Acessibilidade / Reportar erro

O síndroma da hipopatia: a dor nos leucotomizados

CONFERENCIAS

Barahona Fernandes

Da Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina. Hospital Júlio de Mates, Lisboa, Portugal

RESUMÉ

On décrit deux cas de leucotomie pour des douleurs inguérissables (névralgie du trijumeau, tumeur de l'abdomen avec toxicomanie). On remarque les faits suivants: ) l'absence de souffrance subjective pendant le sevrage en contrast avec le dangereux colapsus; 2) modifications relatives de la sensibilité interieur et exterieur, pour lesquelles on propose la création d'un nouveau syndrome - l'hypopathie.

La moindre repercussion sur le Moi des sensations désagréables chez les leucotomisés s'oppose à la ressonance afective excessive de toutes les sensations dans l'hyperpathie de Foerster. Certaines sensibilités exteroceptives sont accentués dans l'hypopathie et affaiblies dans l'hyperpathie.

On met ces faits en rapport avec l'anatomo-physiologie des systèmes cortico-thalamo-hypotalamiques et la psychopathologie des douleurs nevralgiques, viscerales, psychalgies, douleurs psycho-somatiques et dans les psychoses. Indications de la leucotomie dans les cas les plus graves de ce genre.

A leucotomia pré-frontal, iniciada por Egas Moniz, representa não só um meio terapêutico, em via de aperfeiçoamento progressivo, e cujos resultados a clínica não pode hoje ignorar, como também um método de estudo de determinados problemas anátomo-fisiológicos e clínicos.

Noutros trabalhos analisámos detidamente o seu interêsse na psico-fisiologia normal e patológica, em particular no estudo dos fundamentos da personalidade e na análise de certos síndromas mentais. Queríamos hoje focar, muito sucintamente, outro problema: o da sensibilidade dolorosa.

A experiência da leucotomia trouxe mais um novo meio de tratamento de alguns casos desesperados de dores inabordáveis a outros métodos terapêuticos. Mostrou-nos também mais claramente a natureza e as correlações encefálicas de uma forma de sensibilidade ainda pouco estudada: a sensibilidade interna, ou sensibilidade interior, cujas relações com os sistemas aferentes hipotálamo-tálamo-corticais, que terminam no chamado "córtex visceral de Mac Lean" (o cíngulo, hipocampo, lobo orbitário e polo temporal) se tornam cada vez mais aceitáveis.

O estudo dos doentes leucotimizados levou-nos a delimitar um novo síndroma de alteração da sensibilidade, que em muitos pontos se opõe à hiperpatia de Förster, e por êsse motivo chamamos hipopatia.

Resumamos primeiro muito sumariamente duas observações clínicas de doentes estudados em colaboração e operados pelo Prof. Almeida Lima.

Caso 1 - Doente com neuralgia do trigémio, já operado por duas vezes, de radicotomia retro-gasseriana, sem qualquer acalmia do seu penar, violento, atroz e com exuberantes e espectaculares exteriorizações emocionais. Estava em constante inquietação anciosa, queixando-se sem descanço de dores na face. Operado de leucotomia pela técnica aberta superior (semelhante à de Popen), socegou acto contínuo. Não mais se queixou espontâneamente, sereno e satisfeito, levando uma existência tranquila. Interrogado, dizia, porém, sentir quase a mesma dor. Referia-a, no entanto, de forma branda, suave, sem emoção nem sofrimento. De forma alguma se mostrava indiferente ao que o rodeava. O possívei deficit de personalidade não era apreciável. A conduta do doente era correcta, interessada, natural, calma, ü estado mental em relação à situação pré-opera-tória era indiscutivelmente mais favorável, de tal maneira o sofrimento e exci-tação impediam a largo tempo (e sem esperança de melhoras) a mais singela actividade, até uma simples conversa mais longa e atenta.

