Resumo
Objetivo Identificar as competências e estratégias de ensino para abordagem das desigualdades utilizadas na formação em enfermagem, indicando convergências e divergências nas perspectivas de docentes e discentes de enfermagem.
Métodos Pesquisa descritiva, dados obtidos de questionário online respondido por 183 discentes e 86 docentes/coordenadores(as) de cursos de graduação em Enfermagem das diferentes regiões do Brasil. As variáveis foram referentes à caracterização dos participantes, temáticas vinculadas às desigualdades, preparo para atuar nas desigualdades e estratégias para desenvolver competências. Foram criados escores para dimensionar o grau de abordagem das desigualdades e a concordância quanto ao preparo para lidar com públicos vulnerabilizados. Foi considerado nível de significância de 5%.
Resultados Participaram do estudo majoritariamente mulheres, brancas, vinculadas a instituições de ensino público da região Sudeste do país. Houve alto grau de concordância quanto à abordagem das desigualdades na formação em enfermagem, exceto para a temática de Advocacia em Saúde. Identificou-se limites da formação para atuar junto às pessoas privadas de liberdade, indígenas e quilombolas. Temas relacionados à Desigualdade são ensinados especialmente por meio de ações de extensão, palestras/eventos, disciplinas obrigatórias e atividades práticas/estágios. Contraditoriamente, as aulas foram indicadas como a principal estratégia de ensino para o desenvolvimento das diversas competências frente às desigualdades, que devem ser apreendidas ao longo do curso.
Conclusão Há alto grau de concordância nas perspectivas de docentes e discentes sobre a abordagem das desigualdades na formação em enfermagem, com exceção da abordagem de iniquidades em saúde. Indica-se a necessidade de expandir o olhar sobre grupos sociais historicamente negligenciados.
Iniquidade social; Fatores socioeconômicos; Educação em enfermagem; Competência profissional
Resumen
Objetivo Identificar las competencias y estrategias de enseñanza para el abordaje de las desigualdades utilizadas en la formación en enfermería, indicando convergencias y divergencias en las perspectivas de docentes y de discentes de enfermería.
Métodos Investigación descriptiva, datos obtenidos del cuestionario en línea respondido por 183 discentes y 86 docentes/coordinadores(as) de cursos universitarios de Enfermería de las distintas regiones de Brasil. Las variables se refirieron a la caracterización de los participantes, temáticas vinculadas a las desigualdades, preparación para actuar en las desigualdades y estrategias para desarrollar competencias. Se crearon puntuaciones para dimensionar el grado de abordaje de las desigualdades y del nivel de acuerdo y desacuerdo con relación a la preparación para manejarse con públicos en condiciones de vulnerabilidad. Se consideró un nivel de significación del 5 %.
Resultados Participaron del estudio mayoritariamente mujeres, blancas, vinculadas a instituciones de enseñanza pública de la región Sureste del país. Se verificó un elevado de acuerdo con relación al abordaje de las desigualdades en la formación en enfermería, excepto para la temática de Abogacía en Salud. Se identificaron límites en la formación para actuar con las personas privadas de libertad, indígenas y comunidades cimarronas. Temas relacionados con la Desigualdad se enseñan especialmente por medio de acciones de extensión, conferencias/eventos, asignaturas obligatorias y actividades prácticas/pasantías. Contradictoriamente, las clases fueron indicadas como la principal estrategia de enseñanza para el desarrollo de las distintas competencias frente a las desigualdades, que se deben aprehender a lo largo del curso.
Conclusión Hay un elevado grado de acuerdo en las perspectivas de docentes y de discentes sobre el abordaje de las desigualdades en la formación en enfermería, con excepción del abordaje de iniquidades en la salud. Se indica la necesidad de expandir la mirada sobre grupos sociales que históricamente padecieron negligencia.
Inequidad social; Factores socioeconómicos; Educación en enfermería; Competencia professional
Abstract
Objective To identify the competencies and teaching strategies to address the inequalities used in nursing education, indicating convergences and divergences in the perspectives of nursing professors and students.
Methods This is a descriptive research, data obtained from an online questionnaire answered by 183 students and 86 professors/coordinators of undergraduate nursing courses from different regions of Brazil. The variables were related to the characterization of participants, themes linked to inequalities, preparation to act on inequalities and strategies to develop competencies. Scores were created to measure the degree of approach to inequalities and agreement on the preparedness to deal with vulnerable audiences. A significance level of 5% was considered.
