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Cartografia da invasão, conquista e ocupação de territórios indígenas em Minas Gerais

A cartography of the invasion, conquest, and occupation of Indigenous territories in Minas Gerais, Brazil

RESUMO:

Contrapondo-se ao que ocorreu no centro-oeste do território mineiro — onde a descoberta aurífera levou à intensa ocupação e exploração, bem como à dizimação dos povos nativos —, que se consolidou como um distrito minerador nas Minas Gerais, a porção leste do território permaneceu, por considerável período de tempo, ainda mais distante das “mãos” do poder colonizador. Isso fez com que ali se concentrasse a maior parte da presença e da resistência dos povos indígenas da capitania mineira, sobreviventes daquele ímpeto. A partir da segunda metade do século XVIII, no entanto, os novos rumos da dinâmica econômica da capitania fazem esse quadro se alterar, colocando o “sertão leste” nas vistas governamentais como alternativa para a dinamização da economia. O avanço da invasão e da ocupação de terras indígenas na região, baseado em processos de guerra e suposta pacificação, é observado por meio de diversos documentos cartográficos históricos, produzidos entre a segunda metade dos Setecentos e dos Oitocentos joaninos. Analisados à luz dos acontecimentos interpretados por diversos autores, esses documentos tornam-se importantes fontes de pesquisa e entendimento do que ocorreu aos indígenas do leste mineiro.

PALAVRAS-CHAVE:
Cartografia Histórica; Povos Indígenas; Cartografia Indígena; Povos Indígenas de Minas Gerais

ABSTRACT:

In contrast to what happened in Midwestern Minas Gerais, in which the discovery of gold led to its intense occupation and exploration and the decimation of native peoples (which consolidated a mining district in Minas Gerais), the eastern portion of the territory remained even further away from the “hands” of the colonizing power for a considerable period of time. This concentrated most of the presence and resistance of the Indigenous peoples in the Minas Gerais captaincy, who survived such impetus. However, from the second half of the 18th century onward, the decline of the gold cycle and the new directions of the captaincy economic dynamics changed this situation, placing the “eastern hinterland” at the sights of the government as an alternative for boosting its economy. The advance of the invasion and occupation of Indigenous lands in the region, based on processes of war and supposed pacification, is evinced by several historical cartographic documents produced from the second half of the 19th to the 1800’s Johannine years. Analyzed in light of the events interpreted by different authors, these documents become important sources of research and understanding of what happened to the Indigenous people from eastern Minas Gerais.

KEYWORDS:
Historic Cartography; Indigenous People; Indigenous Cartography; Indigenous People of Minas Gerais

OS POVOS INDÍGENAS NA CARTOGRAFIA HISTÓRICA DE MINAS GERAIS

Diversos foram os autores que já se debruçaram sobre a forma como os povos indígenas foram representados na cartografia histórica do período colonial, bem como seu significado, a exemplo de Costa e Ratts 1 1. Costa e Ratts ( 2014 ). e Souto. Esta, em seu estudo, sintetizou que:

Na cartografia realizada a partir da conquista colonial da América lusitana e da Amazônia, foram recorrentes as representações indígenas, como forma de reinventar e de localizar os povos nativos. Muitas vezes, essas representações eram pictóricas, com forte presença de elementos figurativos e de ornamentos, aspectos particulares ao período dos anos Quinhentos aos Setecentos. Contudo, na era pombalina (1750-1777), houve mudança nas representações cartográficas e nos valores estéticos relativos à simplicidade. Logo, a simetria na composição dos mapas passou a sobressair em detrimento da ornamentação. Os indígenas pouco apareciam na produção cartográfica, a não ser quando eram indicadas, nominalmente, as povoações e as aldeias estabelecidas dentro da nova configuração territorial resultante das reformas pombalinas, as quais fundaram administrativamente vilas, lugares, freguesias e povoações ou, economicamente, fazendas, engenhos, roças e terrenos. 2 2. Souto ( 2017 , p. 817).

Santos, por sua vez, aponta que a análise do conjunto de documentos cartográficos históricos produzidos entre os séculos XVIII e XIX “pode trazer informações de interesse sobre a sua distribuição espacial e o avanço da administração da capitania em relação ao aldeamento” 3 3. Santos ( 2010 , p. 53). . Sem dúvidas, por meio da investigação, análise e relação de documentos cartográficos do período, podemos observar, reconhecer e compreender grande parte dos movimentos empreendidos pelo governo da capitania mineira em suas tentativas de conquistar a porção leste daquele território, que se refletem na produção cartográfica do período, conforme avançamos no tempo.

Com o objetivo de investigar, com o auxílio da cartografia histórica, os movimentos de invasão, conquista e ocupação de territórios indígenas nas Minas Gerais em momentos decisivos de sua história, foram analisados, neste trabalho, as representações mais “clássicas” e conhecidas, como o detalhado conjunto de documentos cartográficos elaborados por José Joaquim da Rocha, desde o final da década de 1770, bem como aquelas representações pontuais, de meados dos anos 1850, que contribuem para retratar a mudança de panorama da situação. À análise e investigação cartográfica juntou-se um levantamento bibliográfico de fontes que exploram os acontecimentos na região durante o período recortado, envolvendo desde artigos elaborados por pesquisadores modernos até documentos históricos, que registram, por exemplo, a atuação do francês Guido Thomaz Marlière como comandante geral das divisões militares do Rio Doce e diretor geral dos índios.

A OCUPAÇÃO HUMANA NO TERRITÓRIO DE MINAS GERAIS

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a ocupação humana, no território que posteriormente ficou consagrado como Minas Gerais, se iniciou milhares de anos antes da chegada dos europeus a nossa costa. Entender esse momento da história, no entanto, nos requer recorrer a outro tipo de fonte, que não a cartográfica ou bibliográfica, por exemplo. Conforme aponta Prous, a totalidade de fontes históricas que detemos sobre o território brasileiro, “antes da chegada dos europeus, são arqueológicas — ou seja, compostas de vestígios materiais deixados pelos homens e parcialmente preservados dos processos naturais de degradação” 4 4. Prous ( 2006 , p. 8). . Em Minas Gerais, é possível estabelecer “uma presença humana inquestionável entre 11.500 e 13.000 anos atrás” 5 5. Ibid ., p.13. , pelo menos, com “indícios datados entre 15.000 e 30.000 anos” 6 6. Ibid ., p. 14. sendo analisados com maior cautela.

Em um esforço de precisar no espaço físico essas ocupações, Salvio cartografa as ocupações humanas em Minas, com base em estudos arqueológicos ( Figura 1 ), revelando um padrão que nos permite algumas observações pertinentes. 7 7. Salvio ( 2014 ). Sem novidade, a concentração dessas ocupações se dá às margens dos grandes rios. É interessante notar, no entanto, uma concentração populacional junto aos afluentes dos rios São Francisco e Velhas. A leste, o Doce, em contrapartida, mostra pouca ocupação, em um padrão que se assemelha ao que ocorreu com a ascensão do distrito minerador.

Contrastando com os registros arqueológicos, o que se verificou ao longo dos séculos XVIII e XIX foi um aumento significativo da presença indígena na região leste. Como se deu esse processo em direção a essa região pouco ocupada, ou como os povos indígenas se viram “empurrados” para aquela região, são algumas das perguntas para as quais buscaremos respostas.

Figura 1
- Distribuição das primeiras ocupações humanas datadas arqueologicamente em Minas Gerais.

A QUESTÃO DO “SERTÃO LESTE”

Em Minas Gerais, conforme assinala Almeida, a colonização e o massacre dos povos nativos inicia-se ainda no século XVII, com a ação dos paulistas em busca de mão de obra escrava entre os indígenas do território. 8 8. Almeida ( 2011 ). A descoberta aurífera subsequente tratou de aumentar exponencialmente o interesse pela região, intensificando as ações dos garimpeiros na invasão das matas e sertões, resultando em, ainda na terceira década do século XVIII, grande parte da população indígena do território sendo dizimada ou expulsa. 9 9. Cf. Anastasia (1994) apud Langfur ( 2011 ).

