Open-access O líqüido cefalorraqueano na sífilis congênita

RESUMO

Estudamos o comportamento do liqüido cefalorraqueano na lues congênita. Iniciamos pela enumeração das percentagens das alterações que esse líqüido apresenta, conforme a idade dos pacientes. Prosseguimos, relatando os quadro liquóricos encontrados nas diferentes formas clínicas da neurolues congênita: hidrocefalia, meningite, processos meningovasculares e parenquimatosos, exemplificando com observações clínicas. Passamos, depois, ao estudo da neurolues congênita assintomática precoce.e tardia, atendo-nos na importância do exame liquórico, pois só ele permite o diagnóstico da infecção em tempo útil para terapêutica e profilaxia eficazes. Nesse intuito estudamos as épocas em que se deve efetuar a punção e a necessidade do exame liquórico compreender todas as pesquisas de rotina; relatamos pormenorizadamente as alterações das diversas reações e seus valores. Por último, dedicamos algumas considerações sôbre a profilaxia da neurolues congênita, relatando histórias de famílias de neuroluéticos, no intuito de demonstrar o interesse da evidenciação dos casos precoces e o valor dos exames serológicos e liquóricos para esse desiderato.

SUMARRY

The behaviour of the cerebro spinal fluid in congenital syphilis is studied. We begin enumerating the percentages of changes presented in that fluid, according to the age of the patients. We proceed with the liquoric syndromes found in the various clinical forms of congenital syphilis: hydrocephalus, meningitis, meningovascular and parenquimatous processes, exemplifying with clinical cases. Afterwards we study early and late congenital assymptomatic neurosyphilis, stressing on the importance of the examination of cerebro-spinal fluid, for only by such method we are capable of making a diagnosis of the disease early enough to begin efficient treatment and prophylaxis. With that in mind we study the periods when punctures should be done, and the necessity of making a thorough examination of the fluid as a routine procedure; the changes presented and their value are thoroughly explained. Finally, some considerations on the prophylaxis of congenital neuro-syphilis are made, presenting the background of some neurosyphilitic patients, with the intent of demonstrating the interest of exposing the early cases and the value of serological and liquoric examination in such cases.

Na sífilis congênita, o liqüido cefalorraqueano altera-se, em diferentes percentagens, segundo a idade dos pacientes. Até a idade de um ano, encontra-se alterado em 50% dos casos1; de um a dez anos, em 31%2; de dez a dezenove anos, em 17%; de vinte a vinte e nove anos, em 10%3. Observação superficial verifica que há evidente decréscimo na percentagem de incidência de liquor alterado, na proporção que aumenta a idade dos luéticos congênitos, fato que poderíamos chamar de esterilização espontânea. Ele se deve a diversos fatores, dos quais os mais importantes são: a constante e progressiva impermeabilização da barreira hemoliquórica, à medida que aumenta a idade4; a ação benéfica do tratamento, mesmo que exclusivamente quimioterápico, isto é, sem ação anterior da piretoterapia, principalmente quando feito nas idades mais precoces, ocasião em que a barreira hemoliquórica é mais permeável; a eliminação dos casos mais graves pela morte, que teria ação higiênica, num sentido social.

As alterações liquóricas encontradas não são uniformes; elas variam em grau e forma, constituindo as mesmas síndromes encontradas na neurolues adquirida. Não existe quadro liquórico específico da neurolues infantil, porquanto, adquirida ou congênita, a lues apresenta os mesmos processos, infeccioso e reacional, produzindo idênticos quadros anátomo-patológicos e formas clínicas superponíveis, diferençadas tão somente em relação ao fato de que, na lues congênita, o agente infeccioso lesa sistema ainda não desenvolvido, o que empobrece o quadro semiótico. As formas clínicas da lues congênita se superpõem àquelas da adquirida, com o mesmo tempo de latência, a mesma evolução, a mesma orientação patogênica, condicionando o aparecimento precose das formas mesenquimais, e tardio das parenquimatosas5. É, assim, válido para a neurolues congênita, o ótimo diagrama de Merritt6 sobre a evolução da neurossiífilis adquirida.

Nos primeiros anos após a invasão do sistema nervoso central pelo espiroqueta, três eventualidades podem ocorrer na lues adquirida: regressão espontânea, meningite assintomática ou meningite sintomática. A estas podemos acrescentar mais uma, específica para a neurolues congênita, a hidrocefalia, que advém nas primeiras semanas de vida extra-uterina, ou mesmo nos primeiros dias. A meningite assintomática pode evoluir para a cura, para uma fase tardia, do 5.° ao 15.° ano, também sem sintomatologia, ou para as formas meningovascular, que ocorrem nas mesmas épocas. Mesma evolução apresenta a meningite sifilítica sintomática, exclusão feita da regressão e incluindo a possibilidade de originar, diretamente, formas parenquimatosas, freqüentes após o décimo-quinto ou vigésimo ano de evolução. A meningite sifilítica assintomática tardia pode evoluir originando formas meningovasculares ou parenquimatosas. Estas últimas, que são as formas clínicas mais tardias, originam-se pela invasão do parênquima nervoso pelo microorganismo provindo da meningite sintomática ou assintomática tardia ou ainda, de lesão meningovascular.