Results The study included mostly white women, linked to public education institutions in southeastern Brazil. There was a high degree of agreement regarding the approach to inequalities in nursing education, except for the theme of Health Advocacy. Training limits were identified to work with people deprived of liberty, indigenous and quilombola populations. Themes related to inequality are taught especially through outreach actions, lectures/events, compulsory subjects and practical activities/internships. Contradictorily, the classes were indicated as the main teaching strategy for developing the various competencies in the face of inequalities, which must be learned throughout the course.
Conclusion There is a high degree of agreement in the perspectives of professors and students on the approach to inequalities in nursing education, with the exception of the approach to health inequities. The need to expand the view on historically neglected social groups is indicated.
Social Inequity; Socioeconomic factors; Education nursing; Professional competence
Introdução
As dinâmicas sociais atuais levam a necessidade da discussão sobre as desigualdades, recolocando-as sob intensa atenção pública e científica. Reconhecido autor do campo, ressalta os aspectos das desigualdades no contexto de globalização acentuada e a pluralidade de desigualdades, identificando-as como diferenças hierárquicas, evitáveis e moralmente injustificadas. Define, neste sentido, três principais dimensões de desigualdade: “vitais”, “existenciais” e “de recursos”.(1)
As desigualdades vitais relacionam-se a vida e morte, de modo que saúde e longevidade são distribuídas segundo padrões sociais identificáveis. As desigualdades existenciais assumem a negação de (igual) reconhecimento e respeito dos indivíduos enquanto pessoas, com restrição de liberdade de ação de certos sujeitos, como mulheres, negros, indígenas, imigrantes, pobres, membros de castas inferiores e de certos grupos étnicos. Na desigualdade de recursos ou material, entende-se que indivíduos contam com recursos distintos, portanto, há desigualdade de acesso à educação, carreira e contatos sociais, a chamada desigualdade de oportunidades.(2)
Existem também as desigualdades categoriais que envolvem gênero e idade, raça e etnicidade, classe social e nível educacional, nacionalidade e identidade cultural, entre outras formas.(3,4) Entendendo que existem populações mais afetadas pelas desigualdades, dependendo da categoria analisada.
As diferentes dimensões ou categorias que produzem desigualdades são ainda tema de estudos, pesquisas e políticas nacionais e internacionais, uma vez que atravessam o conjunto do tecido social.(5)No contexto brasileiro, as desigualdades são históricas e expressivas, com repercussões no acesso aos direitos básicos, políticas públicas de saúde, educação e infraestrutura. Apesar dos significativos avanços conquistados no país, inúmeras desigualdades ainda persistem, sendo um dos países mais desiguais do mundo.(6)
O enfrentamento das desigualdades está claramente definido como uma ação no escopo dos profissionais da saúde, em especial da Enfermagem.(7,8) Eticamente, os enfermeiros devem promover equidade na saúde, por uma prática norteada pelos Determinantes Sociais da Saúde,(9) apresentar um esforço organizado e sustentado para promover justiça social,(7) com práticas sintonizadas às demandas e necessidades dos territórios.(8)
Do ponto de vista do ensino em Enfermagem, uma revisão crítica demonstrou que existem estratégias utilizadas para abordagem das desigualdades, em elementos como justiça social, competência cultural, segurança cultural e defesa, com enfoque em populações socialmente vulneráveis.(10)
Na literatura existem apontamentos de deficiências no enfrentamento das desigualdades por meio do ensino e prática de enfermagem, expressas em baixo (des)envolvimento de reformas sociais e political advocacy,(7) desafios para a equidade pela prática(11) e deficiências curriculares.(7,12)
Há também uma lacuna do conhecimento acerca das competências necessárias para atuar no enfrentamento das desigualdades e como essas são desenvolvidas em cursos de graduação em Enfermagem. Estudo de revisão crítica apontou a necessidade de desenvolver pesquisas acerca de perspectivas e experiências de docentes e discentes sobre como incorporar as desigualdades na educação em enfermagem.(13)
Diante de tal contexto, este estudo objetiva identificar as competências e estratégias de ensino para abordagem das desigualdades utilizadas na formação em enfermagem, indicando convergências e divergências nas perspectivas de docentes e discentes de enfermagem.
