A pandemia da Covid-19, desde o seu surgimento, tem gerado grande impacto no sistema de saúde dos países, impondo a descontinuidade no enfrentamento de diversos outros agravos, como as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), por exemplo. Dentre as DCNT, o diabetes melitus (DM) concentra uma série de preocupações por parte das autoridades sanitárias, uma vez que os estudos observacionais demonstraram uma elevada prevalência de indivíduos portadores da doença entre os hospitalizados pelo novo coronavírus, sobretudo entre os casos fatais.(1)
Até o presente momento, não foi identificada a existência de uma maior suscetibilidade dos indivíduos que vivem com DM para o desenvolvimento da infecção pela Covid-19. Entretanto, a literatura evidencia que estes tem uma progressão rápida da doença e desenvolvem formas graves, incluindo a Síndrome Respiratória Aguda Grave – Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS), além de apresentarem maiores taxas de letalidade.(2)
Existe uma série de teorias que buscam explicar essa aparente associação entre o diabetes e a severidade da infecção pela Covid-19. A imunidade inata, que consiste na primeira linha de defesa contra o vírus, estaria comprometida entre indivíduos que apresentam níveis glicêmicos elevados, permitindo a proliferação desenfreada do patógeno no hospedeiro. Além disso, o diabetes é caracterizado por uma resposta pró inflamatória exacerbada, com elevados níveis de citocinas circulantes, principalmente as interleucinas (IL) IL-1, IL-6 e o fator de necrose tumoral (TNF)-alfa.(3)Esse ambiente se torna determinante, particularmente na segunda e terceira fases da doença, caracterizadas pela lesão pulmonar e estado de hiperinflamação, evoluindo para as formas graves da Covid-19.(4)
Entre aqueles que vivem com diabetes e apresentam lesões nos pés, a supra regulação inflamatória está ainda mais manifestada, uma vez que a neuropatia diabética e a doença arterial periférica, alterações crônicas que dão origem ao pé diabético, proporcionam uma resposta inflamatória adicional, que é mais exuberante ainda na vigência de uma úlcera de pé diabético (UPD) em atividade.(5)
Ademais, na vigência de infecção, uma das complicações mais recorrentes das UPD, há piora da hiperglicemia, alterando a resposta imune do indivíduo e gerando provável prejuízo no combate do vírus. Adicionalmente, essas pessoas ficam mais expostas à contaminação pelo Covid-19 pela necessidade de procurar os serviços de emergência para o tratamento da UPD. E aí se estabelece outro entrave: se a busca pela assistência emergencial oferece riscos, retardar a assistência determina uma maior chance de amputação e morte. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo discutir as propostas de cuidados ao indivíduo com pé diabético em tempo de pandemia do COVID-19 no Brasil, a partir da experiência de um centro de saúde da rede pública estadual de Salvador-BA.
Cuidados aos indivíduos com pé diabético no contexto da COVID-19 no Brasil
Considerando a necessidade de proteção das pessoas que vivem com diabetes por constituírem um grupo de risco, o distanciamento social se impõe como medida mais efetiva para diminuir a sua exposição ao vírus. No entanto, ainda que esta seja uma providência que vise segurança, acaba determinando mudanças nos hábitos de vida, como inatividade física e alterações no padrão da dieta, favorecendo o consumo de alimentos mais processados e de alta densidade calórica, além da diminuição do acesso à assistência à saúde e controle glicêmico,(6) o que inclusive é reforçado pela vulnerabilidade social de grande parte dessas pessoas e pelo impacto econômico determinado pelo distanciamento social necessário ao enfrentamento da pandemia. A descontinuidade do cuidado expõe os indivíduos a hiperglicemia e piora da variabilidade glicêmica, com progressão das alterações agudas e crônicas relacionadas ao DM. Este fato pode levar à maior busca pelos serviços de emergência, o que sobrecarrega ainda mais o sistema de saúde, que se reestrutura na busca de atender as consequências diretamente relacionadas à pandemia da Covid-19,(7) além de aumentar a exposição dessas indivíduos à infecção pelo novo coronavírus.
Diante desse panorama, é importante que os serviços de saúde se concentrem em uma tríade de cuidado com os portadores de pé diabético: 1) manter esses usuários fora dos hospitais, a fim de diminuir sua exposição ao risco e não sobrecarregar o sistema de saúde; 2) assegurar as condições para que o cuidado seja garantido no domicílio, considerando um plano de intervenção que atente para além da oferta de medicamentos, contemplando também aspectos alimentares, funcionais, psicológicos e de autocuidado; 3) proporcionar segurança, de modo a possibilitar uma boa evolução desses indivíduos.