Caso 2 - Jovem de 23 anos. Herança epiléptica e psicopática. Leplosómico. Pouco activo, sobre o triste, preocupado desde sempre com a saúde e o seu sofrimento crónico dos intestinos. Fora operado há 6 meses, após violentas eólicas, de um grande tumor abdominal. Tratava-se de uni grande teratoma, que invadia a pelve e aderia à aorta, impedindo a extirpação total. Após a intervenção, queixa-se de dores violentíssimas no sacro, em volta da cintura, irradiando ao perineo. Logo a seguir começa a tomar morfina, em doses crescentes, que atingem 30 a 40 centigramas diários, em injecções dadas de hora em hora, obtendo apenas uma acalmia transitória. Entra pouco depois em agitação, revolvendo-se no leito, em movimentos ginásticos complexos. "Não posso estar quieto", "só me agüento assim". "Só penso na dor, na dor é que eu penso", "só quero que me façam passar a dor. Sempre fui piegas. Disfarçava. Dores não suportava com facilidade. Tenho horror aos dentistas. Afligia-me muito se tinha doenças. Agora, com o estado de fraqueza, irrito-me com tudo e com todos. Se me dão a injecção alivio. Estava naquela sobre-excitação, alivio. E' uma dor funda. Trespassa os ossos. A cabeça está um bocado nervosa. Se não vinha a injecção ficava todo contraído, os ombros uns contra os outros, aliviava. Quando não podia mais, berrava lá para o corredor. Fazia asneiras, etc". Mostra-se impaciente até com a própria mãe, critica o pai, está desiludido dos médicos, que prometeram aliviá-lo.

Operado de leucotomia tipo cingulectomia interna parcial* * Nova técnica de leucotomia parcial ou seletiva (semelhante ao undercutting, mas feita na espessura da substância branca) proposta e executada por Almeida Lima, baseado nos estudos anátomo-fisiológicos e clínicos sôbre a localização da sensibilidade visceral e interna em geral. A intervenção é feita por via superior, a céu aberto, com controle da hemorragia, O corte estende-se no sentido ântero-posterior na espessura da substância branca entre o cortex da face interna do hemisfério e a parede do ventrículo lateral. E' delimitado para a frente por um plano transversal passando pelo polo anterior do ventrículo e para trás por um plano paralelo passando pelo septo lúcido, adiante da confluência dos ventrículos. O corte poupa, pois, tôdas as fibras que vão para a face externa do encéfalo e grande parte das que se dirigem para o polo frontal. Clínica Psiquiátrica - Hospital Júlio de Matos - Lisboa - Portugal. . Em seguida à intervenção suspende-se totalmente a morfina. O doente não voltou a queixar-se. Não tornou a pedir as injecções. Horas depois: Grande crise de abstinência ("sevrage") sem as manifestações subjectivas correspondentes. Colapso: pulso pequeno e freqüente, palidez, suores abundantes, hipertermia, dilatação pupilar. O doente está, porém, calmo, apático, não pede medicamentos. Em face do perigo, volta-se a administrar morfina (1 centigrama de 4 em 4 horas), o que faz cessar rapidamente os sintomas de colapso. Nos dias seguintes está por vezes inquieto, confuso, incoerente, faz movimentos de agarrar com intenções agressivas, belisca as enfermeiras. Nega ter dores. Insónia tenaz. Depois de poucos dias suspende-se definitivamente a morfina, sem qualquer reação somática nem psíquica. Alimenta-se bem, o estado geral melhora rapidamente. Vai para casa bem disposto.

