Open-access Demência semântica: avaliação clínica e de neuroimagem. Relato de caso

Semantic dementia: clinical and neuroimaging evaluation. Case report

Resumos

A demência semântica é uma síndrome clínica que faz parte do grupo das degenerações lobares frontotemporais. Relatamos o caso de um homem de 63 anos que aos 57 anos inicia comprometimento da memória semântica tanto para material visual quanto principalmente verbal. Alterações leves de comportamento estavam presentes e relacionadas com reações exageradas a estímulos dolorosos e comportamentos repetitivos. Os exames de neuroimagem estrutural e funcional evidenciaram comprometimento bitemporal assimétrico, predominando à esquerda. Diagnóstico diferencial deve ser feito com a doença de Alzheimer, outros representantes do grupo das degenerações lobares frontotemporais e qualquer síndrome que se apresente com uma afasia fluente progressiva.

demência semântica; demência frontotemporal; neuroimagem; degeneração focal cortical


Semantic dementia is a clinical syndrome in the spectrum of frontotemporal lobar degeneration group. We report on a 63 years old man who presented with memory disorder of semantic nature for visual and mainly verbal material when he was 57 years old. Mild behavior impairment was present and related to exaggerated responses to algic stimuli and repetitive behavior. Structural and functional neuroimaging methods disclosed asymmetric bitemporal damage, mainly on the left. Differential diagnosis should be considered with Alzheimer's disease, another subtypes of the frontotemporal lobar degeneration group and any other syndrome that presents with a fluent aphasic progressive disorder.

semantic dementia; frontotemporal dementia; neuroimaging; focal cortical degeneration


Demência semântica: avaliação clínica e de neuroimagem. Relato de caso

Semantic dementia: clinical and neuroimaging evaluation. Case report

Leonardo CaixetaI; Letícia L. MansurII

Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento (GNCC) do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo SP, Brasil (FM/USP)

IProfessor Adjunto-Doutor de Medicina da Universidade Federal de Goias, Goiania GO, Brasil e médico colaborador do GNCC

IIProfessora do curso de Fonoaudiologia da USP e Fonoaudióloga do GNCC

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Leonardo Caixeta Rua Jules Verels / quadra 24 / lote 9 e 10 / Setor Negrão de Lima 74650-160 Goiânia GO - Brasil E-mail: leonardo-caixeta@bol.com.br

RESUMO

A demência semântica é uma síndrome clínica que faz parte do grupo das degenerações lobares frontotemporais. Relatamos o caso de um homem de 63 anos que aos 57 anos inicia comprometimento da memória semântica tanto para material visual quanto principalmente verbal. Alterações leves de comportamento estavam presentes e relacionadas com reações exageradas a estímulos dolorosos e comportamentos repetitivos. Os exames de neuroimagem estrutural e funcional evidenciaram comprometimento bitemporal assimétrico, predominando à esquerda. Diagnóstico diferencial deve ser feito com a doença de Alzheimer, outros representantes do grupo das degenerações lobares frontotemporais e qualquer síndrome que se apresente com uma afasia fluente progressiva.

Palavras-chave: demência semântica, demência frontotemporal, neuroimagem, degeneração focal cortical.

ABSTRACT

Semantic dementia is a clinical syndrome in the spectrum of frontotemporal lobar degeneration group. We report on a 63 years old man who presented with memory disorder of semantic nature for visual and mainly verbal material when he was 57 years old. Mild behavior impairment was present and related to exaggerated responses to algic stimuli and repetitive behavior. Structural and functional neuroimaging methods disclosed asymmetric bitemporal damage, mainly on the left. Differential diagnosis should be considered with Alzheimer's disease, another subtypes of the frontotemporal lobar degeneration group and any other syndrome that presents with a fluent aphasic progressive disorder.

Key words: semantic dementia, frontotemporal dementia, neuroimaging, focal cortical degeneration.

O termo "demência semântica" (DS) foi empregado pela primeira vez em 19891 e se refere a uma das três síndromes clínicas possíveis dentro do espectro das degenerações lobares frontotemporais2, categoria que representa a terceira causa mais comum de demência cortical3. A DS é considerada uma forma de demência pré-senil rara, contribuindo para 15% dos casos de degeneração lobar frontotemporal4. É caracterizada por prejuízos importantes na compreensão de palavras e na nomeação, bem como no reconhecimento do significado de perceptos visuais (agnosia associativa), em paciente que apresenta redução progressiva da produção verbal, economia de esforço em situação de testagem neuropsicológica, tudo isto num cenário de preservação da fluência, da gramática, da repetição, da leitura em voz alta e da escrita ortograficamente correta de palavras regulares5-8. Podem ocorrer alterações de comportamento, porém são menos exuberantes que aquelas encontradas na demência frontotemporal3,9 e mais relacionadas a apresentações psicopatológicas com características obsessivas e compulsivas complexas2,10, dificuldades no processamento emocional11, comportamentos estes diretamente associados às estruturas temporais comprometidas na DS12.

