está em clara contundência com o governo em vigor, algo que se percebe pela postura monoglóssica majoritária das frases, demonstrando, portanto, que o teor antagonista, conflitante, das discussões políticas não se escamoteia nem se apaga em função de se reivindicar uma posição isenta ou de se alinhar com um posicionamento possivelmente compactuado com a audiência. Acrescente-se a isso o fato de que tal postura antagônica, uma vez estando baseada predominantemente em escolhas gramaticais monoglóssicas, negando ou contraindo vozes concorrentes quando estas aparecem, revela não só que sua identidade de jornalismo neutro e objetivo é um projeto de racionalidade comunicativa (a representar o bem de todos e a falar da realidade como ela é) que se beneficia de uma ideia de participação política não ideológica, não adversarial, focada na perseguição de um pretenso consenso universal e isento de interesses particulares, típico do Zeitgeist político atual, conforme descrevemos no início deste trabalho, mas também que há um discurso divergente que engaja sua audiência contra o governo em questão, porém em nome de um combate à corrupção, o que constrói para essa audiência um espaço político e ideológico comum com a Revista. É nesse sentido que a Veja se torna um ator político, ainda que negue essa atuação, uma vez que amarra em si a indignação que eclode na sociedade, com o auxílio de um discurso tanto moral quanto politicamente antagônico ao do governo em pauta, demonstrando, portanto, uma atitude inescapavelmente política, interventora, que age antagonizando tudo o que esse governo representa.

Considerações finais

Ao buscar compreender o uso da linguagem da mídia em referência à política, vimos que o caráter informativo de Veja só se realiza na medida em que seus jornalistas se posicionam e a constroem enquanto tal, através dos recursos linguístico-discursivos mobilizados na produção de seus textos e discurso, reforçando a defesa de que o uso da linguagem em suas representações discursivas é imparcial e universal. Mas, ao fim, o que se percebe é que as escolhas linguístico-discursivas de ordem atitudinal e engajadora reforçam que a Revista, ao tentar se reafirmar como uma entidade jornalística imparcial e universal, apresenta posições e valores políticos e ideológicos antagônicos a fundamentar suas avaliações e representações sobre não só a política em si, mas principalmente sobre o grupo político então no poder: o governo do PT.

A forma como os jornalistas de Veja representam identidades sociais em seu discurso se pauta exclusivamente por um modo de elaboração e proposição que se ancora por formas linguístico-discursivas que lhe dão o caráter de verdade, além de darem a evidência de uma veracidade em suas proposições, colocando de seu lado e daqueles que com ela estão a verdade, a sanção jurídico-moral da veracidade e da honestidade. Na análise, encontramos o fato de essas representações discursivas que Veja, sob a voz de seus jornalistas, faz em seus textos convergirem para a identidade dos atores políticos, o que revela marcas de antagonismo que incidem diretamente na impugnação e na construção de identidades políticas e que denunciam sua dimensão inescapavelmente plural e política, particular e ideológica. Tais marcas se realizam sob a forma de avaliações atitudinais e de contrações de vozes proposicionais alternativas que tanto constroem identidades de membros do governo de Lula e Dilma de maneira desprestigiosa, quanto ainda as comprometem moral e juridicamente para a audiência, ao propor que seus governos são assolados por escândalos e esquemas desonestos e criminosos.

Este antagonismo presente na voz dos jornalistas de Veja foi um ponto importante para argumentar que, primeiro, seu uso da linguagem não é informativo e que, segundo, suas proposições põem em xeque, contraexpectativamente, a própria legitimidade não só das identidades dos atores sociais em questão, mas também da alternativa política e ideológica que elas representam para o mundo social. Assim, percebemos que a corrupção é avaliada em termos políticos, de tal modo que a impugnação e desaprovação dos atores políticos tornam-se apenas a consequência natural e legítima dela, tudo isso graças à forma como a corrupção é representada nos textos midiáticos.

