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Perdigão Malheiro e os dilemas do binômio razão e escravidão na história do estado luso-brasileiro1 1 A atividade de pesquisa que possibilitou a produção do presente artigo contou com apoio da CAPES por meio de recursos obtidos junto ao programa CAPES/PRINT, Processo - 88887.685644/2022-00, projeto de pesquisa Memória Atlântica da Escravidão de Africanos no Mundo Luso-Brasileiro (séculos XVII e XVIII). Agradecimentos: Ao projeto de pesquisa Memória Atlântica da Escravidão de Africanos no Mundo Luso-Brasileiro (séculos XVII e XVIII), desenvolvido na modalidade Professor Visitante Sênior junto ao Centro de História, e ao Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que permitiu o debate da primeira versão do presente texto em evento acadêmico especializado, organizado pela Universidade Aberta de Portugal. Agradeço, ainda, à Profª. Drª. Larissa Biato de Azevedo que leu e comentou o texto.

Perdigão Malheiro and the dilemmas of the reason and slavery binomial in the history of the Portuguese-Brazilian State

Resumo

Autor oitocentista da obra de cunho jurídico, até então, de maior fôlego sobre a escravidão praticada no Brasil, Agostinho Marques Perdigão Malheiro sempre foi alvo de alguma controvérsia entre os historiadores. Suas teses acabaram enquadradas em esquemas interpretativos que geraram análises, por vezes, depreciativas e outras dotadas de inferências descoladas do universo mais imediato das efetivas fontes de que se serviu o autor. Sua trajetória como político e jurista foi esquadrinhada em busca de retrocessos e ambiguidades e até mesmo algumas das afirmações históricas que fez, a respeito de aspectos legais do cativeiro, foram colocadas sob suspeita. O presente texto, entretanto, desloca a análise dos supostos acertos, erros e compromissos pessoais, intelectuais e políticos do jurista para investigar a hipótese de que seu contributo mais relevante para a construção do Brasil estava assentado na convicção de que a escravidão era um problema fundamental do país, a ser solucionado dentro de parâmetros racionais.

Palavras-chave:
Perdigão Malheiro; Escravidão; Brasil; Legislação

Abstract

Nineteenth-century author of the lengthiest legal work, until then, on slavery as practiced in Brazil, Agostinho Marques Perdigão Malheiro has always been the subject of some controversy among historians. His theses ended up framed in interpretative schemes that resulted in analyses sometimes derogatory, sometimes with inferences detached from the primary set of actual sources consulted by the author. His trajectory as a politician and jurist was scrutinized for setbacks and ambiguities, and even some of the historical statements he made regarding the legal aspects of captivity were placed under suspicion. This text, nonetheless, shifts the analysis of the jurist’s supposed successes, mistakes and personal, intellectual and political commitments to investigate the hypothesis that his most relevant contribution to the construction of Brazil was based on the conviction that slavery was a fundamental problem of the country that should be solved within rational parameters.

Keywords:
Perdigão Malheiro; Slavery; Brazil; Legislation

Nos anos finais da década de 60 do Oitocentos, quando cursava a Faculdade de Direito do Recife, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910) atuou na defesa de alguns escravos4 4 Neste artigo, serão utilizadas as expressões “escravo” e “cativo” como sinônimas e correspondentes à pessoa “reduzida à escravidão”, tal como pode ser consultado nas fontes de época, desde léxicos como: Silva; Bluteau, 1789, v. 1, p. 246 e p. 536, na legislação vigente e até mesmo nas obras e discursos de Agostinho Marques Perdigão Malheiro, adiante analisados. O protagonismo de escravos no enfrentamento das adversidades do cotidiano e na afirmação, para além dos estatutos jurídicos do período, de sua condição de pessoas, tem sido largamente reconhecido pela historiografia especializada desde, pelos menos, o centenário da abolição no Brasil, comemorado em 1988. Cf. Ferreira, 2011. Assim, neste texto, não será adotada a estratégia de substituição automática dos conceitos de escravo e cativo pelo particípio passado escravizado. Em primeiro lugar, porque a consideração do escravo como uma pessoa, à época, plenamente capaz de lutar — quando cada um, individual ou coletivamente, entendeu ser necessário — por mudanças em sua condição de vida já está bastante bem documentada pela historiografia especializada; em segundo lugar, porque o conceito jurídico de escravo designava legalmente um conjunto de indivíduos (homens e mulheres, adultos e crianças) que efetivamente viveu no Brasil nos períodos colonial e imperial e, por fim, como afirma Silvia Hunold Lara em reedição recente de Campos da violência (2023, p. 16), caso a obra fosse escrita hoje, é possível que o termo “escravizado” tomasse muitas vezes o lugar de escravo; ainda assim, pondera a historiadora que “o particípio verbal transformado em adjetivo ou substantivo” tem seus problemas. acusados pela prática de crimes. Na autobiografia Minha Formação (2004), de 1900, ele mencionou os casos. Segundo Nabuco: “eram todos crimes de escravos, ou antes imputados a escravos”5 5 Nabuco, 2004, p. 47. . Havia um contrassenso na opinião do jovem, e já militante, acadêmico pernambucano: maior crime que o cometido por um homem feito escravo era, em sua argumentação no tribunal, o crime de Escravidão6 6 O ensaio, adiante nomeado, embora pouco conhecido entre os coevos, sempre chamou a atenção para o problema da criminalidade escrava em suas relações com ideais abolicionistas. Cf. Ferreira, 2009. . Tal afirmação, usada sem sucesso por Nabuco na defesa daqueles réus ante o tribunal do júri foi, um pouco mais tarde, por ele retomada num ensaio7 7 De acordo com o próprio Nabuco, em 1900, “ainda guardado” (incompleto). , que classificou como “uma espécie de Perdigão Malheiro inédito sobre a escravidão entre nós”8 8 Nabuco, 2004, p. 47. . É esse testemunho que ao presente artigo particularmente interessa.

O comentário de Nabuco indica pelo menos duas pistas: a primeira era a reputação de Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1824-1881) entre os seus contemporâneos, como o autor da mais importante obra jurídico-histórica sobre o tema da escravidão no Brasil da época; a segunda era a de que, de um profissional das leis para outro, de um abolicionista para outro, Nabuco parecia acreditar que o trabalho do colega - cujo posicionamento polêmico justificara, não sem alguma censura, ante seus críticos em 18719 9 “Por uma fatalidade, como com Zacharias, Perdigão Malheiro, que fora o doutrinador, o mestre da abolição, votará na Câmara em 1871 contra a reforma de que preparara o caminho, e procurará fazer crer à Anti-Slavery Society que nessa questão fora ele o abolicionista intransigente e o Governo o sustentador da escravidão. Não há, porém, que levar em conta, na vida dos homens que foram instrumentos de uma ideia, as aberrações, as incoerências que a não puderam frustrar. Votando contra a lei de 28 de Setembro, Perdigão Malheiro foi apenas um voto perdido; publicando a sua grande obra, ele fora um iniciador, um criador, o autor de um movimento que nada podia mais deter”. Nabuco, 1949, p. 216. , por ocasião dos debates parlamentares em torno da votação da Lei do Elemento Servil - podia ser complementado por um estudo que abordasse o cativeiro em suas contradições mais flagrantes, à luz da experiência antiescravista internacional. Em suas palavras, naquela época: “Eu traduzia documentos do Anti-Slavery Repórter para meu pai que, de 1868 a 1871, foi quem mais influiu para fazer amadurecer a ideia da emancipação [...]”10 10 Nabuco, 2004, p. 47. .

O “Perdigão Malheiro inédito” em preparação por Nabuco era A Escravidão (1999), cuja escritura ocorria em 1870, mas que, mesmo inconcluso, fora publicado pela primeira vez em meados do século XX pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Já a obra de Perdigão Malheiro, cujo nome Nabuco dispensou por ser por demais conhecida entre os seus leitores, era A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico e social, publicada entre 1867 e 1868. Um terceiro aspecto certamente ligava os amigos: a convicção de que a escravidão deveria acabar no Brasil, pois ela, dentre tantas outras manchas, era um entrave à civilização legado ao jovem país independente por seu passado, quando figurou como parte da monarquia e do Estado luso. No entanto, seu fim estava, para ambos, atrelado à noção racional de governo e de legalidade11 11 Em Nabuco, o argumento está fartamente documentado: “A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado de que tem por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda”. Nabuco, 2000, p. 18. Em Malheiro, a meu ver, a ideia de Razão de Estado encobre, por vezes, o desejo de alguns historiadores de ver, em suas interpretações, menos uma convicção e mais um subterfúgio, e, por isso, ela aqui será tratada mais detidamente, adiante. A articulação das ideias de razão, governo e legalidade, bem como uma sevara crítica da escravidão dos africanos, teve na obra O Espírito das Leis (1747), de Montesquieu (1996), a sua síntese mais célebre. O filósofo francês, apesar de não ser um contratualista, foi — segundo Rogério de Barros Santana (2022), que estudou detidamente as referências intelectuais de que Malheiro lançou mão em suas obras e discursos — uma das principais bases teóricas de que o jurista-historiador oitocentista mineiro se serviu. , contida no direito e na justiça e sintetizada na expressão “razão governamental”, tal como se apresentou no Ocidente, sobretudo a partir das transformações na “arte de governar” entre fins do século XVI e ao longo do século XVII, na Europa12 12 Embora possamos encontrar debate semelhante em obras anteriores e de perspectiva teórica diversa, como no capítulo “A estrutura política do Absolutismo como pressuposto do Iluminismo”, da obra Crítica e crise (1999), de Reinhart Koselleck, foi Michel Foucault, em uma de suas mais conhecidas aulas ministradas no Collège de France, que sintetizou o a questão. “Procurei mostrar a vocês como se realizou na Europa o que poderíamos chamar de avanço de uma razão governamental. [...] O que veio à luz - é o que procurei lhes mostrar - foi uma arte absolutamente específica de governar, uma arte que tinha a sua própria razão, sua própria racionalidade, sua própria ratio. Acontecimento na história da razão ocidental, que não é sem dúvida menos importante do que aquele que, exatamente na mesma época, isto é fins do século XVI - correr do século XVII, foi caracterizado por Kepler, Galileu, Descartes, etc.”. Foucault, 2023, p. 383. . Como veremos adiante, no caso de Perdigão Malheiro, esse aspecto torna mais complicada a acusação, feita por analistas contemporâneos dele e nossos, de contradição ou ambiguidade de algumas de suas posturas quanto ao cativeiro de africanos e descendentes no Brasil.