Dado o relativo desconhecimento desta forma de demência no Brasil e porque ainda não existem casos autóctones registrados na literatura, descrevemos um caso de DS. O consentimento informado foi colhido junto à esposa do paciente.

CASO

Homem de 63 anos, branco, casado, destro, segundo grau completo, empresário, natural de Catanduva-SP e procedente de Goiânia-GO. Em 1998, aos 57 anos, inicia "esquecimento" progressivo de nomes próprios e comuns e do significado de determinadas palavras, bem como dificuldade em compreender o conteúdo de conversas entre amigos ou na empresa que administrava, reconhecer pessoas e acompanhar programas de TV. No início, interpretou-se o problema como sendo resultante de possível redução da acuidade auditiva, hipótese que foi rapidamente afastada através de audiometria e do potencial evocado auditivo do tronco cerebral, cujos resultados foram normais. A partir do final de 1998, foi se tornando progressivamente mais calado, isolado socialmente e introvertido, limitando muito seu repertório social, justificando tais mudanças com o fato de não conseguir entender o que as pessoas falavam, principalmente se o faziam de modo rápido ou em situação de conversa com vários indivíduos ao mesmo tempo (como numa roda de amigos), o que dificultava muito o convívio social. A partir do ano de 2000 e progressivamente, vem substituindo substantivos específicos por termos mais vagos e genéricos (substitui vários nomes por "coisa"), bem como está utilizando inapropriadamente um mesmo verbo para se referir a ações muito diferentes (por exemplo, utiliza o verbo "chutar" tanto para "jogar fora" quanto "mudar de lugar", "deixar de lado"). Em 2004, a família vem percebendo o aparecimento de erros ortográficos grosseiros em sua escrita, além do que tem apresentado hipofonia e dificuldade para olhar as horas no relógio de ponteiros. Os exames físico, neurológico e psicopatológico do paciente são normais.

Avaliação neuropsicológica – O escore obtido no mini-exame do estado mental (MEEM) foi de 26 pontos (perdeu um ponto na nomeação da caneta e três pontos na memória de evocação). A avaliação neuropsicológica revelou uma capacidade cognitiva global (expressa pelo QI obtido da Bateria Wechsler) abaixo do esperado para a idade e escolaridade (nível médio-inferior), o mesmo ocorrendo com a memória auditivo-verbal, com o raciocínio lógico-seqüencial, com a capacidade de abstração e planejamento, a flexibilidade mental e o nível de conhecimentos gerais. A atenção, capacidade de cálculo, destreza vísuo-motora, habilidades vísuo-perceptivas e vísuo-construtivas também encontravam-se normais. Na testagem para prosopagnosias, não reconhece as fisionomias como do ex-presidente, do atual presidente, e outras personagens.

Avaliação fonoaudiológica – Na avaliação do processamento auditivo central constatou-se distúrbio grave, com prejuízo dos processos gnósicos auditivos denominados de decodificação e de organização. Nas provas de memória semântica, apresentou dificuldade acentuada, sobretudo nas tarefas que solicitavam a classificação do material em categorias menos freqüentes, bem como na fluência verbal (falou apenas quatro animais), na interpretação de gestos (41,6%), na definição de léxicos (34,4% de acerto), na nomeação responsiva (25% de acerto), no emparelhamento das palavras orais e escritas com a respectiva figura (44,4% de acerto), sendo que, de forma geral, seu desempenho era sempre pior quando material menos familiar ou freqüente (com o qual tinha menos contato, como seres do mar, instrumentos musicais, insetos) era apresentado. A narração oral é fluente, a repetição está razoavelmente preservada, bem como o ditado. Apresenta dislexia de superfície.

Na escala de avaliação das atividades da vida diária (EAVD)13 obteve pontuação de dois (considerada normal).

A ressonância nuclear magnética do encéfalo (Fig 1) e a SPECT cerebral (Fig 2) evidenciaram atrofia bitemporal assimétrica com predomínio à esquerda.