Dado que Veja recusa-se, assim, a discutir questões do âmbito político em termos claramente políticos e trata tais questões por viés político, mesmo negado que o é, ela escapa de se manifestar como um ator político também, que, por meio de seus discursos, interfere no domínio sobre o qual ela fala, gerando consequências que vão muito além do que simplesmente informar. Concluímos ainda que o tratamento da corrupção e a abordagem pela Revista dos governos Lula e Dilma assumem dimensões ideológicas, políticas e institucionais deslegitimadoras, principalmente quando tematizada de fora do mundo sistêmico da administração estatal e do direito, tornando-se ponto central e recursivo para representações sociopolíticas que lutam para ordenar e narrar a realidade de modo particular. Dessa forma, o Zeitgeist político que vem defendendo uma política de confiança no lugar de uma política claramente ideológica não se concretiza com o isolamento, nas práticas de uso da linguagem em conexão com o campo político, de questões ideológicas e conflituantes, mas antes se manifesta de forma ainda mais ideológica e política nos textos de Veja, uma vez que os escreventes, a todo instante, na medida em que deslegitimam ideológica e politicamente os políticos e os governos em questão, assumem uma posição adversária e antagônica, construindo um nós com a audiência em contraste com um eles – os governos Lula e Dilma. Portanto, não se pode admitir que Veja, como representante de uma mídia e de um jornalismo hegemônico, esteja longe ou isenta de participar como ator político na esfera pública quando aborda e trata do campo político mesmo reivindicando uma postura imparcial e neutra, pois essa mesma postura se constrói sempre em antagonismo e em detrimento da identidade que elabora com formas linguístico-discursivas para o outro, em especial para os governos Lula e Dilma.

REFERÊNCIAS

  • ANTÃO, E. P. A ética no uso da linguagem: reflexões sobre o papel que a mídia reivindica para si. In: SEMANA UNIVERSITÁRIA DA UECE, 14., 2009, Fortaleza. Anais [...]. Fortaleza: UECE, 2009. p. 1119-1138.
  • AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
  • AVRITZER, L.; COSTA, S. Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina. In: MAIA, R.; CASTRO, M. C. P. S. (org.). Mídia, esfera pública e identidades coletivas . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006. p. 63-90.
  • BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Ed. 34, 2015.
  • BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 11-71.
  • BENHABIB, S. Toward a deliberative model of democratic legitimacy. In: BENHABIB, S. (ed.). Democracy and difference: contesting the boundaries of the political. Princetown; New Jersey: Princetown University Press, 1996. p. 67-94.
  • CABRAL, O.; DINIZ, L. A vingança contra os corruptos. Veja , São Paulo, n.2240, p.76, 26 out. 2011.
  • CABRAL PINTO, L. M. da S. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição . Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
  • COHEN, J. Procedure and substance in deliberative democracy. In: BENHABIB, S. (ed.). Democracy and difference: contesting the boundaries of the political. Princetown; New Jersey: Princetown University Press, 1996. p. 95-119.
  • DUSSEL, E. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Tradução Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
  • A FAVOR do Brasil. Veja , São Paulo, n.1916, p.09, 03 ago. 2005. Carta ao leitor.
  • FILGUEIRAS, F. Corrupção, democracia e legitimidade . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008.
  • GIDDENS, A. A terceira via e seus críticos . Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 2001.
  • GIDDENS, A. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Tradução de Maria Luiza X. de Borges. Rio de Janeiro: Record, 1999.
  • GOMES, E. P. M. A constatação da corrupção enquanto performatização de um discurso: uma análise de reportagens de VEJA em casos de corrupção política. Fortaleza, 2013. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013.
  • GOMES, W. Apontamentos sobre o conceito de esfera pública política. In: MAIA, R.; CASTRO, M. C. P. S. (org.). Mídia, esfera pública e identidades coletivas . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006. p. 49-61.
  • HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo , 1: racionalidade da ação e racionalização social. Tradução Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
  • HABERMAS, J. Three normative models of democracy. In: BENHABIB, S. (ed.). Democracy and difference: contesting the boundaries of the political. Princetown; New Jersey: Princetown University Press, 1996a. p. 21-30.
  • HABERMAS, J. Further reflections on the public sphere. In: CALHOUN, C. (ed.). Habermas and the public sphere . Cambridge: The MIT Press, 1996b. p. 421-461.
  • LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy . London: Verso, 2001.
  • MAIA, R. Mídia e vida pública: modos de abordagem. In: MAIA, R.; CASTRO, M. C. P. S. (org.). Mídia, esfera pública e identidades coletivas . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006. p. 11-46.
  • MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave, 2005.
  • MELO, S. H. D. de. Identidade, ética e linguagem: uma análise pragmática das práticas discursivas na Imprensa (ou como fazer um “bom” jornalismo com palavras). 2005. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade de Campinas, Campinas, 2005.
  • MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009.
  • MOUFFE, C. On the political . London: Routledge, 2005.
  • MOUFFE, C. Le politique et ses enjeux: pour une démocratie plurielle. Paris: Éditions La Découverte, 1994.
  • PRADO, J. L. A.; CAZELOTO, E. Valor e comunicação no capitalismo globalizado. E-Compós , Brasília, n. 6, p. 1-17, set. 2006.
  • RAWLS, J. Political liberalism . New York: Columbia University Press, 1996.
  • SCHUMPETER, J. Capitalism, socialism and democracy . 3 ed. New York: Harper Perennial Modern, 2008.
  • STRECK, L. L. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
  • THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Tradução de Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 2005.
  • THOMPSON, J. B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Ed. 34, 2017.
  • VIAN JR., O. Engajamento: monoglossia e heteroglossia. In: VIAN JR., O.; SOUZA, A. A. de; ALMEIDA, F. S. D. P. (org.). A linguagem da avaliação em língua portuguesa: estudos sistêmico-funcionais com base no sistema de avaliatividade. São Carlos-SP: Pedro & João, 2010. p. 33-40.
  • 1
    O conceito de identidades sociais neste trabalho é tributário do trabalho de Laclau e Mouffe (2001)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy . London: Verso, 2001., para quem a identidade é uma tentativa de objetividade, sempre impossibilitada pelas relações antagônicas que perpassam os discursos em sociedade. O antagonismo, para os autores, seria o limite de toda identidade social, uma vez que as relações sociais seriam permeadas por discursos conflituosos que estão sempre em busca de redefinir os papéis dos sujeitos dentro de cada discurso. A construção da identidade social do outro é, assim, uma atividade discursiva, não só social, mas também política e histórica. É nos embates sociais, antagônicos por natureza, que a construção das identidades sociais encontra ou o seu limite, ou a sua força, já que esta construção é uma das etapas políticas da luta dos grupos e movimentos sociais pela hegemonia em sociedade. Dessa forma, a construção das identidades é um ato político e denuncia os projetos políticos dos grupos sociais em disputa.
  • 2
    Para melhores informações a respeito de publicações com maior alcance nacional, confira auditorias do Instituto Verificador de Circulação (IVC), entidade nacional e oficial, sem fins lucrativos, que é ligada a International Federation of Audit Bureaux of Circulations (IFABC) e que realiza auditorias no mercado editorial brasileiro referentes à circulação da mídia impressa brasileira. Disponível em: https://www.ivcbrasil.org.br/#/auditorias. Acesso em: 24 maio 2017.
  • 3
    Confira no Acervo Digital da Revista, edições a partir do número 2220, de julho de 2011. Disponível em: http://veja.abril.com.br/complemento/acervodigital/index-novo-acervo.html. Acesso em: 24 mai. 2017.