O primeiro “reificador” 13 13 Reificação foi um conceito discutido por Karl Marx e longamente desenvolvido na obra de György Lukács, usado por Fernando Henrique Cardoso, em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, para explicar o processo de desumanização ou coisificação imposto aos escravos por meio da violência que lhes era infligida por traficantes, senhores e feitores. Cf. Cardoso, 1977. A questão é retomada na análise sociológica de Gileno, 2013, p. 43-58, “Capítulo 2 - A teoria do escravo coisa e a aquisição de personalidade jurídica”.

Embora não tenha sido uma personagem tão visitada pela historiografia especializada quanto Nabuco, quando o tema foi o debate que se estabeleceu sobre o fim do cativeiro legal de africanos e descendentes no Brasil, Perdigão Malheiro figurou como uma referência recorrente a respeito dos trabalhos sobre a escravidão no Brasil produzidos no século XIX. Isso ocorreu bem antes do avultamento dos estudos sobre o tema no final da década de 80 e durante os anos 90 do século XX.

Eduardo Spiller Pena (2001) encontra em um prefácio à reedição de 1944 de A escravidão no Brasil um elogio do etnólogo Edson Carneiro (1912-1972), que encontrava no jurista oitocentista “um do nossos mais eminentes abolicionistas”. Esse elogio foi visto com alguma surpresa, uma vez que Pena não deixa de lembrar que Malheiro manifestava-se frontalmente contrário a todas as ações radicais (tais como as insurreições) empregadas por escravos em busca da liberdade, tema tão alentadamente estudado por Carneiro em seu estudo sobre Palmares. Tal espanto também foi apontado por Spiller na leitura que fez José Murilo de Carvalho, um dos principais nomes da historiografia do Brasil imperial, ao classificar a principal obra de Perdigão como a “de maior fôlego, apesar de ‘muito erudita’ e de ‘caráter mais jurídico do que sociológico ou político’”14 14 Pena, 2001, p. 268. .

O autor critica Carvalho por ter atribuído os posicionamentos de Malheiro ao que chamou “razão nacional”, ideia oriunda de uma tradição que remontava a José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e chegava a Joaquim Nabuco. Essa “razão nacional” se opunha à “razão colonial” defendida pelo bispo Azeredo Coutinho (1742-1821) ou pelas “razões políticas”, mais tarde defendidas por José de Alencar (1829-1877), estes dois últimos conhecidos defensores da escravidão - no caso de Alencar, também de seu fim em razão de sua contribuição deletéria para a sociedade brasileira. Carvalho ainda foi acusado de não colocar em discussão a negação por Malheiro da reforma da escravidão da década de 1870. Ao que parece, foi cobrada dos intérpretes uma crítica necessária a Malheiro, quase uma reprimenda obrigatória, que não principiou, é preciso asseverar, na obra de Pena.

O estudo aprofundado, no âmbito da historiografia especializada, das relações entre direito, legislação e escravidão desde o período em que a América estava ligada a Portugal por laços coloniais, como veremos nestas linhas, acabou por expor, também, algumas imprecisões da fundamentação jurídica adotada pelo autor em sua mais conhecida obra. É possível afirmar, ainda assim, que o jurista mineiro oitocentista permanece como uma referência importante quando os estudiosos se dedicam a compreender a intersecção entre os temas da escravidão e da construção do Estado no Brasil do Oitocentos. Investigações produzidas nos últimos anos, tais como um recente trabalho sobre as relações entre a escravidão e a construção da polícia e da segurança pública articuladas ao cotidiano do cativeiro no Brasil do Oitocentos15 15 Sobre o desenvolvimento recente desse campo de estudos no Brasil, bem como sobre a recolocação do problema da criminalidade escrava sob o olhar da polícia como instituição de Estado no Brasil do Oitocentos, Cf. Azevedo, 2024. , ainda se valem, em grande medida, da erudição histórica e legal do autor. A intenção, nestes estudos, não é usá-lo como fonte supostamente isenta, de modo acrítico, mas, a partir dele, investigar arranjos jurídicos, estatutos e diplomas legais encarregados, à época, de realizar a complexa, incontornável e não contraditória junção entre escravidão e liberalismo16 16 A respeito da ligação não contraditória entre escravidão e liberalismo, sobretudo no âmbito do debate jurídico sobre o destino dos escravos no Brasil oitocentista, Cf. Grinberg, 2002. .

Uma “indisfarçável simpatia pela causa abolicionista”, como afirmou Keila Grimberg (2006) a respeito da investigação das ações de liberdade e das práticas de reescravização, talvez tenha, no caso de Malheiro, conduzido a atenção de alguns investigadores. Esse interesse não se limitou apenas ao campo da História, mas também se estendeu ao Direito17 17 No âmbito das pesquisas mais recentes sobre o autor no campo do Direito, além do trabalho de Mariana Armond Dias Paes (2019), referida adiante, recentemente juntou-se ao campo a tese de doutoramento de Douglas da Veiga Nascimento, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2022, fortemente crítica das contradições de Malheiro. , até muito recentemente, à evisceração de suas contradições pessoais e contorcionismos jurídicos, que indiciariam no proclamado abolicionista a defesa do postergar da validade do domínio legal de senhores sobre escravos. Isso permitiria, entre outros aspectos, a inferência dos motivos que, em verdade, como desde o século XIX alertaram antigos aliados e rivais, dentre eles José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, (1819-1880), o teriam levado a se posicionar no Parlamento contra a Lei do Elemento Servil, de 1871.

Embora aqui não se incorra na temeridade de apontar as origens de tal tendência interpretativa no âmbito dos estudos especializados produzidos nas últimas décadas, não é possível deixar em segundo plano as considerações sobre Perdigão Malheiro feitas por Sidney Chalhoub em Visões da Liberdade (1990). Esta é uma das obras mais importantes do ambiente revisionista das comemorações do centenário da abolição no Brasil, por colocar em primeiro plano a agência sobre a violência na interpretação das relações entre escravos e senhores no Brasil do Oitocentos18 18 Segundo deixa claro o historiador: “A constatação da violência na escravidão é um ponto de partida importante, mas a crença de que essa constatação é tudo o que importa saber e comprovar sobre o assunto acabou gerando seus próprios mitos e imobilismos na produção historiográfica.” Chalhoub, 1990, p. 36. . Chalhoub, em passos que têm sido seguidos por outros estudos até muito recentemente19 19 Dias Paes, 2019. , começa por inserir Perdigão Malheiro, em uma posição de vanguarda, na linha de tradição da história do cativeiro que culminou nos trabalhos dos, hoje sobejamente criticados, estudiosos que, nas décadas de 60 e 70 do século XX, se integraram à chamada Escola Paulista de Sociologia, responsabilizados pelo que o historiador carioca chamou de “construção da teoria do escravo-coisa”:

É verdade que Perdigão Malheiro teve o cuidado de escrever que o escravo ‘acaba por quase acreditar’ na sua inferioridade, não afirmando, portanto, categoricamente a autoimagem de criatura naturalmente inferior que os cativos teriam de si mesmos, mas o fato é que a discussão da dimensão supostamente social da coisificação do escravo estava destinada a fazer uma longa carreira acadêmica20 20 Chalhoub, 1990, p. 36-37. .

Após deixar Malheiro “repousar” por um tempo, como prometera, Chalhoub volta a carga contra o jurista ao analisar um processo cível instaurado em 1852 por uma viúva, de nome Inácia Florinda Correa, com o objetivo de revogar as alforrias concedidas por ela a seus escravos Desidério e Joana. A alforria era condicional, e os escravos, segundo a viúva, cotidianamente, não cumpriam as condições ali estabelecidas. O argumento desenvolvido pelo advogado da Autora culminava com um pedido de revogação da alforria por ingratidão, estribado em um antigo dispositivo das ainda vigentes Ordenações Filipinas, de 1603. Desde os anos finais da década de 40 do Oitocentos, contudo, segundo Chalhoub, as sentenças emitidas no tribunal da relação da Corte, assim como no Supremo Tribunal de Justiça, indicavam que os juízes haviam se tornado mais rigorosos na exigência de provas efetivas que demonstrassem a legalidade da revogação da alforria por ingratidão. Embora vitoriosa a viúva, a decisão não foi unânime logo de início: “Na última peça dos autos, datada de fevereiro de 1854, um terceiro juiz municipal confirma a sentença de agosto de 1853, que mandava revogar as alforrias de Desidério e Joana. O nome do juiz era Agostinho Marques Perdigão Malheiro”21 21 Chalhoub, 1990, p. 138. .

O historiador, entretanto, alegou não ter os conhecimentos de um rábula da época para avaliar a decisão de Malheiro, apenas sublinhando uma incongruência ou mudança de opinião, uma vez ser sabido que o jurista se opôs “por princípio à possibilidade de revogação da alforria na obra publicada em 1866”22 22 Chalhoub, 1990, p. 138. . Ainda assim, após encontrá-lo ocasionalmente em seu texto, Chalhoub resolve, em suas palavras, “persegui-lo sistematicamente por algumas páginas e documentos diversos”23 23 Chalhoub, 1990, p. 139. . Em uma nota de rodapé de A escravidão no Brasil, Malheiro se congratulava de, ao lado de sua esposa, ter alforriado oito escravas e um escravo. O historiador carioca, diligentemente, conferiu nos arquivos do cartório do segundo ofício de notas da Corte a regularidade da afirmação. No entanto, ele não deixou de acusar o colega mineiro oitocentista de “pregar uma mentirinha”. Nenhuma das alforrias fora graciosa, todas, naquele ano de 1866, continham condições. O “pardo Sabino”, único homem libertado, deveria trabalhar cinco anos antes de viver “como se ventre livre fosse nascido”24 24 Chalhoub, 1990, p. 140. . As demais escravas adultas também deviam servir por mais cinco anos, e as menores, até completarem a idade de 21 anos. Chalhoub alega não compreender o “pecadilho” de Malheiro ao mentir ou ocultar as condicionantes da alforria passada aos escravos, pois o dispositivo era legal e coadunava com a perspectiva conservadora e sempre gradualista do jurista, que se mostrava sempre contrário a qualquer forma “emancipação imediata”25 25 Chalhoub, 1990, p. 140. :

Perdigão achava efetivamente que os negros egressos do cativeiro eram moralmente incapazes de viver numa sociedade dita livre. Daí as alforrias condicionais; a intenção era prover um período de transição no qual os libertos ascenderiam à sua nova condição devidamente orientados pelos senhores. Essa visão dos negros como potencialmente vagabundos, criminosos, devassos e outros epítetos pouco lisonjeiros era compartilhada pelos abolicionistas em geral, inclusive o célebre Joaquim Nabuco. Esses preconceitos guiam Perdigão no esforço de elaboração de um plano visando a extinção gradual da escravidão. As ideias centrais desse plano estarão presentes mais tarde na lei de 28 de setembro de 187126 26 Chalhoub, 1990, p. 141. .