Na medida em que a ação povoadora se intensificava ao redor da economia do ouro, na porção centro-oeste do território, as resistências indígenas concentraram-se, então, no sertão leste da capitania, para além dos limites da região mineradora, onde foram logo identificados como “gentios” hostis, que representavam ameaça ao estabelecimento de povoações que expandissem as fronteiras da “civilização” portuguesa até as porções orientais do território mineiro. De fato, a hostilidade dos indígenas da região, com destaque para os genericamente identificados como botocudos, representou um grande obstáculo para a instalação de colonos na área. Nesse sentido, os esforços do poder governamental se concentravam de forma intensa no centro de produção aurífera, em detrimento de possíveis ações militares de defesa e conquista daquele espaço, que acabou ficando sob generalizado desinteresse. Conforme observam ainda Santos e Costa, esses aspectos de “esquecimento” das fronteiras do leste refletiram-se na dificuldade de estabelecer limites fronteiriços claros em relação a capitanias circunstantes, especificamente com a Bahia e o Espírito Santo, que por muito tempo não suscitaram, contudo, grande preocupação do governo mineiro face ao crescimento demográfico e econômico que provinha do distrito minerador. 10 10. Santos e Costa ( 2016 ).

Sempre muito orientadas pela economia do ouro e das pedras preciosas, então, as políticas em relação ao sertão leste da capitania mineira tiveram um papel determinante na construção da área como um espaço de muitos “vazios” demográficos e cartográficos. Apesar dos rumores de que ela própria continha ainda muitas riquezas a serem exploradas, a Coroa decidiu, no início do século XVIII, isolar a área, como uma medida que visava impedir o fluxo de contrabandistas que levava, do distrito minerador, ouro e diamantes para o litoral através das florestas costeiras. Em irônica contradição, contava-se com a presença dos nativos, que não cultivavam amizade com os colonos e eram vistos por eles como bárbaros e, inclusive, canibais, para tornar essas empreitadas ainda mais desencorajadoras. 11 11. Cf. Langfur, op. cit.

Não obstante esse quadro, os administradores mineiros encontraram dificuldades em reconhecer alternativas aos metais e pedras preciosas em termos de produção voltada ao mercado externo. Apoiado na obra de Francisco Iglésias, Libby 12 12. Libby ( 1988 ). atenta-se para o fato de que esses administradores, interessados nas receitas produzidas por aquele mercado, falharam em identificar o relativo dinamismo representado pela agricultura mercantil de subsistência e pelas atividades de transformação que se intensificavam na capitania. Dessa forma, a suposta necessidade de recuperar a dinâmica da economia mineira acabou fazendo com que o governo da capitania voltasse seus olhos novamente para o leste, buscando caminhos que pudessem facilitar as exportações de produtos mineiros.

Além de uma suposta série de riquezas por serem exploradas, o rio Doce surgia como uma importante alternativa de navegação. Com essa possibilidade, enxergava-se um escoamento da produção do centro-norte mineiro de forma mais vantajosa para o litoral, em relação aos caminhos terrestres de ligação com o Rio de Janeiro, sendo visto mesmo como “um caminho fluvial privilegiado para colocar Minas em contato com o mar e, consequentemente, com o comércio mundial” 13 13. Espindola ( 2011 , p. 51). .

Novamente, o grande “obstáculo” para a concretização desses objetivos, que necessitavam da retomada da ocupação das matas e sertões pouco tocados pela atividade mineradora, era a presença dos indígenas, com atenção especial para os botocudos. Por conta disso, teve início, a partir do início do século seguinte (XIX), uma série de desdobramentos envolvendo desde as práticas de guerra até a implantação de aldeamentos forçados dos indígenas na região.

SÉCULO XVIII: REPRESENTAÇÕES INICIAIS

Se é no século XIX que se observam as mais marcantes expressões do conflito entre o poder governamental e os indígenas do leste mineiro, na segunda metade do século XVIII já é possível observar uma série de práticas que evidenciam as tentativas de exploração e ocupação dos “sertões incultos” e das matas mineiras do leste. Isso ocorre pois, como exploraremos adiante, as proibições da Coroa relativas à ocupação daquele território não foram impeditivas para uma parcela de colonos, interessados tanto em possíveis novas descobertas de metais preciosos quanto no estabelecimento de produções agropastoris. Essas práticas se encontram registradas, como era de se esperar, na produção cartográfica do período. Conforme levantado por Santos e Costa 14 14. Santos e Costa ( 2022 ). na última edição de seu repositório de dados sobre a toponímia histórica de Minas Gerais, a Carta geographica da capitania de Minas Geraes, e partes confinantes ( Figura 2 ), datada de 1767, é considerada a mais antiga representação cartográfica conhecida do território completo de Minas Gerais sob o signo de capitania, constituindo-se de um registro histórico ímpar para o entendimento das questões políticas e espaciais do território mineiro.

Costa e Santos fazem uma análise do documento, na qual vale destacar, primeiramente, o “vazio” de ocupação que caracteriza o sertão leste em detrimento do distrito minerador, onde o estabelecimento de povoações se deu em grande intensidade seguindo a descoberta aurífera. Enquanto essa área está repleta de toponímias alusivas às organizações de povoamento da época, como cidades, vilas, paróquias e capelas, os sertões têm destacados, basicamente, a sua hidrografia e outros acidentes geográficos, evidenciando o pouco avanço da invasão e ocupação colonizadora na região. 15 15. Id ., 2016.

Figura 2
- Carta geographica da Capitania de Minas Geraes, e partes confinantes. Anno de 1767. [s. a.]. 168,3 cm × 124,3 cm; manuscrito, color. à mão, tinta ferrogálica e nanquim, em folha 175,5 cm × 127 cm.

Figura 3
- Detalhe da iluminura que ilustra a Carta geographica da Capitania de Minas Geraes, e partes confinantes. Anno de 1767. [s.a.]. 168,3 cm × 124,3 cm; manuscrito, color. à mão, tinta ferrogálica e nanquim, em folha 175,5 cm × 127 cm.

Já nas caprichosas ilustrações que adornam a carta e servem como uma forte indicação de sua destinação, provavelmente ao monarca de Portugal, 16 16. Ibid . temos representados por uma iluminura ( Figura 3 ) três indígenas: os dois primeiros, aparentemente um adulto e uma criança, observam a própria imagem em um espelho, este segurado por um religioso português. Os três são observados por outro indígena, este diferenciado pelo uso de um cocar, na cabeça, e de um botoque nos lábios, elementos comuns nos povos indígenas daquele entorno, sendo o botoque um elemento marcante dos botocudos, e o cocar, possivelmente, mais comum aos “coroados”, agrupamentos indígenas da língua puri. De toda forma, é certo que a imagem evoca uma forte mensagem sobre as possibilidades de civilização dos povos nativos que ocupavam a região por meio dos signos de conhecimento e avanço tecnológico dos portugueses.

O mapa apresenta ainda outras menções aos povos indígenas identificados no território mineiro por meio de um recurso bastante comum na época: as notas explicativas, pequenas descrições presentes no próprio documento cartográfico. No que concerne aos limites orientais, a mais notável dessas notas exemplifica muito bem as dificuldades de ocupação do sertão leste da capitania em virtude da resistência indígena, ao alertar para a presença das:

Aldeas do Gentio bravo chamados Imburés, q. fazem bstáculo ao estabelecimen.to do novo Arrayal do Cuayté em razão da sua braveza, e por habitarem os matos circunvizinhos, donde Saem impetuosam.te e destemidos: Costumão esses bárbaros geralm.te furar os beiços de baxo, e as orelhas, onde metem, e continuam.te trazem hu baroque de páo, e por isso são também chamados botocudos. 17 17. Carta geographica da Capitania de Minas Geraes, 1767 .

