Acessibilidade / Reportar erro

Deolindo Couto

IN MEMORIAM

Há na história de qualquer atividade humana personalidades que nela constituem verdadeiras pedras angulares e cuja passagem pela vida imprimem e modulam características indeléveis nessa atividade. É exatamente o que ocorreu com Deolindo Couto, na Neurologia Brasileira. Ainda estava a Neurologia Brasileira em seus primórdios quando o Mestre nela ingressara e determinara seus rumos, suas linhas mestras que, em todo País, deveriam orientá-la. Tivemos o privilégio, em abril de 1945, de assistir às brilhantes provas públicas em que, competindo com três outras preeminentes autoridades na Neurologia de então, venceu e conquistou a Cátedra de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, então a Capital do País. Sua Tese inaugural era, para a época, pioneira e revolucionária: os efeitos benéficos da cirurgia no tratamento da doença de Parkinson.

Deolindo Couto representava uma forma ideal de especialista, pois aliava seus profundos conhecimentos da Neurologia com o amplo domínio da Clínica Médica Geral, isto é, da Medicina Interna. Soube então como se aprimorar em uma área mais restrita, a Neurologia, dentro de uma visão panorâmica de toda a Medicina. Não sem motivos, em 1935, 10 anos antes da conquista da Cátedra de sua especialidade da Universidade do Brasil, Deolindo Couto já era, por Concurso (sempre distinguido em primeiro lugar), Livre Docente de Clínica Médica e de Neurologia na tradicional Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, da Faculdade e Medicina da Uni-Rio e da Faculdade Fluminense de Medicina. Em 1942, fora escolhido chefe da 13ª Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, onde dirigiu importante Serviço de Clínica Médica. Ele soube correlacionar muitas doenças neurológicas com enfermidades sistêmicas, em uma visão abrangente demonstrando então a unidade da Medicina e contrariando conceitos artificiais de departamentos isolados no organismo humano. Era enfim, o especialista competente situado dentro da Clínica Médica. Assumindo a Cátedra, o então jovem neurologista, imprimiu novos rumos à Neurologia.

Paralelamente ao exercício de suas novas funções como Catedrático da especialidade na Faculdade de Medicina, Deolindo Couto desenvolveu intensas atividades no Magistério Superior, tendo sido Vice-Reitor e Reitor da Universidade do Brasil. Tornou-se membro de seu Conselho Universitário e ulteriormente, Presidente do Conselho Federal de Educação e Membro do Conselho Federal de Cultura. Mais do que um homem dinâmico, Deolindo Couto era o próprio dínamo. Sua primeira grande obra foi a criação do Instituto de Neurologia que, com a mais das elementares justiça, leva hoje seu nome. Nesse Instituto, munido com os mais modernos equipamentos existentes na época, passaram gerações e gerações de neurologistas e estagiários, alguns dos quais, sob sua orientação segura e competente, vieram a assumir, no futuro, postos-chave nas principais Cátedras e Serviços de Neurologia de todo o Brasil. Cumprira assim o essencial de qualquer homem de ciência: criar escola, formar discípulos que no decorrer dos tempos levaram avante a obra do Mestre. Revestia-se pois da personalidade e dos méritos do verdadeiro Professor. O Instituto, no decorrer do tempo, recebeu a visita e a colaboração, por Conferências ou mesmo Cursos, de figuras ímpares da Neurologia Internacional contemporânea.

Deve-se à criatividade de Deolindo Couto, associando-se a outros professores do País, a idéia e a fundação da Academia Brasileira de Neurologia, filiando-a à World Federation of Neurology. É uma entidade de âmbito nacional que hoje, após tantas décadas, congrega centenas de neurologistas brasileiros e da qual, seu órgão oficial é o presente Arquivos de Neuropsiquiatria, publicados desde 1943 por iniciativa do saudoso Oswaldo Lange, grande amigo de Deolindo. Por muitos e muitos anos, Deolindo Couto compareceu pessoalmente aos Congressos bienais na Academia Brasileira de Neurologia, em diversas cidades do País, levando sua experiência, seus comentários, suas críticas e a colaboração de seus assistentes e membros do Instituto de Neurologia.

O dinamismo de Deolindo Couto ultrapassou a Medicina. Desenvolvida cultura humanística e literária caracterizavam o Mestre. Sua curiosidade excursionava por todas as atividades humanas. Assim como ocorrera com Claude Bernard, na França, Deolindo Couto conquistou seu Título de imortalidade, na Academia Brasileira de Letras.

Filho de ilustre magistrado e professor de Direito, Desembargador Henrique Nunes Couto, Deolindo nascera no Piauí, em 11 de março de 1902, mas sua infância e adolescência transcorreram no Maranhão. Através dos tempos, fraterna amizade o ligara a figuras do Norte e do Nordeste de nossa intelectualidade, radicadas no Rio de Janeiro: Luiz Viana Filho. Pedro Calmon, José Sarney e Josué Monteio, todos membros da Academia Brasileira de Letras. Em comovente artigo de Josué Monteio, publicado recentemente no «Jornal do Brasil» sob o título «De Charcot a Deolindo Couto». Josué Monteio relembrou a vida acadêmica e universitária do médico e literato que ora desaparece.

