Fruto de um seminário ocorrido na Universidade de São Paulo (USP), entre os dias 15 e 17 de maio de 2018, na efeméride dos 130 anos de abolição no Brasil, a obra História e historiografia do trabalho escravo no Brasil: novas perspectivas foi lançada em 2020 pela editora da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), da USP. O livro também faz parte de um projeto mais amplo, encabeçado pela BBM, intitulado Coleção 3x22, que desde 2017 vem produzindo e disseminando estudos sobre o bicentenário da Independência do Brasil3.
A obra encontra-se disponível para download no portal 3x22, reforçando um dos objetivos do projeto em problematizar versões tradicionais sobre a constituição da sociedade brasileira. Organizado pelos pesquisadores Henrique Antônio Ré, Laurent Azevedo de Saes e Gustavo Velloso, o livro busca contribuir com diferentes abordagens sobre o trabalho escravo nas Américas. Dentre as principais contribuições, destaca-se as relações com o campo da Global History, a agência escrava e as aproximações e distâncias entre a escravidão de negros e indígenas. Outro aspecto da obra é seu caráter interdisciplinar, dialogando com áreas da Antropologia, Direito e Demografia.
Os dois primeiros capítulos trazem a questão do trabalho escravo indígena, tema pouco discutido pela historiografia brasileira. O capítulo de abertura, “Antes da escravização: apresamento e captura de indígenas na América Meridional”, de Eduardo Neumann, problematiza a narrativa bandeirante sobre o processo de apresamento de indígenas durante o período colonial. Segundo Neumann, a escravização na América ocorreu antes mesmo da invasão europeia, porém, os cativos aprisionados não tinham por finalidade serem negociados. No processo de colonização, o autor destaca o papel de indígenas intermediários, chamados de mus, que se aliavam aos colonizadores no auxílio da captura de outros grupos indígenas. A partir das crônicas de jesuítas, o autor mostra a ampla rede de articulação dos mus, alcançando diferentes espaços da América Ibérica. O texto finaliza apontando para a agência desses negociantes indígenas em uma sociedade marcada por intensas transformações.
Em “O trabalho indígena no Brasil durante a primeira metade do século XIX: um labirinto para historiadores”, de André Machado, o autor analisa a mão de obra indígena em um período ainda menos explorado pela historiografia. Diante dos impasses com a discussão sobre o fim do comércio de escravizados africanos, Machado demonstra que entre atores de diferentes espectros políticos estava presente a ideia de emprego de indígenas. Dialogando com o trabalho seminal de Manuela da Cunha4, que afirmou que a questão indígena no século XIX foi marcada predominantemente pela disputa de terras, Machado aponta que a dificuldade dos historiadores em analisarem o trabalho indígena decorre basicamente da falta de fontes em séries. O modo diferenciado do Estado de lidar com o trabalho escravo de africanos e indígenas gerou fontes documentais com características distintas. Mesmo que boa parte do trabalho de indígenas tenha ocorrido de maneira ilegal, o autor mapeia diferentes leis provinciais que atestam a importância do trabalho indígena no período, além da identificação de manipulação das variáveis legais tanto por indígenas quanto por colonos.
O capítulo de Leonardo Marques, “O ouro brasileiro e o comércio anglo-português de escravos”, busca demonstrar, a partir da abordagem da Global History, a importância do ouro extraído de Minas Gerais na formação do capitalismo mundial. Dialogando com produções historiográficas nacionais e estrangeiras, Marques pontua a pouca atenção dada à dinâmica do continente africano5 que reteve parte desse ouro. Lançando mão de fontes diversificadas, o autor pontua a importância da América portuguesa para entender a história atlântica. Analisando os debates parlamentares ingleses sobre o comércio de africanos escravizados, Marques aponta que a descoberta de ouro em Minas Gerais tensionou a discussão entre traficantes independentes ingleses (os separate traders) e a Royal African Company. O autor encaminha o texto reforçando as conexões entre os diferentes pontos do Atlântico, reiterando a pouca atenção dada pela historiografia sobre o ouro de Portugal retido na África, e de outra parte drenada para Inglaterra, tornando Londres a principal capital financeira da Europa.