A situação descrita foi, de fato, um dos pontos de maior tensão entre indígenas e colonizadores nos sertões do leste do território mineiro; conforme aponta Langfur, 18 18. Langfur, op. cit. o interesse do governo da capitania em estabelecer um arraial na área era decorrente do surgimento de um novo campo de mineração, o que levou o governador Lobo da Silva a empreender uma verdadeira marcha armada para garantir o controle da região, no que ficou conhecido como “Conquista do Cuieté”. Nesse sentido, é ilustrada uma perspectiva em que o governo da capitania ainda enxergava um retorno à dinâmica econômica baseada na exploração e exportação de metais e pedras preciosas.

A nota, que evidencia a forma como eram enxergados os povos botocudos, logo identificados como os grandes inimigos da Coroa na instalação da civilização naqueles limites da capitania, também ajuda a entender a postura agressiva, repressora e pautada na violência empreendida por Lobo e Silva em sua empreitada. Além de pressionado por colonos que, contrariando as ordens reais do isolamento da área, haviam ocupado a região e se sentiam agora desprotegidos, o governador visava estabelecer ali uma fronteira segura. Para isso, tinha a intenção de submeter os indígenas à fé católica e fazê-los cidadãos úteis ao Estado, para além do papel indireto que exerciam ao oferecer perigo aos contrabandistas que buscassem atravessar suas terras. 19 19. Ibid .

Outra nota, porém, faz alusão a indígenas não hostis com quem os colonos já haviam estabelecido contato supostamente mais amistoso: entre as nascentes dos rios identificados como Tambacury e Larangeiras , estão indicadas Aldeas dos Gentios denominados Capoxes e Manaxos qe. se querem bem . 20 20. Carta geographica da Capitania de Minas Geraes, 1767 . A marcação indica alguns dos aldeamentos de indígenas “domesticados”, conforme expressão muito utilizada na época, estabelecidas no território mineiro desde o início dos processos de catequização. 21 21. Cf. Almeida, op. cit. Ainda, é possível identificar os grupos abordados na nota como integrantes da família linguística masakari, uma das mais comuns entre as identificadas no território mineiro, juntamente às famílias botocudo e puri. 22 22. Cf. Brasil ( 1987 ).

Outro conjunto de documentos cartográficos muito valiosos é o elaborado por José Joaquim da Rocha, que, entre 1777 e 1780, produziu os mais detalhados mapas da capitania mineira até então. Incluem-se nesses dois mapas gerais, com representação da capitania como um todo, e mapas individuais das quatro primeiras comarcas nas quais a capitania de Minas era subdividida, em termos político-administrativos: Sabará, Rio das Mortes, Villa Rica e Serro. Sobre esses mapas, é interessante observar que seus adornos contaram, na maioria dos casos, com trabalhadas iluminuras ( Figura 4 ) representando indígenas, que, como bem analisou Furtado, oferecem importantes indicativos de como o território mineiro era enxergado na perspectiva do cartógrafo. 23 23. Uma análise detalhada da figura e da produção de José Joaquim da Rocha pode ser encontrada em Furtado ( 2009 ).

Figura 4
- Detalhe das iluminuras que adornam os mapas das comarcas produzidos por José Joaquim da Rocha.

No “Mappa da Comarca do Rº das Mortes”, por exemplo, temos um indígena adulto, armado com um arco e flecha, mas que não se apresenta em posição de hostilidade, enquanto em outro extremo do documento se exibe uma cesta de frutas, signo da abundância e da riqueza. O “Mappa da Comarca do Sabara” apresenta talvez a ilustração mais emblemática: um cartógrafo português, provavelmente imagem do próprio autor, trabalha com foco total em sua tarefa de elaborar um mapa, alheio à ameaça de um vigoroso indígena que, armado de arco e flecha, espreita da mata. Por fim, o “Mappa da Comarca de Villa Rica” é também emblemático, mostrando uma indígena de traços robustos, ricamente adornada e carregando uma cornucópia cheia de frutos, signo milenar de riqueza e abundância. Se “cartografar um território não é pois uma operação neutra” 24 24. Ibid ., p. 179. , as ilustrações desses documentos não falham em posicionar o “domínio de uma cultura civilizada frente a outra mais primitiva e selvagem” 25 25. Ibid . ; a conquista do território é apresentada como atividade convidativa.

Analisando a produção mais famosa de José Joaquim da Rocha, o “Mapa da Capitania de Minas Geraes com a Deviza de suas Comarcas” ( Figura 5 ), datado de 1778, outro aspecto de nosso interesse é a aparição de uma série de aldeamentos indígenas, agora indicados na legenda ou explicação do mapa.

Figura 5
- “Mapa da Capitania de Minas Geraes com a deviza de suas comarcas”. Jozé Joaquim da Rocha, 1778MAPA da capitania de Minas Geraes com a deviza de suas comarcas. Jozé Joaquim da Rocha, 1778. 41,9 × 35,1 cm; Manuscrito e aquarela. Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. . 41,9 × 35,1 cm; manuscrito e aquarela.

Na cartografia histórica do território compreendido hoje como Minas Gerais, é importante observarmos que os aldeamentos, aldeias e signos similares assinalados nos documentos cartográficos dizem respeito geralmente a estruturas organizadas por agentes interessados no assentamento dos povos nativos, desde os antigos aldeamentos jesuíticos até aqueles organizados posteriormente, pelo governo da capitania. Pensando especialmente nos botocudos, é importante destacar o caráter nômade de grande parte desses povos. Souto aponta como esse caráter, entendido como “errante”, dificultou o trabalho de registro nos documentos cartográficos do século XVIII, e, nesse sentido, reforça-se a valência das notas explicativas. 26 26. Cf. Furtado (2012) apud Souto, op. cit.

Outro ponto importante a ser mencionado na explicação é que as formas de povoamento são organizadas seguindo uma hierarquia, que se reflete tanto na ordem em que aparecem na legenda ( Figura 6 ) quanto na complexidade dos símbolos escolhidos: temos então Cidades , Villas , Parochias , Capellas , Fazendas , Registos , goardas e patrulhas de Soldados, Goardas de S. Paulo até, enfim, chegarmos às Aldeias de Gentio .

Fazendo uma comparação, na área onde o mapa de 1767 mostra a representação das Aldeas dos Gentios denominados Capoxes e Manaxos que se querem bem , no mapa produzido, posteriormente, por José Joaquim da Rocha aparecem os aldeamentos de Tambacoris e Aldeia do Monte do Carmo , agora identificados como estando às margens do rio Doce entre os rios Sassuí Grande e Corrente ; mais a nordeste, nas nascentes do Ribeirão de Todos os Santos, aparecem ainda aldeamentos identificados como Malalis , Maxacalis e Capoxes . Por fim, os mapas de Rocha contam ainda com estruturas atribuídas aos Monaxós , e Panhame . Situadas nas margens do Rio São Matheus , atestam uma série de relações mais bem-sucedidas, para as perspectivas governamentais, em relação àquelas que se observam na margem oposta do rio Doce.

Figura 6
- Detalhe dos símbolos representativos utilizados no “Mapa da Capitania de Minas Geraes com a deviza de suas comarcas”. Jozé Joaquim da Rocha, 1778MAPA da capitania de Minas Geraes com a deviza de suas comarcas. Jozé Joaquim da Rocha, 1778. 41,9 × 35,1 cm; Manuscrito e aquarela. Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. . 41,9 × 35,1 cm; Manuscrito e aquarela.

Figura 7
- Destaque dos aldeamentos do leste mineiro identificados no mapa de Rocha. Elaborado sobre o “Mapa da Capitania de Minas Geraes com a deviza de suas comarcas”. Jozé Joaquim da Rocha, 1778. 41,9 × 35,1 cm; Manuscrito e aquarela.