Uma vez na Câmara do Deputados, Malheiro votou contra o projeto daquela lei. Depois de passados os perigos de instabilidade que corriam o país por ocasião da Guerra do Paraguai (1864-1870) e eram usados como argumento contra a reforma da condição servil, o jurista continuou se opondo à proposta de libertação imediata do ventre. Os seus principais argumentos estavam contemplados, para alguns fundamentados, em A escravidão no Brasil, sua obra maior. Todo o problema, na visão de Chalhoub, estava no “princípio absoluto”: liberdade para todos os que nascessem das escravas e para todos os cativos do Estado ou em usufruto da coroa. A legislação parecia perigosa para um jurista que acreditava serem necessários estágios de aprendizado tutelado, no processo que levava da escravidão à liberdade. Nas palavras de Chalhoub: “Perdigão foi hesitante e conservador quando o momento político exigiu dele uma tomada de posição mais firme em relação à escravidão. Não há mais aqui nem sombra daquele jurisconsulto aguerrido de poucos anos antes”27 27 Chalhoub, 1990, p. 143. .

Outras evidências na mesma direção das contradições atribuídas a Malheiro foram apontadas em Visões da liberdade, mas andemos um pouco mais na tradição historiográfica ao longo do artigo. As novidades não foram muitas, mas investigando a biografia, as atividades acadêmicas - nomeadamente a atuação de Malheiro no Instituto do Advogados do Brasil (IAB) e as referências intelectuais que suportaram os argumentos do jurista manifestados em suas obras e discursos -, os historiadores trilharam, ainda, um longo caminho na picada aberta.

Atenta a tais interpretações e debates sobre cativeiro nos âmbitos jurídico e parlamentar do Brasil do século XIX, que enfocaram Perdigão Malheiro, esta reflexão desloca a análise, já competentemente realizada, dos supostos acertos, erros e compromissos pessoais, intelectuais e políticos do jurista para investigar, nos textos que escreveu, a hipótese de que seu contributo mais relevante para a construção do Brasil estava assentado na convicção de que a escravidão era um problema fundamental do país, a ser solucionado dentro de parâmetros relacionados com a razão ocidental. Isto é, parâmetros que tinham na noção de “razão governamental” - segundo Foucault “chamada, precisamente, de razão de Estado”28 28 Foucault, 2023, p. 385. - uma consequência e não um ponto de chegada29 29 Foucault, 2023, p. 383-384. . Uma convicção que não comportava mudanças de opinião.

No âmbito da historiografia especializada produzida nas últimas décadas, a questão foi tratada por Eduardo Spiller Pena - e não só por ele30 30 Presente em diferentes estudos, em minha visão, as aparentes mudanças de posicionamento de Perdigão Malheiro foram mais detidamente analisadas em Pena (2001) e, no âmbito sociológico da formação das elites intelectuais imperiais, por Gileno (2013). Para além destes, embora seja possível perceber uma tendência a enxergar nas ações do jurisconsulto certos atrelamentos de classe — como tem sido quase regra entre os estudos especializados, desde as décadas finais do século XX, a título de exemplo Malerba (2022) —, são, a meu ver, os levantamentos de Rogério Barreto Santana competentes sobre as tradições intelectuais e historiográficas presentes tanto na fundamentação dos argumentos quanto na fortuna crítica alcançada por Agostinho Marques Perdigão Malheiro entre os historiadores, assim como a consideração de argumentos manejados pelo jurista no ambiente transnacional dos debates sobre a abolição da escravidão moderna. Cf. Santana, 2014 e 2022. - em obra que avaliou exaustivamente a relação entre os principais membros do IAB e a promulgação da Lei do Elemento Servil em 1871. Ainda assim, quando o historiador menciona o problema da razão de Estado, como mote da sempre apontada mudança de posicionamento de Malheiro, o faz entendendo-o como o membro de uma classe: se não aquela aglutinada pela detenção dos meios de produção, aquela outra, mais afinada com as convicções do historiador britânico E. P. Thompson (1987), voltadas para uma construção cultural que organizava os atores no cotidiano em função de seus embates comuns e solidariedades circunstanciais. Uma noção de classe, como deixou escrito Thompson, que faria estranhar o próprio Marx, mas ainda assim, uma classe.

Segundo Spiller,

[...] o argumento da “Razão de Estado” foi frequentemente veiculado tanto pelos políticos que defendiam a reforma imediata da escravidão como por aqueles que se opunham a ela. Para os primeiros, encarar a questão privada escravista como problema de Estado e, portanto, regulá-la era imperativo para se manter a ordem social. [...] Para os segundos, uma interferência exagerada do Estado, representada, entre outros, pelo Marquês de Olinda e por Euzébio de Queiroz e que seria levada adiante pelo afilhado político deste último, o próprio Perdigão Malheiro, igualmente derrotado em 1871. [...] Na verdade, como se verifica, a emergência da “questão servil” nesses anos propiciou uma cisão significativa da elite jurídica e política imperial. Perdigão Malheiro, ao que parece, oscilou entre as duas posições, mas, [...] mesmo quando foi favorável à interferência do Estado (em 1863), a moderação e a preocupação com a vontade última senhorial matracaram o tom de seu discurso, constituindo-se como um prenúncio de sua postura política em 187131 31 Pena, 2001, p. 272. .

Rogério Barreto Santana, em Caminhos para a Liberdade (2022), uma análise ao mesmo tempo histórica e historiográfica, se propõe a encontrar respostas para perguntas semelhantes. Seu foco, contudo, não se norteia pelo marxismo britânico de fins do século XX, mas pela tentativa de combinar diferentes referências intelectuais que partem de lugares díspares, como a germânica História dos Conceitos, de Reinhart Koselleck, e o britânico Contextualismo Linguístico, que tem em Quentin Skinner um de seus mais conhecidos arautos. O autor realiza, sem dúvida, um competente escrutínio das referências intelectuais manejadas por Perdigão Malheiro em sua mais importante obra, tanto do ponto de vista das fontes históricas que lhe serviram de base para o estudo do direito romano antigo e moderno, quanto do ambiente transnacional que assumiu o abolicionismo a partir da segunda metade do Oitocentos. Ainda assim, quando se dispõe a tratar da suposta mudança de posição de Malheiro, no momento da votação a respeito do Elemento Servil, lhe atribui, uma vez mais “Razões de Classe”. Santana se vale dos debates historiográficos sobre a formação do Estado Imperial Brasileiro que colocaram, de um lado, José Murilo de Carvalho32 32 Carvalho, 1996. , e o treinamento em Coimbra das elites imperiais, pensadas, dentre outros, com Max Weber, e, de outro lado, os saquaremas, analisados por Ilmar Rohloff de Mattos33 33 Mattos, 1994. sob inspiração, dentre outros, de António Gramsci e E. P. Thompson. Assim, ele vê a razão de Estado em Malheiro como um argumento estritamente ligado a um pertencimento de classe, uma classe senhorial que parece derivar diretamente dos saquaremas de décadas antes.

Segundo Santana,

De fato, as motivações de Malheiro visavam à preservação do Estado, da ordem e da economia nacional, todos fatores calcados na escravidão. Ocorre que esse Estado e essa ordem social não favoreciam igualmente a todos os estratos sociais, muito menos os próprios escravizados. Ou seja, a defesa da ordem e da segurança púbica, das instituições políticas e da economia agroexportadora traduziam, ao mesmo tempo, a defesa da ordem senhorial e da escravidão, da estrutura social vigente, isto é, dos interesses da classe dominante: a classe senhorial. Não desejando ser repetitivo, poderia afirmar que se ordem social significa ordem senhorial, e se direito de propriedade, propriedade escrava, com efeito, a conclusão a que chegamos consiste no pensamento de que, no âmbito de uma “Razão de Estado”, também continha elementos suficientes para acreditarmos em uma Razão de Classe34 34 Santana, 2022, p. 193-194. .

Tais inspirações, diretamente vinculadas às transformações das histórias política, cultural e intelectual do último quartel do século XX, teriam contribuído para o avanço da historiografia da escravidão. Ao mesmo tempo, contudo, elas limitaram, no caso de Malheiro, o alcance das interpretações, atrelando o jurista historiador oitocentista necessariamente a um ou outro grupo (político, econômico, intelectual, linguístico, etc.), alijando-o da possibilidade ter sido fiel a suas convicções mais íntimas e pessoais, de ter ficado em paz com a sua própria consciência ao agir respaldado por uma razão governamental ou de Estado que nada mais era do que um índice a provar que o Brasil encontrava-se em sintonia com as nações civilizadas e livres do Ocidente.

Por isso, tal dilema, o do binômio razão e escravidão, antes de ser qualquer tentativa de reabilitar ou defender o jurista e historiador oitocentista, constitui-se em um problema historiográfico a ser enfrentado. A elucidação desse problema pode ser principiada pelas seguintes perguntas norteadoras: teria Perdigão Malheiro mudado de opinião entre as décadas de 1860 e 1870 (entre a escritura da Escravidão no Brasil e a votação da Lei do Elemento Servil) para servir aos interesses de senhores que apenas queriam ampliar o tempo de posse de seus cativos ou mesmo angariar polpudas indenizações do governo imperial? A razão de Estado foi apenas uma cortina de fumaça usada para encobrir uma razão de classe?