Nessas síndromes clínicas, o liquor apresenta quadros diversos, concordantes com tipo, intensidade e localização da lesão. Na hidrocefalia, manifesta-se síndrome liquórica hipertensiva, devido ao aumento da massa liqüida intracraniana. Nesses casos, quando for possível medir a pressão, o que é difícil em crianças, observamos ser alta no início e conservar-se ainda elevada após a retirada de 10 cm3. Os quocientes de Ayala tenderão para os da meningite serosa. Encontraremos, ainda, pequena hipercitose linfomononuclear, sem polinucleares neutrófilos e plasmócitos. A vitalidade celular será baixa, haverá hiperproteinorraquia sem inversão do quociente protéico; as taxas de cloretos e glicose estarão normais ou levemente aumentadas. As curvas coloidais e as reações de fixação de complemento e de floculação específicas para lues podem ou não ser positivas. O quadro liquórico aproxima-se daquele da meningite serosa.

Observação 1 - I. C. S., de 19 meses de idade, examinada no Serviço de Medicina Infantil da Santa Casa pelo Dr. Paulo C. França. Filha de pais luéticos, veio a consulta por apresentar secreção fétida e purulenta do ouvido esquerdo; pesava 5600 grs. e media 66 cm3 de altura. Notava-se grande aumento da cabeça em relação ao maciço facial, fontanela bregmática aberta, circunferência craniana de 43 cm, nariz em sela. A radiografia do crânio revelava acentuada osteoporose. Havia nistagmo horizontal, escleróticas azuladas, reflexos oculares, cutâneos e tendinosos normais. O exame do líquor obtido por punção lombar mostrou número normal de células e taxa normal de proteínas totais, porém as reações coloidais eram de tipo parenquimatoso e as reações específicas, positivas. Infelizmente, não foi possível medir a pressão.

Na meningite sintomática, o líquor apresenta-se bastante alterado: hipertenso, com as mesmas características descritas na hidrocefalia, se bem que menos intensas; grande aumento do número de leucócitos, que de 200 por mm3, na maioria dos casos, podem alcançar a casa dos mil. Quando o número de leucócitos aumenta muito, há modificação da fórmula leucocitária, com aparecimento de polimorfonucleares neutrófilos, que podem alcançar 20 a 60% do número total de células. Nesses casos, o diagnóstico diferencial com as meningites purulentas agudas é feito pela positividade das reações específicas para sífilis ou a presença de germes patogênicos. Quando há grande aumento da taxa de proteínas totais, é possível existir positividade inespecífica das reações de Wassermann e de floculação e, se não for evidenciado germe puru-lento, o diagnóstico torna-se difícil. Outra dificuldade diagnóstica pode ocorrer quando as taxas de cloretos e glicose sofrem grande redução, aproximando-se daquelas encontráveis na meningite tuberculosa:

Observação 2 - J. M. L., 22 anos, masculino, registro H C 58.976. Quatro meses após protossifiloma mal medicado, apresentou dores no joelho direito, seguidas de dormência na perna direita e diminuição da força muscular. Dias depois, advieram dores na coluna vertebral de tal intensidade e extensão que o paciente adotou posição de absoluta imobilidade da cabeça e coluna, com lordose acentuada. Poucos dias depois, instalou-se paraparesia crural flácida: as radiografias revelaram osteoporose da coluna, com deformação das últimas vertebras lombares e o exame de liquor mostrou hipercitose de 932 elementos por mm3 (linfócitos e monócitos), formação de retículo fibrinoso, hipocloro e hipoglicorraquia, grande aumento da taxa protéica, positividade das reações de fixação de complemento e floculação específicas para lues. O diagnóstico etiológico foi discutido, sendo aventadas hipóteses de lues (meningo-radículo-mielite) e tuberculose. Quanto à primeira, havia de estranho a acentuada queda das taxas de cloretos e glicose, que não são habituais. A segunda hipótese foi defendida pela existência dessa acentuada queda e pela presença de retículo de Mya. As reações positivas para lues, tanto poderiam ser explicadas pela passagem das reaginas luéticas do sangue por rotura da barreira hemoliquórica, devida à inflamação meníngea, como poderiam ser inespecíficas dado o grande aumento da taxa protéica. A negatividade dos exames bacterioscópico, cultural e da inoculação em cobaia afastou definitivamente a hipótese de tuberculose. A medicação específica - penicilina e arsênico - resolveu o caso, comprovando, também, o diagnóstico de lues.

Podemos resumir o quadro liquórico da meningite luética sintomática em hipertensão com quocientes de Ayala de tipo meningítico, hipercitose com linfomononucleose, hiperproteinorraquia sem inversão do quociente protêico, hipocloro e hipoglicorraquia de pequena intensidade, reações coloidais de tipo meningítico, positividade das reações de fixação de complemento e de floculação específicas. De grande valor diagnostico entre a meningite e as formas meningovasculares de um lado, e as formas parenquimatosas de outro, é a reação de Steinfeld que, negativa nas primeiras, se positiva nas últimas.

Observação 3 - L. G.., de 4 meses de idade, examinada no Serviço Social de Indústria. A moléstia iniciou-se com resfriado, tosse, choro contínuo; a criança passou a alimentar-se menos, o estado geral tornou-se péssimo. Ao exame realizado um mês depois, apresentava opistótono, hipertonia, fontanela bregmática tensa e abaulada, sinais de Kernig e Brudzinski. O exame do liquor mostrou aspecto turvo, com hipercitose de 324,6 células por mm3 (linfócitos 62%, monócitos 22%. polinucleares neutrófilos 16%), 0,20 grs de proteínas totais por litro, reação de Pandy positiva, curva do benjoim coloidal de tipo mixto (11100.22222.21000.0) e reação de Wassermann fortemente positiva com 0,5 cm3.