Apesar disso, como elementos marcantes para percebermos o movimento de ocupação das “selvas” do leste mineiro, temos ainda a aparição de três estruturas de povoação ( Figura 8 ) que não se faziam presentes no mapa de 1767 e que se situam “embrenhadas” nas matas descolonizadas: as paróquias de Cuiaté 27 27. Em local correspondente, no mapa anônimo de 1767, encontra-se uma nota explicativa que alerta sobre o “Gentio Bravo” dos “Imburés”. e São Manoel dos Coroados , esta última com um papel posteriormente muito importante nas relações entre indígenas e colonos no leste mineiro. Se faz presente ainda a capela de Abre Campo . O estabelecimento desses “postos avançados” de povoação serve muito bem para percebermos como começam a avançar as práticas de ocupação daquela porção considerada “selvagem” do território. No “Mappa da Comarca de Villa Rica”, já datado de 1779MAPPA da comarca de Villa Rica. Joze Joaquim da Rocha o fes. Escala [ca. 1: 600 000]. Anno de 1779. 1 mapa ms., color. à mão; 40,8 cm × 79,8 cm em folha 54 cm × 83,8 cm. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. , podemos ter uma ideia ainda melhor da situação de relativo isolamento desses postos, com o Cuiaté agora identificado como São Gonçalo do Cuiaté ( Figura 9 ). É interessante observar, ainda, que nesse mapa não se fez necessária, aparentemente, nenhuma menção a povos indígenas.

Figura 8
- Postos avançados de povoação destacados no mapa de Rocha de 1778. Elaborado sobre o “Mapa da Capitania de Minas Geraes com a deviza de suas comarcas”. Jozé Joaquim da Rocha, 1778. 41,9 × 35,1 cm; manuscrito e aquarela.

Figura 9
- Postos avançados de povoação destacados no mapa de Rocha da Comarca de Villa Rica. Elaborado sobre ROCHA, José Joaquim da. [ca. 1740-1808]. Mappa da Comarca de Villa Rica. Joze Joaquim da Rocha o fes. Escala [ca. 1: 600 000]. Anno de 1779MAPPA da comarca de Villa Rica. Joze Joaquim da Rocha o fes. Escala [ca. 1: 600 000]. Anno de 1779. 1 mapa ms., color. à mão; 40,8 cm × 79,8 cm em folha 54 cm × 83,8 cm. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. . 1 mapa ms., color. à mão; 40,8 cm × 79,8 cm em folha 54 cm × 83,8 cm.

O estabelecimento desses postos avançados “embrenhados” nas selvas e sertões era fundamental para os interesses do governo da capitania, que buscava povoar a área com colonos, cujos interesses se dividiam entre a produção agrícola e a esperança de novas descobertas auríferas. Claudia Damasceno Fonseca trata bem dessa questão em sua obra Arraias e Vilas d’el Rei: espaço e poder nas Minas setecentistas . 28 28. Fonseca ( 2011 ). A autora ressalta a importância dos registros (barreiras militares/alfandegárias) e presídios como postos militares avançados para o controle das fronteiras na região, bem como a mudança de estratégia responsável por estabelecer freguesias com o objetivo de atrair e catequizar os indígenas para a fé católica; essa política teria ainda muitos desdobramentos nas décadas seguintes, conforme veremos adiante.

Sobre os três postos que destacamos no documento de Rocha, Fonseca apresenta informações importantes. Sobre Abre Campo, esclarece que surge como um presídio ainda em 1734, com o intuito de repelir ataques indígenas aos colonos da região. No entanto, o posto militar não conseguiu resistir por muito tempo à luta contra os nativos, passando por muitas instabilidades até conseguir a edificação de sua igreja matriz em 1770, 29 29. Ibid ., p. 126. já com estratégias de catequização em vigor. É também nessa época que é criada, no ainda mais isolado presídio do Cuieté, a freguesia de Nossa Senhora da Conceição dos Índios Botocudos, paróquia destinada à conversão dos indígenas. Por fim, é em 1767 que surge a freguesia de São Manuel do Rio Pomba dos Índios Coropós e Coroados, paróquia que se origina povoada inteiramente por indígenas, com a intenção de promover sua “civilização” conforme os interesses coloniais. A análise desses movimentos de ocupação, seguindo diferentes estratégias, é esclarecedora do processo de aprofundamento da colonização no sentido leste das Minas Gerais.

Por fim, um último documento cartográfico que vale ressaltar, supostamente já dos últimos anos do século XVIII, é o “Mappa topografico e idrografico da Capitania de Minas Geraes” ( Figura 10 ), de autoria desconhecida e cuja produção estima-se ter ocorrido entre 1791 e 1798. Segundo conclui Santos, é possível apontar que o documento “seja realmente do século XVIII, do início da última década do Setecentos, constituindo, portanto, uma fonte cartográfica histórica de grande interesse e valor para a reconstrução da geografia histórica da Capitania de Minas Gerais” 30 30. Santos, op. cit. , p. 56. .

A partir da observação da nota explicativa do mapa citado encontra-se uma informação muito interessante: Toda esta Capitania he coberta de Matas, e só nas Comarcas do Rio das Mortes, Sabará e Ferro tem manxas de Campo , cabendo ressaltar que a maior parte da problemática da ocupação se deu, justamente, nos limites orientais da comarca de Villa Rica. Podemos observar ainda a escala hierarquizada dos signos de representação: temos agora Cidades , Arrayaes , Capellas , Fazendas , Villas , Parroquias , Registos e, enfim, Aldeias , sempre com o mais simples dos símbolos representativos.

Figura 10
- “Mapa Topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais”. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d.MAPA topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d. – 1 mapa: ms., color. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. – 1mpa:ms., color.

Relacionadas com nossos interesses sobre o tema, mais duas notas explicativas se destacam: a primeira se encontra junto à agora identificada capela de São Manoel ; fala-se de uma Aldeya dos Índios Croados (A) Berta pelo S. Luís Diogo . 31 31. Entendemos que o personagem mencionado é o já citado Luís Diogo Lobo da Silva, governador da Capitania de Minas Geraes entre 1763 e 68 e responsável, conforme supracitado, pela “Conquista do Cuieté”, além de outros movimentos de invasão e ocupação dos sertões e selvas mineiras. Bem ao lado, cobrindo as margens do Rio Manhuasú , encontra-se a segunda, que alerta para o que seria um Certão inculto dominado pelo barbo Gentio Pori , 32 32. A transcrição mais provável é “Sertão inculto dominado pelo bárbaro gentio Puri”. atestando que a expansão das fronteiras do domínio colonial em direção ao leste, embora fervilhasse, passava longe de ser um assunto resolvido, encontrando resistência em diferentes nações e povos indígenas que ocupavam o território. Ainda sobre os movimentos de ocupação, notamos mais alguns registros interessantes, embora sutis: surge a identificação de uma estrada conectando os postos avançados de São Manoel e Abre Campo , inclusive com uma fazenda não identificada a meio caminho; surge ainda um novo ponto indicativo do avanço para o interior das matas, com o registo de Arrepiados conectando Abre Campo em direção às nascentes do Rio da Casca ( Figura 11 ).

Figura 11
- Notas explicativas e novos indícios de expansão no sentido leste, com novas estradas, fazenda e registo de Arrepiados , em detalhe no “Mapa Topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais”. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d.MAPA topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d. – 1 mapa: ms., color. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. – 1 mapa: ms., color.

É curioso notar, porém, que nesse documento cartográfico não temos a identificação do Cuieté. Não obstante, em uma área paralela ao local em que esse ponto se localiza nos mapas anteriores, temos desenhados ( Figura 12 ), mas não coloridos, um símbolo de Registo ao lado de outro, de Capella . Podemos especular se se trata de um erro do autor, de um registro inacabado ou, ainda, de um reflexo das dificuldades de estabelecimento e mantimento daquele problemático ponto de povoação “dentro” das selvas mineiras. O documento, no entanto, foi extensamente analisado por Santos, que conclui “que os dados presentes nesse mapa agregam mais informações que os presentes nos outros mapas realizados nos Setecentos e no início dos Oitocentos” 33 33. Ibid . .

