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Prof. Spina-França

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Prof. Spina-França

O Prof. Dr. Antonio Spina-França Netto partiu em 17 de maio de 2010. Pai, avô, professor, chefe e, sobretudo, amigo, deixou nosso convívio apenas 14 meses depois de Marília Lange Spina-França, sua esposa, mãe de seus filhos, sustentáculo e grande aglutinadora de toda a família. Uma perda dura, difícil, que apenas a Fé e o tempo poderão mitigar.

O Prof. Spina-França nasceu em Jaú, SP, tendo concluído seu curso de graduação em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em 1951. Desde os primeiros anos dedicou-se com afinco às neurociências, incluindo: estudos em histologia do sistema nervoso, com Giuseppe Levi (Itália); em neuroquímica, com E. Annau (Budapeste); em neuropatologia, com Walter Maffei e em neuropsiquiatria com Aníbal Silveira. Foi o primeiro residente em Neurologia da mesma FMUSP, com programa intensivo de atividades clínicas orientado por Oswaldo Lange e Horácio Martins Canelas. Esta formação clínica fundamentada fortemente em neurociências básicas constituiu uma característica profissional marcante em todas as atividades que veio a desenvolver em sua carreira.

Com Oswaldo Lange encontrou sua área de maior interesse em neurociências aplicadas ao diagnóstico das doenças neurológicas, o exame do líquido cefalorraqueano (LCR). Sua tese de doutorado versou sobre eletroforese das proteínas do LCR, assunto em que se aprimorou com Armand Löwenthal e Denise Kasher. Estes autores haviam estabelecido o conceito de bandas oligoclonais no LCR e sua importância no diagnóstico das doenças desmielinizantes. Ao ver seus traçados de eletroforese do LCR em papel, Löwenthal fez questão de mostrá-los a seus colaboradores, referindo-se a eles como o máximo que poderia ser obtido por aquela metodologia. Armand e Denise tornaram-se, desde então, seus amigos diletos e colaboradores permanentes. Sua tese de docência livre, também em LCR, teve como tema o valor das globulina beta no prognóstico das doenças inflamatórias do sistema nervoso, numa feliz antecipação das linhas de pesquisa atuais deste grupo de proteínas em doenças priônicas e degenerativas.

O Prof. Spina-França cultivou as tradições da magnífica escola de neurologia da casa de Arnaldo, fazendo jus à sua inclusão na mesma estirpe de Vampré, Lange, Tolosa e Lefèvre. Foi sucessivamente Chefe de Clínica e Professor Titular de Neurologia durante uma década, com reconhecidos carinho, dedicação, competência e respeito por pessoas e instituições. Além da FMUSP, Spina-França participou também, em sua juventude, da criação da escola de neurologia de Botucatu, empreitada para a qual convocou seus colaboradores e para onde levou seus métodos, seu entusiasmo e sua filosofia de trabalho.

Desde muito cedo dedicou-se apaixonadamente à Academia Brasileira de Neurologia (ABN). Não perdeu nenhum de seus congressos enquanto teve forças para isso. Teve atividade especialmente destacada como Delegado da ABN junto à Federação Mundial de Neurologia (WFN), função que desempenhou durante décadas. Seu trabalho rendeu ao Brasil destacado papel no panorama internacional da neurologia, tendo sido Vice-Presidente da WFN. Notabilizou-se pela tolerância, pela capacidade de negociação, pelo respeito a todos e por ter colocado sempre acima de tudo os objetivos da Academia Brasileira de Neurologia como representante máxima da neurologia brasileira.

O Prof. Spina-França, com o qual tivemos a felicidade de conviver por quatro décadas, não foi um clássico pesquisador de bancada de laboratório como tantos outros que constituem o corpo docente das Faculdades de Medicina. Era alguém muito original, diferente, carismático.

