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FENÔMENOS MORFOSSINTÁTICOS VARIÁVEIS: AVALIAÇÃO E ENSINO

RESUMO

Este artigo visa a analisar como os professores e os falantes da Língua Portuguesa em geral avaliam estruturas morfossintáticas variáveis e qual estatuto cada uma delas recebe (estereótipo, marcador ou indicador). O corpus é constituído por uma redação corrigida por dez professores e outros dez falantes cariocas. A investigação fundamenta-se, sobretudo, nos pressupostos da Sociolinguística Variacionista (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968; LABOV, 1972) e objetiva (i) definir o estatuto atribuído a certas estruturas morfossintáticas; (ii) verificar se essas estruturas são ou não estigmatizadas, descrevendo o que os indivíduos cultos tomam como norma-padrão e (iii) estabelecer uma relação entre o problema da avaliação e o ensino de Língua Portuguesa. A partir da análise realizada, verificou-se que, no âmbito do estabelecimento da norma-padrão, não há compatibilidade absoluta entre as escolhas dos participantes e o que se propõe usualmente como norma gramatical; em outras palavras, os participantes, professores ou não, usam, para corrigir a redação, critérios particulares em sua idealização de padrão linguístico (norma-padrão), e não apenas o que se divulga em manuais tradicionais (norma gramatical). Com base em tais resultados, o artigo propõe que, em contexto escolar, sejam consideradas as variedades cultas como ponto de partida para o estabelecimento da norma-padrão.

sociolinguística; variação morfossintática; norma; avaliação; ensino

ABSTRACT

LABOV, 1972LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.

sociolinguistics; morphosyntactic variation; norm; evaluation; teaching

Considerações iniciais

Este artigo apresenta como proposta central investigar como os falantes da Língua Portuguesa avaliam estruturas morfossintáticas variáveis, buscando refletir acerca do estatuto de cada uma delas quanto ao prestígio/desprestígio em termos de orientação normativa, conforme proposta da Sociolinguística Variacionista (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968WEINREICH, W.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical Foundations for Theory of Language Change. In: LEHMANN, P.; MALKIEL, Y. (ed.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 95-188.; LABOV, 1972LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972., 1994LABOV, W. Principles of linguistic change. Oxford: Cambridge: Blackwell, 1994.). Fundamentado na Teoria da variação e mudança, o trabalho aborda, sobretudo, o problema da avaliação das variantes, uma das cinco questões teóricas formuladas por Weinreich, Labov e Herzog (1968)WEINREICH, W.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical Foundations for Theory of Language Change. In: LEHMANN, P.; MALKIEL, Y. (ed.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 95-188. para o tratamento científico da mudança linguística.

Para a realização da pesquisa, parte-se da análise de uma redação escolar que foi elaborada de modo a contemplar um conjunto de estruturas morfossintáticas costumeiramente vistas como desprestigiosas segundo a norma gramatical e supostamente consideradas erros por profissionais de ensino na atividade de correção de textos escritos por estudantes. A referida redação – que foi idealizada para o contexto da investigação de 8º ano do ensino fundamental de uma escola municipal, localizada na periferia da cidade do Rio de Janeiro – foi corrigida por vinte cariocas, sendo dez deles professores de Língua Portuguesa e os demais pessoas atuantes em variadas áreas profissionais, com curso superior completo ou incompleto.

Na análise dos dados, levam-se em conta, com base em Faraco (2008FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo. Parábola Editorial, 2008., 2015FARACO, C. A. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES; A. M. S.; FARACO, C. A. (org.). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 19-30.), as diferenças existentes entre a norma gramatical e a suposta norma em que se baseia a correção do texto, a partir das quais foi possível interpretar o que configuraria a norma-padrão escolar. Em outras palavras, embora determinadas estruturas não estejam previstas como corretas segundo a norma gramatical – aquela que é prescrita em manuais tradicionais –, elas podem não ser vistas por professores ou pelos falantes como erradas, possivelmente por já fazerem parte produtivamente das chamadas variedades cultas – no sentido de norma concreta e objetiva, que é usada na fala e até na escrita de indivíduos com alto grau de escolaridade (norma culta).

Assim sendo, a investigação formulou, de modo geral, os seguintes objetivos:

  1. observar, em um conjunto de fenômenos morfossintáticos, quais são as estruturas mais percebidas e passíveis de correção, pelos profissionais de ensino e outros falantes, e quais não o são;

  2. a partir dessa avaliação, refletir sobre o estatuto de certas estruturas morfossintáticas, como possíveis estereótipos, indicadores ou marcadores, buscando descrever aquilo que os participantes da pesquisa tomam como norma-padrão; e, por fim,

  3. estabelecer uma relação entre o problema da avaliação e o ensino de Língua Portuguesa com base na análise das estruturas morfossintáticas variáveis, a fim de associar os resultados obtidos à proposta de orientações normativas de Vieira (2019a)VIEIRA, S. R. Para uma norma-padrão flexível no contexto escolar. In: MACHADO-VIEIRA, M. dos S.; WIEDEMER, M. L. (org.). Dimensões e pesquisas sociolinguísticas. São Paulo: Blucher, 2019a. p. 243-264. para o contexto escolar.

Para tanto, este texto desenvolve-se em mais quatro seções, além desta introdutória. Na primeira, sintetizam-se os aspectos teóricos que fundamentaram a análise. Na segunda, apresentam-se, além de breves informações metodológicas, as hipóteses e os resultados obtidos a partir da análise da correção do texto escolar. A terceira seção diz respeito ao debate dos resultados, com reflexões atinentes ao ensino de Língua Portuguesa, antes das considerações finais, na última seção do artigo.

Fundamentos da investigação

Para a realização da investigação proposta, adotam-se, no que concerne à fundamentação teórica, pressupostos elementares da Sociolinguística Variacionista, dentre os quais se destacam o princípio da heterogeneidade ordenada, que postula a sistematicidade da variação inerente à linguagem, e o problema da avaliação, segundo o qual o julgamento subjetivo do falante acerca das variantes – que pode ser aferido em estudos de crenças e de atitudes (como os propostos por Cyranka, 2011CYRANKA, L. F. de M. Atitudes linguísticas de alunos de escolas públicas. In: CYRANKA, L. F. de M. Dos dialetos populares à variedade culta: a Sociolinguística na escola. Curitiba: Appris, 2011. p. 43-51., 2014CYRANKA, L. F. de M. Avaliação das variantes: atitudes e crenças em sala de aula. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 133-156.) – pode acelerar ou retardar um processo de mudança linguística.

Adicionalmente, por se tratar da abordagem da norma em ambiente escolar, o estudo partilha, em alguma medida, as preocupações da chamada Sociolinguística Educacional – que, dentre suas orientações, contempla os usos variáveis em sala de aula distribuídos ao longo dos contínuos da variação no Português do Brasil (BORTONI-RICARDO, 2005BORTONI-RICARDO, S. M. A língua portuguesa no Brasil; Um modelo para a análise sociolingüística do português brasileiro. In: BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora?: Sociolingüística e Educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 31-52.) – ou da Pedagogia da Variação linguística (FARACO, 2008FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo. Parábola Editorial, 2008., 2015FARACO, C. A. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES; A. M. S.; FARACO, C. A. (org.). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 19-30.). Nesse sentido, a noção de diglossia (MATTOS E SILVA, 2004MATTOS E SILVA, R. V. O português são dois. Variação, mudança, norma e a questão do ensino do português do Brasil. In: MATTOS E SILVA, R. V. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 128-151.), bem como a proposta da convivência de saberes que envolvem as aulas de Língua Portuguesa (BARBOSA, 2007BARBOSA, A. G. Saberes gramaticais na escola. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 31-54.) também são utilizadas ao longo do presente artigo e aplicadas na análise dos dados.

Com relação à mudança linguística, Weinreich, Labov e Herzog (1968)WEINREICH, W.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical Foundations for Theory of Language Change. In: LEHMANN, P.; MALKIEL, Y. (ed.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 95-188. formulam cinco questões essenciais à pesquisa variacionista: as restrições, a transição, o encaixamento, a avaliação e a implementação. Retomando o objeto central da presente pesquisa, assume-se que a avaliação social que os falantes fazem a respeito de uma determinada variante, consoante o julgamento em relação à variedade/norma usada pelo interlocutor, é de fundamental relevância na formação e nas práticas que se instauram no contexto escolar. Assim, como já se apresentou, se determinada variante é vista como prestigiada (“bonita”, “elegante”, “correta”, dentre outros atributos), essa valoração pode contribuir para que seu uso seja disseminado e preservado. Por outro lado, se a variante é concebida negativamente pelos falantes, sendo seu uso avaliado como “feio”, “deselegante” ou “errado”, esse juízo de valor pode desfavorecer a extensão de seu uso e retrair sua implementação, podendo, consequentemente, retardar o processo de mudança.

