Acessibilidade / Reportar erro

UMA ANATOMIA DO AÇÚCAR: A ARQUITETURA DOS ENGENHOS DO RECÔNCAVO BAIANO (XVI-XIX)

Resenha: AZEVEDO, Esterzilda Berenstein de. . Açúcar Amargo: arquitetura e arqueologia industrial do século XVI ao XIX. Salvador: EDUFBA, 2021.

O desenvolvimento da economia açucareira do Recôncavo Baiano está intimamente conectado às transformações na história brasileira, sendo indevido discutir o passado do país na longa duração sem nos referirmos àqueles engenhos de açúcar. As investigações sobre fenômenos que envolvem a implantação, ampliação e posterior decadência dos engenhos tradicionais na Bahia são múltiplas, tendo em conta seu papel na economia colonial e no Império brasileiro. Um desses esforços historiográficos se encontra no livro de Esterzilda Berenstein de Azevedo, Açúcar Amargo, objeto de análise do presente trabalho. A obra é fruto da união entre sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado, a primeira defendida na área de Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1985 e a segunda na área de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (USP) em 1995. Sendo assim, o livro não se trata de um resultado recente de pesquisa, mas faz parte de uma reedição da dissertação de Azevedo3 3 AZEVEDO, 1990. e da publicação inédita de sua tese.

Açúcar Amargo traz à luz o papel fundamental da materialidade para quaisquer que sejam os estudos agrários, pois é a partir de espaços “reais”, por vezes bem definidos e dinâmicos, que as pessoas constituem suas relações político-econômicas. A autora demonstra que os engenhos não eram formados apenas pelos espaços dedicados à manufatura do açúcar, mas que deles também faziam parte a presença das moradas dos proprietários e de trabalhadores livres (como agregados e feitores), as senzalas dos escravos e, muitas vezes, as capelas destinadas aos importantes ritos religiosos daquela sociedade. Em seu livro, Azevedo é hábil em conectar os estudos históricos a uma sofisticada análise arquitetônica das transformações no arranjo espacial dos engenhos baianos entre os séculos XVI e XIX, sendo que sua hipótese central é de que haveria uma relação entre a imponência arquitetônica na formação dos engenhos e as oscilações decorrentes da economia açucareira baiana ao longo dos séculos. A pergunta que originou sua pesquisa foi, portanto, se a luxuosa construção nos engenhos era gerada em períodos de crise ou de auge no ramo açucareiro. Para desenvolver tal problemática, os principais objetivos da autora foram (i) caracterizar a organização espacial dos engenhos do Recôncavo Baiano entre os séculos XVI e XIX; (ii) analisar as principais transformações ocorridas na economia açucareira do Recôncavo; e (iii) classificar e comparar as principais alterações arquitetônicas frente às oscilações econômicas e tecnológicas enfrentadas pelos senhores de engenho no recorte estabelecido.

A fim de cumprir os objetivos, Azevedo lança mão de uma análise que realiza o cruzamento de um amplo conjunto de fontes históricas, tais como (i) diversos relatos de viajantes (André João Antonil, Luís Vilhena, Henry Koster, Maria Graham, Jean-Baptiste Debret, Gabriel Soares de Sousa, entre outros); (ii) cerca de 100 inventários post mortem dos senhores de engenho do Recôncavo; (iii) iconografia diversa das propriedades açucareiras entre os séculos XVI e XIX; (iv) o Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia (IPAC/SIC); e, por fim, (v) vestígios arqueológicos dos engenhos. Seu trabalho, inclusive, se destaca justamente na utilização dos remanescentes arquitetônicos existentes à época da pesquisa, tendo sido identificados 37 engenhos, que, na maior parte dos casos, “conserva-se apenas uma das muitas edificações que formavam o conjunto do engenho. Foram contadas 22 casas-grandes, 10 casas anexas às fábricas, 1 casa anexa a capela, 4 capelas, 1 fábrica, 3 senzalas e 3 aquedutos”4 4 AZEVEDO, 2021, p. 202. .

Para avançar em sua investigação, Azevedo também se utiliza de uma extensa historiografia relacionada à economia açucareira na América portuguesa e no Império do Brasil, porém não houve uma atualização bibliográfica em sua obra para a publicação aqui analisada. Sendo assim, a primeira parte da pesquisa tem discussões que estavam em voga quando a sua dissertação foi defendida, na década de 1980. Azevedo traz para o debate central autores como Celso Furtado, Roberto Simonsen, Alice Canabrava, Antônio Barros de Castro, Maria Luiza Petrone, Katia Mattoso, Ruy Gama e Wanderley Pinho. Por outro lado, na segunda parte de seu livro - referente ao seu doutorado -, a autora traz à baila boa parte daquilo que era considerado o mais moderno sobre a historiografia do açúcar na década de 1990, como Vera Ferlini, Manuel Moreno Fraginals e, especialmente, as obras de Stuart Schwartz.

