Resumo
Objetivo Avaliar, a partir do discurso de profissionais da Atenção Básica, como o uso da estratégia Audit and Feedback contribuiu para geração de tensão por mudança na implementação de apoio matricial em um município paulista de médio porte.
Métodos Estudo qualitativo, realizado por meio da análise da transcrição de Grupos de Apreciação Partilhada que empregaram a estratégia Audit and Feedback junto a cinco equipes de Atenção Básica em um município paulista de médio porte entre dezembro de 2019 e março de 2020. Para análise dos dados foi empregada análise de conteúdo que utilizou como categorias previamente definidas os desfechos de implementação: aceitabilidade, adequação e adoção, entendidos como principais desfechos relacionados à tensão por mudanças.
Resultados As falas dos profissionais que participaram dos grupos em que foi empregada a estratégia Audit and Feedback permitiram identificar a geração de tensão por mudança produzida a partir dos dados que lhe foram apresentados. Indicativos de aceitabilidade, adequação e adoção em relação ao apoio matricial foram evidenciados, sugerindo assim a contribuição da estratégia empregada para o sucesso da implementação.
Conclusão A estratégia Audit and Feedback se mostrou efetiva na geração de tensão por mudança, favorecendo assim o reconhecimento da necessidade da intervenção e consequentemente facilitando a sua implementação.
Ciência da implementação; Saúde mental; Políticas de saúde; Estratégia saúde da família; Atenção primária à saúde
Resumen
Objetivo Evaluar, a partir del discurso de profesionales de la Atención Básica, de qué forma el uso de la estrategia Audit and Feedback contribuyó para la generación de tensión por cambio en la implementación de apoyo matricial en un municipio del estado de São Paulo de tamaño mediano.
Métodos Estudio cualitativo, realizado por medio del análisis de la transcripción de Grupos de Apreciación Compartida que utilizaron la estrategia Audit and Feedback con cinco equipos de Atención Básica en un municipio del estado de São Paulo de tamaño mediano entre diciembre de 2019 y marzo de 2020. Para el análisis de los datos se empleó el análisis de contenido que utilizó como categorías previamente definidas los desenlaces de implementación: aceptabilidad, adecuación y adopción, entendidos como principales desenlaces relacionados con la tensión por cambios.
Resultados Los relatos de los profesionales que participaron de los grupos en los que se empleó la estrategia Audit and Feedback permitieron identificar la generación de tensión por cambio producida a partir de los datos que les presentaron. Se evidenciaron indicativos de aceptabilidad, adecuación y de adopción en relación con el apoyo matricial, lo que sugiere la contribución de la estrategia empleada para el éxito de la implementación.
Conclusión La estrategia Audit and Feedback demostró ser efectiva en la generación de tensión por cambio, lo que favorece el reconocimiento de la necesidad de la intervención y, como consecuencia, facilita su implementación.
Ciencia de la implementación; Salud mental; Política de salud; Estrategia de salud familiar; Atención primaria de salud
Abstract
Objective Based on the discourse of Primary Care professionals, to assess how the use of the Audit and Feedback strategy contributed to the generate tension for change in the implementation of matrix support in a medium-sized city in São Paulo.
Methods Qualitative study conducted by analyzing the transcript of Shared Appreciation Groups that used the Audit and Feedback strategy with five Primary Care teams in a medium-sized city in São Paulo between December 2019 and March 2020. Content analysis was used in data analysis. The implementation outcomes: acceptability, adequacy and adoption, understood as the main outcomes related to the tension for change, were previously defined as categories.
Results The speeches of professionals who participated in the groups in which the Audit and Feedback strategy was used made it possible to identify the generation of tension for change produced from data presented to them. Indications of acceptability, adequacy and adoption in relation to the matrix support were evidenced, thereby suggesting the contribution of the strategy employed to the success of the implementation.
Conclusion The Audit and Feedback strategy proved to be effective in generating tension for change, thereby favoring the recognition of the need for intervention and consequently facilitating its implementation.