Nesse sentido, os estudos sociolinguísticos nos campos de crenças e atitudes são fundamentais, pois almejam compreender o fenômeno da variação a partir da consciência que o usuário da língua tem perante o idioma, a variedade ou até determinada variante. Sob esta ótica, Cyranka (2011)CYRANKA, L. F. de M. Atitudes linguísticas de alunos de escolas públicas. In: CYRANKA, L. F. de M. Dos dialetos populares à variedade culta: a Sociolinguística na escola. Curitiba: Appris, 2011. p. 43-51. explica, no âmbito do contexto da formação profissional em Educação, que:

[...] o estudo das atitudes e das crenças linguísticas, entre outros focos de pesquisa, possibilitaria melhor compreender e auscultar a dificuldade de graduandos e de professores. Essa dificuldade se dá, por um lado, em relação ao problema, frequentemente aludido, do reconhecimento da legitimidade da variedade linguística, ou dialeto, dos alunos, não lhes contrapondo, ou não lhes impondo simplesmente, sem reflexão, a norma culta; por outro lado, há o equívoco de adotarem apenas a modalidade escrita da língua como a única legítima. (CYRANKA, 2011CYRANKA, L. F. de M. Atitudes linguísticas de alunos de escolas públicas. In: CYRANKA, L. F. de M. Dos dialetos populares à variedade culta: a Sociolinguística na escola. Curitiba: Appris, 2011. p. 43-51., p. 45).

Conforme propõe a autora, as atitudes – positivas, negativas ou neutras – constituem reações dos usuários da língua perante determinadas pessoas, situações e coisas. Nesse sentido, são formadas por aquilo que os indivíduos pensam e sentem, revelando como reagem aos estímulos linguísticos que lhes são apresentados. Ainda segundo Cyranka (2011)CYRANKA, L. F. de M. Atitudes linguísticas de alunos de escolas públicas. In: CYRANKA, L. F. de M. Dos dialetos populares à variedade culta: a Sociolinguística na escola. Curitiba: Appris, 2011. p. 43-51., as crenças, por seu turno, são constituídas de convicções íntimas, no campo da opinião do falante com relação aos objetos avaliados. Seguindo essa perspectiva, as atitudes dos indivíduos em relação a um evento comunicativo, coisas ou pessoas surgem a partir de suas crenças; em outras palavras, as crenças e as atitudes se relacionam, sendo estas em alguma medida manifestações daquelas.

No âmbito da educação linguística, é importante considerar tais concepções no ensino de Língua Portuguesa, pois o professor, a depender das orientações que ofereça quanto ao emprego das variantes linguísticas, pode contribuir para que o aluno tenha determinadas crenças e atitudes negativas em relação ao próprio desempenho quanto ao uso da língua. Levando-se em conta esse fato, Cyranka (2014)CYRANKA, L. F. de M. Avaliação das variantes: atitudes e crenças em sala de aula. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 133-156. afirma que

[...] qualquer que seja o caminho trilhado pelo professor, no sentido de levar seus alunos a se engajarem no processo de desenvolvimento de competências de leitura e de escrita, requer o cuidado de também levá-los, como dito anteriormente, a construir crenças positivas sobre essa sua capacidade. O ponto de partida é o reconhecimento de que são usuários competentes de um sistema complexo que eles próprios adquiriram naturalmente e com o qual são capazes de atuar em seu meio social. A partir daí, orientados pela escola, devem se empenhar em conhecer recursos linguísticos mais sofisticados, para os quais precisam estar treinados e preparados. (CYRANKA, 2014CYRANKA, L. F. de M. Avaliação das variantes: atitudes e crenças em sala de aula. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 133-156., p. 134)

Sem dúvida, é preciso que o professor opte por uma metodologia que oriente o aluno a refletir sobre a língua por ele usada, para que possa compreender seu funcionamento variável, e, ainda, seja capaz de utilizá-la de acordo com a situação comunicativa. Com base nessa proposta, são enfocadas, no presente trabalho, as atitudes e crenças de falantes do Rio de Janeiro com relação a determinadas estruturas linguísticas variantes, do plano especificamente morfossintático.

Para o tratamento da avaliação das variantes, parte-se da tipologia proposta por Labov (1972)LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972., segundo a qual as formas alternantes assumem naturezas diversas a partir da apreciação feita pelos falantes, podendo ser tipificadas como estereótipo, indicador ou marcador.

No que tange ao conceito de estereótipo, trata-se de formas linguísticas socialmente marcadas, etiquetadas de forma ostensiva pela sociedade, constituindo, assim, estruturas que recebem forte estigmatização. Convém dizer que essas variantes – propensas a serem objeto de correção linguística – são estigmatizadas a partir da perspectiva de uma determinada comunidade de fala, sendo a atribuição desse estatuto altamente consciente. A depender do julgamento (ponto de vista) do interlocutor, uma variante pode ser estereotipada de forma negativa, de modo a caracterizar uma pessoa como, por exemplo, inculta, incapaz, pouco inteligente, ou até exageradamente culta, arcaica, dentre outras possibilidades. Os indicadores, ainda consoante Labov (1972)LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972., ao contrário dos estereótipos, não são percebidos no plano da consciência, constituindo estruturas que não se inserem exclusivamente numa matriz social ou estilística, não sendo, assim, passíveis de correção. Conforme esclarecem Gorski & Coelho (2009GORSKI, E. M.; COELHO, I. L. Variação linguística e ensino de gramática. Working Papers em Linguística, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 73-91, 2009., p. 82), os indicadores “apresentam escassa força avaliativa. São traços que não identificam uma diversidade social e, geralmente, apresentam uma distribuição regular nos diferentes estratos sociais.”. Já os marcadores constituem fenômenos variáveis que não costumam ser estigmatizados, mas apresentam distribuição social (pela faixa etária, por exemplo) e variação estilística (grau de intimidade, por exemplo). Em outras palavras, trata-se de variantes que costumam se adaptar ao contexto sócio-interacional, sofrendo adaptações frequentes no plano do estilo discursivo. A natureza das variantes como estereótipos, marcadores e indicadores1 1 Gorski & Coelho (2009), além de apresentarem a definição laboviana desses três fenômenos, propõem exemplos para ilustrar a diferenciação entre eles, dentre os quais destacamos: como estereótipo, formas estigmatizadas socialmente como nós fumo (em vez de nós fomos); como marcador, a alternância entre tu e você, que tem contornos estilísticos e sociais diferentes a depender de vários fatores; como indicador, a variação entre peixe/pexe ou dinheiro/dinhero, raramente percebida nas diversas variedades. norteia a análise da correção das estruturas morfossintáticas variáveis apresentada neste artigo.

A respeito da avaliação subjetiva de cada estrutura, supõe-se que as motivações para ela derivem de uma complexidade de fatores, relacionados à realidade multivariada da língua. Bortoni-Ricardo (2005)BORTONI-RICARDO, S. M. A língua portuguesa no Brasil; Um modelo para a análise sociolingüística do português brasileiro. In: BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora?: Sociolingüística e Educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 31-52. buscou representar essa complexidade a partir da formulação de três contínuos de variação no Português do Brasil (PB): o rural-urbano, o de oralidade-letramento e o de monitoração estilística.

O contínuo rural-urbano – de natureza diatópica – englobaria desde as variedades rurais geograficamente isoladas até a variedade urbana, passando por expressões do “rurbano”, que, por sua vez, seriam áreas intermediárias com traços a um só tempo urbanos e rurais. No contínuo oralidade-letramento – que tem feições relacionadas à variação diastrática/social e também diamésica (do mais escolarizado/culto/letrado ao menos escolarizado/mais popular/mais oral) –, haveria, em um polo os elementos cuja produção é mediada pela língua escrita, seguindo um padrão mais fixo e artificial, e, no outro polo, os elementos mais relacionados às práticas sociais da oralidade.

No que se refere à monitoração estilística, o contínuo contempla o grau de atenção dispensado à fala, o que pode estar relacionado, muitas vezes, ao grau de formalidade da situação comunicativa na qual o falante está inserido: do mais controlado/ monitorado, em um extremo, ao menos controlado/ monitorado, no outro extremo. Neste contínuo, deve-se levar em consideração não só o grau de atenção mas também o planejamento conferidos pelo falante à sua interação, uma vez que ele tende a prestar mais atenção à própria fala nos contextos mais formais e monitorados. Segundo a autora, no extremo de cada um desses contínuos, podem existir variantes exclusivas, que, nesse caso, seriam descontínuas e representariam o protótipo de uma variedade diatópica, de uma modalidade específica ou de um registro.

Na análise aqui apresentada, são levados em consideração os três contínuos, uma vez que a escola, por hipótese, tende a privilegiar o que é tido como urbano, monitorado e ligado à cultura escrita. Será privilegiada, no entanto, uma característica relativa ao contínuo da monitoração estilística, pois a análise parte de redação escolar em que o aluno deveria usar estruturas adequadas a uma escrita monitorada e formal, aquela que supostamente se valeria de modelos propostos em manuais tradicionais. Ocorre que, no contexto escolar, é concebido como modelar, por vezes, um ideário de língua que pressupõe, contra todas as evidências científicas, a invariância como padrão. Esse modelo resulta da adoção de um conceito de norma-padrão inflexível e estático.

Considerando a polissemia e a pluralidade conceitual referente ao termo norma, convém esclarecer, aqui, as definições adotadas a esse respeito. O termo relaciona-se a dois campos significativos gerais: o de normalidade (referente a fatos linguísticos usuais, comuns, habituais em uma comunidade de fala, do como a língua efetivamente é usada) e o de normatividade (atinente ao plano da prescrição, do modelar ou exemplar, de como a língua supostamente deveria ser usada).

No plano da normalidade, é preciso admitir que a língua é formada por diversas normas, uma vez que ela é heterogeneamente constituída por um conjunto de variedades, utilizadas normalmente, de forma habitual, por pessoas de uma dada comunidade de fala. Cada uma dessas normas naturalmente pode variar devido a fatores linguísticos (estruturais) ou extralinguísticos, como, por exemplo, origem geográfica do falante, status socioeconômico, grau de escolarização, contexto interacional no qual ele se encontra (formal/informal), idade, sexo, entre outros.