Ricardo Pirola, em “História Global “vista de baixo” e agência: conceitos, estratégias de pesquisa e desafios”, recorre a produções da História Global que analisam o deslocamento de ideias entre grupos subalternos. Pontuando sua crítica a trabalhos da Global History que privilegiam a circulação de mercadorias ao invés de indivíduos, Pirola propõe a análise de ideias radicais entre segmentos marginalizados em diferentes períodos históricos. Valendo-se do termo ponto de vista da minhoca, retirada da obra de Christopher Hill sobre a Revolução Gloriosa, o autor sustenta que atos de rebeldia não se restringem no contexto em que surgem. Ao elencar obras que buscam corroborar seu argumento, Pirola destaca o livro de João José Reis sobre a Revolta dos Malês em Salvador6. Segundo Pirola, Reis trouxe uma importante contribuição ao destacar que as rebeliões escravas não eram fundamentadas em ideais iluministas europeus, mas sim em formas e linguagens de protesto criadas no contato entre África, Europa e América. Segundo o autor, ideias radicais não nascem do vazio, é preciso olhá-las a longo prazo, buscando suas conexões em outros tempos e espaços.
O capítulo ““Diversas Nações de que se Compõe a Escravatura Vinda da Costa da África”: Identidades Africanas, História da África e a Historiografia da Escravidão no Brasil”, de Lucilene Reginaldo, analisa o movimento de historiadores em direção à história da África para melhor compreensão da escravidão de africanos no Brasil. Analisando marcos nacionais, como a Lei 10.639/03, e internacionais, como a consolidação da História da África como campo acadêmico na década de 1960, Reginaldo elenca trabalhos que passaram a buscar nas origens étnicas africanas as chaves interpretativas para compreender a ação de escravizados nas Américas. Passando pelos trabalhos pioneiros de Nina Rodrigues até as produções da década de 1980, com o desenvolvimento da História Social da escravidão, o texto propõe um olhar mais atento ao continente africano. Segundo a autora, esse movimento auxilia na compreensão das identidades africanas forjadas na dinâmica escravista como algo em constante transformação, favorecendo uma história conectada entre os dois lados do Atlântico.
Dialogando com o campo da Demografia Histórica, os artigos de Ana Silvia Volpi Scott e de José Flávio Motta demonstram a importância dessa área para avanços significativos nos estudos da escravidão no Brasil. Em “Demografia da escravidão: um balanço”, Ana Scott traça um panorama da constituição do campo da demografia histórica, sua inserção no Brasil e a contribuição para o tema da escravidão. A autora lança mão do conceito de regime demográfico da escravidão para pensar as generalidades do comportamento demográfico de africanos nas Américas, mas também para analisar regiões escravistas específicas. Nesse caso, Scott analisa fontes da freguesia de Madre de Deus, na atual Porto Alegre. A autora conclui o capítulo apontando para importância do contingente escravista na região meridional do Brasil e indicando uma tendência para a reprodução natural dos escravizados em Madre de Deus, questões subestimadas pelas produções historiográficas sobre a escravidão brasileira.
Em “Lázaro e a Âncora. Brasil: Demografia da escravidão, demografia histórica, interdisciplinaridade”, José Flávio Motta analisa como o campo da demografia histórica contribuiu para redefinir a imagem do passado escravista repleto de escravarias de grande porte e sem relações familiares entre escravizados. Sem desconsiderar a importância do sistema de plantation na colonização do Brasil, Motta destaca o peso da formação de escravarias com poucos cativos, constatadas a partir dos inventários post-mortem. Outro aspecto destacado é a formação e estabilidade de famílias escravas, também possibilitado pelos avanços metodológicos da demografia histórica. Motta ressalta que essa análise não desconsidera as violências do sistema escravista7, mas elucida a complexidade dessas sociedades e traz a agência ao indivíduo escravizado. Adiante, é feita uma análise sobre a produção recente da demografia histórica, com o diagnóstico de que a principal característica que permitiu sua expansão, a interdisciplinaridade, também foi responsável pela perda progressiva dos referenciais de origem do campo. O autor então propõe aos novos pesquisadores a retomada da conexão entre diferentes áreas do conhecimento de modo a trazer mais qualidade às pesquisas.
O último capítulo, “Educação das relações étnico-raciais na trajetória das lutas dos afro-brasileiras”, de Oswaldo de Oliveira Santos Júnior, analisa o paradoxo da educação como reprodução da ordem dominante e como modo de superação do status quo. Relacionando acontecimentos da escravidão brasileira com dados contemporâneos, Santos Júnior questiona uma noção de progresso histórico, afirmando que atualmente segue em curso uma prática social de genocídio contra a população negra, jovem e periférica. O autor destaca a educação das relações étnico-raciais como componente da educação em direitos humanos (EDH), ressaltando seu “objetivo político de transformação da realidade excludente e opressora”8. Centrando sua análise na lei 11.645/08, essa é interpretada como resultado de inúmeras lutas protagonizadas por africanos e afrodescendentes tanto no período escravista quanto no pós-abolição. Por fim, pontua que não basta somente a lei para acabar com o racismo, mas também a formação adequada de professores e ações interdisciplinares para além dos muros da universidade.