Implementation science; Mental health; Health police; Family health strategy; Primary health care
Introdução
A previsão de que a efetiva implementação de intervenções, programas e políticas de saúde pode levar, aproximadamente, dezessete anos para incorporação à rotina dos serviços, desperta, de forma global, o debate sobre a necessidade de esforços planejados e coordenados para preencher a lacuna teórico-prática gerada.(1,2)Entre as abordagens voltadas para lidar com essas questões, destaca-se a Ciência de Implementação, que por meio do estudo dos diversos fatores, em diferentes níveis, que afetam a implementação de uma intervenção, busca incorporar elementos que ajudem a superar as barreiras e potencializar os facilitadores dos processos de implementação promovendo a efetividade dos mesmos.(3,4)
As estratégias de implementação são métodos ou técnicas utilizadas para melhorar a adoção e sustentabilidade das intervenções, programas e políticas de saúde. Elas têm sido descritas como o ingrediente ativo do processo de implementação, correspondendo ao “como fazer” da mudança das práticas em saúde.(5)Através de uma revisão com subsequente avaliação por meio de um painel de especialistas, autores Powel et al. (2015)(6) identificaram 73 estratégias distribuídas em 9 domínios distintos. Pontua-se estratégias como o uso da avaliação de forma interativa através da auditoria seguida de feedback (audit and feedback), disponibilização de assistência e supervisão clínico-institucional, treinamento e capacitação de trabalhadores, utilização de estratégias financeiras, etc.(6)
Nesse sentido, ao conduzir uma pesquisa de implementação para incorporação do apoio matricial enquanto mecanismo de integração entre a Atenção Básica e os serviços especializados de Saúde Mental em um município de médio porte, buscamos conectar cada uma das barreiras encontradas na avaliação preliminar do contexto a uma estratégia de implementação com potencial para superá-la.
Entre as barreiras encontradas esteve a invisibilidade das demandas de saúde mental junto aos profissionais vinculados aos serviços de Atenção Básica do município. Essa invisibilidade, já bem documentada na literatura, é atribuída à fatores como formação insuficiente de profissionais, dificuldades teórico-práticas e subjetivas e a perpetuação de um olhar biológico sobre o processo saúde-doença em detrimento do olhar biopsicossocial.(7,8)
Embora o apoio matricial busque trazer respostas a esses problemas, é preciso considerar que a efetiva implementação de uma intervenção, programa ou política depende do grau em que as partes interessadas percebem a situação como intolerável ou com necessidade de mudança, aspecto que é definido como tensão por mudança.(9)Frente à invisibilidade das demandas de saúde mental junto aos profissionais da Atenção Básica, lançamos mão da estratégia audit and feedback como aposta para produção de tensão por mudança, elemento fundamental para o seguimento do processo de implementação.(9)
A estratégia audit and feedback é caracterizada pela avaliação e devolutiva sistemática e estruturada da performance de profissionais e serviços em relação a uma prática para a qual se entende que há necessidade de mudanças.(10,11) A suposição subjacente de sua aplicação é de que ao se deparar com informações que demonstram uma prática ou resultados inconsistentes com uma avaliação positiva, os profissionais são estimulados a refletir sobre as alternativas para mudança do quadro, levando assim a uma maior aquiescência em relação à introdução de intervenções.(11)
Cabe destacar que essa é uma estratégia amplamente empregada em pesquisas de implementação, havendo destaque para sua utilização em países como Inglaterra e Holanda. São relatados, na literatura, pelo menos 140 projetos que utilizaram essa estratégia encontrando resultados que depõe a favor de sua utilização junto a profissionais de saúde.(11) Contudo, não foram encontrados estudos, no Brasil, utilizando a implementação e avaliando essa estratégia como forma de produzir tensão por mudanças na implementação de intervenções, programas ou políticas de saúde.
Dessa forma, o objetivo deste estudo foi avaliar, a partir do discurso de profissionais da Atenção Básica, como o uso da estratégia audit and feedback contribuiu para geração de tensão por mudança na implementação de apoio matricial em um município paulista de médio porte.
Métodos
Estudo qualitativo realizado de dezembro de 2019 a março de 2020, com profissionais vinculados a cinco serviços de Atenção Básica de um município paulista de médio porte. O município conta com população aproximada de 120.000 habitantes e sua rede de saúde inclui seis Unidades Básicas de Saúde (UBS) tradicionais e 13 Unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF), às quais estão vinculadas 19 equipes. Os serviços de saúde mental, fazem parte da rede CAPS (um do tipo II, um da modalidade AD, para atendimento de casos relacionados ao uso abusivo de substâncias psicoativas, um ambulatório, que oferece atendimentos com psiquiatras e psicólogos e um Centro de Atenção à Criança, para atendimento de demandas em saúde mental da população infanto-juvenil).