Os processos meningovasculares adotam formas clínicas variadas: déficit mental, lesão de nervos cranianos, hemiplegias, paraplegias, diplegias. São devidos a processos de trombose dos vasos sangüíneos do sistema nervoso central. O quadro liquórico é, também, variado, e está na dependência da localização e intensidade das lesões. Como-o liquor se origina, principalmente, nos plexos corióideos e circula pelos ventrículos e espaço subaracnóideo, estando em íntimo contacto com a leptomeninge, à qual acompanha nas suas invaginações perivasculares e perinervosas, espelha, de maneira absoluta, as alterações dessa membrana. Dessa forma, quando as lesões ocorrem próximas à leptomeninge e esta vem a sofrer alteração de caráter inflamatório específico, o líquor se altera no sentido da síndrome meningítica; quando as lesões são profundamente situadas no parênquima, de forma a não alterar a leptomeninge, o líquor pode ser normal.

Observação 4 - M. A. M., de 12 anos de idade, examinada no Serviço de Neurossífilis da Liga de Combate à Sifilis, do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, sob o n.° 5. Filha de mãe luética, a criança, cuja reação de Wassermann no sangue foi positiva, apresentou, aos 3 anos de idade, hemiplegia esquerda que se tornou espástica, de tipo piramidal, com hemiatrofia; pé em flexão plantar com grande artelho em extensão (sinal de Babinski espontâneo); mão com dedos em extensão. O exame do liquor foi normal: punção suboccipital em decúbito lateral, pressão inicial 10 cm3 de agua, aspecto límpido e incolor, 0 célula por mm3, 0,10 grs de proteínas totais por litro, reações de Pandy e Nonne-Apelt negativas, reação de benjoim coloidal 00000.00000.00000.0, reação de Takata-Ara negativa, reações de Wassermann, Steinfeld e Eagle negativas com 1 cm3 e reação de Meinicke negativa com 0,4 c3.

Nos casos de localização profunda, o liquor pode, ainda, apresentar síndrome tumoral inespecífica, isto é, com as reações específicas para lues negativas, caso a lesão luética atue comprimindo o sistema de canais por onde circula o liquor. Nos casos de goma - raros na lues congênita - instala-se a síndrome liquórica de hipertensão, com grande aumento da pressão inicial, que rapidamente cai, originando pequena pressão após a retirada de 10 cm3 e quocientes de Ayala de tipo tumoral. As demais reações podem-se encontrar normais ou haver xantocromia e dissociação albumino-citológica.

Entre estes casos extremos, o quadro liquórico pode oferecer toda uma gama de nuances, inclusive, no caso de evolução parenquimatosa do processo inicialmente vascular, síndrome de tipo parenquimatoso com reação de Steinfeld positiva. Na maioria dos casos encontraremos quadro liquórico com pequena hipercitose (linfomononucleose), pequena hiperproteinorraquia sem inversão do quociente protêico, taxas normais de cloretos e glicose, curvas coloidais de tipo parenquimatoso e positividade das reações de fixação de complemento e de floculação específicas para lues, com reação de Steinfeld negativa.

Observação 5 - J. B. L., com 28 anos, registro S N n.° 8009. Filho de pais luéticos. De onze irmãos, dez faleceram com menos de um ano de idade. Desde criança sofreu de perturbações nervosas. Aos 13 anos apresentou abalos súbitos dos braços, que se generalizavam, às vezes, sob forma de convulsões clônicas. Com 25 anos de idade, após uma dessas crises, fez reação de Wassermann no sangue, que resultou fortemente positiva. Tratou-se durante um ano, findo o qual permanecia fortemente positiva a reação de Wassermann. Intensificou o tratamento por mais dois anos, sem resultado clínico e humoral. Quando foi examinado, apresentava crises epilépticas completas, havia aumento do volume craniano, dentes de Hutchinson, pálato em ogiva, atenção fatigável, hipomnésia, oligofrenia. apatia, indiferença, ligeira anisocoria e contração involuntária dos grupos musculares da face e membro superiores, que se aproximam dos tiques ou mioclonias. O exame do liquor, obtido por punção suboccipital em decúbito lateral, mostrou pressão inicial de 8 cm3 de agua, aspecto límpido e incolor, hipercitose de 14,6 células por mm3 (linfomononucleose), reação de Pandy positiva, benjoim coloidal 01221.12222.10000.0, reação de Takata-Ara de tipo floculante, reação de Wassermann fortemente positiva com 0,5 cm3 e reação de Steinfeld negativa com 1 cm3.

Nas formas parenquimatosas - tabes, neurite óptica, paralisia geral juvenil - as alterações do liquor alcançam a máxima expressão sob o ponto de vista específico, consistindo no que se denomina a síndrome parenquimatosa luética. Nesses casos há pequena hipertensão com quocientes de Ayala de tipo meningítico, hipercitose com linfomononucleose e células plasmocitárias, todas com grande vitalidade, hiperproteinorraquia com inversão do quociente protêico, reações coloidais com intensa curva parenquimatosa, reações de fixação de complemento, inclusive a de Steinfeld e de floculação intensamente positivas, mesmo com pequenas doses de liquor.

