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Determinação neurológica do mieloma múltiplo: Enfermidade de MC Intyre-Kahler-Bozzolo

REGISTRO DE CASOS

Determinação neurológica do mieloma múltiplo. Enfermidade de MC Intyre-Kahler-Bozzolo

Benjamin B. Spota; C. A. Tagliabue; Juan R. Ginesta

RESUMO

0 interesse da presente observação deve-se ao desenvolvimento inusitado de típica hemopatia de sistema em um jovem de 30 anos de idade. Também o aspecto neurológico do caso é interessante, posto que na literatura de que puderam dispor, os autores não comprovaram a manifestação clínica da moléstia sob a forma de uma síndrome de Dejerine-Klumpke; por outro lado, a paraplegia crural siderativa, flácida desde o início, que também é pouco freqüente, revelaria a intensidade da compressão óssea ou mielomatosa. Os autores sugerem a possível concausalidade etiológica heterotóxica (manejo profissional com tinta à base de laca-piroxilina).

SUMMARY

This is an interesting observation because it is about a rare development of a typical hemopathy in a young man 30 years old. The neurologic aspect of this case is also interesting because the authors were not able to find the clinical symptoms of this disease as a Dejerine-Klumpke syndrome in the literature at their disposal. Furthermore the sudden flaccid crural paraplegia from the beginning which is also not very frequent would reveal the intensity of the osseous or mielomatous compression. The authors suggest a possible secondary etiological cause (professional handling of lac-piroxiline dye).

Ao fazer o registro clínico-hematológico de um caso de mieloma múltiplo com comprometimento neurossomático, permitimo-nos salientar o início e a evolução subaguda da moléstia em um jovem operário. A incidência ou concausalidade heterotóxica da moléstia constitui um problema atualmente quase insolúvel sob o ponto de vista etiológico. Julgamos feliz a circunstância de ter podido observar um caso no hospital em que trabalhamos, pois este fato, uma vez mais, vem corroborar a idéia de que a clínica neurológica deve enquadrar a sua atividade no seio dos hospitais gerais, única maneira de dinamizá-la mediante o trabalho em colaboração.

William Mc Intyre, em 30 outubro 1845, referiu o primeiro caso de mieloma múltiplo. Em 15 novembro do mesmo ano, Bence Jones, ao examinar a composição da urina do mesmo paciente, sugeriu o acréscimo de alúmen aos tônicos que haviam sido prescritos, com a esperança de impedir a excreção excessiva da "matéria animal" (hoje conhecida como corpos de Bence Jones). Mc Intyre publicou sua observação 5 anos depois com o título "Case of mollities and fragilitas ossium, accompanied with urine strongly charged with animal matter" (Med. Ch. Tr.,- 33:211, 1850). Este autor também solicitou a colaboração de Dalrymple que, já em 1846, efetuava o exame microscópico de duas costelas.

Kahler publicou, 39 anos depois da observação de Mc Intyre, o seu relato intitulado "Zur Symptomatologie des multiplen Myeloma; Beobach-tung Albumosurie" (Prog. Med. Wchnsch., 14:33, 1889). Segundo Ges-chichter e Copeland (Tumors of Bone, Lippincott, 1949), entre os anos de 1848 e 1873 só foram acrescentados 3 casos à literatura, relatados por Weber (1867), Crudeli (1861) e Adams e Dowse (1872). O trabalho de Kühne, em 1882, precedeu o de Kahler.

Na Itália, Bozzolo, em 1897, referiu quase 40 casos da literatura (Sulla mallattia di Kahler. Riforma Med., 4:355, 1897). Martire, em 1915, publicou um trabalho sobre o assunto (La mallattia de Kahler-Bozzolo. Policlínico, sez. med., 22:451‐502, 1915).