Todos os profissionais vinculados aos serviços de Atenção Básica e expostos à estratégia audit and feedback foram considerados elegíveis para o estudo. Contudo, a inclusão esteve condicionada à autorização da áudio-gravação dos Grupos de Apreciação Partilhada (GAPs), pelos quais a estratégia foi empregada. Dessa forma, embora a estratégia tenha sido empregada em todas as unidades do município, somente os profissionais de cinco unidades foram incluídos. Apesar disso, não foram percebidos prejuízos ao estudo, uma vez que a saturação teórica dos dados foi alcançada na análise dos dados oriundos do quarto GAP.
A estratégia audit and feedback possui atores, ações, metas de ação (em relação ao seu nível e determinantes), temporalidade, dose e desfechos.(5) Os atores da estratégia (quem performa a estratégia) foram dois pesquisadores vinculados a uma instituição pública de ensino que compreende o sistema de síntese e tradução de evidências dentro do sistema de implementação. Sua ação consistiu na síntese dos dados oriundos da etapa de pré-implementação e apresentação deles por meio de projeções que permitiam a apreciação conjunta das percepções por meio dos GAPs.
A estratégia teve como meta produzir resultados junto aos indivíduos envolvidos na implementação, mais precisamente os trabalhadores dos serviços de Atenção Básica, que compreendem o sistema de entrega da intervenção, e os demais trabalhadores dos serviços de Saúde Mental. O determinante (barreira) que a estratégia buscou endereçar foi a invisibilidade das demandas de saúde mental.
No que diz respeito à temporalidade da estratégia, esta foi utilizada na etapa de pré-implementação do projeto, buscando assegurar as condições necessárias para incorporação da intervenção na etapa de implementação. Seu emprego se deu em um encontro por equipe (dose) e esteve principalmente destinado à promoção dos desfechos de aceitabilidade, adequação e adoção que, dentro do escopo das pesquisas de implementação, estão intrinsicamente ligados à tensão por mudanças.(12)
Os dados apresentados aos trabalhadores por meio da estratégia audit and feedback tinham como intuito gerar tensão por mudança a partir do reconhecimento da magnitude da demanda de usuários com problemas de saúde mental que não estavam recebendo atendimento adequado. Os dados apresentados diziam respeito as informações acerca do perfil dos usuários, do padrão de utilização dos serviços e informações sobre as condições de saúde e cuidados recebidos. Uma lista completa dos dados apresentados pode ser observada no quadro 1.
Os dados foram levantados como parte de um diagnóstico situacional da rede de serviços por meio da coleta em prontuários. Os procedimentos de coleta foram realizados nos próprios serviços estudados por 16 coletadores previamente treinados entre maio e julho de 2019. Esses indivíduos eram estudantes de graduação ou profissionais graduados dos cursos de psicologia ou medicina supervisionados por dois profissionais graduados, um em enfermagem e o outro em serviço social.
Com base nos dados disponíveis nos prontuários, os coletores preencheram um formulário quando os critérios de inclusão foram atendidos: registro de pelo menos um atendimento por queixa de saúde mental referente ao item F da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados (CID), ou registro de queixas psicossomáticas associadas ao uso de psicofármaco pertencente ao grupo N do Sistema WHO Anatomical Therapeutic Chemical Code (ATC).(13) Ao final do estudo, foram identificados 3.849 usuários que atendiam a esses critérios de inclusão.
O emprego da estratégia audit and feedback se deu por meio de GAPs, que embora se aproximem dos grupos focais, tem como principal diferença a busca de relações horizontalizadas, bidirecionais, e de transferência do controle do grupo para si próprio.(13) A escolha dessa metodologia se baseia em seu caráter radicalmente participativo que, a partir da apresentação de uma questão de debate, permite que os sujeitos dialoguem de forma livre, de forma que as intervenções possam partir de qualquer indivíduo e em qualquer momento.