Métodos
Pesquisa descritiva e exploratória, de natureza quantitativa, desenvolvida com a aplicação de questionários online, analisados por meio da estatística descritiva. Dados coletados por questionários online com representação de todas as regiões do Brasil, especificamente dos estados: AM, PA, BA, PI, MA, SP, RJ, MG, ES, MS, SC e RS.
Os critérios de seleção dos participantes foram: ser discente, docente ou coordenador(a) de curso de graduação em Enfermagem de instituições públicas ou privadas. A amostra foi constituída por discentes (n=183) e coordenadores(as) de curso/docentes (n=86). Para atingir o público-alvo, foram utilizadas listas de contatos de coordenadores(as) de cursos de Enfermagem do Brasil, lideranças estudantis e grupos de pesquisa, além da divulgação em redes sociais e demais veículos de comunicação.
A coleta dos dados foi realizada de abril a agosto de 2019, período entre a divulgação dos questionários online e retorno das respostas. Os questionários foram criados pela equipe de pesquisa e disponibilizados na Plataforma SurveyMonkey, sendo uma versão específica para os discentes e outra destinada aos docentes/coordenadores(as) de curso. Após a elaboração do questionário houve aplicação de teste para adaptação e validação do conteúdo. A confiabilidade dos questionários foi medida pelo coeficiente de Alfa de Cronbach, foi obtido coeficiente de 0,913 para os discentes e 0,944 para os docentes, indicando alto grau de consistência interna para os dois grupos.
Os questionários tinham 12 questões divididas em duas seções. A primeira seção, de caracterização geral dos participantes, continha sete questões de múltipla escolha e uma questão de campo aberto (idade). A segunda seção, de aspectos acerca da abordagem das desigualdades na formação, continha quatro questões no formato de escala Likert e uma de múltipla escolha. Para os docentes/coordenadores de curso encontramos completude do questionário acima de 95,4% para as diversas perguntas. Para os discentes o grau de completude das variáveis foi acima de 96,7%.
As variáveis do estudo se relacionavam a caracterização dos participantes (sexo, idade, raça, estado de localização, natureza da instituição, período do curso ou nível de formação, atuação ou promoção de atividades acadêmicas ou extracurriculares); temáticas vinculadas às desigualdades (concordância em relação à abordagem de temas relacionados às desigualdades durante a graduação de enfermagem); preparo para atuar nas desigualdades (estratégias de ensino nas quais há abordagem das desigualdades; preparo para lidar com públicos vulnerabilizados; competências para atuar frente às desigualdades); estratégias para desenvolver competências (estratégias adequadas para os docentes/coordenadores ensinarem e os alunos aprenderem e o período do curso mais oportuno para o desenvolvimento de competências para o enfrentamento das desigualdades).
Os dados obtidos foram exportados para o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 22.0, submetidos a análise descritiva de todas as variáveis investigadas e estratificados em dois grupos: docentes e discentes. Para comparação entre estes grupos foi utilizado o teste Qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher na análise das variáveis categóricas, Teste-t na análise de variáveis numéricas que apresentaram distribuição normal ou teste de Mann-Whitney na análise das variáveis numéricas que não apresentavam distribuição normal conforme teste de Kolmogorov-Smirnov. Em todas as análises foi considerado um nível de significância de 5%.
Para dimensionar o grau de abordagem das desigualdades e de concordância quanto ao preparo para lidar com os públicos vulnerabilizados, no processo de análise foram criados o escore de abordagens e o escore de públicos vulnerabilizados. O primeiro poderia variar de um a 55 pontos, intervalo que representava a abordagem de apenas uma temática (um ponto) até a pontuação máxima se todas as temáticas fossem abordadas. O segundo escore poderia variar de um a 45 pontos, com o menor valor equivalente à concordância quanto ao preparo para lidar com pelo menos um grupo vulnerabilizado até o total (45 pontos), quando o respondente considerava estar preparado para lidar com todos os grupos vulnerabilizados. Os escores foram divididos, proporcionalmente em relação ao total, com índices que sinalizavam percentual baixo (um a 18), médio (19 a 37) ou alto (38 a 55) de concordância entre os respondentes quanto à abordagem das temáticas na formação; ou percentual baixo (um a 15), médio (16 a 30) ou alto (31 a 45) de concordância entre os respondentes quanto ao preparo do curso para atuar frente aos grupos vulnerabilizados.