Observação 6 - M. T. O., 12 anos de idade, reg. L. C. S. 148. A menina veio à consulta por serem seus pais luéticos, tendo a mãe soro-reação de Wassermann resistente. A paciente apresentava retardo do desenvolvimento físico, dentes de Hutchinson, pálato ogival, maciço facial achatado, agenesia dos caninos, oligofrenia, ligeira disartria, hipomnésia. A reação de Wassermann no sangue foi fortemente positiva. O liquor, obtido por punção suboccipital em decúbito lateral, mostrou hipertensão de 15 cm3 de água, aspecto límpido e incolor, hipercitose de 26,4 células por mm3 constituída por linfócitos, mononucleares e plasmócitos, pequena hiperproteinorraquia de 0,20 grs por litro, reação de Pandy fortemente positiva, reação de benjoim coloidal 01222.22221.00000.0, reação de Takata-Ara fortemente positiva de tipo fioculante, reações de Wassermann e Steinfeld fortemente positivas com 0,5 cm3 e reação de Meinicke positiva com 0,1 cm3. Foi medicada com malarioterapia e quimioterapia. A melhora clínica foi lenta. O liquor só se normalizou três anos depois de iniciado o tratamento. Esta observação, exemplo de paralisia geral juvenil em filha de luéticos, mostra a resistência ao tratamento da neurolues parenquimatosa quando já fixada, isto é, sintomática.

O exame do liquor adquire valor excepcional nos casos de meningite sifilítica assintomática, quer precoce, quer tardia, porquanto o diagnóstico clínico de neurolues é impossível, devido à inexistência de sintomatologia. O diagnóstico baseia-se, pois, exclusivamente, nos dados de laboratório. Devido a isto, Ravaut7 dividiu a sífilis nervosa em dois períodos: biológico e clínico. O primeiro - período biológico de Ravaut, lues assintomática de Leary, líquor-lues de Plaut - só revelado pelo exame liquórico, divide-se em duas etapas distintas, nas quais existem tipos diferentes de reações meníngeas: uma, reação do período septicêmico, caracterizada pela precocidade e pela possibilidade de desaparecer espontaneamente ou pela ação quimioterápica comum; outra, tardia, rebelde à quimioterapia antiluética, coexistindo com lesões anatômicas do parênquima nervoso. A primeira é a meningite luética assintomática precoce e, a segunda, a meningite luética assintomática tardia ou neurolues pré-clinica. Compreende-se a grande importância higiênica e social da evidenciação dos casos clínicos neste período, porquanto a lesão parenquimatosa existente é ainda pequena, não produziu sintomatologia clínica, passível, portanto, de completa regressão pela terapêutica da lues nervosa - malária, penicilina e quimioterapia - processando-se a cura rapidamente, sem seqüelas, em mais de 80% dos casos. Para esta finalidade - diagnóstico da neurolues pré-clinica - volta-se o interesse da medicina preventiva, utilizando-se o exame do liquor, que se mostra o melhor meio de apreciar o estado do sistema nervoso central durante o decurso da lues 8, devendo ser praticado em etapas sucessivas da vida do luético congênito. Resta saber quando puncionar 9. Nos casos de lues congênita secundária, o exame do liquor deve ser praticado 2 a 3 meses depois que as reações serológicas se negativaram por tratamento intenso. Se o exame resultar normal, a terapêutica deve ser continuada em dose menor, para manter e consolidar a cura. Se existirem anormalidades no exame do liquor, a terapêutica deve ser abandonada por ineficaz e substituída por outra mais enérgica, na qual se inclua a penicilina ou a malária. Nos casos de lues congênita terciária ou latente, o exame liquórico deve ser praticado antes de iniciar o tratamento, para despistar uma neurolues pré-clinica e orientar a intensidade da terapêutica. Relegado o exame para data posterior, o diagnóstico não é feito, a não ser quando sobrevenha a sintomatologia clínica, índice de maior lesão do parênquima nervoso. A terapêutica torna-se mais difícil10 - dificuldade de malarizar após tratamento luético habitual - e menos proveitosa11. Feito o exame antes do início do tratamento, este deve restringir-se ao esquema habitual, se o resultado fôr normal; caso contrário, impõe-se, desde o início, terapêutica especializada. Nova punção deve ser praticada após o tratamento intenso inicial para orientar a terapêutica posterior. É condenável tirar conclusões quanto ao estado do liquor, pelo exame sangüíneo, porquanto o tratamento reduz mais depressa a soro-reação que a reação meníngea. Ao abandonar definitivamente o tratamento, uma outra punção deve ser praticada com o fim de atender à possibilidade das neurorecidivas. Se o liquor fôr normal, está afastado o perigo de uma localização meníngea. Existe um fato que merece divulgação. São os chamados elementos residuais, isto é, permanência de ligeira hipercitose ou hiperproteinorraquia, com normalidade das demais reações. Eles indicam reação meníngea, em via de resolução, porém não completamente desaparecida. Esses sinais mínimos podem evoluir de duas maneiras: para completa normalidade ou para maiores alterações no exame liquórico. A sôro-reação pode conservar-se negativa, apesar do novo surto infeccioso meníngeo. Dessa forma, a presença de elementos residuais impõe prosseguimento enérgico do tratamento específico, até completa normalidade do liquor 12.

