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O problema da infusão de líquidos em neurocirurgia: I - Padronização do sistema infusor

NOTA PRÁTICA

O problema da infusão de líquidos em neurocirurgia. I - Padronização do sistema infusor

A. de Mattos PimentaI; Oscar Yahn

IAssistente de Neurologia (Neurocirurgião) na Escola Paulista de Medicina (Prof. Paulino W. Longo). Ex-Fellow da Kellog Foundation e ex-assistente do Prof. M. Peet, Universidade de Michigan

No decorrer de intervenções neurocirúrgicas, tivemos, por algumas vezes, necessidade de infundir grandes quantidades de liqüido (sôro glicosado ou fisiológico, plasma ou sangue), em virtude das condições clínicas pouco satisfatórias de alguns dos nossos doentes, condições estas, muitas vezes, desencadeadas pelo próprio trauma cirúrgico. Se a simples infusão dêstes líquidos por via venosa, que é a via clássica utilizada, apresentava já uma série de dificuldades, estas ainda eram maiores, quando se tinha necessidade, em casos de choque, de que êstes líquidos, especialmente o plasma ou o sangue, fossem injetados com certa velocidade. Acresce ainda outra circunstância que apareceu com o uso da anestesia intravenosa em cirurgia, particularmente em neurocirurgia, o que veio constituir mais um problema no sistema de injeção intravenosa. Quando se tem necessidade de lançar mão de tôdos êstes recursos ao mesmo tempo, a dificuldade é enorme com o uso dos sistemas atuais e as falhas, muitas vezes fatais, são freqüentes; há sempre necessidade de alguns auxiliares, o que causa perturbação na rotina da sala de operações, além do que, o cirurgião, responsável pelo caso, ante os inúmeros fatores de pouco êxito, fica perturbado e, muitas vezes, é obrigado a apressar o ato cirúrgico, com o fim de pôr a salvo a vida do paciente.

Êstes problema, que à primeira vista parece simples de ser resolvido e secundário quanto a sua importância, não o é, como já o dissemos; freqüentemente da sua resolução depende o êxito imediato de um ato cirúrgico, por mais hábil e competente que seja o cirurgião.

Tivemos, recentemente, ocasião de enfrentar durante algumas intervenções cirúrgicas sôbre o cérebro, situações de certa maneira aflitivas que, se bem tenham sido resolvidas a contento, muito deixaram a desejar quanto ao funcionamento do aparelhamento técnico de que dispúnhamos na ocasião. De então para cá, foi nossa preocupação constante resolver de maneira definitiva a questão, o que viria garantir calma e sossego ao cirurgião durante a intervenção e ao mesmo tempo garantir as condições gerais lo paciente, em qualquer circunstância inesperada que surgisse no decorrer da mesma.

A infusão de grandes quantidades de líquidos, por via intravenosa ou, em casos excepcionais, por via osteomiélica, tem sido um dos fatores que têm contribuído, de maneira decisiva, para o esplêndido progresso da cirurgia moderna, particularmente de alguns dos seus íamos mais especializados, como o são a cirurgia nervosa e a cirurgia torácica, em que mais freqüentemente se tem ocasião de enfrentar sérios problemas de desequilíbrio dos líquidos orgânicos. As indicações do uso do sôro fisiológico, do sôro glicosado, do sangue, do plasma, têm sido constantemente revistas e hoje elas são bem precisas. Entretanto, o aparelhamento técnico para a sua introdução na veia do paciente, se bem que resolva a maioria dos casos, não está apto ainda a desempenhar, de maneira simples, as várias funções que lhe são atribuídas. Foi da observação dos defeitos e virtudes dos vários métodos empregados que chegamos, finalmente, à padronização de um sistema, composto de algumas peças que funcionam sincronicamente, de modo a manter as condições gerais do paciente com o mínimo gasto possível de material humano, pois apenas uma pessoa, devidamente habilitada, controla perfeitamente o sistema, infundindo, à medida que se vai fazendo necessário, os diferentes soros, plasma ou sangue, na velocidade em que se fazem necessários e permitindo ainda o uso da anestesia intravenosa pelo mesmo sistema.

Dadas as condições atuais que nos obrigam a operar em vários lugares e que não nos têm permitido a instalação fixa de um serviço, tal sistematização técnica é, para nós, de real valor, permitindo colocar em funcionamento, nas mais diversas eventualidades e ocasiões, um eficiente sistema infusor.

Temos lançado mão dêste sistema padronizado em alguns dos nossos casos mais recentes e os resultados têm sido muito satisfatórios, correspondendo perfeitamente àexpectativa; resolvemos per isso, apresentá-lo aos colegas, no sentido de chamar a atenção para êste particular técnico, aparentemente sem importância mas que, em alguns casos, tem sido fator de grande monta dos êxitos cirúrgicos.