No que concerne às normas/variedades existentes, figuram, em um extremo, a chamada norma popular, aquela supostamente utilizada por falantes das classes semi-escolarizadas ou não-escolarizadas, pessoas que não tiveram muito acesso à escola e não estariam muito familiarizadas com a cultura escrita, e, em outro, a chamada norma culta, aquela variedade de uso corrente entre os falantes das classes sociais urbanas com alto nível de instrução formal, sobretudo em situações monitoradas, pessoas que costumam ter maior proximidade com a modalidade escrita. Obviamente, trata-se ela própria de uma entidade variável, sobretudo se for considerado o contínuo fala-escrita. A esse respeito, Vieira & Freire (2014)VIEIRA, S. R.; FREIRE, G. C. Variação morfossintática e ensino de Português. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de Português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 81-114. e Vieira & Lima (2019)VIEIRA, S. R.; LIMA, M. D. A. de O. (org.). Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão. Rio de Janeiro: Letras UFRJ, 2019., contemplando resultados de pesquisas a respeito de diversos fenômenos morfossintáticos em uma variedade de gêneros textuais da modalidade escrita, dos domínios jornalístico e acadêmico, demonstram haver forte variação no âmbito da chamada norma culta.

No plano da normatividade, de outro lado, situa-se a necessidade de padronização da língua, consoante a usual concepção de uma entidade unitária e homogênea. Conforme Faraco (2008)FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo. Parábola Editorial, 2008., a concepção de norma-padrão refere-se a uma codificação abstrata, uma idealização que, embora inicialmente proposta para a escrita literária clássica, perpassa o ideário social segundo o qual os falantes elegeriam estruturas como as que devem ser usadas. Em outras palavras, ela é o resultado de uma atitude social perante a língua, que gera a seleção de um modo de falar entre os vários existentes na comunidade e o estabelecimento de determinadas estruturas como sendo a forma prestigiada ou “correta” de falar. Vale notar que a norma-padrão (plano ideal), a princípio, deveria estar relacionada à norma culta (de uso), uma vez que, conforme propõe Vieira (2013)VIEIRA, S. R. Sociolinguística e ensino de Português: para uma pedagogia da variação linguística. In: MARTINS, M. A.; TAVARES, M. A. (org.). Contribuições da Sociolinguística e da Linguística Histórica para o ensino de língua portuguesa. Natal: EDUFRN, 2013. p. 53-90. (Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino, V)., os usuários desta seriam os supostos idealizadores daquela. Sabe-se, entretanto, que “as forças inevitáveis que operam historicamente em prol da variação e da mudança geram um natural distanciamento entre essas normas” (VIEIRA, 2013VIEIRA, S. R. Sociolinguística e ensino de Português: para uma pedagogia da variação linguística. In: MARTINS, M. A.; TAVARES, M. A. (org.). Contribuições da Sociolinguística e da Linguística Histórica para o ensino de língua portuguesa. Natal: EDUFRN, 2013. p. 53-90. (Coleção Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino, V)., p. 61).

Em linhas gerais, pode-se afirmar que um dos modelos de norma-padrão, bastante socialmente difundido, está codificado na norma gramatical, aquela que, segundo Faraco (2008)FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo. Parábola Editorial, 2008., está presente nos bons instrumentos normativos, tais como gramáticas e dicionários formulados por estudiosos e filólogos da Língua Portuguesa. O autor destaca que a codificação gramatical registrada em tais compêndios atenta aos fatos do uso culto, sobretudo literário, e apresenta frequentemente tanto os usos tradicionais quanto certas inovações da língua aconselhando o falante que, em determinados contextos, considerados clássicos, haja a preferência por certas estruturas mais conservadoras.

O seguimento e proposição inflexíveis de determinadas estruturas, recomendadas ou não pela norma gramatical, resulta, entretanto, naquilo que Faraco, em fina ironia, denominou de norma curta, ao caracterizar certo modelo normativo estreitamente composto por

[...] preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam a cultura do erro e têm impedido um estudo adequado da nossa norma culta/comum/standard. Esta norma (o uso real, portanto) e os comentários dos nossos bons gramáticos costumam contradizer tais preceitos dogmáticos. Apesar disso, eles são repetidos como se fossem verdades absolutas e são tomados como justificativa para humilhar, constranger e prejudicar as pessoas. (FARACO, 2008FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo. Parábola Editorial, 2008., p. 92)

Segundo o autor, esse ideário normativo prevalece, infelizmente, em determinado discurso escolar, no senso comum e na mídia, tendo, assim, prestígio na sociedade brasileira e contribuindo para a perpetuação do preconceito linguístico, além de sustentar a cultura do erro e dificultar aos falantes o domínio plural da língua.

Assim, verifica-se, na realidade do ensino em muitas escolas brasileiras, conforme atesta Mattos e Silva (2004)MATTOS E SILVA, R. V. O português são dois. Variação, mudança, norma e a questão do ensino do português do Brasil. In: MATTOS E SILVA, R. V. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 128-151., uma espécie de diglossia, no sentido de que há uma polarização entre a fala do aluno (norma popular/vernácula) e a norma-padrão que ele supostamente deve adquirir via letramento, uma língua idealizada a partir da norma gramatical, criada, por sua vez, seguindo os padrões lusitanos e não de acordo com a realidade linguística brasileira. Entende-se, aqui, que, quanto mais curto for o modelo dessa padronização veiculada na escola, maior será o distanciamento entre a(s) norma(s) de uso e a norma idealizada por quem quer que seja.

Dada a distância entre a norma-padrão idealizada no contexto escolar, inspirada ou não na norma gramatical, e as normas de uso, das mais cultas às mais populares, é de fundamental importância que o professor tenha vasto conhecimento não só do que propõem os materiais/orientações escolares e os compêndios gramaticais, mas também das descrições científicas das variedades do PB. É nesse sentido que Barbosa (2007)BARBOSA, A. G. Saberes gramaticais na escola. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 31-54. formula os três saberes que devem conviver nas aulas de Língua Portuguesa, de modo que o professor trabalhe os fenômenos variáveis em sala de aula de modo produtivo, socialmente situado e sem ignorar o avanço científico: o saber da norma vernácula de uso do falante, o saber descritivo-prescritivo e o saber descritivo-científico.

O saber da norma vernácula de uso do falante é aquele que, “para além da competência inata, é compartilhado por sua comunidade ou região. É o saber social da língua, recebido primeiramente no âmbito familiar” e, depois, compartilhado por sua comunidade (BARBOSA, 2007BARBOSA, A. G. Saberes gramaticais na escola. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 31-54., p. 37). Segundo o autor, é esse saber que vai interagir com a tradição escrita encontrada na escola. O saber descritivo-prescritivo, o da gramática tradicional, é o saber fornecido pelo modelo greco-romano de abordagem linguística, segundo o qual “qualquer variante linguística que não pertença a um dado conjunto de variantes eleitas como padrão seria uma variante errada para o uso formal” (BARBOSA, 2007BARBOSA, A. G. Saberes gramaticais na escola. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 31-54., p. 38). Já o saber descritivo-científico – saber acadêmico, adquirido através de pesquisas, leitura de livros e artigos científicos – é aquele construído por diversas teorias linguísticas, que torna o professor capaz de entender a língua, explicar problemas e contradições encontradas na gramática tradicional, além de compreender que a descrição/prescrição baseada neste modelo é voltada para a escrita literária, e não para toda a realidade da língua.

Acredita-se que a conjugação desses três saberes seja essencial para que o professor de Português compreenda o funcionamento da língua, com base em diversificada abordagem teórico-descritiva (estruturalista, sócio-cognitiva, textual-discursiva, entre outras), e, dessa maneira, consiga desenvolver o conhecimento do aluno. No âmbito do uso e da avaliação das estruturas morfossintáticas variáveis, entende-se que será possível, a partir do conhecimento sociolinguístico, conscientizar o discente do caráter natural e sistematicamente heterogêneo da língua, permitindo-lhe dominá-la de forma satisfatória consoante a situação de uso (ou contexto) na qual se instaura o ato comunicativo.

Estudo da avaliação de estruturas variáveis: aspectos metodológicos e resultados

Para o estudo da avaliação subjetiva de fenômenos morfossintáticos variáveis, a investigação percorreu, no que concerne à metodologia, diversas etapas.

Primeiramente, alunos do 8º ano do ensino fundamental de uma escola municipal, localizada no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, elaboraram uma redação dissertativa cujo tema estava relacionado a manifestações ocorridas, no ano de 2013, em todo o Brasil devido ao aumento do preço da passagem dos transportes públicos, corrupção, baixos salários, entre outros.

Em um segundo momento, essas redações foram observadas pelas autoras, tendo sido levantados os fenômenos morfossintáticos variáveis mais recorrentes em cada uma delas. Com base nesse levantamento, foi elaborado um texto que apresentasse tais fenômenos, para que, posteriormente, dez professores da rede pública de ensino do Rio de Janeiro e dez outros falantes cariocas fossem solicitados a corrigi-lo de acordo com o que fosse considerado por eles correto. É relevante observar que o grupo dos falantes cariocas não-professores é composto por pessoas que têm ensino superior completo ou incompleto e exercem diversas profissões, não necessariamente ligadas à área educacional. Relativamente a esse procedimento, usado a fim de que fosse possível contemplar a questão da avaliação proposta por Weinreich, Labov e Herzog (1968)WEINREICH, W.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical Foundations for Theory of Language Change. In: LEHMANN, P.; MALKIEL, Y. (ed.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 95-188., cabe esclarecer que cada pessoa recebeu uma cópia da redação e a corrigiu separadamente, sem ter acesso à avaliação dos demais participantes. Vale dizer que eles corrigiram o texto de modo intuitivo, no sentido de que o fizeram com base no que acreditavam ser correto, sem consultar qualquer manual ou livro.