Além de ser realizado em épocas sucesivas e apropriadas da vida do neuroluético congênito, o exame liquórico deve constar de várias pesquisas, não só para evitar positividades dissociadas ou isoladas 13, como para facilitar a estandardização dos resultados e a uniformidade de interpretação. No exame do liquor, ve-se incluir: medida da pressão, exame citológico, dosagem das proteínas totais, dosagem de cloretos e glicose, pesquisa de globulinas, reações coloidais, reações específicas de fixação de complemento (sendo uma com antígeno cerebral) e reações de floculação.

A hipertensão nada tem de específico. Constitui a perturbação mais freqüente nos casos de meningite luética do período secundário14 (meningite luética assmtomática precoce) e diminui de freqüência à medida que a neurolues evolui para suas formas latentes (meningite luética assintomática tardia). Contudo, a pressão aumenta quando a infecção luética assume caráter agudo, como no início da tabes, paralisia geral progressiva, arterites, meningites e, principalmente, na hidrocefalia, onde alcança as maiores cifras.

O exame citológico fornece elementos de maior alcance prático. A hipercitose varia, desde as discretas com 3 a 8 células por mm3, até as muito intensas com 300, 500 ou mais células. Não existe, contudo, relação entre o número dessas células e a gravidade do processo infeccioso. Ao lado do exame quantitativo (citometria) deve ser feito exame qualitativo e o estudo da vitalidade celular15. A presença de plasmócitos e a intensa vitalidade das células indicam processo agudo e evolutivo.

A hiperproteinorraquia não é, geralmente, acentuada na sífilis, raramente atinge 1 gr. por litro, permanecendo entre 0,20 a 0,50 grs por litro. Ela é condicionada pelo número de elementos celulares (leucólise) e pela intensidade do processo destrutivo do parênquima. Quando se processa a regressão das alterações liquóricas, o teor protêico é o último a normalizar-se, constituindo o mais comum dos elementos residuais. Nos processos luéticos parenquimatosos, a hiperproteinorraquia se faz à custa do aumento da fração globulina, que altera a relação normal existente no liquor, originando a inversão do quociente protêico. Daí o valor das reações que pesquisam a globulina liquórica, reações do limiar de globulina, como as reações de Pandy, Nonne-Apelt, Weichbrodt, entre outras.

As alterações das reações coloidais, assim como a hipercitose e a hiperproteinorraquia, são inespecíficas. Alteram-se em função das lesões pare quimatosas ou meningíticas, originando curvas que, isoladamente, não têm significação diagnostica, mas, quando associadas às outras alterações do liquor, completando a síndrome liquórica das diferentes afecções neuroluéticas, têm grande importância. A evolução da curva das reações coloidais tem importância prognóstica, pois reflete o desaparecimento ou recrudescimento gradual do processo parenquimatoso, responsável pelas flcculações à esquerda nas reações do benjoim e do ouro coloidal.

A reação de Wassermann, aliada às reações de floculação, é o recurso mais seguro para o diagnóstico das afecções neuroluéticas. Sua especificidade é quase completa no exame do liquor. Algumas reações inespecíficas têm sido encontradas em liquor com forte teor protêico (tumores cerebrais, afecções bloqueantes do canal raquidiano), principalmente quando as proteínas provêm de desintegração parenquimatosa (encefalite epidêmica, cisticercose encefálica), ou em casos de meningites agudas em indivíduo luético, porquanto as reaginas específicas franqueiam a barreira hemoliquórica. Nos líquores hemorrágicos ou xanto-crômicos, a reação só deve ser praticada após inativação, para evitar a ação perturbadora das substâncias complementares do soro sangüíneo. Na maioria dos casos, os anticorpos são formados localmente, dentro do estojo ósseo crânio-raqueano; esses anticorpos diferem, quer sejam oriundos de lesão parenquimatosa ou mesenquinal. Nos portadores de neurolues parenquimatosa existem anticorpos cérebro-específicos que reagem, in vitro, com extrato cerebral-lipóide. A reação de Steinfeld permite, até certo ponto, diferençar, dentre as formas de neurolues, aquelas de substrato parenquimatoso, nas quais se positiva, enquanto que permanece negativa nos processos luéticos meningovasculares ou mesenquimais16. Essa reação pode fornecer, também, indicações prog-nósticas nos casos de neurolues parenquimatosa, e, com maior razão, nos de neurolues pré-clínica; nos casos em que a positividade da reação de Steinfeld indicasse a existência de lesão parenquimatosa, seria pior o prognóstico.

Tem grande importância conhecer a possibilidade das reações liquórícas sofrerem flutuações consideráveis. A hipercitose, por exemplo, pode variar enormemente, a ponto de dobrar ou triplicar com poucos dias de intervalo. As demais reações, com a hiperproteinorraquia, a hiperglobulinorraquia, as reações coloidais também variam, se bem que menos intensamente. São mais estáveis as reações de fixação de complemento e as de floculação.