Antes de entrar pròpriamente na descrição do sistema, desejamos chamar a atenção para um pequeno particular, de muita importância. Estabelecido que a introdução dos líquidos se fará nestes casos por via intravenosa como rotina e, excepcionalmente, por via osteomiélica, é fundamental ter-se a certeza de que a agulha se encontre perfeitamente introduzida dentro da luz da veia e que se mantenha nesta posição o tempo que fôr necessário; isto é tão importante, que em tôdos os casos em que se prevê a necessidade do uso de sangue ou plasma, teñios preferido dissecar a veia e, uma vez feita a introdução da agulha, amarrâmo-la firmemente. Podem ser utilizadas as veias da face anterior do antebraço ou mesmo da mão, mas temos sempre dado preferência ao uso de uma das veias superficiais do pé, particularmente a maleolar interna, que é mais ou menos constante e se apoia sôbre um plano ósseo sendo, por isso, relativamente fácil a sua punção ou dissecção. O uso das veias do pé tem vantagem no sentido de ficar o aparelho instalado longe do campo cirúrgico, evitando assim a sua contaminação e não dificultando o trabalho do cirurgião.

De modo geral, o aparelhamento é constituído de um recipiente de vidro, que contém o liqüido a ser infundido, que se comunica com a veia do receptor, por meio de um longo tubo de borracha. Êstes tubo apresenta, intercaladas, nas proximidades do frasco, um filtro conta-gotas e nas proximidades da veia, um pequeno intermediário de vidro, que pode ser adaptado a uma válvula de três ramos ou a um aparelho de aspiração e pressão (qualquer dos utilizados para transfusão direta de sangue). As vantagens desta sistematização e o modo sincrónico com que as diferentes partes funcionam, serão descritas a seguir.

a) Recipiente - Há vários tipos de recipiente de vidro e qualquer dêles poderá ser utilizado. Particularmente, temos dado preferência ao modêlo Upjohn, em virtude de uma série de vantagens que apresenta o seu bocal (fig. 1 - A). Êstes bocal, que é rosqueado ao vidro recipiente, apresenta duas aberturas, dispostas de maneira tal que permitem a entrada de líquidos para dentro do frasco (aspirando por uma das aberturas com uma bomba, ou então a sua fácil saída, bastando para isso que o ar penetre por uma das aberturas e o liqüido escôe pela outra, que será ligada ao sistema infusor (fig. 1 - B). Desde que o sistema não esteja em uso, o frasco pode ser guardado com o seu bocal, mantendo-se absolutamente estéril, e bem fechado, bastando adaptar um tubo de borracha que ponha em comunicação as duas aberturas do bocal. Êstes sistema de frascos com o respectivo hocal nos tem permitido fácil retirada de sangue de doadores (fig. 1 - C) e seu armazenamento em um sistema fechado sempre pronto para ser usado na ocasião oportuna. Com tal facilidade nos foi possível organizar um pequeno banco de sangue e plasma que, em mais de uma ocasião, nos permitiu o restabelecimento rápido de pacientes em estado de choque.


Outra vantagem do referido bocal é o fato de permitir a instalação de sistemas conjuntos, ligados uns aos outros (fig. 1 - D) em sistema fechado, de modo a permitir a introdução de sôro, sangue ou plasma, de acôrdo com as necessidades do caso, sem interrupção na corrente fluida. Estas são as vantagens e os motivos pelos quais temos dado preferência ao modêlo Upjohn com recipiente. A outra parte do sistema é constituída por um longo tubo de borracha que liga o recipiente acima descrito à veia do receptor.

b) Conta-gôtas e filtro - Êstes tubo de borracha tem, nas proximidades do frasco, um aparêlho de vidro, conta-gôtas (fig. 1 - D), do qual há também muitos modelos. Como o sistema Upjohn, apresenta também um filtro, adaptado ao bocal, não há necessidade de se usar um conta-gôtas com filtro, mas quando não se usa o sistema Upjohn, é sempre indicada a utilização de um conta-gôtas com filtro. Dêstes conta-gôtas com filtro, o que usamos é o modelo Sharpe & Dohme; aliás, temos utilizado sistemàticamente o conta-gôtas de Sharpe & Dohme, de modo que os fluidos que passam pelo sistema que padronizamos são duplamente filtrados. A vantagem do uso do conta-gôtas decorre de permitir controlar, facilmente, o funcionamento do sistema e a veocidade da infusão de líquidos.

c) intermediário Para anestesia e infusão rápida - Seguindo-se o tubo de borracha abaixo do conta-gôtas, já nas proximdiades da veia do receptor, encontramos um intermediário de vidro (fig. 1 - E e F) que tem a finalidade de permitir a intercalação no sistema, sem perturbar a fixação da agulha na veia, de duas novas peças que possuem no sistema funções bem definidas e importantes; uma delas permite a administração da anestesia intravenosa ou administração por esta via de outras drogas, enquanto que a outra tem a finalidade de permitir a introdução de sangue ou plasma, em maior velocidade.