O terceiro Perdigão Malheiro e as polêmicas sobre a escravidão sob os pontos de vista jurídico e parlamentar

O Perdigão Malheiro mais conhecido entre os historiadores foi, pelo menos, o terceiro de uma série de homônimos que remontavam ao avô paterno. Seu pai, português de Viana do Minho, bacharelou-se em Leis em Coimbra no ano de 181035 35 Arquivo da Universidade de Coimbra, Fundos 5 - SR: Petições de Matrícula e Inscrição, 8 - SR: Livros de Informações Finais, Agostinho Marques Perdigão Malheiro Filho, 1810. e estabeleceu-se, mais tarde, no Brasil, onde ocupou cargos ligados ao judiciário em diversas cidades e alcançou uma posição de integrante do Supremo Tribunal de Justiça. Tal ancestralidade, de alguma maneira, deve ter colaborado para que o filho não só se dedicasse em sua carreira profissional ao ramo dos assuntos jurídicos, como tenha se destacado, em suas obras e discursos acadêmicos e parlamentares, por compreender o direito brasileiro em suas bases romanas, mas também lusas, ou seja, sempre em perspectiva histórica, o que não era recorrente, quando analisamos, a título de comparação, alguns dos anotadores e comentadores do Código Criminal do Império do Brasil36 36 De maneira geral, essa percepção encontra-se em estudos feitos por historiadores de diferentes gerações e perspectivas teórico-metodológicas. Para uma análise dos argumentos dos principais juristas coevos que se referiram ao Código Criminal do Império e à escravidão de africanos e descendentes, cf. Malerba, 2022 (originalmente publicado em 1994). Alguns tópicos do código relativos às leis que coibiam crimes cometidos por escravos e as penas a eles imputadas foram abordados em: Ferreira, 2011, especialmente no capítulo 3, “Um julgamento, duas penas”. Ricardo Sontag, em texto um pouco mais recente, embora os distinga dos comentadores, que teriam se posicionado “a respeito da qualidade das penas previstas na lei”, emprega a expressão “pobre” para tratar de alguns anotadores do mesmo texto legal: “Algumas das ‘annotações’ ao código criminal de 1830 às vezes eram, inclusive, particularmente sucintas. Colecionavam a respeito de cada artigo algumas outras leis ou avisos pertinentes; algumas decisões jurisprudenciais; eventualmente alguma observação do autor do livro ou alguma citação (se fosse um jurista estrangeiro, tanto melhor). Certamente, livros que tinham a sua utilidade, como material de consulta para juízes, advogados, promotores. Em termos de avaliação da legislação vigente, a partir da ciência cultivada pelos juristas, porém, muito pobres”. Sontag, 2016, p. 50. .

De acordo com o biógrafo Sacramento Blake (1827-1903), o filho homônimo, nascido na cidade de Campanha, na Província de Minas Gerais, em 5 de janeiro de 1824, e falecido no Rio de Janeiro em 3 de junho de 1881, tornou-se “Bacharel em letras pelo Colégio de Pedro II, fez o curso de ciências sociais e jurídicas na academia de São Paulo, onde recebeu o grau de doutor em 1849, e entrou logo por nomeação do governo para o lugar de bibliotecário”37 37 Blake, 1883, p. 18-19. . A partir de 1850, começou a exercer advocacia em São Paulo e, depois, no Rio de Janeiro, onde associou-se ao Instituto dos Advogados do Brasil. O IAB figurou, no Brasil do Oitocentos, como um dos mais importantes grêmios dedicados ao debate sobre o direito, a legislação e a prática jurídica dos tribunais no Brasil. O jurisconsulto, constituinte e ministro da Justiça Francisco Jê Acaiba de Montezuma (1794-1870) foi seu primeiro presidente, em 1843. Agostinho Marques Perdigão Malheiro ocupou a presidência do instituto entre 1861 e 1866, quando foi eleito para a direção da agremiação o conselheiro José Thomaz Nabuco de Araújo Filho (1813-1878)38 38 Pena, 2001. .

O tema da legalidade da escravidão sempre foi caro a Malheiro, sem que isso, ao que se pode depreender dos textos que escreveu, gerasse quaisquer incômodos em relação aos seus compromissos com a questão da abolição. Anos antes de presidir o IAB, na condição de sócio do instituto, indispusera-se com confrades importantes, como o baiano Augusto Teixeira de Freitas (1816-1883), a respeito da intricada questão do Direito Romano, legada às Ordenações portuguesas e - em razão da permanência da legalidade da escravidão após a independência política - ao Império do Brasil, da condição transitória da escravidão à liberdade denominada statuliber39 39 Pena, 2001. .

Perdigão Malheiro defendeu com energia a interpretação jurídica de que o cativo, fosse homem ou mulher, uma vez libertado condicionalmente, deixava de preencher os requisitos de um escravo pleno ao viver um momento de transição para a condição de liberto. Além disso, dentre outras muitas características próprias da condição de transição, o filho nascido de uma escrava, que estivesse em tal situação legal - que nomeou statulibera -, deveria ser considerado legalmente como uma criança livre, ingênua, ainda que sua mãe não tivesse cumprido, por ocasião do parto, os requisitos estipulados - geralmente em escrituras públicas e testamentos - para o alcance de sua efetiva liberdade.

Na primeira parte de sua obra mais conhecida, publicada originalmente em 1866, intitulada Direito sobre os escravos e libertos, o jurisconsulto mineiro arrematou o debate, em favor da “boa razão”, “das ideias do século e” da “época”, em 10 itens:

[...] 1.º que o statuliber é liberto, embora condicional, e não mais rigorosamente escravo; 2.º que ele tem adquirido desde logo a liberdade, isto é, o direito; ou antes, tem desde logo sido restituído à sua natural condição de homem e personalidade; 3.º que só fica retardado o pleno gozo e exercício da liberdade até que chegue o tempo ou se verifique a condição; à semelhança dos menores, que dependem de certos fatos ou tempo para entrarem, emancipados, no gozo de seus direitos e atos da vida civil; 4.º que pode fazer aquisições para si, como os menores; 5.º que não é passível de açoites nem de penas só exclusivas dos escravos; nem ser processado como escravo; 6.º que não pode ser alienado, vendido, hipotecado, adquirido por usucapião; é mesmo crime de reduzir à escravidão pessoa livre: 7.º responde pessoal e diretamente pela satisfação do delito como pessoa livre; 8º os filhos da statulibera são livres e ingênuos, visto como livre é o ventre; a condição ou o termo não mudam nem alteram a sorte da mãe quanto à sua verdadeira e essencial condição de livre: 9.º que o serviço, a que o statuliber seja ainda obrigado, já não é propriamente servil; 10.º que não há aí patronos a respeito mesmo dos assim libertos, à exceção somente do próprio ex-senhor40 40 Malheiro, 1944, p. 149-150. .

Três anos antes do lançamento do primeiro de três volumes de A escravidão no Brasil, em 7 de setembro de 1863, aniversário da emancipação política do Império do Brasil e da instalação do Instituto dos Advogados Brasileiros, que então presidia, Malheiro proferiu o discurso Ilegitimidade da propriedade constituída sobre o escravo - Natureza de tal propriedade - Justiça e conveniência da abolição da escravidão; em que termos. Esse discurso alcançou grande repercussão no Rio de Janeiro e foi publicado no periódico do IAB e em outras folhas da Corte. O título do ensaio é oportuno ao debate aqui proposto, uma vez que poderia ser colocado em favor da sempre atribuída ambiguidade demonstrada pelo jurista e político Perdigão Malheiro, que, segundo sublinham alguns historiadores e outros intérpretes, ora defendia o fim do cativeiro, ora o respeito ao direito de propriedade do senhor sobre seus escravos41 41 A década de 60 do século XIX, período em que o texto de Malheiro foi redigido e publicado, tem sido apontada pela historiografia especializada como um momento em que as discussões entre direito de propriedade e direito à liberdade tornaram-se recorrentes entre advogados que defendiam senhores e advogados que defendiam escravos nos tribunais. A historiografia do chamado “centenário da abolição” muito avançou na percepção do direito como área de constantes embates da qual se valeram também os cativos. Mais recentemente, estudos seminais têm também apontado para questões específicas dentro de tais lutas como aquelas voltadas para ações cíveis que visavam à revisão da liberdade legada a escravos por seus senhores em processos que eram distintos das então já conhecidas ações de liberdade, pois envolviam o problema da reescravização — Cf. Grinberg, 2006 — e a própria “instabilidade da propriedade escrava”, evidenciada em casos concretos de questionamentos da propriedade sobre os cativos que entraram no país após a Lei de 1831, Cf. Mamigonian, 2011. . Mas vejamos o documento com mais detalhes.

O discurso principia pela afirmação direta de que a escravidão, ou melhor, o “cancro que corrói a sociedade”, nas palavras de Perdigão Malheiro, deveria ser abolida. Porém, o orador se defronta primeiramente, a título de norte da sua argumentação, contra aqueles que lhe oporiam argumentos na direção de desrespeito ao direito de propriedade sobre os escravos e mesmo o de conflagrar e levar o país à bancarrota. Ele inicia sua exposição por meio de pontos, que aqui tomamos a liberdade de transformar em questionamentos: Era, então, legítima a propriedade constituída sobre o escravo? A argumentação começa por uma negativa bastante enfática, mas nela há uma sutileza:

Parece que não se poderia no nosso século pôr mais em dúvida que o homem não tem o direito de reduzir a seu domínio um outro homem; que semelhante facto não passa de abuso do mais forte; que ele é reprovado pelo Direito natural, e das Gentes moderno, pela Religião e Filosofia, pelas leis das nações mais civilizadas, pela doutrina da Igreja Cristã42 42 Malheiro, 1863, p. 136. .

No trecho, não pode passar sem uma consideração mais detida a expressão “abuso do mais forte”, ou seja, essa escravidão era ilegítima, pois ilegítimo era o Estado de Natureza, que invariavelmente levava, pelo poder da força, ao Estado de Guerra43 43 “Evitar esse estado de guerra (no qual não há apelo senão aos céus, e para o qual pode conduzir a menor das diferenças, senão houver juiz para decidir entre os litigantes) é a grande razão pela qual os homens se unem em sociedade e abandonam o Estado de Natureza”. Locke, 2005, p. 400. , do qual as sociedades civis modernas que se estruturaram ao redor de um contrato se afastaram, como foi o caso do Império do Brasil com sua Carta Magna, ainda que outorgada, de 182444 44 “§ 2º Do Império ou nação brasileira: 3. Assim fundou-se o Império do Brasil, ou por outra frase, a nação brasileira, que é associação de todos os brasileiros; que é a sociedade civil de um povo americano livre e independente. Em qualquer parte que os brasileiros se achem, enquanto conservarem esse caráter ou qualidade, fazem parte da nação, têm direito à sua proteção, e o dever sagrado de prestar-lhe sua fidelidade, de interessar-se por seus destinos e por sua glória”. São Vicente, 2002, p. 78-79. . O jurista segue denunciando o paradoxo praticado por aqueles que não viam “no escravo senão um instrumento de trabalho, uma máquina industrial”45 45 Malheiro, 1863, p. 136. e que buscavam justificar a propriedade do cativo no direito natural e divino, nos filósofos antigos e até na religião cristã.