Após a grande modificação dos primeiros dias, a mãe acha-o com o mesmo feitio, só um pouco atordoado, faz projectos para o futuro, sente-se contentissi- mo com a melhora. Desapareceu a irritabilidade. Tornou-se mais complacente e afável, aceita melhor as observações do pai, de que antes discordava, reconhece o que fez por êle, etc. Confiado nas melhoras, crê agora que o tumor não deve recidivar. Não fala em nervos. Não se preocupa com o sofrimento passado, nem com a magreza actual. Não tem o medo que tinha. Confia no médico. Já não tem dores. Talvez umas dores muito leves de estar deitado. Por vezes uma pequena dor faz sofrer - diz - mas fica calmo e continua a 1er o jornal. Incomoda-se bastante com o barulho das enfermeiras, conversas, telefones, aviões. Quando vêm limpar, batem na cama, incomodam, aumentam as dores de cabeça, sente um choque. Levava injecções de vitamina C, gritava muito; dizia, no entanto, depois, que não doía quase nada. Conforma-se, passivo, sem qualquer sinal de anciedade. Três meses depois, obstrução intestinal aguda irremovível. Morte.

Em ambos os casos se atingiu o fim desejado com a intervenção, o lenitivo para o sofrimento, sem as desvantagens, que por vezes desmedida e apaixonadamente, se tem assacado à leucotomia.

A técnica proposta - um corte de extensão muito mais limitada e diferente da leucotomia clássica - bastou para se alcançar as melhoras clínicas da dor, sem deterioração aparente da personalidade. As modificações afetivas e de atitude do Eu dão-se predominantemente no sentido de compensar os sintomas mórbidos anteriores (sofrimento ancioso, a espectativa das dores futuras, o desespero e a inquietação pelo penar físico, a preocupação com a situação, etc.) sem repercussões desagradáveis ou perturbadoras no comportamento. Em doentes com estados álgidos tão graves, estão prejudicadas todas ac actividades e a vida social e espiritual ficam esmagadas pelo sofrimento intenso e quase ininterrupto. Mesmo que a intervenção pudesse baixar o nível da personalidade (como acontece com a lobotomia) punha-se a questão se seria ou não aceitável esse risco perante a humana necessidade de atenuar o sofrimento de tais doentes. Não se deve esquecer - como alguns fazem - que não se trata de operar um indivíduo normal, mas sim um doente já diminuido nas suas possibilidades. A baixa de nivel (em relação à personalidade anterior a toda a doença) pode efectivamente representar uma subida de nivel em relação às reais possibilidades de um tal enfermo, inibido e peado pelo sofrimento, pela toxicomania e pela doença.

A serenidade alcançada permite o exercício da vida mental e a expressão dos afectos num plano de convivio simpático e agradável, com ocupações e distrações compatíveis com as fôrças do enfermo. Só em casos de psicopatas (perversos, amorais, certos alcoólatras impulsivos, etc.) se manifestam sintomas desagradáveis ou condutas inconvenientes. Repetimos: com as novas técnicas de leucotomia parcial este difícil problema das alterações de personalidade perde quase por completo a sua importância. A maior precisão e localização seletiva (Carillo) da leucotomia permitirá cada vez menos riscos e maior segurança na sua execução e indicações.

Pelo que diz respeito às funções da sensibilidade, dá-se nos leucotomizados uma profunda e curiosa manifestação que vamos considerar mais de perto:

1) As dores espontâneas e outras sensações penosas mórbidas desaparecem por completo, nuns casos. Noutros, só são referidas pelos doentes, quando interrogados a esse respeito. Espontaneamente não se queixam, estão serenos, não mostram sinais de sofrimento, nem de preocupação pela dor e pela doença. Abordado o tema,, referem-se à existência de dor como algo de banal, que os não afectasse profundamente; não insistem, mudam de pronto de assunto, sem emoção.

2) O exame objectivo da sensibilidade pelos métodos correntes em neurologia, não mostra qualquer déficit. Não há tambem prejuízo dos outros sentidos (vista, audição, etc).