Para tanto, é preciso que sejam ofertados suporte para a realização do cuidado domiciliar, condições para melhorar as chances de salvamento do membro, controle ou redução de danos nos casos sem possibilidade de cura e garantia do acesso aos serviços em qualquer momento em que esse se faça necessário.(8)
Muitas estratégias têm sido discutidas a fim de propor uma recomendação que atenda às necessidades e peculiaridades desses indivíduos. De modo geral, o monitoramento de forma remota é sugerido como ferramenta de apoio ao cuidado para detecção de fragilidades que possam desproteger os usuários. No contexto atual, a triagem para avaliação presencial poderá ser realizada utilizando tecnologias como telemedicina que podem permitir a interlocução entre os diferentes atores (pessoa com lesão, avaliador e especialista), respeitando as medidas de distanciamento social necessárias. Inclusive, a literatura fornece evidências do provável efeito positivo nos desfechos de saúde quando se usa da telemedicina como meio de assistência à saúde de pessoas com diabetes.(9)
A telemedicina está contida dentro da estratégia da telessaúde, que pode ser compreendida como uma ferramenta que incorpora o uso de tecnologias de informação e comunicação nos sistemas de saúde.(10)O Conselho Federal de Medicina define a telemedicina como “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde”.(11) Recentemente, o Ministério da Saúde regulamentou a prática de atendimentos médicos à distância durante a pandemia do novo coronavírus por meio da Portaria Nº 467, de 20 de março de 2020(12) e desde então, as estratégias de atenção remota têm sido discutidas e implementadas gradativamente nos serviços de saúde.
Superando desafios no âmbito do cuidado ao indivíduo com pé diabético
Considerando o compromisso com a manutenção do cuidado com as pessoas portadoras de doença crônica, sobretudo os indivíduos que vivem com diabetes e apresentam complicações relacionadas ao pé diabético, o serviço de angiologia do Centro de Referência Estadual para a Assistência ao Diabetes e Endocrinologia - Cedeba, localizado em Salvador-Bahia, durante o período de enfrentamento da pandemia da Covid-19, estruturou um sistema de rastreamento dos pacientes em acompanhamento no serviço, que vem sendo executado em consonância com as recomendações dos centros de saúde voltados à assistência ao diabetes em todo o mundo.
As atividades de telemonitoramento para busca de indivíduos com pé diabético cadastrados e já em acompanhamento na unidade foram iniciadas em 20 de março de 2020, tão logo as autoridades sanitárias recomendaram a suspensão das atividades de saúde não essenciais, o que incluiu os serviços ambulatoriais dos centros de referência da rede pública estadual. Até o presente momento, 349 contatos foram feitos por meio de chamada telefônica, utilizando os dados constantes no cadastro do prontuário de cada indivíduo. Para a seleção dos indivíduos a serem contactados, utilizou-se como critério ligar para aqueles que estivessem com consulta presencial agendada no período de suspensão de atividades, assim como aqueles que foram submetidos a realização de debridamentos e curativos nos últimos três meses, cujos procedimentos estavam registrados no Boletim de Produção Ambulatorial (BPA). A taxa de resposta aos contatos telefônicos inicial foi de 51,0% (178). Aqueles usuários que não atenderam à chamada telefônica, foram acionados por meio de aplicativo de mensagem de celular (whatsapp), de modo que se atingiu uma taxa de resposta secundária de 94,5% (330).
Durante a busca ativa, foram identificados 120 indivíduos (36,4%) portando úlceras de pé diabético neuroisquêmicas em condições de potencial risco de complicação. Estes foram avaliados e seguidos por meio de fotos enviadas pelo aplicativo de celular e orientados quantos aos cuidados necessários. É importante ressaltar que durante os contatos, também foi questionada a presença de sintomas respiratórios para se investigar e orientar possíveis casos de Covid-19 entre os entrevistados.
Cerca de 5,2% (17) usuários apresentavam lesões instáveis, com risco de amputação. Estes foram convocados para serem avaliados presencialmente no serviço, utilizando-se medidas de precaução a fim de não serem expostos ao risco de infecção pelo novo coronavírus. Catorze desses indivíduos tiveram sua condição manejada e controlada ambulatorialmente, sem a necessidade de internamento. Três pessoas necessitaram de uma intervenção em unidade de alta complexidade, tendo sido referenciados ao hospital após pactuação para que estes não necessitassem obedecer ao fluxo habitual, que envolvia a passagem por unidade de emergência.