A utilização da bibliografia em seu livro é bastante extensa e feita com rigor, sendo que Azevedo propõe com esses autores uma chave de compreensão para seu estudo que vai além das barreiras do Recôncavo Baiano, não raro comparando sua investigação com a realidade paulista, carioca e cubana - centros canavieiros importantes para o período estudado. Contudo, ela deixou de utilizar na segunda parte as produções de Bert J. Barickman, autor de uma das principais pesquisas sobre o desenvolvimento da economia açucareira baiana entre os séculos XVIII e XIX. Ainda que tenha defendido seu doutorado pela Universidade de Illinois em 1991 e publicado seu livro A Bahian Counterpoint apenas em 19985 5 BARICKMAN, 1998. , o historiador tinha outros trabalhos publicados à época.

A primeira parte do livro de Azevedo é dividida em três capítulos, cujo foco de investigação se alonga do século XVI ao XVIII. Em seu primeiro capítulo, o menor de toda a obra, intitulado “Fundamentos da arquitetura do açúcar”, ela busca sedimentar as bases históricas em que foram instalados os engenhos no Recôncavo Baiano. Para isso, a autora se utiliza da bibliografia correspondente e apresenta uma segmentação em três momentos diferentes: a montagem e a ascensão da lavoura canavieira entre os séculos XVI e XVII, a crise econômica do final do XVII e a reorganização das plantations canavieiras no XVIII. Ainda que não possa ser considerado um balanço bibliográfico, o capítulo expõe os principais aspectos econômicos que influenciaram as transformações para os senhores de engenho baianos. Contudo, destaca-se a ausência em seu texto do papel desempenhado pela Revolução de Saint-Domingue, em especial, para a recuperação da economia canavieira no fim do século XVIII - haja vista que a discussão historiográfica sobre o assunto é prévia à década de 19806 6 COSTA, 1966; PETRONE, 1968. .

A fim de estabelecer os parâmetros basilares na transformação da cana em açúcar no Recôncavo do período analisado, Azevedo descreve os pormenores das três principais etapas fabris na produção do açúcar (moagem, cozimento e purga) em seu segundo capítulo (“Requisitos para uma arquitetura industrial”). Mediante a utilização de pinturas e gravuras dos engenhos, além de descrições da época, a autora perpassa pelas principais transformações no sistema produtivo entre os séculos XVI e XVIII, como a introdução da fornalha tipo “Jamaica” na etapa de cozinhar, a grande diversidade nos modelos de moendas existentes e até mesmo a necessidade de utilizar o bagaço da cana como combustível devido à grande demanda por lenha. Em que pese a constante busca dos senhores de engenho baianos em modernizar a manufatura do açúcar, a autora conclui que até fins do século XVIII essas práticas ainda eram bastante similares àquelas praticadas no início do XVII e se encontravam atrasadas em comparação à produção de açúcar nas ilhas caribenhas.

A primeira parte da obra se encerra com o terceiro capítulo (“Arquitetura do Açúcar”), dedicado a dar prosseguimento à principal pergunta de Azevedo e cerne de sua pesquisa: quais as relações existentes entre as plantas arquitetônicas dos engenhos, especialmente das casas-grandes, com as oscilações econômicas no Recôncavo? Para analisar o arranjo espacial dos engenhos e responder à questão levantada, é nesse capítulo que a autora realiza o amplo cruzamento das diversas fontes elencadas, em especial com a utilização de vestígios arqueológicos até aquele momento existentes, que foram obtidos em visitas in loco. Por meio desse corpus documental, ela apresenta uma diversidade construtiva dos engenhos baianos: existiam edifícios fabris que uniam todas as etapas da produção do doce, mas também foram construídos aqueles que se separavam em diferentes espaços; a maior parte dos engenhos contava com uma capela próxima à morada familiar; foram construídas casas de vivenda senhoriais grandiosas e outras mais simples. Conforme argumenta Azevedo em sua investigação, a relação entre economia e arquitetura está naquilo que diferenciava a construção ou não de engenhos monumentais entre os séculos XVI e XVIII: o valor do açúcar nos mercados europeus. Ela aponta que nos períodos de alta no valor do produto, os investimentos daquela elite agrária estariam voltados para a ampliação da lavoura canavieira e a aquisição mão de obra cativa - com o objetivo de aumentar a produtividade. Já em períodos de crise, como ocorreu no início do século XVIII, os senhores de engenho voltavam seus capitais em direção à infraestrutura de suas propriedades, após a acumulação ocorrida no auge dos preços.

A segunda parte da obra de Azevedo é dividida em dois longos capítulos, que abordam as profundas transformações econômicas e arquitetônicas nos engenhos do Recôncavo no Oitocentos, bem como suas incipientes modernizações técnicas. O quarto capítulo, intitulado “O Recôncavo e a expansão dos canaviais”, realiza uma nova apresentação do quadro histórico econômico e político da Bahia, nesse momento sobre o decorrer do século XIX, bem como analisa as transformações na manufatura do açúcar. Quanto ao primeiro aspecto, a autora aponta que o renascimento da economia açucareira na Bahia no fim do século XVIII não foi tão pujante quanto em séculos anteriores, não permitindo a mesma concentração de capitais em grandes engenhos. Ainda que tenha ocorrido a expansão na produção total de açúcar na Bahia, tal fenômeno não se deu pela ampliação das propriedades, mas, sim, pela implantação de novos engenhos de pequeno porte quando comparados aos do século XVII e início do XVIII.