3) Em grande número de leucotomizados observa-se, pelo contrário, um estranho aumento de reacção a estímulos cutâneos, tácteis, dolorosos e térmicos, ou até à simples espectativa da estimulação. Em contraste com a falta de iniciativa verbal e para a acção, assinalam-se os operados, durante as primeiras semanas, pela maneira excessiva como reagem aos pensos, injecções, picadas e a outros estímulos cutâneos. A vigilidade para tais estímulos está aumentada. Defendem-se, queixam-se e gritam de forma excessiva. Por vezes referem sinais de hiperestesia e hiperalgesia cutânea. Estas reações de curto-circuito ou hipermetamorfóticas estendem-se, aliás, a todo o comportamento do doente. Como descrevemos noutros trabalhos, há marcado acréscimo de reacção a todos os estímulos exteroceptivos, o que se traduz pela maior sintonização com o ambiente em geral.

4) A sensibilidade de posição e movimento e outras formas de sensibilidade proprioceptiva não estão modificadas.

5) A sensibilidade dolorosa visceral e a sensibilidade interoceptiva em geral parecem estar bastante modificadas. Inferimos primeiro esta proposição do estudo dos sinais clínicos: o desaparecimento das dores, do sofrimento somático e visceral, a baixa da atenção e preocupação com o estado do corpo, a inatenção ao funcionamento dos esfincteres, etc. Cotejámo-la mais tarde com dados experimentais, recentemente sintetizados por Mac Lean e Fulton, sôbre as localizações das funções viscerais no córtex orbitário, cíngulo, etc., e a sensibilidade visceral em especial. Pusémo-la a par da análise que fizémos das modificações dos doentes mentais operados nas suas relações com as alterações anátomo-fisiológicas produzidas. Numa palavra: conservação ou reforço das actividades externas com prejuízo das actividades internas, aquilo que chamamos sintonização regressiva. Por um complexo mecanismo dá-se assim melhor adaptação ao meio, que se obtem, até certo ponto aproximável, por outros métodos terapêuticos (electrochoque, insulinoterapia, etc), embora à custa da perda (regressão) de certas funções, como cabe a uma intervenção cirúrgica lesional. Faltava-nos a prova objectiva da alteração de sensibilidade interna. Tratámos já do assunto noutros estudos. Podemos dizer por agora que o sofrimento subjectivo provocado, nos leucotomizados, por certos estímulos desagradáveis - em determinados testes que concebemos para este fim (teste da acetilcolina e teste da sensibilidade à isquémia, entre outros) - está apreciavelmente modificado nos leucotomizados. Em nossos testes da sensibilidade à isquémia altera-se em particular o elemento afectivo (desagradável) das sensações produzidas pela compressão do braço de modo a provocar a isquémia dos segmentos distais. Continuamos novos estudos neste sentido.

Como interpretar estas modificações?

As explicações dos efeitos da leucotomia baseadas em dados fisiológicos (alteração dos circuitos eléctricos, diminuição da quantidade da substância encefálica, etc.) têm grande interesse. Não permitem, porém, compreender esta diversidade qualitativa dos fenómenos sem considerar as diferentes funções e os diferentes sistemas de vias nervosas, que com êles estão correlacionados. O problema parece ser muito mais simples para a sensibilidade do que para as funções psíquicas. Mesmo assim, não tem tido até agora solução satisfatória.

O efeito sôbre a dor espontânea não se pode explicar de forma alguma pela simples apatia e indiferença afectiva dos doentes, como alguns pretendem. Muitos enfermos não estão, aliás, apáticos; pelo contrário, agitados, hipermetamorfóticos, atentos ao ambiente próximo, respondendo a todos os seus estímulos e solicitações, posto que numa forma mais elementar, infantil, lúdica ou simplesmente reflexa, em curto-circuito. Há, pois, diferenças muito marcadas entre a situação dos leucotomizados (hipopatia) e a apatia das lesões difusas do córtex frontal.

Nem sempre tem sido posta em relevo a diferença do déficit da leucotomia e do clássico déficit frontal, explicável, aliás, por as lesões operatorias da substância branca se repercutirem muito mais no tálamo do que no córtex (degenerescência retrógrada mais intensa nos núcleos talâmicos, donde partem as fibras aferentes para o córtex, muito mais numerosas do que as eferentes do córtex para o tálamo).