Após o processo de estratificação, os casos foram consolidados em planilhas para acompanhamento, sendo a programação ajustada de acordo com as necessidades de cada indivíduo, oferecendo suporte mais frequente àquelas situações de maior risco, facultando a possibilidade de contato em qualquer momento, por meio de linha telefônica exclusiva.
Considerando os objetivos propostos para a rede de atenção aos usuários portadores de doença crônica no contexto da pandemia, ainda que incipiente, a experiência de telemonitoramento implementada pelo serviço do Cedeba tem se mostrado exitosa no que diz respeito à manutenção dos usuários fora do hospital. Sabe-se que as complicações relacionadas às úlceras de pé diabético consistem em causas frequentes de hospitalização.
A experiência demonstra que a estruturação de uma rede de atenção à saúde que permita acompanhamento regular, suporte ao cuidado em domicílio e acesso garantido em situações de agravamento, empregando-se uma modalidade de atenção à saúde ainda utilizada de forma incipiente em nosso meio, mas com grandes perspectivas na prática assistencial, como a telemedicina, pode sinalizar um caminho exitoso no contexto das doenças crônicas, que seguem como um desafio ao sistema único de saúde, independente e, sobretudo, em tempos de pandemia. No entanto, para institucionalização e incorporação dessa ferramenta no processo de trabalho de saúde, é necessário promover adequações estruturantes que asseverem comunicação e acesso seguro às informações sobre diagnóstico e condutas como requer os preceitos éticos e legais acerca da privacidade de paciente.
References
- 1 Huang I, Lim MA, Pranata R. Diabetes mellitus is associated with increased mortality and severity of disease in COVID-19 pneumonia - A systematic review, meta-analysis, and meta-regression. Diabetes Metab Syndr. 2020 Apr 17;14(4):395-403.
- 2 Zhou F, Yu T, Du R, Fan G, Liu Y, Liu Z, et al. Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study. Lancet. 2020 ;395(10229):1054-62.
- 3 Pal R, Bhansali A. COVID-19, diabetes mellitus and ACE2: The conundrum. Diabetes Res Clin Pract. 2020;162:108132.
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4 Brandão SC, Silva ET, Ramos JO, de Melo LM, Sarinho ES. COVID-19, imunidade, endotélio e coagulação: compreenda a interação [Internet]. Recife (PE); 2020. [citado 2020 Jul 1].Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/Ebook_Covid-19__imunidade__endotelio_e_coagulacao.pdf
» https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/Ebook_Covid-19__imunidade__endotelio_e_coagulacao.pdf - 5 Papanas N, Papachristou S. COVID-19 and Diabetic foot: will the lamp burn bright?. Int J Low Extrem Wounds. 2020;19(2):111.
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- 7 Gupta S, Tang C, Higgs P. Social isolation during Covid-19: Boon or bane to diabetes management. Diabetes Metab Syndr. 2020;14(4):567–8.
- 8 Rayman G, Lumb A, Kennon B, Cottrell C, Nagi D, Page E, Voigt D, Courtney H, Atkins H, Platts J, Higgins K, Dhatariya K, Patel M, Narendran P, Kar P, Newland-Jones P, Stewart R, Burr O, Thomas S; London Inpatient Diabetes Network-COVID-19. Guidelines for the management of diabetes services and patients during the COVID-19 pandemic. Diabet Med. 2020;37(7):1087-9.
- 9 Flodgren G, Rachas A, Farmer AJ, Inzitari M, Shepperd S. Interactive telemedicine: effects on professional practice and health care outcomes. Cochrane Database Syst Rev. 2015 Sep 7;2015(9):CD002098.
- 10 Pereira CC, Machado CJ. Telessaúde no Brasil – conceitos e aplicações. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(10):3283–4.
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11 Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução nº 2.227/2018. Define e disciplina a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias. Brasília (DF):CFM;2018. [citado 2020 Jul 1]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2227
» https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2227 - 12 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 467, de 20 de março de 2020. Regulamenta a utilização da Telemedicina, em caráter de excepcionalidade e enquanto durar as medidas de enfretamento ao coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União. Seção. 2020 Mar;1:1.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Out 2020 -
Data do Fascículo
2020