Os participantes foram informados previamente sobre os objetivos e finalidades do estudo e registraram, online, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa respeitou a Resolução do Conselho Nacional de Saúde número 510 de 07 de abril de 2016 e foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.
Resultados
Alcançou um total de 269 questionários respondidos, sendo 68% de discentes e 32% de docentes. A maioria dos discentes respondentes é do sexo feminino (83,6%), se autodeclarou brancos (49,7%), com mediana de idade de 22 anos e provenientes de universidades públicas (65%). A principal região de origem dos discentes foi o Sudeste do país (84,2%). Em relação ao período que cursavam, 49,7% estava entre o 5º e 8º, 35,4% entre o 1º e 4º e 14,9% entre o 9º e 10º período.
Em relação aos docentes/coordenadores(as) de curso, 84,9% eram do sexo feminino, 66,3% se autodeclararam brancos, com mediana de idade de 42 anos, 51,2% provenientes de universidades públicas, 55,8% da região Sudeste do país. Sobre a titulação, 55,8% possuíam doutorado/pós-doutorado e 34,9% mestres.
Entre os discentes, o percentual dos que se declararam brancos foi significativamente menor em relação aos docentes (valores-p<0,05).
Os participantes foram interrogados sobre o nível de concordância com temas relacionados às desigualdades abordados durante a graduação de enfermagem. Verifica-se que apenas o tema Iniquidade apresentou diferença significativa entre os dois grupos (valor-p<0,05), revelando que 61,4% dos discentes concordam/concordam totalmente, e entre os docentes esse percentual foi de 79%. Para os demais temas, a diferença não se mostrou significativa, conforme apresentado na tabela 1.
Na tabela 1 a Advocacia em Saúde é o tema com menor percentual de concordância sobre a abordagem durante a formação, tanto para discentes quanto para docentes. Por sua vez, Desigualdade em Saúde e Vulnerabilidade são os temas de maior concordância para os dois grupos. Os resultados apontam alto índice de abordagem dos temas referentes a desigualdades na formação do enfermeiro, com pontuação média do escore de abordagens de 40,0 pontos entre discentes e 41,8 pontos entre docentes, sem diferença significativa entre os grupos, situando-se no maior nível de abordagem (38 a 55 pontos). Quando questionados sobre as estratégias para a abordagem das desigualdades na formação em Enfermagem, 81,4% dos docentes afirmaram que utilizam iniciação científica, extensão ou ações comunitárias. As outras estratégias mais descritas são palestras/eventos (73,3%), disciplinas obrigatórias (65,1%) e atividades práticas/estágios (60,5%). As estratégias de disciplinas optativas, aulas expositivas e simulações virtuais/presenciais são as menos mencionadas. Os discentes reconheceram, principalmente, a abordagem das desigualdades por meio de disciplinas obrigatórias (77,6%) e em palestras/eventos (63,9%). Em relação à iniciação científica, extensão ou ações comunitárias, apenas 38,3% dos discentes identificam o seu uso. Apenas para as estratégias Aulas expositivas e Palestras/Eventos não há diferença significativa entre discentes e docentes (p>0,05).
Atenção a públicos vulnerabilizados e competências para enfrentamento das desigualdades
Em relação a preparação para lidar com públicos vulnerabilizados, discentes concordam que se sentem preparados para atuar, principalmente, com População de baixa renda, População LGBTQIA+, Dependentes químicos e usuários de drogas e Profissionais do sexo, conforme dados apresentados na tabela 2.
Os discentes discordam que a formação prepara para atuar junto às populações Indígenas (62,1%) e Quilombolas (61,1%). De modo similar, há alto percentual de discordância em relação à preparação para atuar frente às pessoas privadas de liberdade (69,8%). Entre os docentes, os menores percentuais de concordância também estão relacionados à atuação junto às pessoas privadas de liberdade. Ao analisar o escore de públicos vulnerabilizados, os resultados apontam médio índice (16 a 30 pontos) de preparação tanto de docentes quanto discentes, com valores maiores para as respostas dos docentes e diferença significativa comparada aos discentes. Há, portanto, indicativos de maior preparação para lidar com estes públicos na perspectiva dos docentes. Essa diferença significativa também é encontrada em relação ao público de Dependentes químicos e usuários de drogas. Em relação às estratégias de ensino na formação em Enfermagem para desenvolvimento das diversas competências para atuar frente às desigualdades, a maioria dos discentes e docentes indica aulas e estágios como as principais estratégias, conforme dados da tabela 3.