Os GAPs foram previamente combinados com cada equipe, em horários agendados de forma a minimizar as interferências no processo de trabalho. Cada encontro teve duração de, aproximadamente, duas horas, e seguiu o seguinte roteiro: (1) abertura, (2) esclarecimento sobre a dinâmica do diálogo, (3) estabelecimento do setting, (4) diálogo, (5) síntese dos momentos anteriores e (6) encerramento.(14)
O material de análise foi a transcrição do áudio dos GAPs. Os dados brutos resultaram em cinco áudio-gravações, com duração mínima de 40 minutos e máxima de duas horas, resultando em 108 páginas de transcrição literal. Optou-se por categorizar os resultados de acordo com as contribuições da estratégia audit and feedback para emersão dos desfechos de implementação que estão intrinsicamente associados à tensão por mudança, a saber: aceitabilidade, adoção e adequação.(12)
Para essa categorização, os autores se orientaram pelo modelo de análise de conteúdo categorial temático.(15) A análise foi conduzida em etapas, sendo a primeira relacionada às operações de desmembramento dos textos em unidades e em categorias e a segunda ao reagrupamento analítico por meio da organização das mensagens a partir das categorias predefinidas. No segundo momento, cada mensagem foi discutida a fim de estabelecer um consenso entre os pesquisadores quanto à sua pertinência na categoria proposta.
O estudo foi submetido e aprovado, sob parecer de nº 3.065.312, pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, seguindo as normas e diretrizes brasileiras de regulamentação de pesquisa envolvendo seres humanos – Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/2012, além das disposições da Declaração de Helsinque (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética: 00827918.8.0000.5404). Os profissionais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a identidade dos participantes foi preservada por meio de codificação alfanumérica. Outro cuidado tomado, em virtude do tamanho do município, foi a intencional não descrição das características da amostra, ocultando informações que podem, de alguma forma, identificar tanto a identidade dos sujeitos ou da unidade de saúde em que eles atuam.
Resultados
Os resultados apresentados contemplam os GAPs realizados na fase de pré-implementação junto a cinco serviços de Atenção Básica que operam no modelo de Estratégia Saúde da Família. Os profissionais que compuseram a amostra eram enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde, médicos e odontólogos. Os resultados que emergiram da análise das transcrições dos GAPs são apresentados a seguir com base nas categorias de análise definidas à priori: aceitabilidade, adequação e adoção. Essas categorias correspondem aos desfechos de implementação ligados intrinsicamente a manifestação da tensão por mudança. A partir de trechos selecionados, buscamos ilustrar como a manifestação desses desfechos sinaliza a percepção da situação atual como intolerável ou com necessidade de mudança. Em nossa experiência, embora na primeira aproximação com os serviços tenha sugerido uma baixa mobilização das equipes em torno das questões de saúde mental, no emprego da estratégia audit and feedback, percebeu-se uma certa surpresa com os dados apresentados além de um reconhecimento da necessidade de capacitação e apropriação dos dados coletados no território. Uma das ações propostas foi a capacitação dos trabalhadores para atuar nessa perspectiva. Dessa forma, as falas apresentadas a seguir depõem a favor da aceitabilidade da intervenção proposta.
Eu estou passado! Vocês avaliaram quase 50% dos prontuários da cidade, é óbvio que não dá para fazer em Campinas, mas assim, se as unidades começassem a ter o “feeling”, o bom senso, essa coisa do despertar, talvez a gente não tivesse tanta recidiva [de usuários desassistidos pela rede] (GAP Azul).
Seria até interessante se a gente tivesse alguma especialização, não especialização, mas um curso, uma capacitação (GAP Amarelo).
Eu acho que é legal isso aí [capacitação], a gente precisava disso sim, precisamos melhorar muito ainda, bem mais, mas acho que a questão é essa: chegar no ponto certo e conseguir finalizar [o cuidado ao usuário com transtorno mental] ... (GAP Amarelo).
Durante os GAPs, estimulados pelas discussões disparadas a partir dos dados apresentados, os profissionais relataram diversas dificuldades em relação à abordagem e ao acompanhamento dos usuários durante e após o encaminhamento para a atenção especializada. Conforme apresentado a seguir, as falas convergiram para aspectos como: (1) a perpetuação do olhar biológico frente ao processo saúde-doença, tanto por parte dos profissionais como da própria comunidade, com predomínio de uma visão fármaco-dependente, (2) a deficiência/inexistência do sistema de contrarreferência, (3) a falta de continuidade do cuidado e (4) a falta de delineamentos claros para o compartilhamento dos casos, encaminhamentos e troca de informações.