Figura 12
- Registros duvidosos em detalhe no “Mapa Topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais”. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d.MAPA topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d. – 1 mapa: ms., color. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. – 1 mapa: ms., color.

O documento traz ainda muitos registros de aldeamentos indígenas nas margens opostas do rio Doce ( Figura 13 ), à semelhança do que observamos nos mapas anteriores, com os nomes utilizados novamente se misturando um pouco. Temos registrados então os aldeamentos de Capoxês e Maconis , nas cabeceiras do Ribeirão de Todos os Santos , e de Maxacalis , nas do Tambacori . Observamos ainda, a oeste, um aldeamento junto à capela de Peçanha . Seguindo um pouco para norte, temos junto a um afluente do São Matheus a presença de um aldeamento de Cotoxôs , ao passo que na margem oposta do mesmo rio registra-se com uma nota um Certão inculto . Mais intrigantes são quatro aldeamentos identificados ao lado de uma nota que parece informar que Estas quatro Aldeyas de Indios Malalis são governados por huma Preta . Não encontramos explicação segura para essa nota. Outros dois aldeamentos, ambos identificados como relacionados aos Panhames , são vistos ainda mais acima, já próximos ao Jequitinhonha: o primeiro na cabeceira do Rio Piauí , e o segundo na do Setúbal .

Figura 13
- Área com abundância de aldeamentos, em detalhe no “Mapa Topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais”. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d.MAPA topográfico e Idrografico da Capitania de Minas Gerais. s. a. – Escala: [Ca. 1: 1610 000], 30 legoas (Légua de 18 ao grau = 617283 cm) = 11,5 cm. – s. d. – 1 mapa: ms., color. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. – 1 mapa: ms., color.

Da análise desses documentos, percebemos que os movimentos de invasão e ocupação da porção leste do território mineiro começam a ganhar contornos importantes já no final do século XVIII, com forte oposição por parte dos povos nativos. Essa situação se intensificaria nos anos seguintes, em especial na primeira metade do século XIX.

SÉCULO XIX: A GUERRA OFENSIVA

Seguindo a suposta necessidade colonial de dinamizar a economia mineira e a promessa de alcançar esse objetivo por meio da dominação das matas e sertões da região leste, o início do século XIX trouxe consequências graves para as relações entre a Coroa e os povos indígenas da região, que se viram alvos declarados de uma cruel política de extermínio. 34 34. Cf. Espíndola, op. cit.

Nesse contexto, incialmente estabeleceu-se como política do governo mineiro o que foi descrito à corte, pelo governador da capitania entre 1804 e 1809, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, como “guerra defensiva”. Essa política consistia na formação de um “cordão” de defesa com o estabelecimento de presídios no interior das matas, visando impedir que os pontos de ocupação sofressem agressões dos povos indígenas insubordinados da região. 35 35. Ibid .

Em troca de correspondências com a corte, o governador explicou, no entanto, que essa prática se mostrava pouco efetiva, sendo a razão para tanto, principalmente, a grande extensão territorial em detrimento do baixo número de efetivo humano. Os colonos que ocupavam a região reclamavam com vigor dos constantes ataques infligidos pelos genericamente identificados como “ferozes e bárbaros botocudos”, resultando que se fez necessário estabelecer uma nova estratégia.

A Coroa e o governo da capitania trataram de sempre destacar o caráter “demonizado” que era atribuído aos indígenas botocudos, frequentemente referenciados como bárbaros, canibais, sedentos por sangue e afins. Como esses povos eram considerados um grande obstáculo para a exploração econômica do rio Doce, fez-se necessário que as instâncias governamentais elaborassem, em conjunto, uma nova abordagem da situação, culminando na Carta Régia, assinada em 13 de maio de 1808, que declarava guerra aos “botocudos do Rio Doce” 36 36. Ibid ., p. 52. .

A declaração de guerra representou então uma significativa mudança na relação entre a Coroa e os povos indígenas. Além da mudança imediata na política de guerra defensiva para uma de “guerra ofensiva”, a carta transferia a responsabilidade da questão para as recém-criadas Divisões Militares do Rio Doce, inicialmente divididas em seis unidades militares sob orientação da Secretaria de Estado da Guerra e Negócios Estrangeiros. Com isso, “temos uma situação nova, pois a população indígena foi tratada como estrangeira e seu espaço vital, como território a ser conquistado” 37 37. Ibid ., p. 54. .

Em poucas palavras, podemos resumir que esse novo modelo de guerra consistia em invasões anuais ao interior da floresta, partindo de quartéis estrategicamente situados e envolvendo as divisões militares, que ficavam responsáveis, ainda, por garantir a segurança dos pontos de povoação colonial dentro dos limites divisórios em que cada uma atuava. As invasões tinham por objetivo a destruição de acampamentos estabelecidos pelos indígenas e o extermínio dos integrantes de suas tribos. Exceções eram feitas, geralmente, às mulheres e crianças, cujo destino mais comum era o sequestro e, posteriormente, a servidão e assimilação compulsória aos costumes estabelecidos nas vilas e arraiais às quais eram designadas. 38 38. Ibid .

Nesse contexto, conforme destacado por Paraíso, deu-se atenção especial às crianças indígenas, vítimas de uma estratégia que visava facilitar a conformação dos povos nativos ao projeto colonial. Os jovens indígenas, identificados como “boticudinhas” ou pelo termo curuca , uma adaptação linguística do termo kruk , referente à criança no tronco linguístico macro-jê, eram os alvos favoritos dos sequestros. Posteriormente, eram distribuídas pelos comandantes militares entre os colonos de sua jurisdição, muitas vezes como forma de presentear ou promover favores de todo tipo de natureza. 39 39. Cf. Paraíso ( 2011 ).

É importante ressaltar, ainda, que tal qual as ações anteriores de ocupação de territórios indígenas, observadas, por exemplo, no século anterior, todo esse empreendimento de guerra pautou-se na necessidade de mobilizar a população civil da região em prol do objetivo de conquista territorial. Dessa forma, a política colonial, agora com a particularidade de apoiar-se formalmente no aspecto militar, passou pelo oferecimento de uma série de privilégios aos cidadãos interessados em arriscar-se na ocupação territorial, pela isenção financeira no dízimo, em taxas de exportação e importação, e até pela moratória de dívidas e facilidade na obtenção de sesmarias. 40 40. Cf. Espíndola, op. cit.

A política de conquista pautada nessa guerra ofensiva prosseguiu então sem muitas alterações até o início da segunda década do século XIX. Apesar das incalculáveis atrocidades e perdas de vidas e territórios aos quais foram submetidos os povos indígenas durante o período, as incursões de extermínio mostraram-se insuficientes para dizimar a totalidade dos ditos botocudos, cuja resistência prosseguiu forte e seguiu barrando o avanço da fronteira na medida pretendida pelo poder colonial. Tal situação levou o governador da capitania mineira, dom Manoel de Portugal e Castro, a admitir, em 1820, que a “guerra ofensiva” havia sido, afinal, um fracasso. 41 41. Ibid .

PACIFICAÇÃO E POLÍTICA INTENSIVA DE ALDEAMENTO

Novamente foi necessária então uma mudança na política indigenista empreendida, que foi (re)formulada como uma transição gradual para uma abordagem baseada numa suposta pacificação. Na prática, a organização dos indígenas em aldeamentos, realizada pela administração colonial, voltou a ser o foco principal das ações do governo. Visava-se submeter à “civilidade” os povos resistentes às práticas de vida sedentária. Para tanto, seriam instruídos os ensinamentos da fé católica, com a agricultura e os trabalhos manuais representando um meio de vida primário. Um marco para essa transição foi o apontamento, como inspetor-geral das divisões militares, do francês Guido Thomaz Marlière, que acumularia ainda o cargo de diretor geral dos índios e teve papel decisivo nos processos que resultariam na conquista de largas porções do território indígena no leste mineiro. 42 42. Ibid .