Porém, ao contrário de tais justificativas, o jurista oferece um argumento, a seu ver, cabal de que a escravidão ia de encontro à natureza, uma vez que destituía o homem de sua personalidade. E citando o livro de Gêneses - o mesmo lembrado por muitos em favor do cativeiro, especialmente as passagens sobre Caim (Gên. 4:11-16) e Cam (Gên. 9:20-27) -, Perdigão assevera: “a escravidão é contra a natureza, por destruir a personalidade do homem, isto é, o elemento mais nobre do seu ser, aquele pelo qual nos revela a Religião que Deus o fez à sua imagem46 46 “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Gênesis 1:27”. Malheiro, 1863, p. 137. Grifos no original. . Ao continuar o seu libelo, Malheiro argumenta ser a escravidão contrária ao elemento distintivo do homem dentre todos os seres um dia criados. A escravidão, segundo ele, era contra a razão:

A Filosofia, estudando o homem, nos ensina que é ele um ente racional, distinto essencialmente de toda a demais natureza animada ou inanimada, dotado de inteligência, sentimento, e liberdade; atributos constitutivos do ser espiritual que o faz o que ele é. Tirar-lhe a liberdade, degradá-lo à condição dos outros seres da terra, sujeitá-lo para todo sempre e contra sua vontade ao domínio de seu semelhante, é atentar contra a natureza, contra o Criador47 47 Malheiro, 1863, p. 137. .

Em síntese, o argumento central do texto passa por um silogismo: ou o Brasil não partilhava com as demais sociedades tidas como civilizadas de seu tempo a condição de um Estado fundado na razão e, portanto, não constituía uma sociedade civil que rompeu com o poder fundado na força para aderir às convenções, e, por isso, admite a escravidão; ou, desejando afirmar-se como uma sociedade tida como as mais livres de sua época, deveria abolir o cativeiro.

Sempre amparado pelos exemplos da história, Malheiro afirma que só “por uma ficção do legislador civil” foi o homem, transformado em propriedade e sujeito ao poder de outro homem, “equiparado às coisas”. Ora, se o legislador civil foi o autor de tal determinação, é consequência lógica, e portanto, racional, que o legislador desfizesse tal ficção. Ainda assim, seu discurso, norteado pela noção de sociedade civil e, portanto, racional, não podia prescindir de compreender que, onde havia ilegitimidade do ponto de vista filosófico, poderia haver legalidade instituída por motivos especiais.

Mas, descendo de tais abstrações transcendentais ao positivismo do legislador humano, parece fora de dúvida que a propriedade constituída por ficção sobre o homem a bem de outro homem, não tendo fundamento na lei natural, é toda especial, tolerada pela lei civil por motivos especiais, e por ela regulada; e que a mesma lei pode modificá-la, e até extingui-la, obedecendo nisto à lei mais poderosa do Autor da Natureza48 48 Malheiro, 1863, p. 145. .

O jurista passa em revista a história para argumentar que a tendência dos povos que se entendiam como civilizados, inclusive os portugueses, foi a de paulatinamente abolir a escravidão. No caso luso, primeiro a dos indígenas, depois, de maneira geral em seu território continental, não permitindo que na outrora metrópole ninguém mais nascesse escravo, e restando ao Brasil - que pelo tráfico, final e completamente expurgado de seus quadros legais, desde 1850, fora banida a entrada de novos escravos africanos - abolir também a origem da escravidão.

Essa extinção pelo nascimento tinha um princípio, de acordo com o jurisconsulto e historiador, desprovido de fundamento na razão e na justiça, assentado, exclusivamente, no arbítrio dos senhores e dos legisladores: “Decretasse o nosso legislador uma lei semelhante, declarasse que ninguém mais nasceria escravo, e o Brasil, associando-se ao movimento grande intelectual e moral do século XIX, teria avançado séculos na vereda da civilização”49 49 Malheiro, 1863, p. 151. . Malheiro conclui, em seu discurso proferido no IAB por ocasião do aniversário da independência política do Brasil de 1863, que feliz seria a coincidência - como se demonstração da razão histórica fosse - que Pedro II (1648-1706) de Portugal tenha abolido a escravidão dos índios do Brasil, assim como Pedro II (1825-1891) do Brasil também o fizesse com o cativeiro dos africanos. Decisão feliz, segundo Malheiro, sob os olhos das gerações futuras e merecedora da bondade de Deus.

Tal discurso, tão bem concatenado em favor da liberdade do ventre da mãe escrava, entretanto, seria, segundo acusações geradas no calor dos debates políticos coetâneos e mesmo na visão de alguns estudiosos de épocas futuras, praticamente revogado menos de dez anos mais tarde. Embora neste artigo não seja possível recompor os extensos debates, como já o fez mais de um dos pesquisadores aqui arrolados50 50 Cf. Alonso, 2015. , é oportuno passar uma vista d’olhos sobre o evento.

O terceiro Perdigão Malheiro atuou na Assembleia Geral do Império do Brasil, pela Província de Minas Gerais, entre 1869 e 1872, como membro do Partido Conservador. A historiografia especializada sempre lembra que, apesar de se identificar como um abolicionista, Perdigão Malheiro não titubeou em votar contra a aprovação da chamada Lei do Elemento Servil, que, para muitos, estava exatamente no caminho da libertação gradual do braço escravo no país.

Um discurso, proferido por Malheiro, então deputado pelo 2º distrito da província de Minas Gerais, em 12 de julho de 1871, por ocasião da realização de debates parlamentares a respeito da Reforma do Estado Servil - dois meses, portanto, antes da promulgação da Lei do Elemento Servil -, contém elementos suficientes para compreendermos que o autor de Ilegitimidade da propriedade constituída sobre o escravo (1863), no lugar do consenso estabelecido entre os historiadores - que se dividem apenas em explicar os motivos desta suposta guinada de abolicionista para escravagista -, em verdade não mudou de opinião sobre os destinos da escravidão atrelados aos caminhos da nação que se queria racional e civilizada. Acompanhemos alguns de seus argumentos, que, não por acaso, fazem referência explícita ao discurso proferido quase uma década antes no IAB, que o próprio Malheiro qualificou como um prólogo de A escravidão no Brasil.

Malheiro principia por colocar-se contrário à proposta redigida pelo governo imperial para a reforma da escravidão, ou do Estado ou Elemento Servil, como à época foi referido. Em seus argumentos iniciais, o jurista e parlamentar asseverava não ser o momento oportuno, por razões políticas, econômicas e de segurança, para as reformas tal qual foram propostas. Aqui não cabe reproduzir a leitura exposta pelo orador sobre as contingências da época, mas sim compreender como ele se manifestou diante da acusação já lhe imputada por seus contemporâneos sobre uma suposta mudança de postura desde os tempos em que presidiu o IAB.

Senhores, eu não falo assim porque seja escravagista, não; nesta questão faço grande violência ao meu coração; mas devo fazê-lo, porque quero que prevaleça a razão. (Apoiados.) Não se trata de uma discussão filosófica, não se trata de divagar no campo do abstrato e da metafísica, não se trata de discorrer sobre princípios religiosos, sobre princípios filosóficos, do direito natural, da filosofia do direito, etc.; não se trata de coisa alguma destas; trata-se do seguinte: admitida a justiça, conveniência e necessidade da extinção da escravidão, quais os meios para se conseguir este fim, do modo o menos inconveniente que ser possa? Eia a única questão; mas questão dificílima. (Apoiados.)51 51 Malheiro, 1871, p. 12-13. .

Mais adiante, em seu discurso, Malheiro se põe enfaticamente a defender-se da acusação de incoerência. Tão logo tomou conhecimento do projeto enviado ao parlamento pelo governo, promoveu, segundo seu próprio relato, a redação de textos destinados a instruir a respeito das graves consequências da proposta. Além disso, com o objetivo de convencer a Câmara a não admitir esse projeto, redigiu outras tantas peças que foram praticamente ignoradas por seus colegas. Mas quais eram os argumentos que estavam na base da recusa de uma lei que, dentre outras regras em favor do acesso dos cativos à gradual libertação, previa exatamente a abolição da escravidão oriunda do ventre da mãe escrava? Malheiro esclarece:

Aquela proposta contém todos os sistemas conhecidos de emancipação, medidas preparatórias (matrícula, etc.); medidas indiretas, (modificações no direito), medidas quase diretas, (alforrias mediante certas garantias), medidas diretas (nascimento livre, alforrias forçadas, resgate forçado), e emancipação em massa e imediata (dos escravos da nação e da coroa)! Aí estão todos os sistemas, e isto acompanhado de adminículos tais, de intervenção das autoridades no domicílio, nas casas e fazendas a pretexto de protegerem e garantirem os libertos e crias, que foi grande o terror espalhado logo por esta província, e que se vai propagando pelo Império. (Apoiados e não apoiados.) [...] Disse-se que o terror era ou é pânico. Se os ilustres deputados lessem com atenção os trabalhos do conselho de estado, onde, como disse a princípio, se aconselham muito prudentemente medidas preventivas de polícia e força pública para as localidades e municípios, a bem da segurança, haviam de ver que o terror não é pânico. E o fato já o tem confirmado. Aqueles conselheiros previam o perigo, aconselhando medidas policiais para acautelar os males que podiam sobrevir com a reforma, do mesmo modo que eu havia feito no livro que publiquei52 52 Malheiro, 1871, p. 26-27. .

Desde os discursos proferidos sobre o cativeiro no IAB, é preciso recordar, o jurista argumentava que uma das razões mais importantes para a abolição da escravidão era manter o país dentro do conjunto das nações que manejavam a moderna noção de civilização. Noção essa que não podia transigir com a ideia de direito fundado na força. A escravidão, dizia ele, não podia fundar-se na força de um homem sobre o outro; logo, era o produto do legislador civil, ou seja, de uma convenção civil. Teria Malheiro mudado de ideia quanto a esses aspectos? Mais uma vez, ouçamo-lo:

Disse-se que o escravo não é propriedade, e o nobre presidente do conselho [de estado] pareceu apoiar este enunciado, lendo aqui um trecho de um discurso que eu proferi no Instituto dos Advogados, como seu presidente, em 1863. Ora, aquele discurso foi exatamente o prólogo do livro que eu publiquei depois, e aí em síntese muito concreta, tratei de certas questões. Eu não disse que o escravo não era propriedade; ao contrário, seria uma heresia jurídica. (Apoiados.) Eu discuti duas questões, e mais desenvolvidamente neste livro. A primeira foi sobre a ilegitimidade da escravidão, ilegitimidade em face do direito filosófico, da ciência em relação a princípios abstratos e absolutos. Mas na segunda parte o nobre presidente do conselho [de estado] devia ver que eu tratei de justificar a natureza da propriedade servil [...] na segunda parte desse discurso eu mostrei que o escravo era propriedade, mas propriedade por direito civil, e portanto a escravidão, embora ilegítima, é legal se a lei a mantém53 53 Malheiro, 1871, p. 27-28. Grifo no original. .