Como última etapa, foi analisada a correção de cada um dos participantes, observando quais estruturas foram assinaladas como erradas com frequência, quais não foram corrigidas na maioria das vezes e quais passavam despercebidas por todos, inclusive pelos professores, não sendo, então, passíveis de correção. Convém assinalar que, embora a mera correção ou não correção de um fenômeno não confira automaticamente o estatuto de indicador, marcador ou estereótipo à variante, é possível verificar, na recorrência do comportamento dos avaliadores quanto às correções realizadas por eles a respeito de cada construção, certo padrão de análise dos dados. Embora não se proponha uma rigorosa análise quantitativa, a observação desse padrão, sobretudo em termos qualitativos, permitiu fundamentar a interpretação dos dados.

Espera-se que, com base nos procedimentos ora apresentados, seja possível avaliar, por intermédio da análise das correções das redações, o que se concebe efetivamente como norma-padrão segundo a idealização de falantes cultos. A hipótese que norteia a análise é a de que as estruturas que não são identificadas como problemáticas e, assim, não constituem objeto frequente de correção – independentemente de serem concebidas ou não como erradas segundo a norma gramatical – não seriam estigmatizadas. Trata-se, nesse caso, possivelmente de estruturas morfossintáticas empregadas comumente na fala e até na escrita das pessoas escolarizadas ou, em outras palavras, nas variedades/normas cultas (de uso).

Interpretando os resultados, as estruturas em questão foram, respectivamente, relacionadas às categorias de estereótipos, marcadores e indicadores. Dessa forma, foi possível avaliar a proximidade ou o distanciamento entre a padronização revelada na correção (norma-padrão em questão) e aquela proposta nos manuais tradicionais (norma gramatical), além de observar os usos das variedades vernaculares que já são aceitos e os que são recusados, mediante a possível situação de suposta diglossia, em alguns aspectos, entre a norma considerada no plano subjetivo – norma-padrão / norma gramatical – e as variedades/normas de uso. Por fim, a análise permitiu estabelecer uma relação entre os resultados obtidos e o ensino de Língua Portuguesa, buscando avaliar uma possível alternativa para a abordagem da(s) norma(s) em contexto escolar.

A redação elaborada e submetida à avaliação dos professores no decorrer da investigação é a que se expõe no quadro a seguir:

Quadro 1
– Redação submetida à avaliação de leitores cariocas

Nesse texto, os quatro fenômenos dispostos para que fossem observados de acordo com a avaliação subjetiva do leitor foram os seguintes: concordância, colocação pronominal, uso do verbo “haver” como impessoal e o emprego das orações subordinadas adjetivas/relativas. Passa-se, então, a considerar cada um desses fenômenos morfossintáticos variáveis, partindo da apresentação de como eles são tratados segundo a norma gramatical. Essa descrição servirá de fundamento à interpretação da correção de tais estruturas pelos participantes da pesquisa.

No que diz respeito à concordância, podem ser considerados dados desviantes da prescrição tradicional – a de que a forma verbal deve acompanhar, quanto ao número, a forma do SN a que se relaciona – os seguintes trechos da redação: “(...) o povo brasileiro estão revoltado (...)”; “(...) preço da passagem dos transportes públicos, que tinham aumentado (...)”; “(...) as manifestações foi organizada (...)”; “(...) as passeatas que apresentaram algum tipo de vandalismo foram repreendida (...)”; “(...) se alcançou alguns dos propósitos (...)” e “(...) 75% dos royalties do petróleo destinado (...)”. Desse modo, de acordo com a norma gramatical, em cada uma dessas orações os verbos (finitos ou participiais) deveriam estar concordando com o núcleo do SN em questão (no caso, “povo”; “preço”; “manifestações”; “passeatas”; “propósitos” e “75% dos royalties”, respectivamente) em número e/ou pessoa.

Por meio da análise das correções e, consequentemente, das avaliações feitas tanto pelos professores quanto pelos demais falantes, verificou-se que o supracitado fenômeno morfossintático, de maneira geral, é altamente passível de correção, em maior ou menor número de estruturas, o que sugere perfil típico do estatuto de estereótipo. Convém salientar, entretanto, que as estruturas em questão foram diferentemente analisadas em termos de graus de aceitação, sinalizando que determinadas construções são possivelmente mais estigmatizadas do que outras. Dessa forma, as estruturas mais desprestigiadas e que efetivamente seriam tidas pelos participantes como um estereótipo foram as seguintes: “(...) o povo brasileiro estão revoltado (...)” e “(...) as manifestações foi organizada (...)”, tendo em vista que, quanto a elas, dezenove e dezoito participantes, respectivamente, apontaram incorreção.

Essas orações foram seguidas por “(...) preço da passagem dos transportes públicos, que tinham aumentado (...)” e “(...) as passeatas que apresentaram algum tipo de vandalismo foram repreendida (...)”, ambas corrigidas por doze participantes. Percebe-se, aqui, a possibilidade de que a distância entre o sujeito e o verbo / forma nominal do verbo, sobretudo quando interposto um SPrep com expressão de número plural ou singular, incompatível com o do núcleo do SN, pode afetar a aceitabilidade das estruturas não padrão. Dentre as frases em análise quanto à concordância, o enunciado “(...) 75% dos royalties do petróleo destinado (...)” recebeu menor número de correções, tendo apenas nove participantes avaliado a estrutura como errada, isto é, menos da metade dos participantes percebeu que não havia concordância padrão nesse trecho.

Esses resultados põem em dúvida o estatuto de estereótipo da não marcação de plural quando se está diante não só de construções partitivas (no caso com expressão percentual), mas também da presença de SPrep interveniente no singular – “do petróleo”. Ao que parece, construções dessa natureza – com os constituintes em concordância distantes ou afetados pela interpretação dos elementos encaixados no sintagma nominal – configuram-se, em geral, como marcadores sociolinguísticos, tendo em vista serem passíveis de alto controle na monitoração, de modo a serem empregados ou reconhecidos como formas incorretas do ponto de vista da norma gramatical em alguns casos.

As correções da oração “(...) se alcançou alguns dos propósitos (...)” sinalizaram outro padrão de comportamento na avaliação: apenas dois participantes, ambos professores, perceberam que não havia concordância padrão entre o suposto sujeito (“alguns dos propósitos”) e o verbo (alcançou) dessa construção, configurando-se essa estrutura possivelmente, para a maioria dos avaliadores, um indicador. Trata-se de uma construção particular da chamada voz passiva sintética, que, segundo a norma gramatical, é formada por um verbo transitivo direto na terceira pessoa (do singular ou plural) mais a partícula se apassivadora. Assim, consoante a norma gramatical, a forma correta seria “(...) alcançaram-se alguns dos propósitos (...)”. Nesse tipo de estrutura, além da especificidade da chamada voz passiva, a posição do sujeito, posposto ao verbo, também afeta o emprego e a interpretação do dado. A esse respeito, descrições científicas contemporâneas (MATEUS et al., 2003MATEUS, M. H. M. et al. (org.) Gramática da língua portuguesa. 5. ed. rev. e aum. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.; RAPOSO et al., 2013RAPOSO, E. et al. (org.). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. v. I e II., dentre outras) propõem tratar-se de uma construção inacusativa, cujo sujeito é na realidade argumento interno, o que acarretaria a interpretação desse constituinte como objeto direto da oração, de modo que se justificaria a não concordância padrão.

Na tabela a seguir, podem-se observar os resultados de maneira mais detalhada, assim como se podem notar quais estruturas foram mais corrigidas por professores e quais foram mais corrigidas pelos demais falantes.

Com base na Tabela 1, pode-se notar que, de modo geral, não ocorreu, em relação às frases em questão, uma diferença expressiva de avaliação entre os professores e os demais participantes. De toda forma, verifica-se que as estruturas em que a não marcação da concordância padrão é mais evidente (as duas primeiras), são reconhecidas por praticamente todos os indivíduos (95%/90%), professores ou não. Aquelas em que fatores desfavorecedores da marcação, como a distância e a interferência de elementos intervenientes (LEMLE; NARO, 1977LEMLE, M.; NARO, A. J. Competências básicas do português. 1977. Relatório final de pesquisa apresentado às instituições patrocinadoras Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e Fundação Ford.; VIEIRA; BAZENGA, 2013VIEIRA, S. R.; BAZENGA, A. Patterns of third person verbal agreement. Journal of Portuguese Linguistics, Lisboa, v. 12, n. 2, p. 7-50, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.5334/jpl.67. Acesso em: 10 fev. 2022.
https://doi.org/10.5334/jpl.67...
, 2015VIEIRA, S. R.; BAZENGA, A. A concordância da terceira pessoa plural: padrões em variedades do Português. In: VIEIRA, S. R. (org.). A concordância em variedades do Português: a interface Fonética-Morfossintaxe. Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2015. p. 29-75.), estão presentes, como é o caso das sentenças 3, 4, e 5, recebem identificação em aproximadamente metade dos casos ou pouco mais, havendo oscilação entre o maior reconhecimento da não concordância por parte dos professores (sentença 3) ou dos demais participantes (sentenças 4 e 5). Por fim, é, de fato, a última estrutura que não é identificada como passível de correção pela maior parte dos participantes, possivelmente por não ser estigmatizada na variedade/norma culta; de todo modo, apenas dois professores (10%) – indivíduos com conhecimento técnico dessa estrutura, portanto – conseguiram identificá-la e corrigi-la.