Esta enfermidade afeta as últimas décadas da vida (entre 40 e 70 anos) com incidência máxima nos 55 anos. Entretanto, foram referidos casos em jovens, como os relatados por Williams, Orans e Glym (30 anos), Moore (27) e Haberfeld e Lordy (22), todos citados por Geschichter e Copeland; jovem também é o paciente que observamos. Walgren não considera como sendo de mieloma os casos referidos em crianças por Roman (1912) e Elizalde e Llambias (1913). A freqüência parece ser duas vezes maior para o sexo masculino; a moléstia não costuma ter predileção geográfica. Sua incidência em relação com outros tipos de tumores malignos, seria de 0,03%.

Como fatores concausais determinantes foram citados o trauma, os estados infecciosos (influenza, paludismo e febre tifóide) ; como fatores associados, a tuberculose, a sífilis, a osteomielite e as artrites infecciosas. Em nosso caso podia-se presumir, pela profissão do paciente, que a laca-piroxilina tivesse agido como concausa. A atual tendência patogênica é de assoòiar a formação das células plasmáticas do mieloma com a função da fração globulínica da medula óssea, o que explicaria a sua freqüente elevação no plasma sangüíneo. Alguns, como Snapper, sugerem que os distúrbios das proteínas plasmáticas precedem o desenvolvimento da moléstia, incitando à proliferação tumoral as células da medula óssea responsáveis pela formação globulínica.

Em termos muito gerais e a fim de não nos estendermos em demasia, recordemos que a dor de tipo neurítico ou, mais freqüentemente, radicular, abre a cena clínica, sendo, como em nosso caso, em certas ocasiões, extraordinariamente intensa a ponto de criar um estado de ansiedade; a dor predomina nas regiões infracostal e sacrolombar. As formações tumorais comprometem crânio, rim, ombros, cintura pélvica, costelas e ossos chatos; no esterno, às vezes muito friável, como em nosso caso, há um afundamento do ângulo de Luys. As fraturas patológicas são tão i requentes como no carcinoma metastático e no sarcoma osteogênico.

Manifestações gastrointestinais (diarréia, cólicas, enterocolit.es, úlcera péptica) podem abrir a cena. Complicações pleuropulmonares (enfisema e pleurites fibropurulentas) foram descritas. As nef roses são variad3s e diversas (70% dos casos) ; segundo Hammond, seria típica a nefrite crônica com retenção de azoto não proteico e hipotensão arterial. Grant e Brewer assinalaram os mesmos achados com hipotensão sangüínea. A albuminúria associa-se à anemia e, em outras ocasiões, à policitemia (até 9.000.000 de hemácias por mm3 e 102% de hemoglobina). Não obstante, a oligocitemia e oligocromemia são freqüentes; em nosso caso havia anemia com leucopenia. Já se viram normo e megaloblastos ou células mononucleares anormais do tipo Türck, com linfocitose relativa. Cistites, pielites ascendentes e abscessos renais foram descritos. São raras as metástases nos órgãos internos (fígado ou baço). Os corpos de Bence Jones são encontrados em 80% dos casos; na bioquímica interna ressalta o distúrbio do metabolismo fosfocálcico, que deve ser distinguido daquele encontrável no hiperparatireoidismo porque a hipercalcemia não é acompanhada de fosfopenia, não existindo elevação da fosfatase alcalina.

Os exames radiológicos permitem, como em nosso caso, comprovar a existência de zonas de intensa rarefação (punched areas) craniana e zonas tumorais afetando certos setores dos ossos chatos. Estas imagens podem repetir-se nos ossos longos e na cintura pélvica. Sob o ponto de vista histológico notam-se células plasmáticas: freqüentemente o núcleo é excêntrico e a cromatina tem disposição radiada; outro tipo seria o das células de Mott (plasmáticas vacuolizadas).

As complicações neurológicas consistem em paraplegia conseqüente ao comprometimento raqueano e devida à compressão direta da medula pelos tumores. O início é insidioso ou súbito. Verificam-se sinais piramidais com hipertonia e hiperreflexia, diminuição da sensibilidade epicrítica e comprometimento esfinctérico. Numa segunda fase há flacidez e surgem escaras de decúbito. Foram descritos sinais pupilares, diplopia e anisocoria (Bloodgood-Anders), paralisia da mão (Hess), glossoplegia, amaurose por trombose da artéria central da retina (Senator), intensas radiculalgias complicadas com herpes zóster, etc.