É difícil a população entender ainda que há a necessidade de nós termos uma boa saúde mental para poder seguir com as outras coisas para a vida da gente. Se aqui [a saúde mental] não estiver legal, o resto não vai, então, ainda existe aquele estigma de que é “frescura”, principalmente na fase da adolescência (GAP Amarelo).
Ah, eu acho que tem muito assim: tem muito uso de medicamento sem um diagnóstico, vem com uma crise de ansiedade e já entra com uma Sertralina, Diazepam, aí a pessoa toma, fica bem e não volta mais [aqui o trabalhador relata casos em que usuários em saúde mental chegam apenas com a receita medicamentosa, sem diagnóstico ou algum outro tipo de informação/contrarreferência] (GAP Roxo).
Em contrapartida, eu acredito que muita coisa que eles têm lá, talvez possa ser devolvida para a atenção básica, porque tem muita coisa que a gente pode e deveria estar fazendo por aqui, mas aí se a gente não tem fluxo ou comunicação suficiente para contrarreferência, fica difícil para eles e para a gente também, eu acho (GAP Azul).
Então, assim, a gente tinha muito medo disso, de como o paciente vai reagir, e eu acho que a cidade precisava disso [da pesquisa em si], de saber como vai encaminhar esse trabalho e de como continuar acompanhando esse paciente, de que forma tem que ser, sabe? (GAP Amarelo).
Eu acho assim: essas reuniões que têm acontecido uma vez por mês agora servem justamente para tentar melhorar essa articulação e saber realmente o que a gente vai mandar, e o que eles estão devolvendo para a gente [serviço especializado] e entender da melhor forma para poder dar uma resolutividade positiva para o paciente (GAP Azul).
Em relação ao desfecho adoção, as falas a seguir versaram tanto sobre a intensão de contemplar e entender as vulnerabilidades da população em sofrimento mental do território como ações concretas para mudança da realidade.
Mas, a nossa média [média da população atendida no território que apresentou queixas de saúde mental], ela é superior ao geral, 74% das mulheres do Gap Azul, então, o que está acontecendo que as mulheres estão ficando doentes? Tem que olhar para isso, o que está acontecendo com elas? Será que é o emprego, será que é a questão familiar?... Elas estão isoladas socialmente? Está faltando convivência social? Emprego? Estão desempregadas ou trabalham? A situação familiar, sabe? Começar a trabalhar esses dados porque, é o que a doutora falou, daqui a pouco está extravasando... Então, assim, olhar para isso e pensar em uma estratégia, enquanto política pública em saúde (GAP Azul).
É, eu acho que agora [após as devolutivas e explicação sobre a intervenção] eu até vou pedir para a X, que é nossa referência, para ela mandar uma lista dos pacientes daqui da unidade que fazem acompanhamento lá [CAPS] (GAP Azul).
Discussão
O primeiro desfecho de implementação identificado no estudo, a aceitabilidade, se refere à percepção, entre os atores envolvidos na implementação, de que determinada prática é aceitável, palatável ou satisfatória para o contexto.(12)Uma baixa aceitabilidade pode ser entendida como primeiro entrave para incorporação de uma nova intervenção, programa ou política de saúde em uma instituição. As falas dos participantes, além de dialogar com desafios recorrentemente pontuados na literatura como dificultadores do compartilhamento do cuidado entre os diferentes níveis de atenção,(16) depõem a favor do sentimento de adequação da intervenção proposta, uma vez que a adequação é entendida como a percepção de que há relevância ou compatibilidade da intervenção para um determinado ambiente de prática ou resolução de problema específico.(12)
Destaca-se que os problemas pontuados pelos profissionais são alvos de ação específica da lógica do apoio matricial em saúde mental, que se configura enquanto um modelo de intervenção pedagógico-terapêutica que visa produzir e estimular padrões de relação que perpassem todos trabalhadores e usuários, favorecendo a troca de informações e a corresponsabilização pelo usuário.(17)
Foi possível identificar a partir das falas dos profissionais uma intenção de mudança de atitude frente à problemática apresentada e discussões disparadas por meio da estratégia audit and feedback. Dessa forma, evidencia-se a emersão do desfecho de adoção, que é definida como a intenção, decisão inicial ou ação para empregar uma determinada inovação ou prática em um contexto de saúde.(12)
As falas dos profissionais, emersas durante as discussões, ao evocar os desfechos de implementação de aceitabilidade, adequação e adoção, revelam uma tensão por mudança gerada a partir da assimilação e discussão dos dados apresentados. Destaca-se que, em nossa avaliação, isso só foi possível em decorrência da dimensão participativa estabelecida pelos GAPs.