Tabela 1
– Número de correções de estruturas sem concordância padrão em redação escolar

No que tange à posição do pronome oblíquo átono em relação a uma só forma verbal – em próclise (antes do verbo), mesóclise (no meio do verbo) ou ênclise (depois do verbo) –, a norma gramatical recomenda, como regra geral, o emprego do clítico em posição pós-verbal. Justifica-se o uso da próclise apenas em contextos com palavras ou expressões negativas; com conjunções subordinativas (como, por exemplo, o que); advérbios; pronomes relativos, demonstrativos e indefinidos; em frases interrogativas; em frases exclamativas ou optativas; com verbo no gerúndio antecedido de preposição em (ROCHA LIMA, 2011ROCHA LIMA, C. H. da. Gramática normativa da língua portuguesa. 49. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.). Já a mesóclise só pode ser utilizada nas estruturas sem a presença de elemento proclisador/atrator, quando o verbo estiver no futuro do presente ou no futuro do pretérito.

Embora estudos variacionistas (VIEIRA, 2002VIEIRA, S. R. Colocação pronominal nas variedades europeia, brasileira e moçambicana: para a definição da natureza do clítico em Português. 2002. 441f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.; NUNES, 2009NUNES, C. da S. Um estudo sobre a ordem dos clíticos em complexos verbais no PB e no PE. 2009. 256 f. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.; CORRÊA, 2012CORRÊA, C. M. M. de L. Cliticização pronominal na região metropolitana do Rio de Janeiro: a interface Sintaxe-Fonologia. 2012. 183 f. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.; VIEIRA; FREIRE, 2014VIEIRA, S. R.; FREIRE, G. C. Variação morfossintática e ensino de Português. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de Português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 81-114.; VIEIRA, 2016VIEIRA, M. de F. A ordem dos clíticos pronominais nas variedades urbanas europeia, brasileira e são-tomense: uma análise sociolinguística do Português no início do século XXI. 2016. 238 f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.) tenham demonstrado amplamente a preferência pela colocação pré-verbal na fala brasileira, independentemente da presença de um tradicional atrator, seja em variedades populares, seja em variedades cultas, as regras de colocação tradicionais costumam figurar em muitos materiais didáticos, nas aulas de Língua Portuguesa e em orientações diversas para revisores linguísticos, o que favorece a existência de outro padrão de colocação na modalidade escrita brasileira. Vieira & Freire (2014VIEIRA, S. R.; FREIRE, G. C. Variação morfossintática e ensino de Português. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de Português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 81-114., p. 101) resume o comportamento da variedade brasileira da seguinte forma:

Em síntese, nas construções com uma só forma verbal com clíticos que são efetivamente adquiridos no PB (<me, te, se> reflexivo), os dados revelam que se dá a próclise generalizada. Com os clíticos que se relacionam mais especificamente ao domínio culto, dois deles garantem a sobrevivência da ênclise, ainda que pouco produtiva: <o,a(s)> e <se> em construções de indeterminação do agente. Na escrita, tem-se outro sistema de colocação pronominal com forte condicionamento morfossintático, sensível ao contexto de verbo em posição inicial, certa atuação das partículas atratoras tradicionais, além do tipo de clítico. De todo modo, é relevante a diferença da escrita do letrado brasileiro em relação ao que se propõe na norma gramatical, tendo em vista duas características que podem ser destacadas: (i) a presença expressiva de próclise em contextos sem tradicionais atratores, em particular diante de sujeito; e (ii) a presença, menos expressiva mas não desprezível, de ênclise em contextos com tradicionais atratores.

Nos dados da redação em análise na presente pesquisa, ocorrem casos de próclise e ênclise2 2 Não se investigou a avaliação da mesóclise, por julgarmos não ser prioritária, dado que seu uso é restrito a sincronias passadas ou a tradições específicas de determinados gêneros textuais (VIEIRA, 2002). em alguns dos contextos morfossintáticos já referidos. Foram registradas as seguintes construções com próclise, em contextos em que a norma gramatical recomenda a ênclise: (i) forma verbal (locução) no início absoluto de período (“Se pode dizer [...]”); (ii) forma verbal no início de uma oração, esta delimitada por vírgula em relação à anterior (“[...], se deseja menos corrupção e mais profissionais na área de saúde e educação recebendo um salário justo, ao invés de gastar milhões na construção de estádios.”); (iii) forma verbal (locução) após um adjunto adverbial não proclisador, separado por vírgula (“Logo, se pode perceber [...]”); (iv) forma verbal após constituintes adjuntos não proclisadores (“Felizmente, mesmo com os conflitos entre os vândalos e a polícia, se alcançou alguns dos propósitos que o povo almejou-os [...]”); (v) forma verbal logo após sujeito (“Na realidade, a população se revoltou [...]”).

Nas primeiras orações mencionadas, justifica-se o uso da ênclise, pois não se recomendaria usar próclise em início absoluto de período ou de oração; consequentemente, o supostamente correto seria “Pode-se dizer que as passeatas (...)”, “(...) deseja-se menos corrupção (...)”. No terceiro e no quarto exemplos, seria esperada, então, a ênclise, uma vez que, anteriormente ao verbo, ocorrem apenas adjuntos adverbiais. No caso da terceira sentença, segundo Rocha Lima (2011ROCHA LIMA, C. H. da. Gramática normativa da língua portuguesa. 49. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011., p. 545), não se usa próclise após advérbios curtos separados por vírgula (“pausa”). O supostamente correto seria, então, “Logo, pode-se perceber (...)”. Na quarta sentença, recomenda-se usar a ênclise, pois não se registra qualquer atrator antecedendo o verbo, mas apenas um advérbio de modo (“felizmente”) e um adjunto concessivo (“mesmo com os conflitos entre os vândalos e a polícia”). Logo, o esperado seria “(...) alcançaram-se alguns dos propósitos (...)”. Por fim, na última sentença, a norma tradicional determina que o pronome deveria estar depois do verbo (ênclise), já que não há atrator que justifique o uso da próclise. Conforme a norma gramatical, o correto seria, então, “(...) a população revoltou-se (...)”.

A redação apresenta, ainda, a ocorrência de um contexto de próclise obrigatória segundo a norma gramatical: forma verbal antecedida de um elemento proclisador, o pronome relativo que, como pode ser verificado em “(...) vândalos que infiltraram-se nos protestos (...)”. Neste caso, seria recomendado o uso da próclise, pois o pronome relativo que, atuando como um dos tradicionais atratores, determinaria que o pronome átono estivesse na posição anterior ao verbo. Logo, a forma a ser tomada como correta seria “muitos vândalos que se infiltraram”.

A análise das correções do texto demonstra haver reconhecimento diferenciado por parte dos avaliadores quanto ao atendimento às regras de colocação pronominal nos contextos controlados. Na tabela a seguir, podem ser observadas as estruturas analisadas consoante a avaliação dos participantes.

No que se refere à colocação pronominal, os resultados expostos na Tabela 2 demonstram, primeiramente, que não se confirma a hipótese de que os professores atuariam em maior consonância com o que determinam as regras tradicionais de colocação pronominal. Na realidade, algumas estruturas – “(...) se alcançou alguns dos propósitos (...)”; “(...) se deseja menos corrupção (...)”; “Se pode dizer (...)” e “(...) se pode perceber (...)” – foram até mais corrigidas pelos demais falantes. Ao que tudo indica, usuários da língua julgam as construções morfossintáticas relacionadas à ordem dos clíticos pronominais seguindo intuitivamente suas crenças de quais seriam prestigiadas, independentemente de esse julgamento estar em conformidade com a norma gramatical, cujo detalhamento é, por hipótese, frequentemente ignorado pelos brasileiros.

Tabela 2
– Número de correções de estruturas quanto à colocação pronominal em redação escolar

De todo modo, percebe-se certo eco da proposta tradicional em alguns contextos bem específicos, sobretudo o de início absoluto de oração e de período, estrutura com maior índice de correção. Esse resultado sugere, em termos de interpretação dos dados, que, em se tratando da modalidade escrita, a próclise nesse contexto parece estigmatizada, configurando uma espécie de estereótipo, motivo pelo qual quatorze participantes (70%) perceberam que essa estrutura estaria incorreta e a corrigiram. Embora não haja evidência empírica para maiores generalizações no âmbito do presente trabalho, supõe-se, com base em resultados de outras investigações (VIEIRA; FREIRE, 2014VIEIRA, S. R.; FREIRE, G. C. Variação morfossintática e ensino de Português. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de Português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 81-114.), que o fato de se tratar de uma locução verbal modal acompanhada do clítico se pode ter favorecido a indicação de ênclise para esse contexto.