O comando de Marlière foi decisivo para a mudança de postura das autoridades militares em relação aos indígenas, ainda que tenha ocorrido uma série de abusos e violências por parte delas. 43 43. Ibid . A análise de uma série de documentos que registram a atuação do francês 44 44. Marlière ( 1907 ). nos permite uma melhor compreensão sobre sua figura. Dono de uma visão extremamente paternalista, muitas vezes se referindo aos indígenas como “filhos”, o francês atuou fortemente na apuração de denúncias de maus-tratos e violência infligidos por colonos aos povos nativos, logrando relativamente a redução dessas relações. Na contramão de muitas outras figuras de autoridade que atuaram com os indígenas de Minas Gerais, ele enxergava esses povos como seres humanos dignos e de direitos. Denunciou inclusive agressões justificadas pelo argumento da ausência do batismo, classificando isso como retrógado, e valorizando a miscigenação entre indígenas e portugueses em Minas.

Huma pacificação total reinava desde Belmonte ate os Campos de Goitacazes, e em toda a Provincia de Minas Geraes que tirou um dinh.o immenso na negociação da poaia com elles. Logo que o Supp.e deixou o Commando: houverão mortes de Indios Puriz, e Portuguezes, sendo estes os injustos agressores nas vezinhanças da Ponte Nova Termo de Marianna: o que merece hua Inquirição Jurídica, e punidos os agressores p.a não renovar hua Guerra Cruel.

Os Indíos tinhão hum Tribunal (a Junta Militar) que os protegia; este Tribunal morreo; os Indíos estão ao desemparo, mortos, perseguidos e expoliados alguns das suas terras: Os agressores desculpão-se dizendo que elles não são Baptizados: e isto no Seculo XIX!! Há muitos Portuguezes Indios em Minas! — As circuntancias actuaes são espinhosas porem as Leis relativas aos Indíos não revogadas pelas Bazes; logo existem; e podem servir havendo um director Geral Capaz de reger aquelles Indíos e o Governo Provizorio querendo fortem.te apoialo. — O Supp.e que conhcece a lingua e os Custumes dos Indíos q. viveu 9 annos entre elles, q. os ama como filhos, pede a V. A. R. se digne sem alterar a Ordem de Promoção que lhe pertencer na Linha Ordemnar seja reenviado entre elles: pois sendo o Regim.to de Linha desperso, como se acha pouco ou nada seus serviços, são uteis em V. R. e m. Entre os Indios. — Cazo disto ser incompatível, V. A. R. pode passar o Supp.e com o ad’atam.to: que lhe compette, e Competir pelo futuro na Linha. 45 45. Correspondência de Marlière ao Tenente Coronel Tesoureiro das Tropas, de 24 de abril de 1822. O francês elenca suas realizações como Diretor Geral dos Índios, lamenta o panorama da situação após sua saída e pede para ser reenviado à função (Marlière, 1907 , p. 425).

Não obstante, o comandante não concebia a valorização do modo de vida tracional dos indígenas. Tal qual seus pares, estava convicto de que o único caminho possível para os povos originários daquele território era mesmo a sua integração à sociedade colonial. Por meio da vida nos aldeamentos organizados, deveriam submeter-se aos ensinamentos da fé cristã, à agricultura e aos trabalhos manuais no modelo ocidental. A grande diferença foi, de fato, o seu modus operandi pacificador, que se baseava em convidar e atrair para a vida sedentária as tribos e comunidades encontradas, por meio do oferecimento de alimentos e artigos simples, como roupas, ferramentas agrícolas e mesmo armas brancas. Bonificações e premiações eram concedidas aos militares que contribuíssem para o exercício de aldeamento, seguindo uma prática de incentivos comum a praticamente toda a história da questão indígena na região.

Para pôr em prática essa estratégia, inclusive, ele contava com a ajuda de nativos, que, se beneficiando da maior facilidade de contato, atuavam como mediadores e “propagandistas” dos benefícios da vida nos aldeamentos entre outros povos, que insistiam em permanecer em liberdade. Esses personagens eram conhecidos pelos colonos como “línguas”, e eram na grande maioria indígenas que, quando crianças, haviam sido sequestrados de seus povos e distribuídos para serem criados entre os colonos, conforme estudo de Paraíso. 46 46. Cf. Paraíso, op. cit.

Conforme observa Almeida, Marlière foi então o responsável direto por encontrar uma “fórmula” capaz de reduzir, efetivamente, a presença dos variados povos indígenas nas matas e sertões mineiros, por exemplo, com a reestruturação da organização de aldeamentos existentes desde as primeiras experiências missionárias na região. Sob sua orientação, povos indígenas coroados, coropós e puris foram divididos em aldeamentos espalhados em três distritos diferentes, respectivamente de São João Baptista do Presídio, São Manoel da Pomba e São Paulo do Manoel Burgo. 47 47. Almeida, op. cit. Essa divisão é observada com clareza já no “Novo Mappa da Capitania de Minas Geraes” ( Figura 14 ), datado de 1821NOVO Mappa da Capitania de Minas Geraes. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821. Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Geaem), Lisboa, Portugal. e de autoria de Wilhelm Ludwig von Eschwege.

Figura 14
- “Novo Mappa da Capitania de Minas Geraes”. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821NOVO Mappa da Capitania de Minas Geraes. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821. Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Geaem), Lisboa, Portugal. . Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm.

Reflexos da política intensiva e revigorada de aldeamentos também são observados pelo grande número de referências a essas estruturas no mapa de Eschwege. É muito interessante observar, por exemplo, que na legenda do documento ( Figura 15 ) as Aldeas d’Indios , embora mantenham um símbolo representativo mais simples ganham precedência em relação aos Destacamentos e Postos Reaes .

Figura 15
- Detalhe da legenda do “Novo Mappa da Capitania de Minas Geraes”. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821NOVO Mappa da Capitania de Minas Geraes. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821. Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Geaem), Lisboa, Portugal. . Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm.

Na área onde se concentrou a atuação de Marlière, na região do vale do rio Pomba (Figuras 16 e 17 ), o engenheiro alemão registrou uma série de aldeamentos, a maioria sem identificação com nome próprio. Outras, porém, podem ser associadas a nomes como S. João Baptista ; Aldea do Morro ; Manoel Burgo . Muitos outros registros de aldeamentos são sinalizados ao longo do documento, e, além dos Districto dos Indios Puris aldeados; Districto dos Indios Cropos ; Districto dos Indios Croatos , 48 48. Ibid . encontramos também o Districto dos Indios Pelas e o Districto dos Indios Metios 49 49. Ibid . ao longo do curso do Rio Paraíba , em direção à Capitania do Rio de Janeiro.

Figura 16
- Detalhe da região do vale do rio Pomba, com os distritos organizados por Marlière em destaque no “Novo Mappa da Capitania de Minas Geraes”. Levantado por Guilherme Barão D’Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821NOVO Mappa da Capitania de Minas Geraes. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821. Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Geaem), Lisboa, Portugal. . Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm.

Figura 17
- Detalhe da região dos distiritos dos Coropós e Coroados, com a presença de aldeamentos como S João Baptista e Aldea do Morro ; destaque também para a fazenda GuideWald , onde Marlière estabeleceu residência e é hoje a cidade de Guidoval. Elaborado em “Novo Mappa da Capitania de Minas Geraes”. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821NOVO Mappa da Capitania de Minas Geraes. Levantado por Guilherme Barão D´Eschwege, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros, 1821. Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (Geaem), Lisboa, Portugal. . Escala [ca. 1: 1 000 000]. (Cópia sem data). 1 mapa ms. em 4 folhas coladas, color. à mão; 141 cm × 104 cm.