Fm nosso caso, o processo se iniciou com típica e rara síndrome radículo-plexual braquial inferior direita tipo Dejerine-Klumpke, instalando-se, poucos dias depois, paraplegia crural supratorácica, inicialmente flácida.

A. M., com 30 anos de idade, argentino, solteiro, pintor. Internado em 13‐2‐1951. Anamnese - Há um mês aproximadamente, inapetência, enfraquecimento geral e dor no hemitórax direito; poucos dias depois, dor na região escápulo-humeral direita, progressiva e irradiando-se para o membro superior do mesmo lado. Simultaneamente, começou a claudicar a torça nesse membro, a princípio na porção distal e progredindo para a raiz. Como antecedente de certa importância, há o fato do paciente trabalhar há vários anos como pintor, usando tintas à base de laca-piroxilina.

Exame clínico - Normótipo; panículo adiposo regular. Dentes em bom estado. À palpação do tórax nota-se uma tumoração dolorosa na 7ª costela direita, ao nível da linha axilar anterior. Aparelho cardiocirculatório normal; pressão arterial 155‐85 mm Hg. Aparelhos respiratório e digestivo normais.

Exame neurológico - Paciente hiperemotivo e insone, pois as dores aumentam à noite. A inspeção observa-se atrofia dos interósseos no dorso da mão direita, assim como das eminências tènar e hipotênar; é menos notável a diminuição de volume do antebraço direito. Tono diminuído no membro superior direito, sobretudo no triceps. Motilidade passiva e ativa conservada, porém limitada no membro superior direito pela dor que se irradia ao longo do mesmo. Força muscular diminuída no membro superior direito, tanto para a flexão como para a extensão do antebraço sobre o braço; muito diminuída na mão. Reflexos osteo-tendinosos policinéticos nos membros superiores, especialmente à direita; patelares e aquilianos normais. Reflexos superficiais normais. Ligeira hiperestesia e hiperalgesia no membro superior direito, território de C8 a T1. Pupilas redondas e centrais; anisocoria (maior à direita). Síndrome de Claude Bernard-Horner à direita. Reflexos fotomotor, consensual e à convergência-acomodação conservados. Normal a motilidade ocular e do véu palatino.

Exames complementares Exame de urina: vestígios de albumina. Hemograma: 3.800.000 eritrocitos por mm3; 4.000 leucócitos (neutrófilos 72%, acidófilos 3%, linfócitos 25%) ; hemoglobina 74%. Reações de Wassermann e Kahn no sangue negativas. Glicemia 0,7 g/l. Azotemia 0,51 g/I. Eritrossedimentação: em 26‐1‐1951, 112 mm na 1ª hora. Proteinúria de Bence Jones, negativa. Proteinemia: 8,95 g/100 ml. Uricemia: 7,5 g/100 mi. Cálcio total, 12,5 mg/100 ml (dialisável: 9,5 mg/100 ml). Fósforo inorgânico 3,5 mg/100 ml. Fosfatase alcalina 6 mg/100 ml de fenol. Fosfatase ácida 4 mg/100 ml de fenol. Exame urológico: próstata de tamanho normal. Eletrocardiograma: ligeiro déficit da irrigação coronária. Exame do líqüido cefalorraqueano: 2 eélulas/mm3; proteínas 0,12 g/l; glicose 0,65 g/l; cloretos 8,5 g/l; reações de Nonne, Pandy e Weichbrodt fortemente positivas; reação de Lange 000.221.000.000.0; reação de Wassermann negativa.