Com relação ao estatuto da ordem preferencial dos clíticos nos contextos 2, 3 e 4, todos com verbos após vírgula, antecedidos de adjuntos ou de outra oração, a avaliação que o fenômeno recebe dos participantes parece compatível com o de um marcador sociolinguístico. As construções “(...) se pode perceber (...)”, “(...) se deseja menos corrupção (...)” e “(...) se alcançou alguns dos propósitos (...)” foram corrigidas por onze (55%), oito (40%) e cinco (25%) informantes, respectivamente. Tendo em vista que, na modalidade oral, a opção preferencial, em nível categórico ou semi categórico, seja a variante pré-verbal nesses contextos, é plenamente justificável que não sejam julgados inapropriados na modalidade escrita, uma vez que fazem parte da norma culta brasileira. Trata-se, portanto, no máximo, de uso de ênclises na escrita e em situações monitoradas, o que indica variação de acordo com o registro (formal/informal) e a modalidade (escrita/oral), o que se correlaciona, mais uma vez, ao comportamento de um marcador efetivamente.

Ainda com relação ao uso indevido da próclise consoante a norma gramatical, é importante notar que houve um caso em que nenhum dos informantes julgou a colocação pronominal como incorreta. Este fato ocorreu na oração “(...) a população se revoltou (...)”, cujo pronome deveria estar, segundo a tradição gramatical, depois do verbo (ênclise), já que se encontra antecedido apenas de um SN sujeito, e não de um elemento proclisador. Nesse caso, ao que tudo indica, a falta de correções sinalizaria que a variante pré-verbal funcionaria como indicador para os participantes, e, consequentemente, não implicaria sequer um caso de variação estilística no uso dessa estrutura por indivíduos cultos.

No que diz respeito, por fim, ao uso da ênclise considerado tradicionalmente incorreto, na oração “(...) muitos vândalos que infiltraram-se (...)”, em vez de “(...) muitos vândalos que se infiltraram (...)”, verificou-se, a partir das avaliações feitas pelos participantes, a correção apenas de cinco pessoas (25%), entre os vinte participantes. Ao que parece, trata-se de um caso de variação estilística para muitos usuários da língua. Na realidade, certos falantes poderiam avaliar esse uso como estigmatizado e, por isso, seguir o que está descrito na norma gramatical, enquanto outros, seja devido ao fenômeno da hipercorreção3 3 Segundo Bortoni-Ricardo (2004), hipercorreção ou ultracorreção é o fenômeno que ocorre quando o usuário da língua, tentando ajustar-se à norma-padrão, realiza uma correção excessiva aplicada a determinados contextos em que não cabe tal correção. Em outras palavras, a hipercorreção seria a correção do que já está correto, tornando-o, assim, incorreto. ou à falta de conhecimento sobre o que está previsto na gramática tradicional, poderiam preferir o emprego da ênclise mesmo nos contextos em que seu uso não é recomendado.

Para concluir a análise destinada à colocação pronominal nos contextos controlados, associada aos resultados sociolinguísticos a respeito do fenômeno no PB, pode-se propor que, de maneira geral, se trata de variação diamésica e de registro. Embora na modalidade oral, o uso da variante pré-verbal funcione como um indicador, dada sua generalidade em qualquer variedade do PB, a ordem dos clíticos na modalidade escrita culta controlada até pode assumir o estatuto de marcador. Não obstante o fato de o PB possuir um caráter essencialmente proclítico, independentemente de existirem ou não supostos atratores na oração, determinados indivíduos, com alto grau de letramento e em situação fortemente monitorada, podem assumir, quando escrevem em determinados gêneros textuais, como os acadêmicos e alguns jornalísticos, por exemplo, outro padrão para o uso da colocação pronominal e, assim, até atentar a alguns contextos morfossintáticos consoante a abordagem da norma gramatical. Sabe-se, entretanto, que o atendimento às regras tradicionais é sempre limitado e parcial, conforme o estatuto de um marcador. Estudos de uso revelam que, além de a ênclise ser mais evidente no início de oração/período, a observância da atuação de elementos proclisadores, mesmo sendo circunscrita à modalidade escrita mais monitorada, é rara e parcialmente aplicada.

Um terceiro fenômeno observado na redação foi o emprego do verbo haver, com o sentido de existir, em contexto de verbo impessoal, que pode ser avaliado nos seguintes trechos: “(...) houveram manifestações (...)” e “(...) haviam entre eles, muitos vândalos (...)”. Em ambos os casos, segundo a norma gramatical, a estrutura não apresenta sujeito referencial, sendo o SN que se segue ao verbo o objeto direto, de modo que a forma verbal não poderia estar no plural, mas apenas no singular, sendo tomadas como corretas as estruturas “(...) houve manifestações (...)” e “(...) havia entre eles, muitos vândalos (...)”.

Na tabela a seguir, estão os dados obtidos a partir da correção em relação ao emprego do verbo “haver” como impessoal pelos vinte participantes, professores e demais falantes.

Tabela 3
– Número de correções de estruturas quanto ao emprego do verbo “haver” impessoal

No que concerne ao estatuto que esse fenômeno pode receber, o número de correções (seis e nove, respectivamente) sugere de moderada a baixa percepção do padrão desviante em relação à norma gramatical. De toda forma, pode-se sugerir que ele seria visto por um determinado grupo de participantes, professores ou não, como um marcador, no sentido de que o emprego do haver sem marca de pluralidade seria reconhecido como próprio da escrita formal (VIEIRA; FREIRE, 2014VIEIRA, S. R.; FREIRE, G. C. Variação morfossintática e ensino de Português. In: MARTINS, M. A.; VIEIRA, S. R.; TAVARES, M. A. (org.). Ensino de Português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014. p. 81-114.).

Adicionalmente, convém salientar, apenas, que o fenômeno em debate se relaciona fortemente ao que se concebe usualmente como hipercorreção linguística; para atender às insistentes exigências da regra da concordância verbal, acabam por aplicá-la equivocadamente no contexto de verbo impessoal.

Por fim, foi analisado o emprego das chamadas orações relativas. Com base na abordagem tradicional, trata-se das orações subordinadas adjetivas, que são introduzidas por um pronome relativo e exercem a função de adjunto adnominal de um substantivo ou pronome antecedente, quando restritiva, ou de aposto, quando explicativa. No quadro gerativista adotado por Mateus et al. (2003)MATEUS, M. H. M. et al. (org.) Gramática da língua portuguesa. 5. ed. rev. e aum. Lisboa: Editorial Caminho, 2003., propõem-se três estratégias de relativização: a padrão, na qual a relativa é composta por um pronome relativo e uma preposição (quando exigida pelo verbo da oração encaixada), como em “o livro de que ele gosta”; e dois processos não-padrão, que dão origem às relativas copiadora e cortadora. Esta se caracterizaria pela não explicitação da preposição (quando necessária) que deveria acompanhar o pronome relativo, como em “o livro que ele gosta”, enquanto aquela se caracterizaria por repetir (copiar) o referente da oração anterior na estrutura encaixada, como em “o livro que ele gosta dele”.

A padrão, considerada pela abordagem tradicional, é aquela que é divulgada como objeto de aprendizagem nas instituições da Educação Básica. Em virtude disso, seu uso é proposto sobretudo para situações interacionais que exijam alto grau de monitoração, sendo amplamente registrada, em estudos da variedade brasileira (VIEIRA, 2017VIEIRA, S. R. Ensino de Português e o contínuo fala-escrita: o caso das estratégias de relativização. Percursos, Florianópolis, v. 18, p. 8-35, 2017., 2019bVIEIRA, S. R. Ensinando gramática em três eixos: conectivos e conexão de orações. In: SEMINÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONECTIVOS E CONEXÃO DE ORAÇÕES, 2., 2019, Niterói. Anais [...], Niterói: Letras da UFF, 2019b. p. 57-79. v. 1, n. 2.), na modalidade escrita formal. A cortadora, por sua vez, funciona como uma espécie de estrutura não-marcada, sendo a construção usualmente empregada pelo sujeito, escolarizado ou não, em diversas situações de fala. A copiadora, por sua vez, ao que tudo indica, estaria mais propensa a ser estigmatizada, dada a duplicação do referente, sendo utilizada, ao que parece, em situações interacionais específicas, o que faz com que ela não seja amplamente registrada.

Na redação analisada, encontram-se dois exemplos de relativa copiadora com formas diferentes para o pronome-cópia, aquele que faz a retomada do referente já indicado pelo relativo: “(...) que o povo almejou-os (...)” e “(...) que, lutando por seus direitos, o povo reconhece eles como batalhadores (...)”. Como se pode observar, trata-se de construções em que o antecedente do pronome relativo foi retomado (copiado) pelo clítico “os” e pelo pronome pessoal do caso reto “eles”, respectivamente. No primeiro caso, o pronome relativo, retomado pelo átono “os”, está desempenhando a função de objeto direto do verbo “almejar”, na oração subordinada. A relativa padrão correspondente seria, então, “(...) propósitos que o povo almejou (...)”. No segundo fragmento, o relativo “que”, retomado pela forma reta “eles”, desempenha a função de objeto direto do verbo “reconhecer” na oração subordinada. A relativa padrão correspondente seria, portanto, “(...) os brasileiros, que, lutando por seus direitos, o povo reconhece como batalhadores (...)”.

Outro exemplo de oração relativa está presente no fragmento “(...) X que o Brasil precisa para tornar-se um país melhor (...)”, em que se apresenta uma oração relativa cortadora. Nesse trecho, segundo a gramática tradicional, o antecedente da oração subordinada está desempenhando a função de complemento do verbo da oração encaixada e, por isso, o relativo “que” deveria ser antecedido pela preposição “de”, uma vez que “precisar” exige complemento preposicionado. Pode-se afirmar que essa oração é classificada como cortadora porque a preposição (neste exemplo, “de”) que deveria acompanhar o pronome relativo não é realizada. A relativa padrão equivalente seria a que se encontra em “(...) o povo de que o Brasil precisa para tornar-se um país melhor (...)”.