Fato é que foi por meio do modelo estabelecido por Marlière que a Coroa portuguesa conseguiu alcançar o “sucesso” no que entendia como pacificação e conquista da porção leste do território mineiro. Não obstante, a atuação do francês foi determinante para o surgimento e a consolidação de uma série de núcleos urbanos, que inclusive originaram várias cidades da atual Zona da Mata mineira, sendo apontado como um “semeador de cidades” na região. 50 50. Cf. Stephan, Soares e Ribeiro ( 2012 ). Receberam influência de sua atuação, por exemplo, as cidades de Viçosa, Muriaé, Ubá, Guidoval, Miraí, Rio Pomba, Cataguases e Argirita, além de Visconde do Rio Branco, a antiga São João Baptista do Presídio, onde Marlière inicialmente chegou no território das Minas ( Figura 18 ). A extensão da influência de Marlière na configuração territorial do leste mineiro pode ser, como já foi, objeto de análise de uma série de estudos, inclusive com a mobilização da cartografia histórica em seu entendimento. Para os fins deste trabalho, no entanto, permanecemos “somente” com a visualização dos reflexos de sua política de pacificação na proliferação do número de aldeamentos organizados pelos colonos para a “civilização” dos povos indígenas do leste mineiro.

Durante o período de atuação das divisões militares, que se estendeu até 1839, todos os grupos e nações indígenas da margem meridional do rio Doce chegaram a ser atraídos pelas práticas de aldeamento. Dos grupos da margem setentrional poucas foram as nações que se mantiveram arredias, caso dos jiporok e gutkrak. 51 51. Cf. Espíndola, op. cit. Os anseios econômicos oriundos da exploração da navegação do rio Doce, no entanto, se mostraram frustrados, nunca alcançando o potencial outrora enxergado pelas autoridades governamentais; em decorrência disso, decresceu exponencialmente o interesse pela administração dos povos indígenas na região, e as divisões militares foram extintas e substituídas por Companhias de Pedestres. 52 52. Ibid .

Figura 18
- Localização de municípios da Zona da Mata mineira que sofreram influência da atuação de Marlière.

DESINTERESSE OFICIAL E CONCENTRAÇÃO ESPACIAL

Com o retorno do agravamento das tensões entre indígenas e colonos na região e a falta de recursos, humanos e financeiros, destinados ao tratamento dessas questões, a opção adotada foi a de concentrar os aldeamentos em uma região ainda menor, centralizando a problemática para a região entre os vales do rio Doce e Mucuri. Essa concentração pode ser observada na “Carta Topographica do Mucury” ( Figura 19 ), onde a presença indígena é notada como abundante.

Dessa nova proposta, que buscava a concentração de indígenas de forma indiscriminada, sem tecer muitas considerações pelas diferenças entre grupos e nações, somente o aldeamento de Itambacuri, localizado próximo à hoje cidade de Teófilo Otoni, concretizou-se como duradouro, como constatado por Mattos. 53 53. Mattos ( 2011 ). Finalmente, outra consequência do desinteresse oficial das autoridades governamentais pela questão indígena, no período, foi a transferência das responsabilidades de direção, catequização e civilização dos indígenas aos frades capuchinhos italianos, 54 54. Cf. Espíndola, op. cit . retornando à esfera missionária a tarefa de transformar os povos nativos em “cidadãos úteis” para o projeto colonial.

Figura 19
- “Carta Topographica do Mucury”. Coordenada e desenhada por Herculano V. Penna, 2º Tenente de Engenheiros, 1859 CARTA topographica do Mucury. Coordenada e desenhada por Herculano V. Penna, 2º Tenente de Engenheiros, 1859. Disponível em: http://bit.ly/43kMPhE . Acesso em: 29 fev. 2024.
http://bit.ly/43kMPhE...
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Figura 20
- Detalhe da “Carta Topographica do Mucury” atestando a extensa presença indígena no Vale do Mucuri; o núcleo de povoamento Philadelphia viria a se tornar a cidade de Teófilo Otoni. Carta Topographica do Mucury. Coordenada e desenhada por Herculano V. Penna, 2º Tenente de Engenheiros, 1859 CARTA topographica do Mucury. Coordenada e desenhada por Herculano V. Penna, 2º Tenente de Engenheiros, 1859. Disponível em: http://bit.ly/43kMPhE . Acesso em: 29 fev. 2024.
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Os documentos cartográficos posteriores, já representando Minas Gerais como província, corroboram o apagamento da presença indígena em Minas Gerais, sendo encontradas neles poucas menções dignas de nota.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Navegando pela história contida nos documentos cartográficos, podemos compreender melhor a percepção colonial sobre os povos indígenas do território que hoje chamamos de Minas Gerais, junto aos processos que levaram à configuração desse espaço. Em uma primeira análise, percebemos o papel das iluminuras na construção do imaginário colonial sobre a presença indígena no território mineiro, bem como seu declínio em detrimento da localização espacial mais precisa e voltada para o domínio do território.

A forma como foram enxergados esses povos originários fica também nítida em recursos mobilizados na produção cartográfica, como as notas explicativas e as legendas dos mapas analisados. Não obstante, constata-se que a redução da presença indígena nos registros cartográficos de Minas Gerais não se justifica, apenas, por uma questão de representação hierárquica, correspondente a um apagamento “simbólico”. Ela refletiu a redução objetiva das populações nativas, fruto de uma política de extermínio e dominação que logrou, em última instância, a expropriação de seus territórios, desde os tempos coloniais até os dias de hoje. Das palavras de um botocudo de Minas Gerais retiramos uma reflexão sobre o tamanho da violência provocada nesses atos:

O nome krenak é constituído por dois termos: um é a primeira partícula, kre , que significa cabeça, a outra, nak , significa terra. Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias da origem, que nos identifica como “cabeça da terra”, como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra. 55 55. Krenak ( 2020 , p. 48).

A partir da análise dos documentos relacionados se tem uma ideia razoavelmente completa dos processos que levaram à crítica situação dos povos indígenas em Minas Gerais. Esse reconhecimento é necessário na construção de um futuro que valorize a presença indígena na constituição de nosso povo e que se preocupe em construir alternativas de reparação. A cartografia histórica, como ramo da ciência cartográfica, pode e deve contribuir nessa tarefa.