Pontua-se que a estratégia audit e feedback pode ser realizada de diversas formas. Há registros na literatura de emprego dessa intervenção tanto em formato oral quanto escrito, bem como de forma passiva e participativa.(11)Em nossa experiência optamos pelos GAPs por entender que os mesmos configuram uma via de mão dupla entre os pesquisadores e os profissionais, fugindo de um caráter avaliativo, potencialmente propiciador de reações negativas e indo em direção a uma construção coletiva de consciência sobre as práticas profissionais e as suas consequências para os usuários de saúde mental. Nesse sentido, ressaltamos que o método utilizado possibilitou o diálogo entre os saberes acadêmicos dos pesquisadores e a experiência dos profissionais, desmistificando a ideia do conhecimento unilateral, e reconhecendo o profissional da ponta como parceiro da discussão, e como indivíduo consciente de sua capacidade de melhoria e desenvolvimento.(18,19)
Nosso estudo corrobora com a perspectiva de que de forma oposta ao que ocorre na utilização da estratégia audit and feedback por meios passivos, o emprego dessa estratégia de implementação de forma ativa e participativa permite o diálogo entre os agentes e receptores, favorecendo assim a oportunidade de reflexão e discussão colaborativa sobre os dados apresentados.(20)Contudo, assim como já registrado na literatura, é importante que se observem algumas recomendações para utilização mais efetiva dessa estratégia, entre elas, o uso de mensagens tranquilizadoras e estratégias lúdicas que combinem recursos visuais e verbais para exposição dos dados, contribuindo assim para manutenção da atenção e para evitar a sobrecarga mental dos participantes.(21)
A literatura traz diversas recomendações para elaboração do audit and feedback e eficácia de objetivos. As mais frequentes incluem fatores como a confiabilidade aos dados expostos e agentes da estratégia, metas e resoluções viáveis, o uso de mensagens tranquilizadoras e estratégias lúdicas - combinando recursos visuais e verbais para exposição dos dados - além de estratégias para manter a atenção e evitar a sobrecarga mental dos receptores.(21)
Por fim, entendemos que a utilização da estratégia audit and feedback teve grande importância no estabelecimento de um setting que permita a construção de um processo de implementação mais fidedigno e sustentável, uma vez que assim como demonstrado, os profissionais se apresentaram mais receptivos a intervenção, dando indícios, em suas falas, do alcance de um certo grau de aceitabilidade, adequação e adoção.
Como limitação, é importante reconhecer que, por ser um estudo qualitativo, que se baseia na percepção subjetiva desses desfechos, aspectos como a comparação do grau de ocorrência dos mesmos não são viáveis. Contudo, este é o primeiro estudo brasileiro avaliando esses desfechos por meio da estratégia audit and feedback, demonstrando assim sua relevância. Frente à inexistência de instrumentos padronizados e validados para o país, que possibilitem outra forma de avaliação desses desfechos enquanto representantes da tensão para mudança, este estudo representa um importante avanço no campo da Ciência de Implementação no país.
Conclusão
A análise das falas dos profissionais, emersas durante as discussões propiciadas pela estratégia audit and feedback, ao evocar os desfechos de implementação de aceitabilidade, adequação e adoção, revelam uma tensão por mudança gerada a partir da assimilação e discussão dos dados apresentados. Dessa forma, nosso estudo sugere que a estratégia audit and feedback pode ser uma ferramenta importante para viabilização de processos de implementação que venham a ser futuramente conduzidos. Entre os aprendizados com a experiência, destaca-se a potência da utilização de metodologias participativas para o emprego da estratégia, uma vez que a horizontalização desse processo parece ter contribuído para o rompimento das resistências frequentemente presentes na relação entre a academia e os serviços.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (FAPESP), à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) pelo financiamento e ao Laboratório Saúde Coletiva e Saúde Mental (Interfaces).
Referências
- 1 Bauer MS, Damschroder L, Hagedorn H, Smith J, Kilbourne AM. An introduction to implementation science for the non-specialist. BMC Psychol. 2015;3(1):32.