Os testes de Fisher e Qui-quadrado de Pearson indicam diferenças acerca das estratégias apontadas pelos dois grupos para as competências Administração e Gerenciamento, Competência Cultural, Competência política, Educação Permanente e Aprendizagem ao longo da vida, e Liderança e tomada de decisões. Destaca-se que Competência cultural e Competência política são indicadas pelos docentes para serem desenvolvidas em atividades extracurriculares, predominantemente. Para os discentes, essas competências são desenvolvidas primariamente em aulas.
Os estágios, para docentes, são estratégias para desenvolvimento das competências de Reconhecimento das necessidades individuais e coletivas, Produção de mudanças, Educação Permanente e Aprendizagem ao longo da vida, Liderança e tomada de decisões, Administração e Gerenciamento. Para estas mesmas competências, os discentes identificam as aulas como a estratégia mais adequada.
Em relação ao momento mais oportuno para o desenvolvimento das competências listadas, 36% dos discentes apontam para Advocacia em Saúde o meio do curso como momento mais oportuno, enquanto 38% dos docentes apontam o desenvolvimento ao longo do curso. Em todas as outras competências, os maiores percentuais das respostas de discentes e docentes se localizam na opção ao longo do curso, com alto grau de concordância.
Discussão
Inicialmente, considera-se que, dadas as escolhas metodológicas, a forma de captação dos participantes pode caracterizar-se como um limite do estudo uma vez que aqueles que participaram da pesquisa de alguma forma se interessaram pela temática e assumiram papel ativo de preenchimento do formulário. Deste modo, do ponto de vista da generalização dos achados, a percepção dos participantes pode não representar a opinião global de docentes e discentes da Enfermagem brasileira. Para minimizar tal limitação foi apresentado o perfil dos participantes, permitindo uma análise posicionada.
O estudo aponta necessidades de melhorias na formação da Enfermagem e, portanto, possibilidades de aperfeiçoamento da produção do cuidado, visando o avanço na agenda de redução das desigualdades e na construção de relações mais justas, democráticas e cidadãs. Esse tema é propício especialmente no contexto brasileiro.
Os achados refletem a compreensão das desigualdades pelos participantes em uma perspectiva genérica, que inclui diferentes concepções e dimensões. A expressiva concordância entre discentes e docentes na abordagem das temáticas de Desigualdades em Saúde; Vulnerabilidade e Direitos humanos durante a graduação revelou uma possibilidade de formação de enfermeiros com capacidade de percepção do contexto social e atentos às questões multifatoriais que influenciam o processo saúde-doença-cuidado.
Contudo, parece haver menor compreensão sobre o conceito de Advocacia em Saúde, sendo uma competência com poucos indicativos de sua abordagem e desenvolvimento na formação. Há limites do desenvolvimento da Advocacia em saúde na formação do enfermeiro, não sendo reconhecida como um campo trabalhado na formação profissional, imprimindo apenas uma concepção rasa do seu conceito e sem aplicação efetiva na realidade.(14)
Apesar dos achados indicarem a compreensão das Desigualdades em diferentes concepções e dimensões, os participantes do estudo apresentaram menor percentual de concordância sobre a abordagem dos conceitos de Iniquidade e Proteção Social. Especificamente o termo iniquidade apresentou diferença significativa entre docentes e discentes, sendo que docentes possuem maior concordância acerca da abordagem na formação. Na atualidade, esses conceitos têm sido refletidos na defesa da saúde global, na construção e consolidação da enfermagem para que possa assegurar a saúde universal no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.(15)
Analisando os escores obtidos, é preciso demarcar que há alto índice de abordagem de temáticas relacionadas à desigualdade, enquanto há médio índice de preparação para atenção aos diferentes públicos vulnerabilizados. Há ainda diferença significativa entre docentes e discentes no escore de públicos vulnerabilizados (e também no preparo para lidar com dependentes químicos e usuários de drogas), de modo que na perspectiva dos docentes há maior percepção da preparação para lidar com tais públicos. Portanto, encontram-se indicativos de uma formação que incorpora conteúdos, mas não dedica os mesmos esforços na preparação para atuação diante de públicos acometidos pelas desigualdades.