DISCUSSÃO

Inicialmente, dois aspectos merecem ser destacados pela possibilidade de induzirem ao erro diagnóstico da síndrome demencial considerada, o que, em última análise, pode contribuir para o subdiagnóstico da DS. O primeiro aspecto se refere à queixa de "esquecimento" (freqüentemente relatada pelo paciente e pela família como sendo a queixa principal) que pode, muitas vezes, quando não convenientemente investigada pelo clínico, conduzir a uma interpretação equivocada de distúrbio primário de memória episódica, remetendo a uma hipótese diagnóstica incorreta de doença de Alzheimer (com conseqüente utilização de anticolinesterásicos, o que pode ser iatrogênico), como aconteceu no caso relatado que "não se recordava do significado das palavras e do nome das pessoas e objetos". No presente caso, o "esquecimento" não se deve a falha da chamada memória "límbica" (memória episódica relacionada às formações hipocampais das regiões mesiais temporais), como ocorre na doença de Alzheimer, mas sim à memória semântica, relacionada às áreas mais anteriores do córtex temporal14. Como as baterias neuropsicológicas utilizadas para a avaliação da memória apóiam-se predominantemente na capacidade de compreensão de material auditivo-verbal e visual (capacidades comprometidas na DS), pode-se obter a falsa impressão de que os pacientes com esta forma de demência apresentam prejuízo da memória episódica, o que contrasta e é refutado pela preservação da memória do dia-a-dia, característica desta doença.

O segundo aspecto a ser contemplado, relevante para o correto diagnóstico dos casos de DS, é que uma pontuação normal no MEEM (como no caso relatado) pode afastar precipitadamente o raciocínio clínico que porventura se ampare estritamente num teste de varredura para o diagnóstico de demência. A DS, como as outras formas de degeneração lobar frontotemporal, habitualmente se apresenta em indivíduos relativamente preservados, durante anos, em diversos domínios cognitivos15,16 (pelo menos nos domínios cognitivos contemplados no MEEM) e, portanto, o MEEM não se revela um bom teste de varredura epidemiológica e nem em situação clínica para a detecção destes casos. Não obstante os critérios diagnósticos da DS terem sido estabelecidos em 19983, existem divergências em relação ao seu constructo e a terminologia utilizada para defini-la. Mesulan e colaboradores17 preferem o conceito de afasia progressiva primária do tipo fluente, enquanto o grupo de Hodges9 a denomina como sendo a "variante temporal" da demência frontotemporal. Em outro foco de discordância, existem autores que defendem que o perfil de déficits focais da DS irá evoluir para uma demência mais difusa18-20, podendo inclusive progredir para uma demência frontotemporal6, enquanto outros acreditam que permanecerá localizado5,21.

Sendo uma forma de degeneração cortical localizada, a atrofia encontra-se circunscrita às regiões temporais, bilateralmente, com predileção mais específica para o neocórtex temporal anterior (giros temporais médio e inferior)12. É comum a presença de assimetria no comprometimento temporal bilateral, que pode se traduzir na predominância do distúrbio semântico para material verbal (quando a atrofia é maior no lobo temporal do hemisfério dominante) ou visual (quando é mais representativa no hemisfério não-dominante), sendo a primeira a predominante na maior parte dos casos22, inclusive no nosso.

Os principais diagnósticos diferenciais da DS no presente caso, bem como naqueles referidos na literatura, são a doença de Alzheimer (já mencionada nos aspectos diferenciais com a DS) e as outras síndromes clínicas das degenerações lobares frontotemporais: a demência frontotemporal e a afasia não-fluente progressiva23. Enquanto na DS encontramos um padrão caracterizado por prejuízo da memória semântica com preservação da atenção e da função executiva, na demência frontotemporal encontramos o padrão oposto, além do que nesta última o envolvimento dos lobos frontais é mais importante que o das regiões temporais9. Já na afasia não-fluente progressiva, como o próprio nome indica, ocorre distúrbio da fluência da linguagem, além do que a patologia está mais relacionada à região frontotemporal do hemisfério dominante, padrões diferentes do observado na DS5.

Não obstante existirem particularidades que podem auxiliar na diferenciação entre a DS e outras síndromes clínicas, podem ocorrer dificuldades quando, em situações raras, tais síndromes clínicas apresentam, como característica mais saliente de seu quadro, uma afasia fluente progressiva que, no seu início, pode vir sem outras alterações cognitivas, mimetizando portanto a DS. Isto já foi relatado num caso de doença de Creutzfeld-Jakob24 que se iniciou como afasia fluente isolada e apenas tardiamente agregou os outros elementos da doença, bem como em vários casos de doença de Alzheimer20,25,26 e doença de Pick27 que se apresentaram da mesma forma. Complicando ainda mais o diagnóstico diferencial da DS, além de dificultar seu posicionamento como uma entidade nosológica distinta, estão os estudos que endereçam a sobreposição clínica e patológica desta síndrome clínica com as demais representantes do grupo das degenerações lobares frontotemporais.

Recebido 20 Julho 2004, recebido na forma final 5 Outubro 2004. Aceito 19 Novembro 2004.

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  • Endereço para correspondência
    Dr. Leonardo Caixeta
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    74650-160 Goiânia GO - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Recebido
      20 Jul 2004
    • Aceito
      19 Nov 2004
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