Estudamos os quadros liquóricos nas diversas formas clínicas de neurolues congênita, frisando a importância do exame do liquor, para o diagnóstico da meningite luética assintomática e a grande importância prognóstica do reconhecimento precoce da infecção. Nesse intuito, particularizamos as épocas indicadas para a colheita do liquor e o exame rotineiro, necessário para completa elucidação diagnóstica. Além do reconhecimento da neurolues pré-clínica, o exame liquórico tem grande valor na profilaxia social da neurolues congênita. As estatísticas17 informam que a incidência de neurolues é duas vezes maior nas esposas de neuro-luéticos, que nas esposas de luéticos, e que os filhos de neuroluéticos têm maior tendência à neurolues congênita, que os filhos de luéticos. A explicação desse fato nos levaria a discutir a questão do terreno em patologia e a da predisposição mórbida, além da possibilidade, atualmente revivida pelos trabalhos de cataforese18, de existirem raças neutrópicas de treponema. Não nos vamos deter no assunto teórico19, mas apresentaremos algumas famílias por nós estudadas no Serviço de Neurossífilis da Liga de Combate à Sífilis, do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, no intuito de provar, concretamente, o grande valor diagnóstico e prognóstio do exame liquórico nos casos em que exista ascendência ou descendência luética. É, aliás, de boa norma, puncionar todos os luéticos congênitos, cuja lues seja comprovada serològicamente, porquanto, em um terço dos casos o liquor se apresenta alterado20.

1) Família MeL - Entramos em contato com esta família, em 1944, por intermédio de um de seus membros, M. M. (ficha n.° 220), com 27 anos de idade, sexo feminino, solteira, que referiu a seguinte história clínica: em 1932, por sentir cefaléia frontal e dores pelo corpo, que se irradiavam para os membros inferiores, fez exame de sangue, que resultou fortemente positivo para lues. Foi medicada com bismuto e arsênico durante um ano, tendo piorado, pois as dores aumentaram de intensidade e as pernas enfraqueceram dificultando a marcha; apresentou, também, incontinência de urina. Internada, fez exame de liquor, que resultou positivo para lues: punção lombar, 5 células por mm3 (linfomononucleose), 0,40 grs de proteínas totais por litro, 7,40 grs de cloretos por litro, reações de Pandy e Nonne-Apelt positivas, reações de benjoim coloidal 12222.22221.00000.0, reação de ouro coioidal 566.654.321.000, reação de Takata-Ara fortemente positiva (tipo floculante), reação de Wassermann fortemente positiva com 0,5 cm3. Fez malarioterapia e arsenoterapia, tendo melhorado. Até 1940 fez tratamento irregular e nesse ano, novamente internada, fêz piretoterania e arsenoterapia. Apesar da medicação, continuou queixando-se de cefaléia e dores que do tronco se irradiavam para os mem-mbros. Nos antecedentes refere grande retardo no desenvolvimento, pois falou com 3 anos de idade e andou com 5 anos. Aprendeu a ler e escrever nos 3 anos em que cursou o grupo escolar. Nunca manteve relações sexuais. O exame clínico mostrou diversos estigmas luéticos: fronte olímpica, nariz em sela, falta de dentes nos maxilares. O exame neurológico evidenciou leve anisocoria, vivacidade dos reflexos osteotendinosos e sinal de Romberg presente (quando sensibilizado). A reação de Wassermann no soro sangüíneo sempre fora fortemente positiva desde 1932 até 1944, apesar do tratamento; o liquor mostrou-se alterado: punção suboccipital em decúbito lateral, pressão inicial 10 cm3 de água, aspecto límpido e incolor, 0,3 células por mm3, 0,10 grs. de proteínas totais por litro, reações de Pandy c Nonne-Apelt negativas, reação de benjoim coloidal 01100.11000.00000.0, reação de Takata-Ara negativa, reações de Wassermann e Steinfeld fortemente positivas desde 0,5 cm3 e reação de Meinicke fortemente positiva com 0,4 cm3. O caso M. M., rotulado como mielite luética congênita, mostrou, na sua evolução, uma resistência muito grande ao tratamento que, embora irregular, fora intenso.

Pedimos a vinda da progenitora da paciente, que nos relatou a história familial. A progenitora, M. R. M., com 49 anos em 1944, casou-se aos 16 anos de idade com B. R. M., que faleceu com paralisia geral progressiva. Poucos dias após o casamento, apresentou inflamação do rosto, reumatismo e metrite. Teve 7 filhos, sendo 3 matimortos macerados e um falecido com 3 meses de idade por hemorragia interna. Dos 3 filhos vivos, uma apresenta mielite luética (M. M.), outro neurolues congênita assintomática (O. M.) e a última, lues congênita (Z. M.). Casada em segundas núpcias, provocou 4 abortos e um filho faleceu no primeiro dia de vida com meningite. Dos vivos, um é luético congênito (O. A.) e outro normal. Após o falecimento do segundo marido por edema agudo do pulmão, veio casar-se pela terceira vez. O atual marido apresenta positiva a reação de Wassermann no sangue. O exame clínico de M. R. M. mostrou coração aumentado, com o segundo tom aórtico inconstantemente clangoroso e desdobramento da primeira bulha em todos os focos, mais audível na ponta. O exame neurológico foi normal. A radioscopia mostrou aumento do coração, principalmente à custa do ventrículo esquerdo, aorta dilatada sem aneurisma. As reações de Wassermann e Kahn no soro sangüíneo foram negativas e o exame do liquor, normal.