  • 4
    São poucos os posicionamentos críticos ao modelo deliberativo de democracia. Além daquele que tomaremos como ponto de apoio para este trabalho, indicamos os livros de Streck (2002)STRECK, L. L. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002., Cabral Pinto (1994)CABRAL PINTO, L. M. da S. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição . Coimbra: Coimbra Editora, 1994. e Dussel (2007)DUSSEL, E. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Tradução Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2007. para uma compreensão melhor das limitações hoje percebidas ao modelo deliberativo de democracia.
  • 5
    Para uma compreensão geral dessa discussão, confira Avritzer e Costa (2006)AVRITZER, L.; COSTA, S. Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina. In: MAIA, R.; CASTRO, M. C. P. S. (org.). Mídia, esfera pública e identidades coletivas . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006. p. 63-90.; Benhabib (1996)BENHABIB, S. Toward a deliberative model of democratic legitimacy. In: BENHABIB, S. (ed.). Democracy and difference: contesting the boundaries of the political. Princetown; New Jersey: Princetown University Press, 1996. p. 67-94.; Cohen (1996)COHEN, J. Procedure and substance in deliberative democracy. In: BENHABIB, S. (ed.). Democracy and difference: contesting the boundaries of the political. Princetown; New Jersey: Princetown University Press, 1996. p. 95-119.; Gomes (2006)GOMES, W. Apontamentos sobre o conceito de esfera pública política. In: MAIA, R.; CASTRO, M. C. P. S. (org.). Mídia, esfera pública e identidades coletivas . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006. p. 49-61.; Habermas (1996a, 1996b, 2012); e Maia (2006)MAIA, R. Mídia e vida pública: modos de abordagem. In: MAIA, R.; CASTRO, M. C. P. S. (org.). Mídia, esfera pública e identidades coletivas . Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006. p. 11-46..
  • 6
    Confira Veja, Carta ao leitor, de 3 de agosto de 2005, edição 1916: “VEJA não é inimiga de certos partidos, nem amiga de outros. A revista é, simplesmente, a favor do Brasil. Contra os que lhe mal fazem, os que lhe roubam. A vista da nação.” (A FAVOR..., 2005A FAVOR do Brasil. Veja , São Paulo, n.1916, p.09, 03 ago. 2005. Carta ao leitor.).
  • 7
    Chantal Mouffe tem seus pressupostos teóricos fincados no trabalho Hegemony and Socialist Strategy, escrito a quatro mãos com Ernesto Laclau, com quem reformulou e compartilha conceitos em comum, por meio dos quais buscaram repensar o marxismo à luz dos desenvolvimentos intelectuais do século XX, de modo que se pudesse formar um quadro teórico-epistemológico adequado a análises sócio-político-discursivas das lutas sociais contemporâneas (LACLAU; MOUFFE, 2001LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy . London: Verso, 2001.).
  • 8
    Mesmo reconhecendo o pluralismo de valores e de interesses como coextensivo à noção de povo, na abordagem agregativa de democracia, era o autointeresse dos indivíduos que guiava suas ações no campo político, ou seja, suas preferências e interesses seriam os parâmetros para a organização dos partidos, que ofereceriam, assim, os argumentos a partir dos quais conseguiriam os votos. Para uma discussão a respeito deste modelo agregativo de democracia, cf. o ensaio clássico de Schumpeter (2008)SCHUMPETER, J. Capitalism, socialism and democracy . 3 ed. New York: Harper Perennial Modern, 2008..
  • 9
    No original: “According to the deliberative approach, the more democratic a society is, the less power would be constitutive of social relations. But if we accept that relations of power are constitutive of the social, then the main question for democratic politics is not how to eliminate power but how to constitute forms of power more compatible with democratic values”. (MOUFFE, 2009MOUFFE, C. The democratic paradox . London: Verso, 2009., p. 100).
  • 10
    Aliás, isto sempre esteve presente nas propostas deliberativas; o problema foi acreditar que a decisão racional não fosse, ela mesma, um tipo de exclusão, que quanto mais as diferenças fossem postas em suspensão, quanto mais procedimentos racionais e razoáveis para todos fossem assumidos, menos o poder emanaria das relações sociais, menos exclusões ocorreriam.