Se é possível verificar que o terceiro Perdigão Malheiro, como estudioso do direito, sócio e depois presidente de uma das agremiações mais importantes sobre o estudo da matéria no país de então, manifestou-se, na década de 60 do Oitocentos, de maneira favorável à libertação do ventre - como um sinal inequívoco de que tal medida, do ponto de vista histórico e filosófico, ajudaria o país a caminhar na direção da civilização -, ao que podemos compreender, por meio dos argumentos que expressou alguns meses antes de votar contrariamente à aprovação do projeto de reforma que continha a conhecida Lei do Ventre Livre, de setembro de 1871, sua opinião não mudou.

Não mudou se entendermos que o que estava em jogo desde a década de 1860 era a civilização do país em termos racionais, civilização que indubitavelmente iria se beneficiar com o fim da escravidão. Não tratava Perdigão Malheiro, contudo, desde aquela época, da sorte de cada um dos escravos: jovens ou velhos, homens ou mulheres que queriam ver a sua situação modificada ainda em vida. Seria então uma espécie de fidelidade à Razão de Estado54 54 Pena, 2001, Capítulo 3. Norma jurídica e “Razão de Estado”: a coerência de Perdigão Malheiro”, p. 253-338. ou à Razão de Classe55 55 Santana, 2022, “III. Da reforma servil à força da tradição: o exemplo romano e tentativa de prolongamento do cativeiro”, p. 154-208. Especialmente, “3.3 À Província de Minas Gerais e aos seus Concidadãos: ‘Razão de Estado’ ou ‘Razão de Classe’” ? Não creio, para esse momento da vida do jurista, nessas espécies de fidelidade. Não há motivos razoáveis que nos levem a dele duvidar. Todavia, antes de me posicionar, acredito ser útil retornar ao campo do direito que me fez ler Perdigão Malheiro pela primeira vez. Como se posicionou o jurista sobre outras áreas do direito em suas relações com o cativeiro em sua obra mais importante? Prevaleceu em sua análise sobre outros campos jurídicos, o do direito penal, a título de exemplo, a ideia de razão como norte para pensar o problema da escravidão no Brasil?

Razão e escravidão na interpretação histórica do direto

Jurisconsulto e historiador - lembrança importante -, Perdigão Malheiro escreveu mais de uma dezena de obras completas e textos de menor monta sobre história, direito e escravidão, pelo menos duas delas então inéditas por ocasião de sua morte. Mas, certamente, a mais importante é a que aqui nos interessa, A escravidão no Brasil, publicada na década de 60 do Oitocentos. Essa obra, como já mencionado, versa sobre os fundamentos históricos e jurídicos da legislação a respeito dos escravos, primeiro dos indígenas e depois de africanos, no Brasil desde o período colonial. Dentre os diversos temas discutidos na parte propriamente jurídica da obra, que ocupa, fundamentalmente, o tomo I, suas afirmações a respeito de um dos momentos em que a condição simultânea de coisa e pessoa do escravo torna-se mais evidente - a relação entre escravidão e direito penal - são muito úteis para analisarmos o binômio que aqui interessa, qual seja, a relação entre escravidão e razão.

A ideia cara aos historiadores56 56 Cf. Wehling; Wehling, 2004. Para uma problematização da questão do escravo como pessoa, sujeito de direitos, dotado de personalidade jurídica, no Brasil, sobretudo, a partir da década de 60 do século XIX, cf. Dias Paes, 2019. A esse respeito, especificamente na leitura de Perdigão Malheiro, a autora faz duas considerações: “A primeira é que, como vimos ao longo deste trabalho, ao menos parte do que o autor afirmou não serem atos jurídicos realizados por escravos, na verdade, aconteciam na vida cotidiana da escravidão brasileira. Eram limitados, sujeitos aos mais variados tipos de restrições, não eram sempre exigíveis no judiciário e eram, sobretudo, precários. Porém ocorriam. A diferença entra a prática desses atos por um escravo e por um liberto estava na sua maior segurança jurídica, apesar de a segurança jurídica dos libertos também ser bastante precária. A segunda consideração é que [...] para Malheiro, o escravo tinha personalidade jurídica. Porém, ele era equiparado ao ‘menor’. Era pessoa, mas não podia exercer atos da vida civil ‘livremente’. Isso o tornava uma espécie particular de pessoa jurídica, diferente da ‘pessoa propriamente dita’”. Dias Paes, 2019, p. 280-281. , de que há uma ambiguidade na relação entre direito e escravidão no Brasil, em razão de ser o escravo entendido, ao mesmo tempo, como coisa e pessoa, do ponto de vista das leis penais, parece não surtir o mesmo efeito no jurista do Oitocentos. “Em relação à lei penal, o escravo, sujeito do delito ou agente dele, não é coisa, é pessoa na acepção lata do termo, é um ente humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes”57 57 Malheiro, 1944, p. 39-40. . Ou seja, não há espaço para a dúvida na opinião do jurista, embora o escravo fosse uma coisa, uma propriedade legalmente constituída por outro homem, quando era vítima de um crime não se tratava de dano, mas cabia indenização ao senhor. Ainda, o ato que cometia pessoalmente na esfera penal o fazia responder como pessoa, uma vez que, como o próprio Malheiro argumentou no seu Ilegitimidade da propriedade constituída sobre o escravo (1863), o escravo é concebido como escravo pelo legislador, em outras palavras, a sua condição de cativo é legal, mas a característica fundamental que o define como homem, ou seja, a razão, não cessa. Logo, quando o cativo agia contra a razão, da mesma forma que ocorria com os demais homens e mulheres libertos ou livres, era apenado. Na argumentação de Malheiro, o problema não estava na falta de razão ou na ambiguidade da legislação, mas na dificuldade de nela se acomodar o escravo que historicamente era coisa, propriedade - sem nunca deixar de ter personalidade, ser pessoa.

O Código Criminal do Império do Brasil, que, em 16 de dezembro de 1830, substituiu o Livro V das Ordenações Filipinas, de 1603, e uma miríade de leis extravagantes, avisos e outras decisões sobre os cativos, limitou-se a regular sobre a complexa relação entre o direito do Estado de punir e o dever do senhor de castigar em duas ou três situações. A primeira delas, em favor da tradição patriarcal herdada de épocas longínquas, quando perpetuou a condição de crime justificável e, portanto, sem punição, quando o mal decorresse do castigo moderado - expressão mais de uma vez apontada pelos estudiosos como imprecisa - que o pai aplicava a seus filhos, o senhor aos seus escravos, assim como o mestre aos seus discípulos, na forma do artigo 14º. No entanto, do ponto de vista da punição pelo Estado dos crimes atribuídos a escravos, foi mais importante o dispositivo regulado pelo artigo 60º do código, que dizia:

Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o Juiz determinar. O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cinquenta58 58 Pessoa, 1877, p. 109-114. .

Via de regra, quaisquer artigos do código eram passíveis de serem usados para tipificar atos cometido por cativos que, na visão da autoridade competente, configurassem crime, o que mudava de acordo com o artigo 60º era a forma de cumprimento da pena. Nesse quesito, tem sido um ponto convergente entre os estudiosos que, salvo nas sentenças condenatórias que resultavam na perda efetiva do cativo - morte e galés perpétuas -, prevaleceu na pena, agora do legislador, o interesse dos senhores em que o cativo cumprisse a pena de açoites, exclusiva dos cativos até a segunda metade da década de 80 do século XIX, e retornasse ao domínio dos senhores.

Havia, entretanto, no código de 1830, um artigo específico para os escravos; era o de número 113º, que tipificava o crime de insurreição: “Julgar-se-á cometido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos, para haverem a liberdade por meio da força”59 59 Pessoa, 1877, p. 184-185. . O crime era de tal modo grave que, para os que fossem considerados líderes de tais eventos, chamados cabeças, estava prevista no grau máximo a pena de morte, galés perpétuas no médio e açoites nas demais condenações. Ainda que se tratasse de uma punição bastante severa, Perdigão Malheiro não atribuiu qualquer característica bárbara à legislação - termo à época corrente em textos jurídicos que pretendiam se diferenciar das legislações que antecederam o século das luzes. Na verdade, ele viu nela uma consequência de se manter a escravidão nos quadros de uma sociedade que se queria civilizada e era forçada a criar penas excepcionais.

Era como se o princípio da razão que existia no escravo, atando-o à inextricável condição de homem, o impulsionasse incontrolavelmente da escravidão à liberdade. O jurista insiste, entretanto, que uma punição como aquela prevista para o crime de insurreição era, no quadro da legislação criminal brasileira, uma excepcionalidade e que, do ponto de vista do processo penal, nenhuma autoridade, juiz ou tribunal no Brasil conhecia crimes cometidos por escravos. Em suas palavras, os cativos deviam ser “processados, pronunciados e julgados, conforme os delitos e lugares, como os outros delinquentes livres ou libertos”60 60 Malheiro, 1944, p. 33-34. . Ainda assim, reconhecia Perdigão Malheiro uma série de limitações que a condição jurídica de escravo impunha. O cativo não podia dar queixa por si mesmo, dependia para tanto do senhor, como curador nato, ou de um terceiro, liberto ou livre, que o faria na condição de representar um miserável diante da polícia ou da justiça. Não podia denunciar seu senhor. Caso o senhor não o representasse nas ocasiões em que era acusado pela prática de um crime, devia o juiz lhe nomear um defensor ou um curador.

Outra excepcionalidade, que deitava raízes na legislação colonial61 61 Ferreira, 2011. e que Malheiro chamou de modificações sofridas pelo processo criminal em relação ao réu cativo, foi a lei especificamente criada para a punição dos escravos que matassem ou ferissem os seus senhores, feitores e os familiares deles. Assim como no crime de insurreição, nos crimes tipificados na Lei de 10 de junho de 1835, contra a qual Malheiro se insurgiu, não cabiam quaisquer recursos da sentença62 62 Embora nunca tenha sida completamente abolida, aos poucos, a lei foi reformada, alguns recursos foram permitidos e a jurisprudência dos tribunais tratou de ampliar sua interpretação, cf. Ferreira, 2011. . Contra essa legislação “excepcional”, Perdigão Malheiro cerrou fileiras com outros juristas que se mostravam contrários à pena de morte mantida para todos os tipos de réus, livres ou cativos, no Código Criminal do Império do Brasil, não deixando de chamar à atenção para o caso excepcional do réu escravo.