O segundo filho, O. M., com 24 anos, masculino, queixou-se somente de grande sonolência. Nasceu a termo, de parto eutócico, após tratamento antiluético prenatal. Evolução física e psíquica normal. O exame clínico mostrou falta de dentes incisivos superiores e os inferiores serrilhados. O exame neurológico só evidenciou ligeira anisocoria. A reação de Wassermann no sangue foi fortemente positiva e o liquor, anormal: punção suboccipital em decúbito lateral, pressão inicial 20 cm3 de agua, pressão final 9, quocientes de Ayala: Qr=4,5 Qrd=l,l, aspecto límpido e incolor 22,4 células por mm3 (linfomononucleose), 0,20 grs de proteínas totais por litro, reações de Pandy e Nonne-Apelt opalescentes, reação de benioim coloidal 00001.22100.00000.0, reação de Takata-Ara negativa, reações de Wssermann e Steinfeld fortemente positivas desde 0,5 cm3 e reação de Meinicke fortemente positiva com 0,2 cm3. Este paciente foi malarizado e medicado com Arsenox (0,24 grs) que foi suspenso por apresentar sinais de intolerância. Outro exame liauórico, feito 3 meses depois da interrupção da terapêutica, mostrou reação de Wassermann fortemente positiva desde 0,5 cm3, com as demais reações normais. Após um ano de tratamento quimioterápico, o liquor normalizou-se. Este caso de meningite luética assintomática congênita tardia ou neurolues congênita pré-clinica, foi evidenciado exclusivamente porque fizemos exames clínico-neurológicos, serológico e liquórico sistemáticos na família de uma neuroluética congênita. A evolução mostrou, em oposição à de M. M., que os casos assintomáticos são de melhor prognóstico.

Duas irmãs examinadas, Z. M. e O. A., tiveram evolução física e psíquica normal, assim como os exames clínico e neurolóerico. Apresentavam estigmas luéticos. como pálato ogival. frente olímpica, tibialgia e esternalgia. As reações de Wassermann, no soro sangüíneo foram fortemente positivas, mas os exames de líauor foram normais. As reações de Wassermann no sangue negativaram-se, em O. A. após 1 ano de tratamento e, em Z. M.. após dois anos. Um irmão mais moço, apesar de apresentar fronte olímpica, prognatismo mandibular, espessamento da sutura frontotemporal, dentes de Hutchinson e diastemia dentária, teve normais os exames clínico, neurológico, sorológico e liquórico.

O estudo desta família evidencia a necessidade de exame sistemático de todos os componentes das famílias onde exista um neuroluético congênito; mostra a importância do diagnóstico precoce da neurolues para o prognóstico, assim como o papel preponderante da terapêutica pré-natal na prevenção da neurolues congênita, mesmo quando feita deficientemente.

2) Família Mar. - L. M., 46 anos, casado, pedreiro, ficha n.° 166. Em 1926; teve protossifiloma. Em novembro de 1941, sofreu queda de andaime de 4 metros, apresentando equimoses e escoriações na região frontoparietal direita, não podendo trabalhar durante 15 dias. Durante o ano de 1942, lentamente, advieram os sintomas, na ordem seguinte: adormecimento na mão direita, que se estendeu a todo o membro superior, falta de força muscular nesse membro, sensação de engrossamento da língua e dificuldade em pronunciar as palavras e hipomnésia. Em fevereiro de 1943, apareceram distúrbios da reação. O exame neurológico mostrou disartria, anisocoria, reação pupilar lenta à luz, hipomnésia de fixação, confusão mental, desorientação alo a auto-psíquica e grande euforia. Reação de Wassermann fortemente positiva no soro sangüíneo. Liquor: punção suboccipital em decúbito lateral, pressão inicial de 22 cm3 de agua, pressão final de 12, quocientes de Ayala Qr-5,4 Qrd^l, aspecto límpido e incolor, 4 células por mm3 (linfomononucleose), 0,20 grs de proteínas totais por litro, reações de Pandy e Nonne-Apelt positivas, reação de benjoim coloidal 00001.22210.00000.0, reação de Takata-Ara positiva (tipo floculante), reações de Wassermann e Steinfeld fortemente positivas desde 0,5 cm3 e reação de Meinicke positiva desde 0,2 cm3.

A esposa, que apresentou reação de Wassermann fortemente positiva, teve 9 gestações, das quais 2 abortaram; 5 filhos faleceram na primeira infância, estando vivas uma filha nascida antes de 1926 e outra em 1935.

A primeira, T. M., teve desenvolvimento físico e psíquico normal, assim como os exames clínico, neurológico, serológico e liquórico. A última, C. M., mostrou retardo na evolução física, em comparação com a primeira e o exame clínico evidenciou pequenos sinais de lues congênita, (dentes de Hutchinson e pálato ogival). O exame de sangue mostrou estarem fortemente positivas as reações de Wassermann e Kahn. Exame do liquor: punção suboccipital em decúbito lateral, aspecto límpido e incolor, 0,4 células por mm3, 0,10 grs de proteínas totais por litro, reação de Pandy negativa, reação de benjoim coloidal 12100.00000.00000.0, reação de Takata-Ara negativa, reações de Wassermann e Steinfeld fortemente positivas desde 0,5 cm3 e reação de Meinicke positiva desde 0,4 cm3.

O estudo desta família evidencia, de maneira flagrante, o resultado da infecção luética nos progenitores. Após ter uma filha sadia, adquiriram lues, vindo um deles apresentar neurolues. Após a infecção, todos os filhos apresentaram distúrbios no desenvolvimento, vindo a falecer, menos a última, nascida 10 anos após a infecção, que apresentou neurolues congênita assintomática, evidenciada somente por terem sido feitos exames serológicos e liquórico.