Essa originalidade manifestava-se naturalmente, aos poucos, com o correr dos dias e das semanas, nas visitas, nos seminários, nas reuniões gerais da Clínica Neurológica da FMUSP. Mostrava-se atencioso e amigo, sempre observador e solícito, sobretudo no convívio com os mais novos.

A imagem que mais se ajustava a ele era a de um semeador contumaz. Sementes lançadas carinhosamente, o tempo todo, seja num caminho de terra batida, seja num terreno pedregoso, seja num espinheiro, seja numa terra fértil e preparada, esta sim seu objetivo primeiro e buscado incessantemente. Como se, nessa tarefa incansável, fosse movido por um imperativo moral pessoal.

Sementes de idéias, de estímulos, de melhora da autoconfiança, de superação, de tolerância, de aprimoramento contínuo, de mão amiga. Com uma simples palavra, era capaz de abrir perspectivas e soluções jamais imaginadas, na exata medida de cada um. Mas não facilitava as coisas. Sem soluções mágicas. Trabalho duro, orientação acompanhada de cobrança, prazos a cumprir, compromissos.

O Prof. Spina-França não cultivava argumentos fáceis, polidos, bonitos, de forte efeito imediato, embora dominasse como poucos a arte de conduzir um raciocínio ao alvo desejado. Preferia o pensamento mais elaborado, por vezes mais trabalhoso e difícil. Havia, na maioria das vezes, além do sentido imediato, um outro, latente, menos explícito, embora não menos importante.

Esse era seu modo de agir predileto. Plantava a semente sem alarde, para germinar a seu tempo e no contexto adequado. Temos que transmitir aos mais novos aquilo que nós mesmos já recebemos dos mais antigos: por isso somos uma escola!

Seu método pessoal de trabalho sempre se baseou na padronização e utilização de técnicas laboratoriais modernas e executadas com preciosismo. Criou dois grandes pólos de rotinas em LCR, de onde emanou a maioria de sua produção científica e praticamente a totalidade daquela que seus discípulos produziram também: o Laboratório de Neurodiagnóstico Spina-França, sua casa e seu refúgio, e o Centro de Investigações em Neurologia do Departamento de Neurologia da FMUSP.

Além do árduo trabalho profissional e científico, teve como uma de suas principais atividades aquela de Editor da revista Arquivos de Neuro-Psiquiatria. Seu empenho constante, sua habilidade, seu prestígio na área das neurociências aliados a uma dedicação integral e incondicional transformaram Arquivos numa das principais revistas científicas do Brasil. Há alguns marcos a destacar: a adesão ao sistema open access através da indexação pela SciELO, a modernização da linha editorial, as modificações na apresentação gráfica da revista, a adoção do sistema de submissão online.

Teve muitos discípulos, amigos e admiradores, no Brasil e no exterior, conquistados ao longo de sua trajetória pessoal e profissional. Seus contatos permanentes iam desde o Japão e a Índia até à Itália, França, Alemanha, Bélgica, Inglaterra, Portugal, Canadá, Estados Unidos, e muitos países da America Latina, em especial a Venezuela, o México, o Peru, a Argentina e o Uruguai. Muitos dos luminares da neurologia brasileira atual vieram homenageá-lo em sua partida. Comentavam o quanto deviam do que hoje são ao Prof. Spina-França: pequenos gestos, uma frase, uma carta de apresentação, um telefonema a um amigo do exterior ou uma simples conversa no corredor ou ao sair de uma enfermaria, após a visita semanal.

Certamente não o perdemos, embora ele não esteja mais entre nós. Suas sementes e seus legados vão ainda germinar em muitos, em situações e em épocas diferentes na trajetória de muitas pessoas, incluindo aquelas que amanhã possivelmente regerão os destinos da neurologia brasileira.

Esse era o Prof. Spina-França, tal como o conhecemos. Não mudou suas convicções, não cedeu a pressões, manteve sua trajetória limpa e cristalina, ao longo de uma vida das mais ricas e edificantes.

Os Editores

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2010
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