Na tabela a seguir, pode ser observada a quantidade de correções feitas pelos professores e pelos demais falantes quanto às referidas estratégias de relativização.

Tabela 4
– Número de correções de estruturas quanto ao uso das orações relativas cortadora e copiadora

As correções feitas pelos participantes (quinze, no total) demonstram alto reconhecimento da suposta incorreção que ocorre na oração “(...) que o povo almejou-os (...)”, sugerindo que o fenômeno seria concebido como estereótipo. Todos os informantes que a corrigiram escreveram-na da forma considerada correta, eliminando o pronome átono, que parece ter soado excessivo e inadequado.

Já a oração “(...) que, lutando por seus direitos, o povo reconhece eles como batalhadores (...)” foi corrigida por apenas seis informantes (30%). Embora esse número de correções tenha sido inferior ao esperado, a baixa identificação da estrutura pode estar relacionada a diversos fatores, como a distância entre o pronome cópia e o relativo, ou, ainda, o tipo de estrutura em foco, que contém, além do pronome-cópia “eles”, outro complemento (“como batalhadores”), tornando o uso do “ele” acusativo soar mais natural (DUARTE, 1986DUARTE, M. E. L. Variação e sintaxe: clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no Português do Brasil. 1986. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1986.; SANTANA, 2016SANTANA, J. M. C. P. de. Diagnose e ensino de pronomes: um estudo sobre a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no Português brasileiro. 2016. 205 f. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Apesar de o número de correções ter sido relativamente baixo, os depoimentos dos participantes – de que, embora não soubessem como corrigir tal estrutura e, por isso tivessem optado por mantê-la da forma original, achavam a construção esquisita, e de que não a escreveriam de tal forma – sinalizam que essa construção também pode ser caracterizada como um marcador ou até um estereótipo.

Quanto ao fragmento “(...) X que o Brasil precisa para tornar-se um país melhor (...)”, que apresenta uma oração relativa cortadora, foi constatado que nenhum dos participantes corrigiu a oração por meio do acréscimo da preposição “de”. Esse resultado conduz à interpretação de que tal estrutura, produzida de forma semicategórica na fala vernacular brasileira (VIEIRA, 2017VIEIRA, S. R. Ensino de Português e o contínuo fala-escrita: o caso das estratégias de relativização. Percursos, Florianópolis, v. 18, p. 8-35, 2017.), seria percebida como um indicador, o que reafirma que seu emprego já faz parte da variedade/norma culta; sua utilização já soaria tão natural que acabaria não sendo vista como incorreta, inclusive em textos formais.

Sistematização e debate dos resultados

Ao longo da análise, foi possível interpretar como alguns fenômenos morfossintáticos variáveis registrados em uma redação escolar seriam avaliados por falantes diversos da norma culta, dentre os quais professores, além de sugerir qual estatuto cada fenômeno receberia, utilizando a classificação proposta por Labov (1972)LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.estereótipo, marcador, indicador.

O gráfico a seguir apresenta um panorama geral de como o corpus, levando-se em conta todas as estruturas morfossintáticas variáveis, foi corrigido por professores e pelos demais falantes.

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– Distribuição das estruturas corrigidas/não corrigidas pelos participantes

A partir do gráfico, pode-se notar que mais da metade das estruturas linguísticas (56,47%) que não estavam de acordo com a norma não foram corrigidas. Além disso, pode-se perceber, comparando o comportamento dos professores e o dos demais falantes, que o reconhecimento das construções fora dos padrões da norma gramatical ocorreu de forma semelhante: os professores: 21,18%; demais falantes: 22,35%.

Nesse sentido, no que concerne ao problema da avaliação, formulado por Weinreich, Labov e Herzog (1968)WEINREICH, W.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical Foundations for Theory of Language Change. In: LEHMANN, P.; MALKIEL, Y. (ed.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 95-188., pode-se notar, através da interpretação dos dados da presente análise, que os participantes avaliam as variantes linguísticas, elegendo como corretas ou adequadas, provavelmente aquelas que estariam de acordo com a norma já disseminada na fala culta corrente (norma culta). Assim, a padronização idealizada por eles (norma-padrão) não necessariamente condiz com o modelo proposto na norma codificada nas gramáticas e nos dicionários da língua (norma gramatical). Em outras palavras, a norma-padrão – considerada no julgamento dos participantes seguindo suas crenças quanto a quais estruturas seriam prestigiosas ou não – não necessariamente estaria de acordo com a norma gramatical.

Foi possível, assim, verificar que determinadas estruturas são mais estigmatizadas do que outras – como, por exemplo, a falta de concordância padrão entre o sujeito e verbo (sobretudo quando próximos e na ordem direta), cuja avaliação indicou ser uma das estruturas mais percebidas como incorretas, recebendo, consequentemente, o estatuto de estereótipo. Verificou-se, em outro extremo, que, embora algumas construções não estejam previstas como corretas segundo a norma gramatical, elas não são efetivamente estigmatizadas, tendo em vista que constituem variantes altamente produtivas na fala de todas as variedades, inclusive as mais cultas. Desse modo, seriam configuradas como formas neutras, não sendo corrigidas inclusive pelos professores, nem sendo provavelmente coibidas no contexto acadêmico-escolar. Trata-se, por exemplo, da chamada concordância com a voz passiva ou, ainda, da oração relativa cortadora, que poderiam receber, assim, o estatuto de indicador. Entre essas duas possibilidades, diversas construções (relacionadas à concordância, à colocação pronominal, ao uso de verbo “haver” impessoal e à relativa copiadora) foram parcialmente reconhecidas pelos participantes, provavelmente por se tratar de casos já pertencentes à fala culta e que, apenas em situações de escrita altamente monitorada, seriam percebidas e/ou evitadas, o que permitiria atribuir-lhes o estatuto de um marcador sociolinguístico.

Vale ressaltar, ainda, que, devido às divergências entre as correções dos professores e o que a norma gramatical prevê para cada uso estudado, foi possível observar que, muitas vezes, a fonte de conhecimento que o professor utiliza para corrigir as estruturas linguísticas é, de fato, sua própria avaliação pessoal, sua idealização de padrão linguístico (ideário de norma-padrão), seu saber vernacular – que é semelhante ao dos diversos falantes escolarizados –, e não apenas o saber descritivo-prescritivo, que inclui o conhecimento da norma gramatical, conforme proposta de Barbosa (2007)BARBOSA, A. G. Saberes gramaticais na escola. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 31-54..

Dessa forma, pode-se dizer que, apesar de a norma culta em uso ser composta pelos usos linguísticos do grupo social situado no extremo do contínuo do letramento, não há correspondência total entre ela e a norma gramatical, nem mesmo entre ela e a norma-padrão abstratamente construída. Certamente, existem pontos em comum entre essas instâncias, especificamente nas situações em que as estruturas utilizadas correntemente pelos participantes coincidem com as propostas pela norma gramatical, tornando-se, consequentemente, parâmetro para a correção das estruturas postas em avaliação na redação escolar.

Buscando estabelecer uma relação entre a base teórica que fundamentou a pesquisa e a análise das correções das redações, podem-se, ainda, apresentar algumas reflexões finais referentes ao ensino de Língua Portuguesa. A esse respeito, é importante, em primeiro lugar, depreender como a variação linguística é concebida em algumas instituições educacionais e até mesmo por alguns profissionais da área, a fim de que, em um segundo momento, seja possível vislumbrar soluções para a chamada pedagogia da variação linguística, conforme Faraco (2008FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo. Parábola Editorial, 2008., 2015FARACO, C. A. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES; A. M. S.; FARACO, C. A. (org.). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 19-30.).

Primeiramente, é importante mencionar que, ao que tudo indica, ainda existem escolas e professores de Português que, embora afirmem teoricamente o princípio da heterogeneidade sistemática em matéria de língua, admitem uma prática que acaba por promover o mito de que a Língua Portuguesa é homogênea e invariável. Em decorrência dessa prática, acabam propondo atividades segundo as quais os alunos devem aprender unicamente a norma gramatical e utilizar as estruturas nela previstas como se fossem adequadas em todas as instâncias sócio-comunicacionais, o que, como se sabe, não condiz com os textos que são lidos e produzidos nas modalidades oral e escrita na própria sala de aula.

Nessa perspectiva, perpetua-se uma prática pedagógica em que tudo o que se afasta do que é supostamente prescrito pela norma gramatical – que, por sua vez, é caracterizada por apresentar um modelo idealizado de língua “correta” – deve ser desprezado e tomado como errado. Devido a essa visão equivocada, os docentes acabam sendo, muitas vezes, porta-vozes do que nós chamamos aqui como norma curta, ao radicalizarem o que está presente na norma gramatical – construída para fins específicos – como se fosse aplicável a toda a língua. Indiretamente, acaba-se contribuindo para a perpetuação do preconceito linguístico, sustentando a cultura do erro e dificultando o acesso dos alunos ao vasto domínio da língua, uma vez que colaboram para que os brasileiros adotem crenças e atitudes negativas em relação a sua própria variedade linguística.