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  • CARTA topographica do Mucury. Coordenada e desenhada por Herculano V. Penna, 2º Tenente de Engenheiros, 1859. Disponível em: http://bit.ly/43kMPhE . Acesso em: 29 fev. 2024.
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  • SALVIO, Vanessa Linke. Os conjuntos gráficos pré-históricos do centro e norte mineiros: Estilos e territórios em uma análise macrorregional. 2013. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
  • SANTOS, Márcia Maria Duarte dos; COSTA, Antônio Gilberto. O mapa de 1767 das Minas Gerais: Ecoando a questão dos limites da capitania. Acervo, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 48-66, 2016.
  • SANTOS, Márcia Maria Duarte dos; COSTA, Antônio Gilberto. Toponímia histórica de Minas Gerais, do Setecentos ao Oitocentos joanino, em mapas da capitania e comarcas. Belo Horizonte: UFMG, 2022. Disponível em: https://bit.ly/3TjuRts . Acesso em: 5 dez. 2023.
    » https://bit.ly/3TjuRts
  • SANTOS, Márcia Maria Duarte dos. Espaço e representação nas Minas setecentistas. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 46, n. 2, p. 44-59, 2010.
  • SOUTO, Alanna. Os indígenas na cartografia da América lusitana. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 12, n. 3, p. 817-837, 2017. DOI: 10.1590/1981.81222017000300009.
    » https://doi.org/10.1590/1981.81222017000300009
  • STEPHAN, Ítalo Itamar Caixeiro; SOARES, Josarlete Magalhães; RIBEIRO, Isadora Maria Floriano. Guido Thomaz Marlière, o “semeador” de cidades na Zona de Mata Mineira. Risco Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 16, p. 50-60, 2012. DOI: 10.11606/issn.1984-4506.v0i16p50-60.
    » https://doi.org/10.11606/issn.1984-4506.v0i16p50-60
  • 1.
    Costa e Ratts ( 2014COSTA, Kênia Gonçalves; RATTS, Alecsandro José Prudêncio. Representações Indígenas na cartografia colonial do Brasil Central. Okara: Geografia em Debate, João Pessoa, v. 8, n. 2, p. 197-212, 2014. ).
  • 2.
    Souto ( 2017SOUTO, Alanna. Os indígenas na cartografia da América lusitana. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 12, n. 3, p. 817-837, 2017. DOI: 10.1590/1981.81222017000300009.
    https://doi.org/10.1590/1981.81222017000...
    , p. 817).
  • 3.
    Santos ( 2010SANTOS, Márcia Maria Duarte dos. Espaço e representação nas Minas setecentistas. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 46, n. 2, p. 44-59, 2010. , p. 53).
  • 4.
    Prous ( 2006PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: A pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. , p. 8).
  • 5.
    Ibid ., p.13.
  • 6.
    Ibid ., p. 14.
  • 7.
    Salvio ( 2014SALVIO, Vanessa Linke. Os conjuntos gráficos pré-históricos do centro e norte mineiros: Estilos e territórios em uma análise macrorregional. 2013. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. ).
  • 8.
    Almeida ( 2011ALMEIDA, Maria Inês de. Povos indígenas de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. ).
  • 9.
    Cf. Anastasia (1994) apud Langfur ( 2011LANGFUR, Hal. Mapeando a conquista. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 47, n. 1, p. 32-48, 2011. ).
  • 10.
    Santos e Costa ( 2016SANTOS, Márcia Maria Duarte dos; COSTA, Antônio Gilberto. O mapa de 1767 das Minas Gerais: Ecoando a questão dos limites da capitania. Acervo, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 48-66, 2016. ).
  • 11.
    Cf. Langfur, op. cit.
  • 12.
    Libby ( 1988LIBBY, Douglas Cole. Historiografia e a formação social escravista mineira. Acervo, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 7-20, 1988. ).
  • 13.
    Espindola ( 2011ESPINDOLA, Haruf Salmen. Extermínio e servidão. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 47, n. 1, p. 48-64, 2011. , p. 51).
  • 14.
    Santos e Costa ( 2022 SANTOS, Márcia Maria Duarte dos; COSTA, Antônio Gilberto. Toponímia histórica de Minas Gerais, do Setecentos ao Oitocentos joanino, em mapas da capitania e comarcas. Belo Horizonte: UFMG, 2022. Disponível em: https://bit.ly/3TjuRts . Acesso em: 5 dez. 2023.
    https://bit.ly/3TjuRts...
    ).
  • 15.
    Id ., 2016.
  • 16.
    Ibid .
  • 17.
    Carta geographica da Capitania de Minas Geraes, 1767CARTA geographica da capitania de Minas Geraes, e partes confinantes. Anno de 1767. [s. a.]. 168,3 cm × 124,3 cm; Manuscrito, color. à mão, tinta ferrogálica e nanquim, em folha 175,5 cm x 127 cm; Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. .
  • 18.
    Langfur, op. cit.
  • 19.
    Ibid .
  • 20.
    Carta geographica da Capitania de Minas Geraes, 1767CARTA geographica da capitania de Minas Geraes, e partes confinantes. Anno de 1767. [s. a.]. 168,3 cm × 124,3 cm; Manuscrito, color. à mão, tinta ferrogálica e nanquim, em folha 175,5 cm x 127 cm; Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. .
  • 21.
    Cf. Almeida, op. cit.
  • 22.
    Cf. Brasil ( 1987BRASIL. Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju. 2. reimp. Rio de Janeiro: Fundação Instituto de Geografia e Estatística; Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. ).
  • 23.
    Uma análise detalhada da figura e da produção de José Joaquim da Rocha pode ser encontrada em Furtado ( 2009FURTADO, Ferreira Júnia. Um cartógrafo rebelde?: José Joaquim da Rocha e a cartografia de Minas Gerais. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 155-187, 2009. DOI: 10.1590/S0101-47142009000200009.
    https://doi.org/10.1590/S0101-4714200900...
    ).
  • 24.
    Ibid ., p. 179.
  • 25.
    Ibid .
  • 26.
    Cf. Furtado (2012) apud Souto, op. cit.
  • 27.
    Em local correspondente, no mapa anônimo de 1767, encontra-se uma nota explicativa que alerta sobre o “Gentio Bravo” dos “Imburés”.
  • 28.
    Fonseca ( 2011FONSECA, Claudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: Espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. ).
  • 29.
    Ibid ., p. 126.
  • 30.
    Santos, op. cit. , p. 56.
  • 31.
    Entendemos que o personagem mencionado é o já citado Luís Diogo Lobo da Silva, governador da Capitania de Minas Geraes entre 1763 e 68 e responsável, conforme supracitado, pela “Conquista do Cuieté”, além de outros movimentos de invasão e ocupação dos sertões e selvas mineiras.
  • 32.
    A transcrição mais provável é “Sertão inculto dominado pelo bárbaro gentio Puri”.
  • 33.
    Ibid .
  • 34.
    Cf. Espíndola, op. cit.
  • 35.
    Ibid .
  • 36.
    Ibid ., p. 52.
  • 37.
    Ibid ., p. 54.
  • 38.
    Ibid .
  • 39.
    Cf. Paraíso ( 2011PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os kurukas no mercado colonial. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 47, n. 1, p. 78-98, 2011. ).
  • 40.
    Cf. Espíndola, op. cit.
  • 41.
    Ibid .
  • 42.
    Ibid .
  • 43.
    Ibid .
  • 44.
    Marlière ( 1907 MARLIÈRE, Guido Thomaz. Ofícios. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, ano 12, p. 409-603 1907. Disponível em: https://bit.ly/3v4yOst
    https://bit.ly/3v4yOst...
    ).
  • 45.
    Correspondência de Marlière ao Tenente Coronel Tesoureiro das Tropas, de 24 de abril de 1822. O francês elenca suas realizações como Diretor Geral dos Índios, lamenta o panorama da situação após sua saída e pede para ser reenviado à função (Marlière, 1907 MARLIÈRE, Guido Thomaz. Ofícios. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, ano 12, p. 409-603 1907. Disponível em: https://bit.ly/3v4yOst
    https://bit.ly/3v4yOst...
    , p. 425).
  • 46.
    Cf. Paraíso, op. cit.
  • 47.
    Almeida, op. cit.
  • 48.
    Ibid .
  • 49.
    Ibid .
  • 50.
    Cf. Stephan, Soares e Ribeiro ( 2012STEPHAN, Ítalo Itamar Caixeiro; SOARES, Josarlete Magalhães; RIBEIRO, Isadora Maria Floriano. Guido Thomaz Marlière, o “semeador” de cidades na Zona de Mata Mineira. Risco Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 16, p. 50-60, 2012. DOI: 10.11606/issn.1984-4506.v0i16p50-60.
    https://doi.org/10.11606/issn.1984-4506....
    ).
  • 51.
    Cf. Espíndola, op. cit.
  • 52.
    Ibid .
  • 53.
    Mattos ( 2011MATTOS, Izabel Missagia de. Educar para dominar. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 47, n. 1, p. 98-110, 2011. ).
  • 54.
    Cf. Espíndola, op. cit .
  • 55.
    Krenak ( 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 48).
  • DORNELA, Bernardo de Pinho Tavares; COSTA, Antônio Gilberto. Cartografia da invasão, conquista e ocupação de territórios indígenas em Minas Gerais. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 32, p. 1-29, 2024.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2023
  • Aceito
    16 Fev 2024
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