A abolição da pena de morte, não somente em matéria política, mas absolutamente, é uma ideia que já tem passado do domínio da ciência para a legislação de diversos estados contemporâneos, e que tende a propagar-se. Entre nós mesmo essa questão se agita. E este movimento não pode deixar de ser favorável também ao escravo63 63 Malheiro, 1944, p 36-37. .

Ao sempre ponderar pelas atitudes gradualistas, característica que o acompanhou até sua trajetória como parlamentar, iniciada, como vimos, na década seguinte, Malheiro asseverou que enquanto não fosse possível revogar a Lei de 1835, deveriam algumas de suas determinações, pelo menos, serem reformadas, exigindo-se unanimidade de votos para a imposição da pena de morte em todas as instâncias, assim como a revogação da interdição de recursos das sentenças condenatórias em desfavor do réu escravo. Da mesma forma, o jurista manifestou-se, em sua mais importante obra, de maneira absolutamente contrária à manutenção da pena de açoites, argumentando que a legislação continha casos específicos de outras penas que não as de morte possíveis aos réus cativos. Assim, em sua opinião, era urgente a abolição da pena de açoites. Tal clamor, contudo, só se realizou menos de dois anos antes do fim da própria escravidão.

Considerações finais

Perdigão Malheiro reconhecia que a legislação criava zonas de muitos debates, que, em sua opinião, poderiam ser perfeitamente solucionados racionalmente a partir das fontes do direito brasileiro. Essas fontes deitavam raízes, como aqui abordado, nas Ordenações Portuguesas, na Legislação Estravagante e até mesmo no Direito Romano, principalmente quando a condição de propriedade do escravo era questionada no âmbito do direito sucessório ou quando a personalidade do cativo manifestava-se na possibilidade efetiva de possuir, como seu, mais que um pequeno pecúlio.

Para o jurista, não havia dupla interpretação legal, sustentada na tradição do Direito Romano: a legislação vigente no Brasil imperial entendia que independentemente da condição jurídica do pai (livre ou escravo), se a mãe fosse escrava, seu filho nasceria escravo. Embora o Direito Romano não tenha sempre seguido a mesma regra, entendia Perdigão Malheiro, como vimos, que, se a qualquer momento, entre a concepção e o parto, a mãe se tornasse liberta, ou lhe fosse concedida a condição de statulibera, seu filho nasceria livre e ingênuo. O que significava que o ingênuo não ficaria sujeito às limitações constitucionais de direitos impostas aos libertos. A causa, contudo, foi sempre motivo de constantes embates jurídicos, principalmente quando a mãe era libertada condicionalmente. No que diz respeito ao pecúlio, só a lei do Elemento Servil, de 1871, a regulamentou, mas não foram raros os casos de escravos possuidores de outros escravos no Brasil Colonial, como documentaram diferentes historiadores do Brasil colonial e contemporâneos de Perdigão Malheiro, que mencionou conhecer um caso ocorrido ainda no século XIX64 64 Noronha, 2019. .

Entretanto, os debates não paravam nas soluções racionais apresentadas na interpretação da legislação ou em seus fundamentos históricos e filosóficos. A escravidão era um problema a ser resolvido num quadro mais amplo, que implicava o destino de ser o Brasil uma sociedade civilizada. Nesse sentido, Perdigão Malheiro, que associava civilização à racionalidade legal, pareceu sempre pronto a recuar de suas posições mais convictas sobre o destino imediato dos escravos se, a seu ver, o país pudesse correr risco.

Em um dos trabalhos de maior fôlego até hoje produzidos sobre a legislação a respeito dos escravos no Brasil, a historiadora Silvia Hunold Lara, além de mencionar os “diversos erros (tipográficos ou não) nas datas e na indicação correta da tipologia legal de muitos textos”, assevera que “o arranjo dos temas e o próprio elenco das leis utilizadas pelo autor fazem parte de um hábil discurso emancipacionista-conservador que filtrou sua leitura da legislação anterior”65 65 Lara, 2000. . O epíteto atribuído pela historiadora ao jurista e ao seu discurso parece não ser injusto, é verdade; nem tão pouco depreciativo, como alguns analistas insistiram em reiterar. Podemos dizer que o autor com ele se identificaria.

Mas igualmente é possível afirmar que A escravidão no Brasil, em conjunto com outros discursos produzidos pelo jurista antes e depois de publicada sua mais importante obra, ajudou a construir uma argumentação que caminhou sempre na mesma direção - mesmo quando parecia se contradizer ou recuar. Essa argumentação, a meu ver, foi capaz de demostrar ao Brasil e ao mundo que o então incipiente Estado brasileiro tinha condições de resolver os diferentes problemas advindos da manutenção - após a independência política - do cativeiro de africanos e descendentes dentro de princípios reconhecidos internacionalmente como legais e, portanto, racionais. O jurista pretendia, com o conjunto de sua obra, oferecer ao mundo provas de que o Brasil, à época um dos últimos países escravistas do Ocidente, estava apto a pleitear, como outras ex-colônias europeias, o status do que à sua época se entendia como uma sociedade moderna e civilizada, guiada sob os princípios da razão ocidental, e que tinha na escravidão um problema a ser resolvido dentro dos parâmetros reguladores desse tipo de Estado.