Chapman, Salomon e Rose foram os primeiros a investigar o facto estranho do aumento da sensibilidade exterior nos leucotomizados, considerando-o "inexplicável". Fulton chama, com razão, tal fenómeno "curioso" por a mesma lesão que alivia a dor, provocar, ao mesmo tempo, hipersensibilidade noutros campos. Petit-Dutaillis, Messemy e Feld descrevem tambem esta hiperestesia cutânea, assim como Mettler na topectomia (aumento da sensibilidade discriminativa, etc.) ; Winnik e Askanasy distinguem esta hiperestesia álgica, cuja explicação não tentam, da chamada reacção de espanto ("startle reaction").

Não nos parece aceitável a explicação de Barcia Goyanes de que na leucotomia se afectaria somente a sensibilidade pática (emocional elementar) conservando-se a noética (diferenciada). De facto, as reacções "páticas" aos estímulos externos estão conservadas e até aumentadas. Nada prova tambem, como pretende aquele autor, que a sensibilidade pática siga das vias espinotalâmicas para o núcleo dorsal medial do tálamo e deste para os campos 10, 11 e 12 do córtex, enquanto a sensibilidade noética seguiria a conhecida via até aos núcleos dorsais póstero-lateral e póstero-medial do tálamo e daí até aos campos 1, 2 e 3 do córtex pós-rolândico.

As novas investigações anatómicas, que o interesse pela leucotomia tanto tem incitado e feito progredir, mostram que não há qualquer relação entre os sistemas sensitivos ascendentes de origem somática (feixes espinotalâmicos, lemnisco medial) por um lado e os núcleos talâmicos (anterior e o citado dorsal lateral) lesados na leucotomia, por outro. Estas formações estão apenas relacionadas com vias vindas do hipotálamo (o sistema de Papez e fibras directas demonstradas fisiológicamente), adstritas, ao que parece, à sensibilidade visceral e não à sensibilidade somática.

Estes dados jogam perfeitamente com as nossas primeiras deduções dos factos clínicos, publicados em 1948 e 1949, nas quais púnhamos já em relêvo o prejuízo da sensibilidade interna e o seu nexo necessário com os sistemas cerebrais lesados (córtico-tálamo-hipotalâmicos), os quais, desde Kleist (1934), se sabia terem relação com o Eu corporal, com a vivência e sensação do próprio corpo.

Fulton (1951) diz explicitamente que as observações da leucotomia mostram haver, com segurança, uma diferença essencial entre os mecanismos fisiológicos de percepção de dor cutânea e de dor visceral. Compreende-se a importância que têm estes novos dados para o estudo das correlações encefálicas da actividade visceral e vegetativa.

Pelo que diz respeito ao nosso problema, não se trata apenas de uma simples "anestesia" ou "hiperestesia" para a sensibilidade visceral. A sensibilidade normal das visceras tem um caracter muito particular. E' difusa, não analisável, nem localizável de forma discriminada, como a sensibilidade cutânea e outras sensações exteroceptivas. Se toma claramente feições deste teor é porque se deu uma projecção na correspondente zona cutânea de Head. Tem tambem quase sempre um caracter afectivo e próximo do Eu, já pelo colorido agradável ou desagradável, que quase sempre possui, já pela maior intimidade e pertença pessoal que lhe são tão peculiares.

Os doentes nos quais, como em nosso caso 1, a dor espontânea não desaparece, mas se transforma e perde a ressonância emocional, mostram que o problema é muito mais complexo que o de uma simples diminuição quantitativa da sensibilidade interna. A alteração dá-se no nível mais elevado de integração dos estímulos intero e exteroceptivos na actividade do Eu, com prejuízo da repercussão dos estímulos internos sôbre o comportamento do individuo e consequente facilitação das respostas aos estímulos externos, isto é, ao ambiente.