A primeira peça é uma válvula de aço de três ramos (fig. 1 - E) ; um dêles está ligado ao tubo de borracha que vem do filtro; outro é ligado a um tubo de borracha que vai à veia do receptor; ao terceiro ramo pode ser adaptada uma seringa, contendo a droga anestésica. Um dos ramos da válvula acima descrita está sempre fechado, de modo que apenas dois ramos estão em comunicação. Com o simples movimento de girar uma pequena chave, pode-se alternar o fechamento, de modo a fechar um dos ramos e abrir outro. Assim se compreende como o sistema é posto em comunicação com o frasco contendo a solução que está sendo infundida (ficando nesta ocasião fechada a comunicação que dá entrada ao anestésico), ou então pode-se fechar a via principal, abrindo-se automaticamente a comunicação com a seringa que contém o anestésico. Pode-se, assim, injetar a solução anestésica intermitentemente, à medida em que se faz necessário, bastando para isso girar a pequena alavanca da válvula (movimento êsse que interrompe a corrente principal) e injetar a quantidade desejada (fig. 1 - F).

A outra peça que pode ser adaptada ao intermediário de vidro, em caso de necessidade, é um aparêlho para transfusão direta de sangue. Há muitos modelos dêstes aparêlhos, tôdos baseados mais ou menos no mesmo princípio (bombas as-pirante-permanentes) ; temos utilizado o modêlo Jab, que nos tem proporcionado resultados muito satisfatórios (fig. 1 - G). Com a introdução de um aparêlho dêste tipo no sistema, pode-se, em caso de necessidade, como nos estados de choque, dar maior velocidade à corrente liqüida (sangue ou plasma). O funcionamento do sistema neste caso é muito simples, como se se tratasse de uma transfusão de sangue direta, estando, neste caso, o doador representado pelo frasco contendo o sangue ou plasma. Tratando-se de sangue citratado, há tôdas as probabilidades de que o sistema funcione corretamente, sem perigo de coagulação no interior do aparelho, como ocorre por vezes nas transfusões diretas.

d) Tubo em Y - Com o uso do sistema Upjohn, como dissemos, pode-se introduzir dois líquidos diferentes, porém miscíveis (por exemplo: sangue e sôro glicosado isotônico) alternadamente, sem interrupção do sistema, bastando para isso que se faça comunicar os bocais dos tubos que contêm líquidos (fig. 1 - D). Mas, como nem sempre se tem à mão o sistema Upjohn, procuramos contornar êste particular do problema, intercalando um tubo de vidro em forma de Y, ao sistema original, logo acima do conta-gotas, pelo seu ramo inferior. Pelos seus dois ramos superiores, êste Y vai ser ligado a um frasco contendo sangue ou plasma e a um frasco de tipo comum contendo sôro glicosado ou fisiológico (fig. 1 - H). Com o auxílio de pinças de pressão, pode-se fechar ou abrir as tubuladuras, de modo que, à medida do necessário, se fará correr pelo sistema plasma, sangue ou sôro, sem necessidade de interromper a corrente fluida ou de adaptar novos recipientes ao sistema.

e) Conservação estéril do material - Levando-se em consideração que as situações que se pretende enfrentar com o uso dêste sistema exigem rapidez, temos sempre tôdas as peças que o compõem devidamente esterilizadas, prontas para uso, guardadas em caixa de material de urgência. Estas peças são esterilizadas separadamente e enroladas em panos e papéis também esterilizados permitindo, assim, o uso de algumas peças sem contaminação das demais que porventura não tenham sido utilizadas.

As agulhas utilizadas, com o respectivo mandril, também são esterilizadas por autoclave e mantidas livres de contaminação em tubos de vidros estéreis, fechados hermeticamente com rolhas de borracha. Êstes vidros são de forma especial (estrangulados em seu terço superior), de modo a proteger a ponta das agulhas. Quando se disseca a veia, temos utilizado agulhas especiais, sem bisel.

Esta é a sistematização do aparêlho infusor, do qual, temos lançado mão ultimamente e cujos resultados têm sido tão satisfatórios que julgamos útil sua divulgação. Assim o fizemos para demonstrar que o neurocirurgião está constantemente se preocupando em resolver problemas de ordem técnica, no sentido de tornar mais amplo seu campo de ação, de ampliar seus horizontes, em benefício dos seus doentes, amparando-os com meios modernos, capazes de defendê-los eficiente e rapidamente do trauma cirúrgico.

Apresentado na Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 9 março 1945.

R. Marconi, 138 - S. Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1945
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