As reflexões desenvolvidas na coletânea refletem os avanços e discussões historiográficas pautadas nos últimos anos. A tônica das autoras e autores parece situar-se no movimento de olhar o sujeito escravizado integrado com o regime da escravidão, negando a “coisificação desses cativos escravos”9. Ou seja, o conceito de agência escrava é mobilizado na maior parte dos capítulos tanto para africanos e afrodescendentes quanto para indígenas.
Análises mais centradas sobre estruturas econômicas e de poder condicionando o fenômeno da escravidão também contemplam a obra, como no capítulo de Leonardo Marques sobre a importância do ouro português na formação do capitalismo mundial. Mesmo que pontualmente, o texto de André Machado estabelece diálogo com produções recentes que analisam a escravidão do século XIX em conjunto com a formação dos Estados nacionais e com a expansão mundial do capitalismo10.
Embora o título da obra refira-se ao fenômeno da escravidão no território nacional brasileiro, a maior parte dos textos compartilham a visão de que a instituição da escravidão não se acomodou nos limites das fronteiras nacionais, visto ter sido um processo de amplitude global. Mais do que trazer teses consolidadas sobre o fenômeno da escravidão, a coletânea indica uma profusão de caminhos a serem seguidos para além de abordagens tradicionais sobre o tema. Sem a definição rígida de recortes espaciais e temporais, os autores lançam mão de campos de estudos variados para pensar a escravidão na formação da sociedade brasileira.
A coletânea História e historiografia da escravidão no Brasil: novas perspectivas, colabora para o desenvolvimento das investigações históricas sobre o trabalho escravo. Sua abordagem interdisciplinar e seu caráter propositivo, ao lançar questões ainda pouco exploradas sobre o tema, reforçam sua contribuição. O livre acesso à coletânea, propondo a abertura “de novos horizontes para pensarmos o futuro do país”11 é primordial em uma realidade em que o trabalho escravo não está distante12.
Bibliografia
- CHALHOUB, Sidney. The politics of the second slavery. Slavery & Abolition, Abingdon, v. 39, n. 2, p. 435-437, 2018.
- CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
- TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mercantil. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2011.
- PALERMO, Luís C. Disputas no campo da historiografia da escravidão brasileira: perspectivas clássicas e debates atuais. Dimensões, Vitória, v. 39, p. 324-347, 2017.
- RÉ, Henrique Antônio; SAES, Laurent Azevedo Marques de; VELLOSO, Gustavo (org.). História e historiografia do trabalho escravo no Brasil: Novas perspectivas. São Paulo: Publicações BBM, 2020.
- REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
- SAKAMOTO, Leonardo. Escravidão contemporânea São Paulo: Contexto, 2020.
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3
Cf.: https://3x22.bbm.usp.br/. Acesso em 6 ago. 2022.
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4
Cunha, 1992.
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5
Sidney Chalhoub pontuou a pouca atenção dada à dinâmica do continente africano nas abordagens sobre a escravidão do século XIX. Cf.: Chalhoub, 2018.
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6
REIS, João J. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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7
Para uma visão ampla sobre críticas à corrente historiográfica que, sobretudo, a partir da década de 1980, passa a privilegiar a agência dos sujeitos escravizados, ver: PALERMO, Luís C. Disputas no campo da historiografia da escravidão brasileira: perspectivas clássicas e debates atuais. Dimensões, v. 39, jul.-dez., p. 324-347, 2017.
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8
Júnior, 2020, p. 309.
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9
Palermo, 2017, p. 338.
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10
Neste campo de estudo, destaca-se o conceito de “segunda escravidão”, cunhado pelo historiador Dale Tomich (2011).
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11
Essa citação encontra-se no portal 3x22, na seção Publicações. Cf.: https://3x22.bbm.usp.br/?page_id=930. Acesso em 6 ago. 2022. Além disso, o seminário que gerou o livro encontra-se disponível na plataforma YouTube. Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=QyPDhuwaIu0 Acesso em 05 ago. 2022.
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12
Sakamoto, 2020.
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13
Essa citação encontra-se no portal 3x22, na seção Publicações. Cf.: https://3x22.bbm.usp.br/?page_id=930. Acesso em 6 ago. 2022. Além disso, o seminário que gerou o livro encontra-se disponível na plataforma YouTube. Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=QyPDhuwaIu0 Acesso em 05 ago. 2022.
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14
Sakamoto, 2020.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
24 Nov 2023 -
Aceito
22 Dez 2023