Considerando as orientações oficiais para o ensino de Língua Portuguesa e os avanços da Sociolinguística Variacionista aplicados ao campo educacional, entende-se ser fundamental que se desenvolvam propostas que efetivamente contemplem o PB como uma realidade heterogênea, que apresenta diferentes variedades/normas de uso, as quais, por sua vez, se aplicam a modalidades e registros diversos. Desse modo, levando em consideração que o objetivo geral do ensino de Língua Portuguesa é o de desenvolver a competência de leitura e produção de textos, é inevitável que se lide com a complexa diversidade linguística do país e que se dê oportunidade aos alunos de perceber que a língua varia não só no eixo espacial, do rural ao urbano, mas também no eixo da oralidade-letramento, assim como no da monitoração estilística. Com o domínio da língua em função desses contínuos, o aluno pode reconhecer quais variantes linguísticas empregar em cada gênero textual e em cada situação sociocomunicativa, para que, dessa maneira, tenha autonomia para escolher, dentro de seu repertório, a forma mais adequada à situação em que se encontra.

Essa proposta não é, entretanto, incompatível com o propósito de dar acesso aos discentes, no entrecruzamento de pontos desses contínuos, às expressões consideradas cultas, que acabam por determinar certo modelo de comportamento privilegiado e assumido como norma-padrão, socialmente construído, frequentemente, a partir do meio mais urbano, em situação formal, na modalidade escrita. É nesse ponto que a concepção de norma padrão não pode ser automaticamente vinculada ao de norma gramatical, como de fato se revelou na presente investigação.

Desse modo, propõe-se que o sucesso das orientações pedagógicas quanto ao trabalho com a norma-padrão depende, em larga medida, de uma formação ampla do professor, no que se refere aos saberes (saber da norma vernácula de uso do falante, saber descritivo-prescritivo e saber descritivo-científico) propostos por Barbosa (2007)BARBOSA, A. G. Saberes gramaticais na escola. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 31-54.. Sem dúvida, o educador, a partir da atuação conjunta desses saberes, poderá ter como fonte de conhecimento, além de sua própria experiência como falante da língua, o que propõem as gramáticas tradicionais, dicionários e materiais didáticos, além da vasta produção exibida em materiais científicos.

Com base nessa extensão da produção científica, Vieira (2019aVIEIRA, S. R. Para uma norma-padrão flexível no contexto escolar. In: MACHADO-VIEIRA, M. dos S.; WIEDEMER, M. L. (org.). Dimensões e pesquisas sociolinguísticas. São Paulo: Blucher, 2019a. p. 243-264., 2019bVIEIRA, S. R. Ensinando gramática em três eixos: conectivos e conexão de orações. In: SEMINÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONECTIVOS E CONEXÃO DE ORAÇÕES, 2., 2019, Niterói. Anais [...], Niterói: Letras da UFF, 2019b. p. 57-79. v. 1, n. 2.) formulou proposta para o alcance do bom cumprimento das orientações normativas escolares, que, acima de tudo, persigam o que foi sugerido por Faraco (2015)FARACO, C. A. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES; A. M. S.; FARACO, C. A. (org.). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 19-30.: que a norma-padrão a ser trabalhada na escola reflita as variedades cultas / norma culta. Assim, a autora formulou orientações básicas em relação ao perfil das variantes em termos avaliativos, dentre as quais se destacam, considerando os dados analisados neste artigo, as três seguintes:

  1. não oferecer qualquer orientação normativa, no caso de variante que funcione como indicador não só na fala, mas também na escrita de diversos gêneros (como, por exemplo, a próclise após sujeito);

  2. oferecer orientações expressas sobre o valor social das variantes em termos de prestígio ou desprestígio, no caso de a variante representar um estereótipo, situação que se associa fortemente a preconceito linguístico/social (como, por exemplo, determinadas estruturas sem a concordância padrão);

  3. oferecer orientações específicas para a produção e para a leitura, no caso de variantes do tipo marcadores sociolinguísticos (como, por exemplo, a estratégia de relativização padrão; o haver impessoal), tendo em vista que o emprego e/ou o reconhecimento dessas estruturas garantirá o acesso do aluno a gêneros textuais diversos, com variados graus de monitoração estilística.

Além dessas situações, Vieira (2019a)VIEIRA, S. R. Para uma norma-padrão flexível no contexto escolar. In: MACHADO-VIEIRA, M. dos S.; WIEDEMER, M. L. (org.). Dimensões e pesquisas sociolinguísticas. São Paulo: Blucher, 2019a. p. 243-264. adverte quanto à existência de determinadas estruturas que não são naturalmente empregadas na fala ou na escrita contemporâneas, mas que se configuram como variantes arcaicas que costumam circular em determinadas tradições discursivas, como, por exemplo, a literária ou a religiosa. Nesse caso, segundo a autora, “as orientações devem estar restritas ao campo da recepção dos dados (reconhecimento pela leitura/escuta – do domínio religioso ou literário, por exemplo), e não da produção, sob pena de promoção de arcaísmos.” (VIEIRA, 2019aVIEIRA, S. R. Para uma norma-padrão flexível no contexto escolar. In: MACHADO-VIEIRA, M. dos S.; WIEDEMER, M. L. (org.). Dimensões e pesquisas sociolinguísticas. São Paulo: Blucher, 2019a. p. 243-264., p. 257).

Como se pode observar, em uma pedagogia da variação linguística cientificamente fundamentada, é de crucial importância que o trabalho com a norma-padrão – que deve ser sempre dinâmico e renovável, como o é a língua – esteja articulado aos resultados sociolinguísticos. Embora não se disponha da sistematização total de resultados quanto à totalidade dos fatos gramaticais, estudos dos fenômenos variáveis morfossintáticos relativos não só ao emprego e à produtividade das variantes, mas também à sua avaliação subjetiva, como o que ora se propõe, são promissores no sentido de fornecer informações necessárias para a prática docente.

Considerações finais

Ao longo deste artigo, que partiu do axioma de que a língua é um sistema heterogêneo e variável, foi possível observar que as diversas variantes podem ser avaliadas pelos falantes como prestigiadas ou estigmatizadas. Em outras palavras, pode-se observar que, em paralelo ao quadro de variação linguística, figura também o de avaliação, que se constrói não apenas pelas características propriamente linguísticas, mas também consoante as crenças dos falantes.

Diante desse processo de avaliação das diversas normas/variedades que compõem o PB, foi possível perceber, por meio da análise de estruturas supostamente consideradas erradas, que, até mesmo no âmbito da idealização normativa, não há uniformidade, pois não há correspondência absoluta entre a norma-padrão (aquilo que os falantes ditos cultos idealizam, no plano abstrato, como prestigiado/correto) e a norma gramatical (o que é proposto em instrumentos normativos tradicionais – gramáticas e dicionários – como correto).

Resulta da convivência natural com essas esferas de normatização que o professor leve em consideração a flexibilidade da norma-padrão, que, construída a partir do conjunto de expressões cultas, deve atender às diversas situações sócio-comunicativas, concretizadas em uma pluralidade de gêneros textuais, da fala e da escrita. Com o avanço da ciência, sobretudo na área da Teoria da variação e mudança, não soa sequer razoável que as diretrizes pedagógicas partam da ilusão de que seja possível eleger uma única orientação normativa, a ser inequivocamente aplicada em todos os momentos em que o falante interage, como se tal codificação de norma representasse a língua em sua totalidade.

Admitir a exuberância da variação linguística – nos planos regional, social e estilístico, na fala e na escrita – e fazer dela objeto pedagógico não implica desmerecer a relevância do ideário social da norma-padrão. Essa padronização, entretanto, conforme demonstrou o exercício de avaliação de texto demonstrado no presente artigo, não pode estar ingenuamente equiparada, no plano pedagógico, a uma listagem objetiva e limitada de construções, supostamente certas ou erradas. A construção de uma norma-padrão – que, não sendo uma variedade, tem finalidade homogeneizadora e se constituiria, por princípio, como contrária à variação – é tão complexa como o é cada norma/variedade em uso. Em razão dessa complexidade, é inevitável concluir que é das práticas variáveis da norma/variedade culta que deve emergir naturalmente o ideário de norma-padrão, que acomoda igual espaço de seleção e flexibilidade a cada contexto em que se busca sua aplicação.

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  • 1
    Gorski & Coelho (2009)GORSKI, E. M.; COELHO, I. L. Variação linguística e ensino de gramática. Working Papers em Linguística, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 73-91, 2009., além de apresentarem a definição laboviana desses três fenômenos, propõem exemplos para ilustrar a diferenciação entre eles, dentre os quais destacamos: como estereótipo, formas estigmatizadas socialmente como nós fumo (em vez de nós fomos); como marcador, a alternância entre tu e você, que tem contornos estilísticos e sociais diferentes a depender de vários fatores; como indicador, a variação entre peixe/pexe ou dinheiro/dinhero, raramente percebida nas diversas variedades.
  • 2
    Não se investigou a avaliação da mesóclise, por julgarmos não ser prioritária, dado que seu uso é restrito a sincronias passadas ou a tradições específicas de determinados gêneros textuais (VIEIRA, 2002)VIEIRA, S. R. Colocação pronominal nas variedades europeia, brasileira e moçambicana: para a definição da natureza do clítico em Português. 2002. 441f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002..
  • 3
    Segundo Bortoni-Ricardo (2004)BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em Língua Materna: a Sociolingüística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004., hipercorreção ou ultracorreção é o fenômeno que ocorre quando o usuário da língua, tentando ajustar-se à norma-padrão, realiza uma correção excessiva aplicada a determinados contextos em que não cabe tal correção. Em outras palavras, a hipercorreção seria a correção do que já está correto, tornando-o, assim, incorreto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2020
  • Aceito
    23 Ago 2020
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