Evolução - Em 28‐2‐1951 instalou-se juma paraplegia flácida: hipotonia de ambos os membros inferiores à palpação; motilidade ativa totalmente ausente; reflexos patelares e aquilianos abolidos, assim como os abdominais, cremastéricos e plantares. Anestesia superficial e apalestesia até I\ e hipoalgesia em T. Retenção de urina. Foi iniciado tratamento pela prostigmina (2 ampolas diárias). Em 1‐3‐1951 surgiu febre, que foi atribuída à sondagem vesical permanente, receitando-se estreptomicina (1 g diária); inicia-se radioterapia profunda com foco em IV Em 4‐3‐1951 quase desapareceu a febre. Foi retirada a sonda, continuando-se tom prostigmina. Inicia-se tratamento pelo BAL (2 ampolas diárias) e eortisona (100 mg diários). O paciente parece melhorar um pouco do estado geral. Em 6‐3‐1951, taquicardia (100 bat./min.). Piora o estado geral; bulhas cardíacas débeis. Exame neurológico igual ao de 28‐2‐1951. Foi feita uma transfusão de 150 ml de sangue. Em 7‐3‐1951 o enfermo faleceu.

COMENTÁRIOS

Em resumo, nosso caso refere-se a um jovem de 30 anos, utilizando em sua profissão a laca-piroxilina e que, de modo brusco e rapidamente progressivo, foi acometido de intensas radiculalgias, com projeção predominantemente nos metâmeros C8 e T\ direitos. Foi comprovada a existência de uma síndrome radículo-plexual, oculossimpática inibidora (Claude Bernarde-Horne), tipo Dejerine-Klumpke, à direita. Esse diagnóstico semiológico impunha, desde o início, na discussão etiológica, a exclusão das síndromes neurocirculatórias, dos escalenos, da hipertrofia da 7.il apófise transversa cervical ou hipertrofia da primeira costela torácica, com suas variantes anátomo-clínicas, isto é, a síndrome de Naffziger com comprometimento da 5ª e 6ª raízes cervicais e a de Haven com abolição do pulso radial nas manobras de hiperabdução. As anomalias congênitas da coluna cervical foram facilmente afastadas pelo exame radiográfico, que revelou Use das apófises transversas direitas e corpos de Ce, C7 e 7\. Portanto, o diagnóstico de síndrome tipo Klumpke fundamentou-se, anatomicamente, na compressão radículo-plexual oculossimpática. A intensidade das algias determinou uma reação neuropática (neurose de ansiedade).

Os exames radiológicos foram orientados no sentido de verificar se a etiologia correspondia a um tumor do tipo apical (Tobias) ou à síndrome de Pancoast. Ambos foram excluídos pela radiografia do tórax e da raque, que demonstrou a existência de um tumor na 7ª costela direita e descalcificação múltipla. Esta circunstância já orientou para um processo "de sistema", obrigando, portanto, ao exame radiográfico de outros ossos (crânio, pelve, raque) que denotaram as típicas "punched arcas" e grande transparência da imagem esternal.

Um de nós (J. R. C) praticou o estudo cito-humoral e hematológico do caso por meio da punção esternal, tendo verificado o seguinte: "Hiper-proteinemia, hiperuricemia, normofosforemia, normofosfatasemia, hypercalcemia, aumento da eritrossedimentação, positividade da reação do formol-gel, ligeira auto-aglutinação das hemácias. Por outro lado, na urina notou-se a presença de uma albumose que, embora sem os caracteres da de Bence Jones, se precipitava com excesso de ácido tricloracético e desaparecia com a ebulição. A punção esternal e a biópsia da tumoração costal (7ª costela direita) revelaram uma citomorfologia predominantemente plasmocelular em diversos estádios evolutivos. Não verificamos a presença de abundantes células plasmáticas no sangue periférico. Com estes elementos acreditamos ter ficado suficientemente positivado o diagnóstico de mielomatose múltipla".

Trabalho do Serviço de Clínica Neurológica da Sociedade Espanhola de Beneficência, Hospital Espanhol (Chefe: Prof. B. B. Spota), apresentado à Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Neurocirurgia de Buenos Aires, em 20 abril 1951. Traduzido do castelhano por Horácio M. Canelas.

Callao, 232 (8.9p.) - Buenos Aires. Argentina

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1951
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