Existem dimensões das desigualdades que atingem a sociedade e que ainda não estão incorporadas de forma ampla na graduação de Enfermagem, como a preparação para lidar com dependentes químicos, pessoas privadas de liberdade, indígenas e quilombolas. A existência de populações indígenas e quilombolas é uma realidade do território nacional,(16) mas muitas vezes desconhecida ou negligenciada na formação profissional.
Discentes e docentes apontam que o desenvolvimento das competências para atuar sobre as desigualdades deve ser realizado especialmente ao longo de todo o curso. Há experiências no desenvolvimento de competências de natureza similares àquelas para atuar frente às desigualdades e que ocorrem em diferentes momentos do curso.(17) Uma revisão de literatura sobre competências para promoção da saúde informa a abordagem nos momentos de prática supervisionada e em aulas teóricas ao longo do curso.(18)
As atividades educativas, didática ou de ensino, tais como palestras, demonstrações, seminário, práticas de campo, estudos dirigidos, simulações, jogos didáticos, projetos, visitas, pesquisas bibliográficas com situações de aprendizagem criadas pelos docentes podem aumentar a probabilidade dos alunos vivenciarem experiências necessárias para os objetivos educacionais.(19) Neste sentido, é preciso lançar mão de diferentes estratégias, instrumentos, técnicas e espaços de ensino para favorecer a reflexividade e promover potencialidades para propor soluções apropriadas para os problemas enfrentados na prática cotidiana.(18) A desigualdade é um destes problemas.
Por sua vez, algumas competências não podem ser apreendidas por partes, com práticas pedagógicas que preconizam apenas atividades em sala de aula, com leituras e demonstrações. Essas competências exigem um aprendizado de forma integrada, guiada e instruída por professores, no ensino reflexivo, com práticas pedagógicas que enfatizam o movimento crítico de ação-reflexão-ação.(19)
Estratégias de ensino combinadas, incluindo programas e disciplinas na graduação/ pós-graduação, aprendizagem em Serviço e Simulação, cada qual com suas especificidades, podem potencializar o compromisso da formação em enfermagem para a superação das desigualdades.(20)
Portanto, destaca-se que as diversas estratégias de ensino ao longo da graduação de Enfermagem são importantes num processo de formação crítico-reflexivo, criativo e transformador e que algumas competências exigem estratégias diferenciadas. Além disso, é preciso repensar o modelo de ensino das competências para atuar sobre as desigualdades inovando em estratégias que desenvolvam essas competências na sua dimensão tanto técnica quanto política e social.
Conclusão
Os achados do estudo permitem concluir convergência nas perspectivas de docentes e discentes sobre a formação para atuar nas desigualdades sociais, com alto grau de concordância quanto à abordagem das temáticas, estratégias de ensino e momentos dessa formação. Destacam-se discordâncias ou incertezas, para discentes e docentes, sobre a abordagem da Advocacia em Saúde, competência central para um agir comprometido com o enfrentamento das desigualdades. Há divergências quanto à abordagem da temática de Iniquidades em saúde na formação. Identifica-se indicativo de maior preparação dos docentes para lidar com públicos vulnerabilizados, em especial dependentes químicos e usuários de drogas. São convergentes as perspectivas quanto aos limites da formação para atuar junto às pessoas privadas de liberdade. Indica-se a necessidade de expandir o olhar sobre grupos sociais historicamente negligenciados no cuidado em saúde, especialmente população privada de liberdade, indígenas e quilombolas. Há também a necessidade de diversificar o reconhecimento de estratégias de ensino no desenvolvimento das diversas competências para atuar no enfrentamento das desigualdades sociais.
Agradecimentos
Agradecemos aos financiadores dessa pesquisa. O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Bolsa de Produtividade nível 2 para Kênia Lara da Silva.
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Editado por
-
Editor Associado (Avaliação pelos pares): Edvane Birelo Lopes De Domenico (https://orcid.org/0000-0001-7455-1727) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Jun 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
12 Mar 2021 -
Aceito
19 Jul 2021