Nesses casos a consciência continua a receber sensações, reconhecidas como "dolorosas". A sua vivência é, porém, apagada e distante, com muito menos ressonância afectiva. O Eu fica distante, não integra tais sensações na experiência do passado nem na espectativa do futuro (o que se sofreu e o sofrimento que está para vir, fontes da maior anciedade, o medo da morte, etc). Cessa, assim, a autoperpetuação emocional das sensações penosas, de seu colorido angustioso e sua elaboração ideativa pessimista e hipocondríaca.

Ao conjunto destas perturbações da sensibilidade dos leucotomizados propusemos (1950) chamar hipopatia, por nos parecer o reverso da hiperpatia descrita por Förster no síndroma talâmico.

Vemos, assim, com efeito, que na hiperpatia se observa: a) Excessiva ressonância emocional de todas as sensações. A dor espontânea ou provocada por um estímulo local tende a estender-se por vezes a toda a metade do corpo, toma marcado carácter afectivo penoso. Está muito próximo, abala desagradávelmente o Eu, chega a provocar estados anciosos, nos casos mais graves. A sensibilidade visceral pode estar aumentada (testiculo, por exemplo). Esta maior personalização das sensações exprime-se tambem pela tonalidade afectiva de certos estímulos, por vezes agradável (caricias, emoções sexuais), quase sempre desagradável (até à música), repercutindo-se, com sofrimento, sôbre o lado doente, b) Baixa do limiar da sensibilidade, com maior prejuízo de certas formas (tactil, térmica, de discriminação profunda). Se a hiperpatia se caracteriza por hipoestesia cutânea com excessiva ressonância álgica e emocional, a hipopatia, ao invés, assinala-se com hiperestesia cutânea e baixa ressonância álgica e emocional.

A hiperpatia observa-se, porém, ao contrário da hipopatia, de forma hemilateral e situa-se num nível de integração menos elevado. 0 Eu está tambem envolvido, como vimos, de forma semelhante ao que sucede em certas nevralgias, nas dores simpáticas, em todas as algias com participação do vegetativo, caracterizadas pelo seu aspecto difuso, afectivo e perturbador. Está, porém, menos próximo do Eu, é menos personalizada. Não há sintomas deficitários apreciáveis como na hipopatia.

As correlações anatómicas são. outrossim, diversas. Na hipopatia não estão alterados os núcleos anteriores e dorso-mediano e respectivas ligações corticais e diencefálicas. As reacções emocionais são, aliás, intensas, excessivamente generalizadas, por vezes desinibidas. Por outro lado, estão lesadas outras formações, em especial o centro mediano de Luys, com participação provável das vias de sensibilidade somática. Não parece, pois, haver, como nos leucotomizadps, alterações dos sistemas interoceptivos nem das formações corticais e subcorticais adstrictas às funções da personalidade.

Uma forma extrema da hipopatia observa-se em nosso caso 2: a ausência da resposta objectiva, a falta de repercussão emocional à grave crise de abstinência da morfina. Deixou-se de dar no Eu o eco de uma situação vital com perigo de morte. O colapso não foi vivido como ameaça para o próprio. A apetência biológica para a droga não teve, como habitual, o seu paralelo emocional e a atitude reivindicadora e queixosa da personalidade. Nem sofrimento, nem protestos, nem pedidos de droga. O doente ficou insensível aos apelos que vinham "de dentro" e se ligavam com o passado de toxicomania, a necessidade tissular do tóxico. Não que estivesse apático: antes extravertido e vivo, interessado no ambiente, só estava despreocupado e desatento ao que ocorria no próprio corpo e na própria pessoa. Uma situação destas merece ser conhecida, porque põe em risco a vida do doente, se não ministrarem doses decrescentes de morfina, até obter a desabituação biológica.

Em outros casos operados de leucotomia observa-se também o síndroma de hipopatia. Por exemplo, em dores tabéticas, crises gástricas, causalgias, no síndroma de Raymond doloroso, até em casos de hiperpatia por lesões vasculares ou tumorais do tálamo.