Amante da literatura, quer da língua portuguesa quer da francesa e da inglesa, tinha especial predileção por Camillo Castelo Branco, cuja obra ele havia lido e relido por várias vezes. Foi Deolindo Couto membro, e um dos mais ilustres, da Academia Nacional de Medicina, da qual, por 7 vezes, fora «leito seu Presidente e paraninfou mais de vinte novos Acadêmicos.

Em pleno vigor físico e intelectual, foi compulsoriamente aposentado e, em 1972, tivemos também a oportunidade de assistir à aula de encerramento de sua carreira Universitária Poderia ter escolhido um tema geral, que seguramente seria grandioso e fascinante, como, por exemplo, a evolução da Neurologia durante sua vida na cátedra. Optou, entretanto, por demonstrar sua atualização na Neurologia Clínica, ao escolher um assunta eminentemente neurológico, na crista da onda na ocasião e, talvez propositalmente, correlacionado à sua Tese de Cátedra, a «Doença de Parkinson». Nessa época, acabara de surgir a levodopoterapia no tratamento das síndromes parkinsonianas. Em aula magistral, Deolindo Couto, com a clareza e o didatismo de que sempre fora revestido, demonstrou seus conhecimentos profundos sobre a fisiopatologia da doença e as razões cientificas para o emprego da nova medicação que, com algumas modificações ulteriores, persiste até hoje. Foi uma aula comovente, presenciada por seus antigos discípulos e por seus muitos amigos de todo o País.

Mesmo após sua aposentadoria, comparecia com assiduidade às reuniões médicas do Instituto de Neurologia, então dirigido por seu irmão Bernardo Couto, e com freqüência prestigiava os Congressos da Academia Brasileira de Neurologia, por ele fundada. Deolindo Couto sempre acompanhou e se manteve em dia com o progresso da ciência que ele amava. Sob o ponto de vista humano, Deolindo Couto se caracterizava pela fineza de trato e pela facilidade com que formava e mantinha novas e antigas amizades. Quando na regência do Instituto, conseguia aliar as energias necessárias para a manutenção da disciplina e da eficiência do trabalho, com seus modos educados e gentis no trato com seus colaboradores. Caracterizava-o um permanente senso de humor e uma ironia fina, jamais agressiva. Como sabia ele ser amigo de seus amigos!

No dia 28 de maio de 1992, Deolindo Couto, essa figura monumental dia intelectualidade, da Medicina e particularmente da Neurologia e das Letras, após 90 anos de uma vida frutuosa, nos deixou. Sua lembrança permanecerá, eternamente, entre seus discípulos, seus colegas e, principalmente, entre seus amigos. Ele marcou a Neurologia Brasileira, a qual dele jamais se esquecerá.

ROBERTO MELARAGNO FILHO

* * * *

Somos dos que «mais de perto o respiraram». Pouco menos de meio século, um de nós; também por longo tempo, o outro. Dessa convivência harmoniosa e singela, mas por vezes tumultuada, ao sabor das circunstâncias, desse convívio dilatado brotaram vínculos afetivos, que hão de se perpetuar pelo tempo afora, indelevelmente.

O que Deolindo Couto significa para a medicina brasileira, sabem-no todos, e para a neurologia, dizem-no os especialistas, que de algum modo foram todos seus discípulos, seja na sucessão direta, seja por influência dos mestres! que o Mestre plasmou. Se os homens, conforme alega Chesterton, fazem muito para si mesmos, poucos são os que, na parábola da vida, consagraram-se por inteiro ao ensino, à educação e à modelação das inteligências, isto é, ao ofício constante e firme do magistério. Deolindo Couto insere-se nesta categoria de abnegados, a quem mal importa a própria subsistência.

De sólida formação humanística, nosso Professor deixava transparecer, em dada lance do trivialismo cotidiano, superiores qualidades de discernimento e cultura, de parelha com fina ironia e maliciosa mordacidade. Não ena um contemplativo, o Mestre, pois na sua trajetória curricular deixou obra perene, como o Instituto, que leva seu nome, a Academia Brasileira de Neurologia, que fundou com um seleto grupo de neurólogos, o Jornal Brasileiro de Neurologia, e, sobretudo, uma legenda de fidelidade e honra à sua profissão. Aspectos importantes da carreira do nosso preceptor, outros o dirão, com mais autoridade e competência. A nós compete apenas registrar aqui a mágoa e consternação pelo desaparecimento do chefe, amigo e companheiro. Um sentimento, enfim, como falou o Poeta, de austera, apagada e vil tristeza.

ÁLVARO DE LIMA COSTA

MARLEIDE DA MOTA GOMES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1992
Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.arquivos@abneuro.org