Ainda no quarto capítulo, mostra-se louvável o esforço da autora em relacionar o contexto econômico da produção de açúcar no Caribe e de outros espaços coloniais com as mudanças na montagem dos engenhos baianos oitocentistas: ela argumenta que a ausência de altos patamares de concentração de capitais (anteriormente existentes no Recôncavo), somada à centralização política no Rio de Janeiro e à ampliação da oferta de açúcar em Cuba, condicionou o arranjo espacial das novas propriedades canavieiras baianas e delimitou o seu desenvolvimento tecnológico. Em outras palavras, ainda que pudesse ser mais vantajoso instalar engenhos com moendas movidas à água, Azevedo infere que o montante de capital necessário para tal realização era maior do que o disponível naquela quadra do Oitocentos, o que teria causado a disseminação de moendas com tração animal e uma corrida para a modernização na qualidade das moendas ou mesmo das fornalhas - que foi incipiente, apesar de tudo. Sendo assim, o quarto capítulo conclui que os novos engenhos montados no século XIX no Recôncavo Baiano eram consideravelmente menores quando comparados àqueles instalados em séculos anteriores, isto é, possuíam menos escravizados, menor área produtiva e fábricas de manufatura mais simples.

À conclusão de sua investigação, Azevedo apresenta sua mais profícua análise no Capítulo 5, intitulado “Arranjo espacial dos engenhos do século XIX”, no qual discute a arquitetura do açúcar através diversas fontes documentais que remetem aos edifícios que constituem um engenho. Assim, o principal resultado da autora foi categorizar os partidos arquitetônicos dos engenhos em três tipos - subdivisão que pode auxiliar os pesquisadores nos estudos da economia açucareira -, são eles: aberto verticalizado, centrado horizontal e integrado. No primeiro tipo (mais comuns na Bahia) estão alocados aqueles engenhos em que todos os seus edifícios principais “formavam tradicionalmente um conjunto hierarquizado e integrado”7 7 AZEVEDO, 2021, p. 269. , ou seja, organizava-se o espaço a partir da casa-grande, que, estando em um ponto alto da propriedade em relação às edificações fabris e às senzalas, definia um mecanismo de controle visual sobre o trabalho e a vida dos cativos. O segundo partido, centrado horizontal, era “um modelo de engenho centrado em torno de um pátio ou terreiro”8 8 AZEVEDO, 2021, p. 270. , que, assim como o anterior, trazia a separação física entre os espaços de trabalho e de morada, mas sem a hierarquia visual do partido horizontal. Já o terceiro, integrado, articulava fisicamente alguns edifícios, sendo muitas vezes “a casa-grande que se articula com a capela”9 9 AZEVEDO, 2021, p. 279. ou até mesmo a conjugação entre senzala e casa-grande. Esse último foi o modelo mais instalado no século XIX, pois a autora afirma que era o menos custoso para engenhos com número reduzido de escravizados e com menor capacidade produtiva.

Por fim, vale reiterar que a obra de Azevedo conta com uma extensa análise documental, na qual a autora foi capaz de categorizar as diferentes formas de apropriação do espaço pelos engenhos de açúcar baianos. Em que pese a limitação historiográfica das análises feitas por ela nas décadas de 1980 e 1990, que não contaram com uma atualização bibliográfica, o livro traz debates fundamentais para a análise da ocupação do espaço agrário no passado brasileiro, bem como levanta questões interessantes sobre o uso da arquitetura como forma de distinção social.

Bibliografia

  • AZEVEDO, Esterzilda Berenstein de. Arquitetura do Açúcar São Paulo: Nobel, 1990.
  • AZEVEDO, Esterzilda Berenstein de. Açúcar Amargo: arquitetura e arqueologia industrial do século XVI ao XIX. Salvador: EDUFBA, 2021.
  • BARICKMAN, Bert J. A Bahian Counterpoint: Sugar, Tobacco, Cassava, and Slavery in the Recôncavo, 1780-1860. Redwood City: Stanford University Press, 1998.
  • COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia Corpo e alma do Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966.
  • PETRONE, Maria Thereza Schorer. A lavoura canavieira em São Paulo: Expansão e declínio (1765-1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
  • 3
    AZEVEDOAZEVEDO, Esterzilda Berenstein de. Arquitetura do Açúcar. São Paulo: Nobel, 1990., 1990.
  • 4
    AZEVEDO, 2021, p. 202.
  • 5
    BARICKMAN, 1998.
  • 6
    COSTA, 1966; PETRONE, 1968.
  • 7
    AZEVEDO, 2021, p. 269.
  • 8
    AZEVEDO, 2021, p. 270.
  • 9
    AZEVEDO, 2021, p. 279.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2024
  • Aceito
    23 Maio 2024
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP Estrada do Caminho Velho, 333 - Jardim Nova Cidade , CEP. 07252-312 - Guarulhos - SP - Brazil
E-mail: revista.almanack@gmail.com