- 2 Bazemore A, Neale AV, Lupo P, Seehusen D. Advancing the science of implementation in primary health care [Editorial]. J Am Board Fam Med. 2018;31(3):307-11.
- 3 Theobald S, Brandes N, Gyapong M, El-Saharty S, Proctor E, Diaz T, et al. Implementation research: new imperatives and opportunities in global health. Lancet. 2018;392(10160):2214-28.
- 4 Yapa HM, Bärnighausen T. Implementation science in resource-poor countries and communities. Implement Sci. 2018;13(1):154.
- 5 Proctor EK, Powell BJ, McMillen JC. Implementation strategies: recommendations for specifying and reporting. Implement Sci. 2013;8:139.
- 6 Powell BJ, Waltz TJ, Chinman MJ, Damschroder LJ, Smith JL, Matthieu MM, et al. A refined compilation of implementation strategies: results from the Expert Recommendations for Implementing Change (ERIC) project. Implement Sci. 2015;10:21.
- 7 Bauer MS, Kirchner J. Implementation science: What is it and why should I care? Psychiatry Res. 2020;283:112376. Review.
- 8 Oliveira EC, Medeiros AT, Trajano FM, Chaves Neto G, Almeida SA, Almeida LR. Mental health care in the territory: conceptions of primary health care professionals. Esc Anna Nery. 2017;21(3):e20160040.
- 9 Damschroder LJ, Aron DC, Keith RE, Susan RK, Alexander JA, Lowery JC. Fostering implementation of health services research findings into practice: a consolidated framework for advancing implementation science. Implementation Sci. 2009;4:50.
- 10 Powell BJ, Fernandez ME, Williams NJ, Aarons GA, Beidas RS, Lewis CC, et al. Enhancing the impact of implementation strategies in healthcare: a research agenda. Front Public Health. 2019;7:3.
- 11 Jamtvedt G, Flottorp S, Ivers N. Audit and Feedback as a Quality Strategy. In: Busse R, Klazinga N, Panteli D, editors. Improving healthcare quality in Europe: Characteristics, effectiveness and implementation of different strategies. Denmark: WHO Regional Office for Europe; 2019. 419 p.
- 12 Proctor E, Silmere H, Raghavan R, Hovmand P, Aarons G, Bunger A, et al. Outcomes for implementation research: conceptual distinctions, measurement challenges, and research agenda. Adm Policy Ment Health. 2011;38(2):65-76.
- 13 Jalbert Y. Guide d’auto-évaluation des organismes communautaires. Québec: Coalition des Organismes de Lutte Contre le SIDA; 1997.
- 14 Furtado JP, Onocko-Campos RT, Moreira MI, Trapé TL. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad Saude Publica. 2013;29(1):102-10.
- 15 Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977. 287 p.
- 16 Treichel CA, Silva MC, Presotto RF, Onocko-Campos RT. Research Management Committee as strategic device for a mental health implementation research. Saúde Debate. 2019;43(Spe 2):35-47.
- 17 Campos GW. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Cien Saude Colet. 1999;4(2):393-403.
- 18 Ferreira JP, Silva CO, Barros ME, Rotenberg L. Afirmando um éthos de pesquisador em saúde: processos participativos de restituição de resultados de pesquisas. Trab Educ Saúde. 2018;16(3):919-33.
- 19 Owolabi OO, Jordan PJ, Williams M, Ten Ham-Baloyi W. Strategies for the implementation of best practice guidelines in operating theatres: an integrative literature review. Health SA. 2021;26:1488. Review.
- 20 Brehaut JC, Colquhoun HL, Eva KW, Carroll K, Sales A, Michie S, et al. Practice feedback interventions: 15 suggestions for optimizing effectiveness. Ann Intern Med. 2016;164(6):435-41.
- 21 Colquhoun H, Michie S, Sales A, Ivers N, Grimshaw JM, Carroll K, et al. Reporting and design elements of audit and feedback interventions: a secondary review. BMJ Qual Saf. 2017;26(1):54-60.
Editado por
-
Editor Associado (Avaliação pelos pares): Thiago da Silva Domingos. (https://orcid.org/0000-0002-1421-7468). Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Out 2022 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
8 Set 2021 -
Aceito
12 Abr 2022