Mesmo nos casos onde está afectada a sensibilidade exteroceptiva, parece haver uma componente simpática (nevralgias) ou mesmo central talâmica (na nevralgia do trigémio). Nestes casos, aliás, nem sempre a leucotomia é eficaz. Pensamos que tanto menos, quanto menor é a participação emocional e vegetativa interoceptiva. De facto, os casos com aspecto de "psicalgia", com perturbações afectivas, componentes psicogéneos, fundamento psicopático, etc., são os que melhor respondem à terapêutica "psicocirúrgica".

Este abrandamento da ressonância pessoal às vivências corporais desagradáveis, tem tambem grande interesse nas psicoses e nas afecções psicossomáticas: nas dores e outras sensações penosas localizadas a regiões viscerais e vividas com anciedade, em indivíduos com perturbações vegetativas (funcionais) e até em lesões viscerais com acentuada repercussão neurótica. Tem-se obtido bons resultados terapêuticos pela leucotomia em casos graves e resistentes a todas as terapêuticas de prurido, dores viscerais, psicopáticas, timopáticas, tinnitus, etc., e em muitos depressivos hipocondríacos com queixas somáticas.

O agir visceral dá-se normalmente de forma mal consciencializada, distante e em participação do Eu. Na doença pode tornar-se consciente e personaliza-se, com o fim biológico de alarme vital, pondo em marcha os instintos e reacções de defesa e conservação. Nos casos "psicossomáticos", nas elaborações neuróticas, dá-se um exagero destes mecanismos, perdendo-se a sua finalidade biológica. Provocam-se, assim, reacções vegetativas exageradas com excessiva reacção de alarme emocional e de defesa instintiva sem fundamento e sem finalidade objectivas. Servem-se apenas os fins ("neuróticos") da personalidade. Assim se desencadeia a angústia, que agrava por seu turno os desvios funcionais dos orgãos, perpectuando-se o processo indefinidamente. A vivência de tais dores e sofrimentos assinala-se pelo seu acentuado carácter afectivo. As dores são extremamente desagradáveis, abalam o próprio individuo, perduram como que uma eternidade, levam-no ao desespero, embora nem sempre se possam descrever ou localizar com exactidão.

A leucotomia visa a provocar um síndroma de hipopatia nesta desagradável situação clínica. Alteram-se assim todos estes processos neurovegetativos (neuróticos), afastando-os do Eu e esfumando a sua hiperestesia afectiva. Atenua-se, assim, o sofrimento e a angústia, tornando-se os doentes muito mais acessiveis às terapêuticas conservadoras, em especial a psicoterapia e a reabilitação.

Trabalho apresentado à Associação Paulista de Medicina em 16 setembro 3952, nas Jornadas Médicas Luso-Brasileiras.

  • O síndrom

    a da hipopatia: a dor nos leucotomizados
  • *
    Nova técnica de leucotomia parcial ou seletiva (semelhante ao undercutting, mas feita na espessura da substância branca) proposta e executada por Almeida Lima, baseado nos estudos anátomo-fisiológicos e clínicos sôbre a localização da sensibilidade visceral e interna em geral. A intervenção é feita por via superior, a céu aberto, com controle da hemorragia, O corte estende-se no sentido ântero-posterior na espessura da substância branca entre o cortex da face interna do hemisfério e a parede do ventrículo lateral. E' delimitado para a frente por um plano transversal passando pelo polo anterior do ventrículo e para trás por um plano paralelo passando pelo septo lúcido, adiante da confluência dos ventrículos. O corte poupa, pois, tôdas as fibras que vão para a face externa do encéfalo e grande parte das que se dirigem para o polo frontal.
    Clínica Psiquiátrica - Hospital Júlio de Matos - Lisboa - Portugal.
  • Publication Dates

    • Publication in this collection
      16 Apr 2014
    • Date of issue
      Mar 1953
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org