  • 11
    Ponto nodal é categoria elaborada por Laclau e Mouffe (2001LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy . London: Verso, 2001., p. 112) e, segundo os autores, é graças a estes pontos nodais que se estabelecem posições ou articulações que tornam possível uma projeção discursiva hegemônica. Um bom exemplo da função dos pontos nodais é oferecido por Prado e Cazeloto (2006PRADO, J. L. A.; CAZELOTO, E. Valor e comunicação no capitalismo globalizado. E-Compós , Brasília, n. 6, p. 1-17, set. 2006., p. 7).
  • 12
    Esta compreensão vem da noção de dialogismo de Valentin Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Ed. 34, 2017., para quem não há palavra que não seja resposta, que não traga em si ecos de outras palavras, de outros discursos que a antecederam numa dada esfera de atividade humana. Este pressuposto dialógico é importante para o entendimento desse subsistema, a fim de que melhor se compreenda o papel funcional das escolhas via subsistema de ENGAJAMENTO, especialmente no que diz respeito à forma como um escrevente, um jornalista por exemplo, se posiciona e/ou busca posicionar o leitor suposto em relação às opiniões que ele manifesta em seus textos ou que se manifestam em convergência ou divergência ao(s) texto(s) que ele produz.
  • 13
    A postura monoglóssica é diferente da escolha heteroglóssica a que se chamou de CONTRAÇÃO mais acima. Esta reconhece e demonstra (e até cita) que há outras vozes, outros posicionamentos, outros valores, além daqueles que estão sendo defendidos no texto ou contexto, embora a postura que se toma, neste caso, seja a de restrição dos posicionamentos alternativos, o que reduz, assim, o potencial dialógico do texto. A MONOGLOSSIA, no entanto, não dá mostras de reconhecimento de um background dialógico, constituído por outras vozes, nem chega a referenciar outras vozes possivelmente existentes, como se, na verdade, fosse, para usar um termo de Mikhail Bakhtin (2015)BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Ed. 34, 2015. para casos semelhantes, uma voz adâmica, primeira, sem ancorar-se em outra voz.
  • 14
    A escolha dos dois textos a serem analisados aqui se deu em função de estarem relacionados a dois momentos da história política dos dois governos PT, de Lula e Dilma Rousseff, e serem constituintes do que se convencionou chamar midiaticamente, de um lado, de “escândalo do mensalão” (no governo Lula) e, do outro, do que a Revista chamou, em edições de 2011, de “crise da Esplanada” (no governo Dilma), neste último caso numa referência a vários eventos políticos ocorridos no primeiro ano de governo de Dilma Rousseff, envolvendo seus ministros. De um corpus de 30 textos, pertencente a uma pesquisa desenvolvida por nós (GOMES, 2013GOMES, E. P. M. A constatação da corrupção enquanto performatização de um discurso: uma análise de reportagens de VEJA em casos de corrupção política. Fortaleza, 2013. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013.), decidimos aqui utilizar, dado o espaço, apenas dois textos, os mais significativos em termos de dados do que descrevemos como engajadores com a audiência e proponentes de um discurso político subjacente nas vozes da Revista, a despeito de sua postura supostamente imparcial e apolítica.
  • 15
    Foi por meio desse vídeo que se sucederam vários acontecimentos e revelações que redundaram na eclosão do que, na mídia, ficou conhecido como “Escândalo do Mensalão”. A partir dali, sucedeu-se um jogo discursivo de fixação e de remoção de evidências que impugnassem e redefiniam as identidades dos atores políticos envolvidos nos casos anunciados como pertencentes ao Escândalo do Mensalão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2017
  • Aceito
    13 Fev 2018
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Rua Quirino de Andrade, 215, 01049-010 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 5627-0233 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: alfa@unesp.br