3) Família Ci - R. C, 18 anos, solteira, procurou médico por apresentar cefaléia e manchas brancas na testa, face e pescoço. Uma reação de Wassermann, feita em 1941, mostrou-se fortemente positiva. Os exames clínico e neurológico, realizados em 1945 pelo fato de manter-se a reação de Wassermann resistente ao tratamento, foram normais. O exame do liquor, obtido por punção suboccipital em decúbito lateral, mostrou: pressão inicial de 14 cm3 de água, aspecto límpido e incolor, 46,8 células por mm3 (linfomononucleose), 0,10 grs de proteínas totais por litro, reações de Pandy e Nonne-Apelt opalescentes, reação de benjoim coloidal 00000.12100.00000.0, reação de Takata-Ara positiva (tipo floculante), reações de Wassermann e Steinfeld fortemente positivas desde 0,5 cm3 e reação de Meinicke positiva desde 0,2 cm3. A paciente foi malarizada e medicada quimioterapicamente. Em 1947, o exame liquórico era normal, porém a reação de Wassermann no sangue era, ainda, positiva.

Este caso de neurolues congênita tardia com notável resistência da soro-reação nos levou a examinar toda a família. O pai, F. C, falecido de broncopneumonia, teve infecção luética 3 anos antes do nascimento da última filha, tendo infeccionado a consorte. Esta havia tido anteriormente 9 filhos, dos quais apenas um falecera por gastroenterite com 3 meses de idade. Os demais eram hígidos, sendo 3 deles casados, com filhos hígidos. Um deles, G. C, nascido antes da infecção paterna, apresentava neurite óptica luética, adquirida.

G. C., 35 anos, casado, havia adquirido protossifiloma com 18 anos de idade, e medicou-se mal. Casou-se com 27 anos de idade, teve 4 filhos, dos quais os dois primeiros faleceram, um de disenteria aos 3 meses de idade e, o segundo, de pleuriz purulento aos 5 anos. A esposa e os filhos vivos têm reação de Wassermann negativa na soro sangüíneo. G. C, dois anos antes de ser examinado por nós, sentiu fraqueza na vista direita, com a qual enxergava nublado. Procurou oculista, que diagnosticou neurite óptica luética, confirmada por reação de Wassermann fortemente positiva no soro sanguíneo. Apesar de bem medicado com arsênico e bismuto, não houve melhora serológica. Os exames clínico e neurológico mostraram-se normais, a não ser a parte referente ao nervo óptico. O exame do liquor, obtido por punção suboccipital, mostrou pressão de 8 cm3 de água, aspecto límpido e incolor, citologia de 112,8 células por mm3, 0,20 grs de proteínas totais por litro, reações de Pandy e Nonne-Apelt opalescentes, reação de benjoim coloidal 00110.12100.00000.0, reação de Takata-Ara positiva (tipo floculante), reações de Wassermann e Steinfeld fortemente positivas desde 0,5 cm3 reação de Meinicke positiva desde 0,1 cm3.

O estudo desta família evidencia a importância de uma história clínica e familial bem feita, capaz de evidenciar a data da infecção luética e a possibilidade da existência de um fator predisponente constitucional para a neurolues, porquanto houve incidência, na mesma família, de neurolues congênita e adquirida. Mostra, ainda, a grande dificuldade em negativar a soro-reação, apesar de tratamento intenso e bem orientado, o que evidencia falta de reação orgânica. Deve-se notar, também, que, nos progenitores, a lues não evoluiu para a localização nervosa.

4) Família Si - O interesse do estudo desta família reside no fato de que nos demonstra o grande valor profilático do tratamento pré-natal bem orientado. O pai, J. S., infecionou-se e transmitiu a lues a sua consorte, logo após o matrimônio. Nele, a moléstia evoluiu para a localização nervosa: paralisia geral progressiva. Nela, o exame liquórico foi normal. Do matrimônio houve 6 filhos: os 5 primeiros nasceram antes do diagnóstico da moléstia paterna e, por isso, não foi feito tratamento pré-natal, do qual só o último se beneficiou. Destes 5 primeiros filhos, a primeira apresentou sorologia positiva para lues, com liquor normal; o segundo faleceu com meningite tuberculosa; a terceira com gastroenterite; o quarto, dotado de grande agressividade, nada apresentou aos exames clínico, neurológico e liquórico, mas a reação de Wassermann no soro sangüíneo foi positiva; o quinto foi abordado aos 7 meses. Antes do nascimento do sexto filho, evidenciada a moléstia paterna, submeteu-se a mãe à terapêutica pré-natal. A criança nasceu normal, com soro-reação e liquor normais.

CONCLUSÕES

A incidência e os quadros liquóricos da neurolues congênita são semelhantes aos da neurolues adquirida. O exame do liqüido cefalorraqueano constitui o melhor meio diagnóstico da enfermidade. Esse exame deve compreender medidas manométricas, propriedades físicas, citologia quantitativa e qualitativa, dosagem das proteínas totais, da glicose e dos cloretos, reações do limiar das globulinas, coloidais, de fixação de complemento com antígenos usuais, reações com antígeno de cérebro humano e reações de floculação ou de precipitação. O exame do liqüido cefalorraqueano é indicado nas mesmas circunstâncias em que o é na lues adquirida: período latente; da moléstia, no caso de resistência das provas sorológicas, na presença de sinais neurológicos e na ocasião da alta. Realizado nos cônjuges e filhos de luéticos, o exame do liqüido cefalorraqueano constitui o melhor método profilático da neurolues.

R. Vitorino Carmillo 453, c/ 6 - S. Paulo

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1948
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