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  • THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • 1
    A atividade de pesquisa que possibilitou a produção do presente artigo contou com apoio da CAPES por meio de recursos obtidos junto ao programa CAPES/PRINT, Processo - 88887.685644/2022-00, projeto de pesquisa Memória Atlântica da Escravidão de Africanos no Mundo Luso-Brasileiro (séculos XVII e XVIII). Agradecimentos: Ao projeto de pesquisa Memória Atlântica da Escravidão de Africanos no Mundo Luso-Brasileiro (séculos XVII e XVIII), desenvolvido na modalidade Professor Visitante Sênior junto ao Centro de História, e ao Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que permitiu o debate da primeira versão do presente texto em evento acadêmico especializado, organizado pela Universidade Aberta de Portugal. Agradeço, ainda, à Profª. Drª. Larissa Biato de Azevedo que leu e comentou o texto.
  • 4
    Neste artigo, serão utilizadas as expressões “escravo” e “cativo” como sinônimas e correspondentes à pessoa “reduzida à escravidão”, tal como pode ser consultado nas fontes de época, desde léxicos como: Silva; Bluteau, 1789, v. 1, p. 246 e p. 536, na legislação vigente e até mesmo nas obras e discursos de Agostinho Marques Perdigão Malheiro, adiante analisados. O protagonismo de escravos no enfrentamento das adversidades do cotidiano e na afirmação, para além dos estatutos jurídicos do período, de sua condição de pessoas, tem sido largamente reconhecido pela historiografia especializada desde, pelos menos, o centenário da abolição no Brasil, comemorado em 1988. Cf. Ferreira, 2011. Assim, neste texto, não será adotada a estratégia de substituição automática dos conceitos de escravo e cativo pelo particípio passado escravizado. Em primeiro lugar, porque a consideração do escravo como uma pessoa, à época, plenamente capaz de lutar — quando cada um, individual ou coletivamente, entendeu ser necessário — por mudanças em sua condição de vida já está bastante bem documentada pela historiografia especializada; em segundo lugar, porque o conceito jurídico de escravo designava legalmente um conjunto de indivíduos (homens e mulheres, adultos e crianças) que efetivamente viveu no Brasil nos períodos colonial e imperial e, por fim, como afirma Silvia Hunold Lara em reedição recente de Campos da violência (2023, p. 16), caso a obra fosse escrita hoje, é possível que o termo “escravizado” tomasse muitas vezes o lugar de escravo; ainda assim, pondera a historiadora que “o particípio verbal transformado em adjetivo ou substantivo” tem seus problemas.
  • 5
    Nabuco, 2004, p. 47.
  • 6
    O ensaio, adiante nomeado, embora pouco conhecido entre os coevos, sempre chamou a atenção para o problema da criminalidade escrava em suas relações com ideais abolicionistas. Cf. Ferreira, 2009.
  • 7
    De acordo com o próprio Nabuco, em 1900, “ainda guardado” (incompleto).
  • 8
    Nabuco, 2004, p. 47.
  • 9
    “Por uma fatalidade, como com Zacharias, Perdigão Malheiro, que fora o doutrinador, o mestre da abolição, votará na Câmara em 1871 contra a reforma de que preparara o caminho, e procurará fazer crer à Anti-Slavery Society que nessa questão fora ele o abolicionista intransigente e o Governo o sustentador da escravidão. Não há, porém, que levar em conta, na vida dos homens que foram instrumentos de uma ideia, as aberrações, as incoerências que a não puderam frustrar. Votando contra a lei de 28 de Setembro, Perdigão Malheiro foi apenas um voto perdido; publicando a sua grande obra, ele fora um iniciador, um criador, o autor de um movimento que nada podia mais deter”. Nabuco, 1949, p. 216.
  • 10
    Nabuco, 2004, p. 47.
  • 11
    Em Nabuco, o argumento está fartamente documentado: “A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado de que tem por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda”. Nabuco, 2000, p. 18. Em Malheiro, a meu ver, a ideia de Razão de Estado encobre, por vezes, o desejo de alguns historiadores de ver, em suas interpretações, menos uma convicção e mais um subterfúgio, e, por isso, ela aqui será tratada mais detidamente, adiante. A articulação das ideias de razão, governo e legalidade, bem como uma sevara crítica da escravidão dos africanos, teve na obra O Espírito das Leis (1747), de Montesquieu (1996), a sua síntese mais célebre. O filósofo francês, apesar de não ser um contratualista, foi — segundo Rogério de Barros Santana (2022), que estudou detidamente as referências intelectuais de que Malheiro lançou mão em suas obras e discursos — uma das principais bases teóricas de que o jurista-historiador oitocentista mineiro se serviu.
  • 12
    Embora possamos encontrar debate semelhante em obras anteriores e de perspectiva teórica diversa, como no capítulo “A estrutura política do Absolutismo como pressuposto do Iluminismo”, da obra Crítica e crise (1999), de Reinhart Koselleck, foi Michel Foucault, em uma de suas mais conhecidas aulas ministradas no Collège de France, que sintetizou o a questão. “Procurei mostrar a vocês como se realizou na Europa o que poderíamos chamar de avanço de uma razão governamental. [...] O que veio à luz - é o que procurei lhes mostrar - foi uma arte absolutamente específica de governar, uma arte que tinha a sua própria razão, sua própria racionalidade, sua própria ratio. Acontecimento na história da razão ocidental, que não é sem dúvida menos importante do que aquele que, exatamente na mesma época, isto é fins do século XVI - correr do século XVII, foi caracterizado por Kepler, Galileu, Descartes, etc.”. Foucault, 2023, p. 383.
  • 13
    Reificação foi um conceito discutido por Karl Marx e longamente desenvolvido na obra de György Lukács, usado por Fernando Henrique Cardoso, em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, para explicar o processo de desumanização ou coisificação imposto aos escravos por meio da violência que lhes era infligida por traficantes, senhores e feitores. Cf. Cardoso, 1977. A questão é retomada na análise sociológica de Gileno, 2013, p. 43-58, “Capítulo 2 - A teoria do escravo coisa e a aquisição de personalidade jurídica”.
  • 14
    Pena, 2001, p. 268.
  • 15
    Sobre o desenvolvimento recente desse campo de estudos no Brasil, bem como sobre a recolocação do problema da criminalidade escrava sob o olhar da polícia como instituição de Estado no Brasil do Oitocentos, Cf. Azevedo, 2024.
  • 16
    A respeito da ligação não contraditória entre escravidão e liberalismo, sobretudo no âmbito do debate jurídico sobre o destino dos escravos no Brasil oitocentista, Cf. Grinberg, 2002.
  • 17
    No âmbito das pesquisas mais recentes sobre o autor no campo do Direito, além do trabalho de Mariana Armond Dias Paes (2019), referida adiante, recentemente juntou-se ao campo a tese de doutoramento de Douglas da Veiga Nascimento, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2022, fortemente crítica das contradições de Malheiro.
  • 18
    Segundo deixa claro o historiador: “A constatação da violência na escravidão é um ponto de partida importante, mas a crença de que essa constatação é tudo o que importa saber e comprovar sobre o assunto acabou gerando seus próprios mitos e imobilismos na produção historiográfica.” Chalhoub, 1990, p. 36.
  • 19
    Dias Paes, 2019.
  • 20
    Chalhoub, 1990, p. 36-37.
  • 21
    Chalhoub, 1990, p. 138.
  • 22
    Chalhoub, 1990, p. 138.
  • 23
    Chalhoub, 1990, p. 139.
  • 24
    Chalhoub, 1990, p. 140.
  • 25
    Chalhoub, 1990, p. 140.
  • 26
    Chalhoub, 1990, p. 141.
  • 27
    Chalhoub, 1990, p. 143.
  • 28
    Foucault, 2023, p. 385.
  • 29
    Foucault, 2023, p. 383-384.
  • 30
    Presente em diferentes estudos, em minha visão, as aparentes mudanças de posicionamento de Perdigão Malheiro foram mais detidamente analisadas em Pena (2001) e, no âmbito sociológico da formação das elites intelectuais imperiais, por Gileno (2013). Para além destes, embora seja possível perceber uma tendência a enxergar nas ações do jurisconsulto certos atrelamentos de classe — como tem sido quase regra entre os estudos especializados, desde as décadas finais do século XX, a título de exemplo Malerba (2022) —, são, a meu ver, os levantamentos de Rogério Barreto Santana competentes sobre as tradições intelectuais e historiográficas presentes tanto na fundamentação dos argumentos quanto na fortuna crítica alcançada por Agostinho Marques Perdigão Malheiro entre os historiadores, assim como a consideração de argumentos manejados pelo jurista no ambiente transnacional dos debates sobre a abolição da escravidão moderna. Cf. Santana, 2014 e 2022.
  • 31
    Pena, 2001, p. 272.
  • 32
    Carvalho, 1996.
  • 33
    Mattos, 1994.
  • 34
    Santana, 2022, p. 193-194.
  • 35
    Arquivo da Universidade de Coimbra, Fundos 5 - SR: Petições de Matrícula e Inscrição, 8 - SR: Livros de Informações Finais, Agostinho Marques Perdigão Malheiro Filho, 1810.
  • 36
    De maneira geral, essa percepção encontra-se em estudos feitos por historiadores de diferentes gerações e perspectivas teórico-metodológicas. Para uma análise dos argumentos dos principais juristas coevos que se referiram ao Código Criminal do Império e à escravidão de africanos e descendentes, cf. Malerba, 2022 (originalmente publicado em 1994). Alguns tópicos do código relativos às leis que coibiam crimes cometidos por escravos e as penas a eles imputadas foram abordados em: Ferreira, 2011, especialmente no capítulo 3, “Um julgamento, duas penas”. Ricardo Sontag, em texto um pouco mais recente, embora os distinga dos comentadores, que teriam se posicionado “a respeito da qualidade das penas previstas na lei”, emprega a expressão “pobre” para tratar de alguns anotadores do mesmo texto legal: “Algumas das ‘annotações’ ao código criminal de 1830 às vezes eram, inclusive, particularmente sucintas. Colecionavam a respeito de cada artigo algumas outras leis ou avisos pertinentes; algumas decisões jurisprudenciais; eventualmente alguma observação do autor do livro ou alguma citação (se fosse um jurista estrangeiro, tanto melhor). Certamente, livros que tinham a sua utilidade, como material de consulta para juízes, advogados, promotores. Em termos de avaliação da legislação vigente, a partir da ciência cultivada pelos juristas, porém, muito pobres”. Sontag, 2016, p. 50.
  • 37
    Blake, 1883, p. 18-19.
  • 38
    Pena, 2001.
  • 39
    Pena, 2001.
  • 40
    Malheiro, 1944, p. 149-150.
  • 41
    A década de 60 do século XIX, período em que o texto de Malheiro foi redigido e publicado, tem sido apontada pela historiografia especializada como um momento em que as discussões entre direito de propriedade e direito à liberdade tornaram-se recorrentes entre advogados que defendiam senhores e advogados que defendiam escravos nos tribunais. A historiografia do chamado “centenário da abolição” muito avançou na percepção do direito como área de constantes embates da qual se valeram também os cativos. Mais recentemente, estudos seminais têm também apontado para questões específicas dentro de tais lutas como aquelas voltadas para ações cíveis que visavam à revisão da liberdade legada a escravos por seus senhores em processos que eram distintos das então já conhecidas ações de liberdade, pois envolviam o problema da reescravização — Cf. Grinberg, 2006 — e a própria “instabilidade da propriedade escrava”, evidenciada em casos concretos de questionamentos da propriedade sobre os cativos que entraram no país após a Lei de 1831, Cf. Mamigonian, 2011.
  • 42
    Malheiro, 1863, p. 136.
  • 43
    “Evitar esse estado de guerra (no qual não há apelo senão aos céus, e para o qual pode conduzir a menor das diferenças, senão houver juiz para decidir entre os litigantes) é a grande razão pela qual os homens se unem em sociedade e abandonam o Estado de Natureza”. Locke, 2005, p. 400.
  • 44
    “§ 2º Do Império ou nação brasileira: 3. Assim fundou-se o Império do Brasil, ou por outra frase, a nação brasileira, que é associação de todos os brasileiros; que é a sociedade civil de um povo americano livre e independente. Em qualquer parte que os brasileiros se achem, enquanto conservarem esse caráter ou qualidade, fazem parte da nação, têm direito à sua proteção, e o dever sagrado de prestar-lhe sua fidelidade, de interessar-se por seus destinos e por sua glória”. São Vicente, 2002, p. 78-79.
  • 45
    Malheiro, 1863, p. 136.
  • 46
    “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Gênesis 1:27”. Malheiro, 1863, p. 137. Grifos no original.
  • 47
    Malheiro, 1863, p. 137.
  • 48
    Malheiro, 1863, p. 145.
  • 49
    Malheiro, 1863, p. 151.
  • 50
    Cf. Alonso, 2015ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015..
  • 51
    Malheiro, 1871, p. 12-13.
  • 52
    Malheiro, 1871, p. 26-27.
  • 53
    Malheiro, 1871, p. 27-28. Grifo no original.
  • 54
    Pena, 2001, Capítulo 3. Norma jurídica e “Razão de Estado”: a coerência de Perdigão Malheiro”, p. 253-338.
  • 55
    Santana, 2022, “III. Da reforma servil à força da tradição: o exemplo romano e tentativa de prolongamento do cativeiro”, p. 154-208. Especialmente, “3.3 À Província de Minas Gerais e aos seus Concidadãos: ‘Razão de Estado’ ou ‘Razão de Classe’”
  • 56
    Cf. Wehling; Wehling, 2004. Para uma problematização da questão do escravo como pessoa, sujeito de direitos, dotado de personalidade jurídica, no Brasil, sobretudo, a partir da década de 60 do século XIX, cf. Dias Paes, 2019. A esse respeito, especificamente na leitura de Perdigão Malheiro, a autora faz duas considerações: “A primeira é que, como vimos ao longo deste trabalho, ao menos parte do que o autor afirmou não serem atos jurídicos realizados por escravos, na verdade, aconteciam na vida cotidiana da escravidão brasileira. Eram limitados, sujeitos aos mais variados tipos de restrições, não eram sempre exigíveis no judiciário e eram, sobretudo, precários. Porém ocorriam. A diferença entra a prática desses atos por um escravo e por um liberto estava na sua maior segurança jurídica, apesar de a segurança jurídica dos libertos também ser bastante precária. A segunda consideração é que [...] para Malheiro, o escravo tinha personalidade jurídica. Porém, ele era equiparado ao ‘menor’. Era pessoa, mas não podia exercer atos da vida civil ‘livremente’. Isso o tornava uma espécie particular de pessoa jurídica, diferente da ‘pessoa propriamente dita’”. Dias Paes, 2019, p. 280-281.
  • 57
    Malheiro, 1944, p. 39-40.
  • 58
    Pessoa, 1877, p. 109-114.
  • 59
    Pessoa, 1877, p. 184-185.
  • 60
    Malheiro, 1944, p. 33-34.
  • 61
    Ferreira, 2011.
  • 62
    Embora nunca tenha sida completamente abolida, aos poucos, a lei foi reformada, alguns recursos foram permitidos e a jurisprudência dos tribunais tratou de ampliar sua interpretação, cf. Ferreira, 2011.
  • 63
    Malheiro, 1944, p 36-37.
  • 64
    Noronha, 2019.
  • 65
    Lara, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2024
  • Aceito
    05 Ago 2024
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